ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI digna, que tenha acesso a alimentação, saúde, educação, lazer e trabalho de qualidade, mas também impõe a sociedade, de maneira geral, um agir pautado no pensamento coletivo, preocupado com os concidadãos e superando a tradicional perspectiva individualista. Esses direitos surgem em pleno século XX, em decorrência das barbáries ocorridas durante a Segunda Guerra Mundial. O cenário foi propício para os novos direitos alcançados: direito à paz, à solidariedade universal, ao reconhecimento recíproco de direitos entre vários países. Segundo Fachin e Silva (2012), os direitos fundamentais, consagrados na terceira esfera, podem ser vistos como escudos protetivos em favor das garantias coletivas e difusas. Os direitos desta dimensão, não tem como objetivo a liberdade ou a igualdade, mas sim a preservação da própria existência do grupo, do ser humano em si e mais que isso, a perpetuação desse. Portanto, conceituar solidariedade tornar-se-ia impossível se não o fizesse com devido respaldo, dessa forma o princípio de solidariedade é nitidamente expresso na Constituição da República Federativa do Brasil: “Artigo 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária” (BRASIL, 1988). A fome — eis um problema tão velho quanto a própria vida. Para os homens, tão velho quanto a humanidade. E um desses problemas que põem em jogo a própria sobrevivência da espécie humana, a qual, para garantir sua perenidade, tem que lutar contra as doenças que a assaltam, abrigar-se das intempéries, defender-se dos seus inimigos. Antes de tudo, porém, precisa, dia após dia. encontrar com que subsistir — comer. (CASTRO, 1984, p. 05) Ora, diante deste cenário, cuida reconhecer que a denominada “solidariedade alimentar” se encontra vinculada na efetiva participação comunitária na realização do direito à alimentação adequada. Trata-se, com efeito, de um agir ativo em prol daqueles que não possuem, por vezes, acesso à alimentação, sem que isso implique em uma dependência absoluta da atuação estatal e de seus programas. Obviamente, primar pela solidariedade alimentar significa envidar esforços, sobretudo a partir de uma atuação orgânica advinda do seio da população, a fim de estruturar mecanismos e programas sociais que assegurem a concreção do direito em 1048
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI comento. Neste contexto, inúmeras outras instituições atuam na tentativa de transformar a realidade em que vivem, como as organizações sem fins lucrativos. Esses tipos de entidades são movidos pela vontade de ajudar o próximo, reconhecendo como agente transformador da realidade local e identificando o gênero humano como unidade, superando a individualidade como aspecto característico, e têm conseguido expressivos resultados nas áreas em que existem. Além disso, sabendo que, em nossa sociedade, a doação de alimentos ainda se configura como uma prática ligada à religiosidade dos “cidadãos de bem” que tem o dever de praticar esmolas para ficarem em paz com suas consciências, propomos uma breve, mas indispensável análise, de como o poder público trata a questão da oferta de alimentação: também como um favor ou como um direito humano fundamental e universal? Como a demanda se apresenta, por vezes, complexa, a concessão de cesta básica parece aliviar e confortar as adversidades vividas. Como o Estado se propõe a ser mínimo para a área social, prover alimentação, enquanto indispensável para a sobrevivência humana, parece ser o lenitivo necessário para que o indivíduo supere por si só a situação vivenciada. Por vezes, o que se observa é uma provisão pontual, isto é, o cidadão não é acompanhado ou mesmo encaminhado em suas necessidades aos serviços socioassistenciais complementares e necessários. (BOVOLENTA, 2017, p.509) Neste contexto atual de perda diária de direitos, de desmontes das políticas minimamente organizadas, temos de nos posicionar como defensores do acesso aos direitos não só os da assistência social, mas os de saúde pública, de educação de qualidade, de alimentação digna e saudável, entre outros. O norte deve sempre ser o alargamento da proteção social, a expansão e qualificação das ofertas e isso inclui a regulamentação dos benefícios eventuais, por isso precisamos falar sobre a cesta básica. 3.2 AS POLÍTICAS PÚBLICAS Ao falar-se em políticas públicas e sua relação como instrumentos de inclusão social faz-se necessário compreender a sociedade e o Estado em que estas políticas estão inseridas e se desenvolvem. A sociedade brasileira tem empenhado esforços ao longo dos anos para a consolidação de um Estado com a capacidade de realizar a garantia dos mínimos sociais, assim, fala-se em Estado da inclusão social como aquele 1049
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI que visa desenvolver a democracia por meio de políticas que possibilitem a participação ativa de seus cidadãos. Nesta perspectiva de Estado não se concebem ações públicas dissociadas dos interesses sociais, não se concebendo mais o cidadão que participa da vida política apenas quando exerce seu direito de voto, mas sim como sujeito inserido no seio das políticas governamentais de forma ativa e democrática. Nesse sentido, segundo Reis e Leal (2007, p. 81), o Estado, para ser plenamente democrático: [...] deve contar, a partir das relações de poder estendidas a todos os indivíduos, com um espaço político demarcado por regras e procedimentos claros, que efetivamente assegurem o atendimento às demandas públicas da maior parte da população, elegidas pela própria sociedade, através de suas formas de participação/representação, tanto as oficiais como as espontâneas, fruto da organização de segmentos comunitários (estamos falando das Organizações Não-Governamentais, das Associações Civis, dos Sindicatos, dos Conselhos Populares – municipais e estaduais). As políticas públicas desenvolvidas pelo Estado são, assim, ações essenciais de participação cidadã, desde a definição de problemas a serem amparados pelos programas governamentais até a avaliação deles. Torna-se, então, fundamental a discussão acerca do conceito e concepções gerais acerca das políticas públicas. As pesquisas abordando as políticas públicas são crescentes, no entanto, faz-se necessário especificar a concepção de políticas públicas que se adota em cada estudo, tendo em vista que este termo se apresenta pouco definido em virtude de sua ampla utilização. O Ministério da Saúde apresenta um conceito de políticas públicas relevante para a compreensão destas ações: Políticas públicas configuram decisões de caráter geral que apontam rumos e linhas estratégicas de atuação governamental, reduzindo os efeitos da descontinuidade administrativa e potencializando os recursos disponíveis ao tornarem públicas, expressas e acessíveis à população e aos formadores de opinião as intenções do governo no planejamento de programas, projetos e atividades (BRASIL, 2006, p. 09). O conceito exposto cita aspectos importantes na concepção de políticas públicas, dentre eles a descontinuidade administrativa ocorrida em virtude da mudança periódica dos governantes. Esta mudança é positiva na medida em que permite melhorias e avanços, no entanto, a descontinuidade também pode levar à criação de novas 1050
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI diretrizes, distintas ou até mesmo contraditórias em relação às anteriores, gerando desperdício de recursos financeiros. Ademais, ressalte-se que a definição apresentada pelo Ministério da Saúde expõe as políticas públicas como meio de participação dos cidadãos, uma vez que estes passam a conhecer as intenções do governo, podendo então apoiá-las, conhecer sua implementação ou até mesmo opor-se à sua execução (SCHMIDT, 2008). As políticas públicas representam a atuação estatal visando atender diretamente às demandas da sociedade. De acordo com Bucci (1997) as políticas públicas funcionam como instrumentos de aglutinação de interesses em torno de objetivos comuns que passam a estruturar uma coletividade de interesses e funcionam como um instrumento de planejamento, racionalização e participação popular. As políticas públicas têm se constituído como oportunidades para melhorar os serviços públicos e expandir a participação cidadã. De acordo com Cunha e Costa (2003) tais políticas são criadas como uma resposta do Estado, na pessoa de seus entes públicos, às demandas que emergem da sociedade e do seu próprio interior, sendo expressão do compromisso público de atuação numa determinada área em longo prazo. Ainda conforme Cunha e Costa (2003, p. 15): O processo de formulação de uma política envolve a identificação dos diversos atores e dos diferentes interesses que permeiam a luta por inclusão de determinada questão na agenda pública e, posteriormente, a sua regulamentação como política pública. Assim pode-se perceber a mobilização de grupos representantes da sociedade civil e do Estado que discutem e fundamentam suas argumentações, no sentido de regulamentar direitos sociais e formular uma política pública que expresse os interesses e as necessidades de todos os envolvidos. A análise das políticas públicas traz importantes contribuições para a compreensão do funcionamento das instituições políticas e de como estas lidam com as complexidades da realidade social na atualidade. Dentre as situações problemáticas vivenciadas ao longo dos anos pela sociedade brasileira. A inclusão social tem sido foco de muitas políticas públicas desenvolvidas no país, tornando-se meios para a concretização da inclusão no espaço social. Para Schmidt (2008), inclusão social relaciona-se às iniciativas empreendidas pelo Estado e pela sociedade civil para enfrentar os processos de exclusão nas suas diversas esferas (social, 1051
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI econômica, política e cultural), de modo a tornar possível a todos ou ao maior número os benefícios que a sociedade possibilita apenas a certos segmentos. Em razão das múltiplas barreiras sociais que lhes são impostas, os pobres tem extrema dificuldade de ver-se como atores capazes de exercer alguma influência real no seu ambiente social e na esfera política. O empoderamento consiste numa transformação atitudinal de grupos sociais desfavorecidos que os capacita “para a articulação de interesses, a participação comunitária e lhes facilita o acesso e controle de recursos disponíveis, a fim de que possam levar uma vida autodeterminada, autorresponsável e participar do processo político” (BAQUERO, 2005, p.39). No seu alcance mais amplo, este empoderamento resulta na criação das condições que habilitam os pobres à conquista dos direitos de cidadania, principalmente, no que tange ao objeto desse trabalho, o direito à alimentação. Considerando que o principal meio de distribuição de recursos pelo Estado ocorre mediante a implementação das políticas públicas, as quais têm como principal destinatário a sociedade, entende-se imprescindível que os anseios e necessidades desta sejam considerados, desde a etapa da percepção e definição dos problemas que precedem a formulação de uma política pública até a etapa de avaliação. Acrescente-se a isso, o fato de que o resgate dos vínculos sociais e da participação da sociedade civil como um todo, tem sido apontados, nos debates mais recentes, como caminho para minimizar os efeitos decorrentes de práticas setorizadas e excludentes. As políticas públicas têm se constituído como oportunidade para melhorar os serviços públicos, expandir a participação cidadã e promover a inclusão social. O estudo das políticas públicas é essencial no que tange à política de saúde, e assistência social, logo, o direito à alimentação como fundamental., tendo em vista sua relação com as atividades fundamentais do Estado. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Cabe aqui o entendimento de que os direitos individuais e coletivos são aqueles diretamente ligados, ao conceito da pessoa humana, sua integridade e sua personalidade, tais como os direitos basilares inerentes à humanidade, ao qual concerne 1052
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI a vida propriamente dita, a igualdade, a dignidade, a honra, a segurança, a propriedade e a liberdade. Neste cenário, a concepção que é gerada em torno da solidariedade alimentar configura a visão contemporânea de concretização dos direitos humanos, em especial o direito à alimentação adequada, por meio de uma atuação ativa, organizada e orgânica da coletividade, como destinatário dos direitos humanos e ultrapassando o discurso individualizado. Nessa perspectiva em que repousa a base principiológica da solidariedade valoriza-se a dignidade da pessoa humana, de maneira que, as políticas públicas, ao considerarem esta base em suas ações, beneficiarão tanto os anseios sociais como os anseios de cada cidadão, especificamente, ao promover oportunidades de inclusão social e empoderamento. No pensar coletivo, percebe-se o quanto o princípio da solidariedade é fundamental para a sociedade contemporânea, fazendo-se necessário o desenvolvimento de ações que concretizem este princípio tanto por parte do poder público como da sociedade, que podem ser consolidadas por meio das políticas públicas. REFERÊNCIAS BAQUERO, M. Um modelo integrado de democracia social na América Latina. Revista Debates, Porto Alegre, n.1, dez. 2005. BOVOLENTA, Gisele Aparecida. Cesta básica e assistência social: notas de uma antiga relação. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 130, p. 507-525, set./dez. 2017. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de Outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 04 de maio de 2020. __________. Emenda Constitucional nº 64, de 04 de Fevereiro de 2010. Altera o art. 6º da Constituição Federal, para introduzir a alimentação como direito social. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc64.htm>. Acesso em 04 de maio de 2020. __________. Ministério da Saúde. Política nacional de plantas medicinais e fitoterápicos. Brasília, 2006. BUCCI, M. P. D. Políticas públicas e direito administrativo. Revista de Informação Legislativa. Brasília, 34, n. 133, jan./mar. 1997. 1053
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI CASTRO, Josué de. Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10 ed. Rio de Janeiro: Edições Antares, 1984. CUNHA, E. P. ; COSTA, B. L. D. Políticas Públicas Sociais.: As mudanças na agenda das políticas sociais no Brasil e os desafios da inovação. O caso das políticas de assistência social à infância e à adolescência. In: CARVALHO, A. et al. Políticas Públicas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. p.12-24. FACHIN, Zulmar. SILVA, Deise Marcelino da. Acesso à água potável direito de sexta dimensão. 2 ed. São Paulo: Millennium, 2012. REIS, J. R. dos; FONTANA, E. O princípio da solidariedade e a hermenêutica filosófica na sustentabilidade dos direitos fundamentais sociais, diante dos argumentos do mínimo existencial e da reserva do possível. In: REIS, J. R. dos; LEAL, R. G. (Orgs.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 10. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010. SCHMIDT, J. P. Para entender as políticas públicas: aspectos conceituais e metodológicos. In: REIS, J. R.; LEAL, R. G. (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Tomo 8. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p.2307-2333. 1054
EIXO TEMÁTICO 2 | TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS A DESPROTEÇÃO SOCIAL E O ESTADO LATINO AMERICANO: contribuições para o debate SOCIAL DEPROTECTION AND THE LATIN AMERICAN STATE: contributions to the debate TELES, Heloísa1 MARCELINO, Eduarda2 RESUMO O presente estudo configura-se como produto parcial da pesquisa intitulada A questão do Estado no capitalismo dependente: cartografia categorial desde a Teoria Marxista da Dependência que tem por objetivo analisar a questão do Estado no Capitalismo dependente, decifrando a contradição entre a ideologia da modernização do Estado latino-americano e sua expressão fenomênica concreta, produto da sobreposição entre subdesenvolvimento e dependência.Ancorado pelo método materialista histórico dialético, a presente reflexão objetiva problematizar a relação paradoxal estabelecida entre as características fundantes do Estado e a proteção social residual e fragmentária latino-americana. Através da revisão bibliográfica busca- se evidenciar a característica da dependência como fundante do Estado latino-americano e determinante para o padrão de respostas à questão social e, consequentemente, a reprodução do padrão de desproteção social na região. Palavras-Chaves: Proteção Social; Estado; Capitalismo dependente; América Latina. 1 Assistente Social, Mestre e Doutora pela PUC/RS. Docente no Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do grupo de estudos e pesquisa Trabalho e Política Social na América Latina - Veias Abertas. E-mail: [email protected]. 2 Graduanda de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Bolsista de pesquisa do grupo de estudos e pesquisa Trabalho e Política Social na América Latina - Veias Abertas. E-mail: [email protected]. 1055
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI ABSTRACT The present study is a partial product of the research entitled The question of the State in dependent capitalism: categorical cartography from the Marxist Theory of Dependence which aims to analyze the question of the State in dependent Capitalism, deciphering the contradiction between the modernization ideology of Latin American state and its concrete phenomenal expression, product of the overlap between underdevelopment and dependence. Anchored by the dialectical materialistic historical method, this reflection aims to problematize the paradoxical relationship established between the founding characteristics of the state and the residual and fragmentary social protection in Latin America. The bibliographic review seeks to highlight the characteristic of dependence as the foundation of the Latin American State and determinant for the pattern of responses to the social question and, consequently, the reproduction of the pattern of social deprotection in the region. KEYWORDS: Social Protection; State; Dependent capitalism; Latin America. INTRODUÇÃO Apesar de se encontrar circunscrita em um debate polêmico no que se refere ao conceito e a matriz teórica, adotar-se-á nesse trabalho a perspectiva que compreende a proteção social enquanto desdobramento da contradição inerente ao modo de produção capitalista que pretende constituir estratégias que possam aliviar as condições mais penosas vividas pela população, mas, ao mesmo tempo, assegurar as condições para a reprodução da exploração da força de trabalho e extração do mais valor. Dessa forma, pode-se apreender a proteção social caracterizada pela ação coletiva de proteger indivíduos contra os riscos inerentes à vida humana e/ou assistir necessidades geradas em diferentes momentos históricos e relacionadas com múltiplas situações de dependência (PASTORINI, 1997). Soma-se a essa concepção, o objetivo de atuar enquanto reguladora das relações e condições imanentes a inserção produtiva dos sujeitos no mundo do trabalho. Contextualizando a proteção social no decurso do desenvolvimento societário, torna-se possível localizá-la no bojo da promulgação dos direitos civilizatórios, uma vez que versa sobre a preservação e a segurança da dignidade humana. Apresenta-se como fruto da correlação de forças de dado contexto geográfico e histórico, arraigada de 1056
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI manifestações políticas e ideológicas e, portanto, congregando a defesa da universalização dos direitos sociais e o atendimento às necessidades básicas com a expansão do modo de produção capitalista e a busca incessante pelo mais valor. No que tange às particularidades da proteção social latino-americana, cabe destacar as determinações conferidas pelo caráter dependente e de desenvolvimento desigual e combinado que se constituem como basilares da formação sócio histórica dos países latino americanos. Na América Latina ocorreu um processo de implementação de um tipo de industrialização que pode ser denominada como “recolonizadora3” (RIBEIRO, 1979), regido pela grande empresa multinacional que ensejava amplas oportunidades de expansão de seus mercados em detrimento da organização, implantação de condições ao mercado interno das economias dos países recém-descobertos, buscando constituir uma reserva de acumulação primitiva. Essa forma determinada de integração ao capitalismo central pelos países da região, se deu via incorporação dos elementos mais modernos dos países capitalistas centrais combinando com as relações sociais e de produção arcaicas, presentes nas sociedades latino-americanos. Nessa perspectiva, várias foram as teorias que se propuseram a interpretar essa realidade e oferecer estratégias para a superação das adversidades vivenciadas pela grande maioria dos países latino-americanos. Dentre elas destacam-se aquelas que criticam a lógica etapista de desenvolvimento e defendem a análise do capitalismo enquanto uma unidade contraditória, filiado ao preceito marxista de que “é preciso apreender no movimento da história o grau de desenvolvimento da sua condição econômica, o modo da sua produção e [o] modo do seu intercâmbio condicionado pelo modo de produção [capitalista].” (MARX, 2011, p. 22). Apreender a lógica das contradições econômicas e sociais dos países latino- americanos pressupõe considerar os diferentes elementos que pautam essa relação, destacando-se as forças produtivas e as suas relações, a conformação do Estado e a constituição das classes sociais. A materialidade dessas relações produz consequências particulares que se manifestam de diferentes formas na vida social e impactam na 3 O processo de industrialização recolonizadora trata-se de um “novo movimento de atualização ou incorporação histórica [...] regido pela grande empresa multinacional que, tal como os anteriores, enseja amplas oportunidades de modernização reflexa e até mesmo de progresso relativo, mas opera, em essência, como um limitador das potencialidades de desenvolvimento pleno dos povos por ele atingidos” (RIBEIRO, 1979, p. 31). 1057
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI continuidade da garantia da acumulação privada da riqueza socialmente produzida em detrimento da satisfação das necessidades básicas da população. De forma contrária às análises deterministas que propunham a homogeneização da história, importa destacar que as relações singulares constituídas nos diferentes países latino-americanos não obedeceram simplesmente às necessidades de reprodução do capitalismo industrial. A constituição das economias latino-americanos esteve condicionada à estrutura da produção (especialmente as forças produtivas) e à conformação das classes sociais de cada país e, portanto, diferentes elementos compõem as particularidades regionais como a baixa capacidade produtiva, a incidência do trabalho escravo na constituição do trabalho assalariado, a insuficiência de poupança interna e a formação dos mercados internos. O desenvolvimento desigual e combinado e o consequente caráter dependente das economias latino-americanas são consideradas nesse estudo como conceitos-chave para apreender a dinâmica universal da proteção social na região. Diante disso, considerando que a conformação dos sistemas de proteção social se manifesta como “fruto da disputa e da capacidade de mobilização coletivas dos indivíduos nas formas ampliadas ou reduzidas de relação com o Estado” (COUTO, 2010, p. 2), evidencia-se o quão imprescindível é refletir sobre o papel contraditório assumido pelo Estado enquanto ente mediador das forças sociais e questionar sobre as finalidades historicamente vinculadas a si, afastando-se de análises que insistem em lhe conferir um caráter de neutralidade e/ou de representação maléfica. Este é o objetivo que se coloca para esse trabalho. 2 O ESTADO LATINO-AMERICANO: ALGUMAS CARACTERÍSTICAS COMUNS A sociedade latino-americana, conforme explicitado no item anterior, foi forjada a partir de inúmeras contradições e interesses alheios aos objetivos de desenvolvimento regional que desencadearam formas determinadas de sociabilidade e estruturação das Instituições sociais, políticas e econômicas. O desenvolvimento voltado para garantia da acumulação primitiva do capitalismo internacional se constitui como prerrogativa principal da história latino-americana. 1058
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Nesse contexto, tomando particularmente a reflexão sobre o Estado, faz-se necessário considerar a premissa que o define como “[...] produto da sociedade num estágio específico do seu desenvolvimento.” (ENGELS, 2012, p. 160). Ou seja, o Estado é consequência do próprio desenvolvimento da sociedade e, portanto, sua conformação dependerá das condições de reprodução da estrutura social de determinado país e/ou região estando diretamente vinculado ao grau de desenvolvimento da sua estrutura econômica e da realização das condições de acumulação primitiva. Desse modo, as forças sociais hegemônicas em determinado período da história acabam influenciando a organização do Estado e tensionando para que assuma tendências particulares no âmbito da correlação de forças da sociedade. Assim, o Estado é compreendido, não meramente como um sujeito intermediador dos conflitos entre as classes sociais e também não apenas como um objeto externo e manipulável, segundo os interesses de uma única classe homogênea, mas sim como uma tensa relação social. Tal perspectiva se contrapõe à noção de Estado enquanto mediador do crescimento econômico e provedor de políticas sociais, tal como concebido nas definições liberais e, concomitantemente, propõe suplantar um marxismo reducionista que compreende o Estado como relacionado apenas à burguesia ou fração dela. Ademais, a análise sobre o Estado pautada pelo cariz marxista se coloca contrária à ideia contratualista do Estado enquanto representante da vontade geral e problematiza a questão da luta de classes e a possibilidade de representação em um cenário de exploração e opressão da classe trabalhadora, uma vez que o Estado se origina da contradição entre os interesses individuais e coletivos. Essa vertente evidencia o caráter classista do Estado e os processos manipulatórios que perpassam as relações sociais no modo de produção capitalista e forjam a ideia de liberdade e igualdade. O Estado é a condensação das correlações de forças. Se diversas classes sociais (e outros grupos) atuam e se desenvolvem na sociedade, todas elas buscam alcançar seus interesses. Em diversos graus, o Estado tem a particularidade de assumir demandas e posições de todas as classes, frações e setores. Porém, assume-as com a condição de que há classes que detêm o poder político e outras não. Desta forma, muitos interesses sociais adquirem expressão na vida em comum, mas com limitações estabelecidas pelos interesses dos grupos sociais dominantes. (OSÓRIO, 2017, p. 27). Negando a premissa fatalista que qualifica o Estado apenas como um instrumento exclusivo de dominação, o marxismo enuncia que “[...] o caráter de classe 1059
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI do Estado se baseia em mecanismos estruturais que articulam e combinam – mediante compromissos sempre difíceis e provisórios – as necessidades da acumulação capitalista com os imperativos emanados dos interesses universais da sociedade.” (BORÓN, 1994, p. 260). Essa articulação ocorre pautada por duas principais estratégias: a) a aparência de independência em relação à própria sociedade e; b) a conexão entre ideologia e Estado. Sobre essa última, salienta-se a capacidade de transformação dos interesses de classe em interesses gerais a partir da universalização das ideias da classe dominante enquanto verdades universais. Assim, descarta-se a premissa de que o Estado expressa o interesse comum de todos pois, nesse contexto, não se constitui como um poder externo ou alheio à sociedade, sendo ele O reconhecimento de que essa sociedade está enredada numa irremediável contradição com ela própria, que está dividida em oposições irreconciliáveis de que ela não é capaz de se livrar. Mas para que essas oposições, essas classes com interesses econômicos em conflito não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, tornou-se necessário um poder situado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-la dentro dos limites da ‘ordem’. Esse poder, surgido da sociedade, mas que se coloca acima dela e que se aliena cada vez mais dela, é o Estado. (ENGELS, 2012, p. 160). Compondo o conjunto de interesses gerais, localiza-se a defesa da democracia social-burguesa a qual encontra-se legitimada e regulamentada por um notável arcabouço jurídico e separada em distintos poderes – executivo, legislativo e judiciário. O conjunto de normatizações, de forma contraditória, inclui regulamentações para garantir as condições mínimas de sobrevivência (e aqui cita-se a proteção social) e o consentimento da sociedade ao mesmo tempo em que conserva e expressa os interesses da classe dominante. Esse tipo de Estado incorpora uma poderosa defesa ideológica e legal da igualdade, da mobilidade e da liberdade dos indivíduos, ao mesmo tempo que é muitíssimo protetor do direito de propriedade e da relação básica entre capital e trabalho. Desse modo característico, a economia capitalista de troca, com base no mercado, floresce numa liberdade ambígua, que inclui liberdade de consciência, expressão e emprego, ao mesmo tempo que incorpora a liberdade para explorar, para obter lucro privado às custas do Estado e para monopolizar os meios de produção. O compromisso da democracia burguesa em relação à liberdade é, de fato, o compromisso com todos esses diferentes tipos de liberdade simultaneamente. (HARVEY, 2005, p. 84). 1060
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Nessa perspectiva, torna-se possível afirmar que o Estado se origina de uma contradição fundamental: da necessidade de manter os antagonismos de classe sob controle e da própria luta entre as classes. De modo geral, observa-se que no âmbito capitalista, o Estado tem sido conduzido “pela classe mais poderosa, economicamente dominante, que, por intermédio dele, converte-se também em classe politicamente dominante.” (ENGELS, 2012, p. 162). Particularizando a América Latina, faz-se necessário atentar para a complexidade e riqueza dos determinantes que compõem o Estado nos diferentes países latino americanos, destacando o caráter contraditório que se encontra arraigado em sua gênese, incluindo as especificidades do próprio capitalismo dependente e da capacidade de organização e resistência da classe trabalhadora. Nessa linha de pensamento, “[...] o estado não só é um “pacto de dominação”, mas também um ator político dotado de estruturas organizativas complexas que lhe confere enormes capacidades potenciais de intervenção na vida social.” (BORÓN, 1994, p. 264). Tomando o objetivo delineado para o presente estudo que é pesquisar o papel desempenhado pelo Estado e as consequentes formas assumidas pela proteção social, cabe inferir que a América Latina apresenta algumas particularidades que alicerçam a forma como o Estado se constitui, expressa pelos parâmetros estruturais de sua formação social, econômica, política e cultural da região, conforme evidenciado no item anterior. De um modo geral, logo após o período de independência da grande maioria dos países latino-americanos – primeiro quartel do século XIX –, os vínculos com os países colonizadores passam por mudanças, adquirindo características mais acentuadas do imperialismo e os senhores da terra assumem o papel de classe dominante, dando origem à estruturação dos Estados. Agudiza esse quadro o caráter dependente do Estado que, potencializado pelo desenvolvimento desigual no capitalismo, “induz a uma espécie de Estado burguês interno e estruturalmente cindido, constrangido também pelo desenvolvimento desigual.” (PAIVA; CARRARO; ROCHA, 2011, p. 195). Esse modelo determinado de dependência é responsável pela reprodução de uma contradição histórica caracterizada pela coexistência de um Estado com aspirações modernas e um modelo de relação social de caráter oligárquico e arcaico que caracteriza a modernização conservadora. 1061
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Ruy Mauro Marini afirma que o momento que configura a chamada dependência, ou seja, essa relação de subordinação entre nações formalmente independentes, é quando a América Latina passa a exercer um papel específico no movimento internacional do capital e na acumulação em escala ampliada, e que resulta em consequências para a organização das sociedades Latino-Americanas. Na obra intitulada Dialética da Dependência, Marini (2000) apresenta os mecanismos que determinam a produção e a reprodução de capital em escala ampliada, partindo das relações estabelecidas entre países centrais e países periféricos, apontando ainda suas consequências sob a organização das sociedades dependentes. Segundo o autor, são estabelecidas relações comerciais que se baseiam em um sistema de trocas assimétricas e desfavoráveis, reatualizando permanentemente os termos do intercâmbio desigual. Através desse mecanismo, os condicionantes da dependência empreendem uma maciça transferência de valor produzido na periferia, que é então apropriado no centro da acumulação mundial, de modo que tal dinâmica capitalista, nos termos de Marini (2000), é garantida através de uma superexploração da força de trabalho na periferia. A superexploração da força de trabalho, mecanismo típico adotado nessas economias por meio da intensificação dos processos de extração da mais-valia nas suas formas absoluta e relativa combinadas, segundo análise de Marini (2000), caracteriza- se como um regime de regulação da força de trabalho em que a acumulação de capital repousa sobre a maior exploração do trabalhador e não sobre o aumento da sua capacidade produtiva. Através desse mecanismo, portanto, a América Latina desempenha uma funcionalidade dual: transformando as relações sociais no interior dos países centrais, haja vista que os produtos primários fornecidos pelos países periféricos permitem manter determinado nível de salários aos trabalhadores daqueles países; compensando as perdas, próprias do intercâmbio desigual na relação com as economias centrais, a partir da superexploração da força de trabalho. Assim, de acordo com Marini (2000), o que aparentemente configura um dispositivo estrutural de compensação em nível de mercado, caracteriza-se como um instrumento que opera internamente no âmbito das relações sociais de produção gerando, nos países dependentes, efeitos severos sobre o trabalho, por meio de três 1062
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI mecanismos, quais sejam, “a intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho” (MARINI, 2000, p. 125). Nesse sentido, o Estado se expressa além de Estado burguês, como um Estado burguês dependente, ou seja, vinculado estritamente aos interesses do capital em escala global, e protagonista dos ajustes e organizações necessárias à permanência da dominação externa. O caráter de desenvolvimento dependente e tardio, característico dos países latino-americanos, inscreve nos Estados o signo do atraso e implanta o desafio de manter algum nível de soberania e, ao mesmo passo, estimular, por diferentes meios, o desenvolvimento da região. A combinação entre elementos progressistas e arcaicos foi um dos principais fatores que impediram a realização de uma revolução democrático- burguesa que fosse capaz de suplantar as bases da antiga ordem colonial e instituir as bases do Estado democrático de direito. Pelo contrário, a aliança realizada pela “burguesia nacional” – ou melhor, burguesia brasileira, com o capital internacional criou uma identidade particular, excluindo o caráter nacional de sua essência. Ademais, devido ao processo de desenvolvimento do capitalismo mundial e à ocorrência de flutuações e crises, os estados acabam por sofrer graves impactos em sua dinâmica organizativa, demandando o constante reordenamento de suas políticas econômicas e sociais. O Estado, nos diferentes países latino-americanos foi, historicamente, assumindo o papel de protagonista do projeto de subdesenvolvimento, restrito ao lugar da periferia e conformando uma determinada caracterização de funções e formas determinadas de intervenção frente à questão social que tem, paulatinamente, se agravado. A coexistência de relações produtivas que integram tecnologia e padrões primitivos de produção carecem de intervenção estatal no sentido de instituir padrões mínimos de regulação social. Esse quadro agrava as relações de exploração do trabalho e desemprego e agudizam as possibilidades de reprodução da vida social para a maioria da população. Soma-se a isso a identificação de uma unidade identitária que congrega os Estados latino-americanos, incluindo a existência de tarefas comuns destinadas às instâncias estatais, dentre elas: assegurar a reprodução ampliada do capital; administrar a estrutura institucional e organizativa e a manutenção da reprodução social em meio à flutuação de capitais e progressivo envio dos excedente para os países centrais e 1063
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI suprimir as dificuldades e os problemas típicos das economias dependentes (PAIVA; CARRARO; ROCHA, 2011). Nesse contexto, é possível asseverar que o Estado se torna um lugar privilegiado do capital, encontrando-se transpassado pelo jogo das forças sociais presentes na sociedade latino-americana e tendendo aos interesses dos grupos econômicos hegemônicos, representados pelas empresas transnacionais e capital financeiro. Para tanto, historicamente, tem desempenhado funções complementares e inovadoras no campo da economia e, consecutivamente, nas áreas políticas e sociais (IANNI, 2004). Esse quadro produz um acréscimo de responsabilidades ao Estado e acentua as contradições advindas da relação entre as esferas da produção e reprodução da vida em sociedade, principalmente frente à resistência dos trabalhadores, advinda das lutas sociais em oposição aos processos de exploração e destituição de direitos. Resulta ainda dessa complexificação a forma particular de formatação da proteção social na região, uma vez que objetivam a materialização de padrões básicos de reprodução da classe trabalhadora em meio a um cenário de crescente de pauperização e desigualdade. O alcance da proteção social está diretamente vinculado à capacidade e condições presentes na correlação de forças da sociedade, sendo que, historicamente, a classe trabalhadora dos diferentes países latino-americanos vivencia inúmeros desafios para impor sua agenda de lutas, principalmente, considerando as formas determinadas de relação de poder existentes na região. Esse quadro suscita a reflexão sobre as incidências produzidas pelas diferentes forças e atores sociais que atuam no âmbito da sociedade, com ênfase para o Estado e a instabilidade – estrutural – do capitalismo que condiciona o direcionamento dos gastos públicos sociais e, consequentemente, da própria proteção social. A lógica da sociedade do capital é antagônica à proteção social por considerá- la expressão de dependência, e atribui às suas ações o contorno de manifestação de tutela e assistencialismo, em contraponto a liberdade e autonomia que, pelos valores da sociedade do capital, devem ser exercidas pelo “indivíduo” estimulando sua competição e desafio empreendedor. Nesse ambiente, a proteção social é estigmatizada no conjunto da ação estatal e, por consequência, esse estigma se espraia àqueles que usam de suas atenções e, até mesmo, a quem nela trabalha. (SPOSATI, 2013, p. 656). 1064
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI A proteção social, inserida nesse contexto, vem desempenhando na América Latina o papel de ser parte constitutiva das estratégias do capital para garantir que o Estado siga reproduzindo os mecanismos e estruturas de poder dominantes. Em atenção a esse movimento, observa-se que a implementação da proteção social ocorreu, quase em sua totalidade, centrada na inserção dos beneficiários no mercado formal de trabalho e na distribuição de benefícios sociais com caráter contributivo. Pode-se apreender que a implementação da proteção social ocorreu, em sua maioria, seguindo um modelo focalizado e fragmentado, através da composição de sistemas frágeis e baseados em modelos de seguro social importados da Europa que, por vezes, não tem dado conta de suprir as necessidades singulares de suas realidades, produzindo como resultado a constituição de políticas sociais pulverizadas e com pouca eficácia, ou seja, a desproteção social. Apesar de muitos países da região terem galgado importantes avanços no que concerne à estruturação de sistemas de proteção social, principalmente no último quartel do século XX, a focalização figura-se como marca constituidora da proteção social latino-americana. Contrapondo o conceito de universalização que pauta a concepção de Estado de Bem-estar social e pretende viabilizar os direitos sociais e o pleno exercício da cidadania e democracia, a focalização prevê o direcionamento dos investimentos e ações para grupos específicos, reconhecidamente, vulneráveis. 3 CONCLUSÃO Refletir sobre as determinações sócio-políticas e econômicas que atravessam e conformam a proteção social no contexto latino-americano torna-se fundamental para decifrar as contradições presentificadas na realidade social. Considerando as particularidades da formação sócio-histórica latino-americana, cabe destacar a incidência do caráter dependente no âmbito da proteção social, principalmente no que se refere à amplitude de seu alcance e às mediações estabelecidas pelo Estado para atender as pressões e reivindicações dos trabalhadores de um lado e, do grande capital de outro. Os desdobramentos advindos do processo de industrialização via incorporação dos elementos mais modernos do capitalismo central combinado com relações sociais e 1065
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI de produção arcaicas latino-americanas, contribuiu para a preservação da dependência econômica e tecnológica da região e do agravamento das expressões da questão social. A necessária acumulação capitalista dos países centrais vem, historicamente, significando a não acumulação nos países periféricos através do incremento paulatino de estratégias que mantêm a centralização e concentração de riquezas, o baixo desenvolvimento tecnológico e o incentivo à produção de bens primários (commodities). Corroboram com essa situação os velhos poderes da sociedade latino-americana que, materializados pela estrutura arcaica e dependente de produção e reprodução social, se ocupam de manter o status quo, preservando os velhos modos de distribuição/concentração da riqueza socialmente produzida4 e a reprodução de seus interesses em detrimento das possibilidades de elevação dos níveis de qualidade de vida e redução da desigualdade social da região. Considerando o processo de modernização da elite agrária via coalização com a tímida burguesia industrial e a cooptação do Estado em favor dos seus interesses, tem- se a preservação das relações de dependência tradicionais, não deixando espaço para os interesses das classes subalternas no interior da coalização de poder dominantes. Desse modo, a dinâmica das relações de poder estabelecidas entre o Estado e os diferentes setores da sociedade é responsável pela forma determinada de institucionalização e desenvolvimento das estruturas insuficientes de proteção social implementadas na região produzindo o que aqui tem sido denominado como desproteção social. REFERÊNCIAS BORÓN, Atilio A. Estado, capitalismo e democracia na América Latina. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. COUTO, Berenice Rojas. PROTEÇÃO SOCIAL E SEGURIDADE SOCIAL: a constituição de sistemas de atendimento as necessidades sociais. In: Anais XII ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM SERVIÇO SOCIAL. ABPESS: Rio de Janeiro, 2010. 4 Aqui importa reiterar que a forma específica de produção incide diretamente no modo de distribuição da riqueza socialmente produzida, sendo que “o modo dessa distribuição será diferente de acordo com o tipo peculiar do próprio organismo social de produção e o correspondente grau histórico de desenvolvimento dos produtores.” (MARX, 2013, p. 153). 1066
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Lafonte, 2012. HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005. IANNI, Octavio. Estado e Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2004. MARINI, Ruy Mauro. Dialética da Dependência: uma ontologia da obra de Ruy Marini. Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLASCSO, 2000. MARX, Karl. Os 18 de Brumário de Luis Bonaparte. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. OSORIO, Jaime Sebastian. Sobre o Estado, o poder político e o estado dependente. In: Revista Temporalis, Brasília (DF), ano 17, n. 34, jul./dez.2017. PAIVA, Beatriz, CARRARO, Dilceane, ROCHA, Mirella. Políticas Sociais na América Latina: a superexploração do trabalho e suas contradições. In: MATTEI, Lauro (org). A América Latina no limiar do século XXI: temas em debate. Florianópolis: Insular, 2011. SPOSATI, Aldaíza. Proteção social e seguridade social no Brasil: pautas para o trabalho do assistente social. Revista Serviço Social & Sociedade, nº. 116. São Paulo: Cortez, 2013. 1067
EIXO TEMÁTICO 2 | TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL: a legislação como indicação de direitos DOMESTIC WORK IN BRAZIL: legislation as an indication of rights Malanya Moreira Diniz1 RESUMO O trabalho doméstico no Brasil tem suas origens no período colonial, sendo executado por mulheres negras escravizadas, essencialmente, sendo por esse motivo marcado por desvalorização e preconceito, o que implicou no retardo de uma legislação que formalizasse e garantisse direitos a essas trabalhadoras. Desta forma este artigo aborda sobre aspectos históricos do trabalho doméstico na sociedade, como também aborda sobre o processo histórico da construção dos direitos das empregadas domésticas, com destaque para a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a PEC nº 72, e a Lei Complementar 150/2015, visando assim traçar uma linha sobre a evolução histórica e legislativa do trabalho doméstico no país. Palavras-Chaves: Trabalho doméstico, mulheres negras, leis trabalhistas. ABSTRACT Domestic work in Brazil has its origins in the colonial period, being carried out by enslaved black women, essentially, and for this reason it was marked by devaluation and prejudice, which led to the delay of legislation that formalized and guaranteed rights to these women workers. In this way, this article addresses historical aspects of domestic work in society, as well as the historical process of building the rights of domestic workers, with emphasis on the Consolidation of Labour Laws (CLT), the PEC No. 72, and Complementary Law 150/2015, thus seeking to draw a line on the historical and legislative evolution of domestic work in the country. 1 Estudante do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão. E-mail:[email protected]. 1068
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Keywords: Domestic work, black women, labour laws. INTRODUÇÃO O presente artigo debruça-se sobre a história do trabalho doméstico e como este se tornou uma atividade essencialmente realizada por mulheres. O contexto histórico do trabalho doméstico no Brasil tem suas raízes no período escravocrata, quando são criados os estigmas que perduram até os dias atuais e neste sentido, assume destaque a figura da mulher negra que esteve sempre atrelada à casa grande. Partindo da ideia da divisão sexual do trabalho, a origem do trabalho doméstico no Brasil se dá na colônia, sendo um trabalho exercido quase que exclusivamente por mulheres escravizadas, e com o advento da abolição, o trabalho doméstico continuou sendo majoritariamente por mulheres negras. Posteriormente, tendo em vista o reconhecimento e a regulamentação da profissão que se deu muito lentamente, não pode deixar de se considerar a luta das empregadas e a sua articulação, como uma forma de resistência contra o passado colonial que persiste e persegue a profissão até os dias atuais, através de atitudes conservadoras que permeiam a relação entre patrões, patroas e empregadas. Dessa forma ao se tratar da história das empregadas(os) domésticas(os), é trazer à tona a discriminação e a desvalorização do trabalho, é se tratar da própria história da escravidão, da herança hereditária que as mulheres negras ainda carregam. Este artigo objetiva configurar o trabalho doméstico no Brasil e metodologicamente faz uma revisão bibliográfica do trabalho doméstico como processo sócio histórico, tendo como marco o período colonial. Encontra-se organizado, além desta introdução e das considerações, em dois itens. O primeiro trata-se contexto histórico do trabalho doméstico no Brasil desde a colônia, sendo caracterizado como um trabalho predominantemente feminino e negro, pautado nas relações de desigualdade e submissão. O segundo aborda sobre a construção dos direitos das domésticas, fazendo um percurso sobre as legislações até a aprovação da Lei Complementar n. 150/2015, ou a “PEC das Domésticas”, um verdadeiro marco, que veio para ampliar o direito das trabalhadoras domésticas. 1069
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 2 TRABALHO DOMÉSTICO: ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICOS No Brasil, o serviço doméstico se situa desde a época colonial, com a vinda dos portugueses ao Brasil, primeiro dominando os indígenas e os escravizando, e como aponta Chiavenato (1987, p. 110) “A repressão ao índio, no Brasil, precedeu e foi um ensaio para o sofrimento do negro escravo.” Mais tarde, com a produção da cana-de- açúcar nos engenhos, e visando o lucro e força de trabalho barata, os negros foram trazidos de forma violenta e desumana ao Brasil e substituíram o trabalho realizado pelos indígenas escravizados. Mas, pelo tipo de trabalho, esta mão de obra era essencialmente masculina, pois segundo Chavienato (1987, p.136) “as mulheres negras só passaram a entrar em número um pouco maior no Brasil quando as famílias senhoriais cresceram, as casas-grandes exigiam mão-de-obra feminina e as cidades prosperavam.” A escravidão também está diretamente relacionada com a discriminação do trabalho manual e servil, sendo que [...] a escravidão negra espalhou-se por toda a Colônia, interferindo diretamente no modo de viver, de produzir e nas relações pessoais dos indivíduos e de toda sociedade. Resultou daí um preconceito próprio das sociedades escravistas, em relação ao trabalho manual, que se impôs lentamente conforme aumentou o número de escravos africanos. Grande parte do trabalho desenvolvido no interior dos domicílios coube, portanto, a eles, figuras indispensáveis inclusive nas casas mais simples, que possuíam poucos escravos e até mesmo viviam de aluguel ou trabalho de seus negros nas ruas das cidades. (ALGRANTI, 1997, p. 143) Dessa forma, o número de escravos pertencentes às famílias, refletia, além de status, a base da economia brasileira que era escravista, além de mostrar a realidade da nobreza parasitária, uma característica dos colonos portugueses e que “se acentuou ainda mais com a vinda da corte real para o Brasil.” (CHIAVENATTO,1987, p. 81) O papel da mulher no Brasil colônia, sofreu influência da cultura portuguesa, sendo as mulheres encarregadas pela organização do lar e do trabalho manual, e as escravas sendo responsáveis pela limpeza da casa e Era, todavia, a cargo delas que ficava o asseio e a limpeza da casa, a preparação dos alimentos o comando das escravas e dos índios domésticos, [...] Afinal toda a sua educação era voltada para o casamento, para as 1070
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI atividades que deveriam desempenhar enquanto mães e esposas. (ALGRANTI, 1997. p.120) As mulheres negras escravizadas que conseguiam sobreviver à viagem África- Brasil, eram divididas entre as que exerciam funções nas lavouras e as que serviam à casa grande, que “[...] eram forçadas a trabalhar como mucamas das sinhazinhas, amas de leite dos filhos e filhas das senhoras e senhores de engenho, no cuidado com a casa e o cozimento dos alimentos.” (BARBOSA, 2013, p.54). A relação das senhoras com as escravas não era uma relação cordial, era uma relação de abuso, submissão e violência, por exemplo quando a “sinhá” se sentia ameaçada pela beleza de uma de suas empregadas negras, muitas vezes mandava torturá-la ou até mesmo matá-la, conforme descrito por Chavienatto (1987, p. 132) [...] o ciúme doentio das sinhás, aliado ao sadismo podia derramar-se impunemente em violências incríveis, deixaram muitas negras cegas. Servir à sobremesa pedaços de negras amantes dos senhores ou por ele admiradas – ou simplesmente porque eram muito belas e ofuscavam a palidez de suas senhoras – foi comum. Na crônica das barbaridades da época conta-se que olhos, seios, mão e até mesmo vaginas assadas foram à mesa de grandes senhores. Com isto ficam evidentes as relações de poder no âmbito familiar na colônia, em foco a relação entre as senhoras e as escravas, baseadas na exploração, coerção, violência e submissão. Além da posição hierárquica entre as mulheres, O espaço social permitido para mulheres brancas e negras era o mesmo, o doméstico, mas o tratamento era diferenciado na condição racial. Assim, as mulheres negras estavam sempre em condições de servilidade ainda maior com relação aos homens brancos que detinham oficialmente todos os poderes sobre elas, seu corpo, sua força de trabalho, etc. Embora nem todas as mulheres ficassem à disposição da Casa Grande, eram essas as que mantinham relações de proximidade com as famílias que geraram outras formas de exploração-dominação sexual e racial. (SANTOS, 2010, p.24) Consequentemente a subjugação das mulheres negras e a posição servil imposta desde a escravidão, é uma marca da divisão de raça e classe entre as mulheres, fazendo com que o trabalho doméstico seja considerado inferior e marcado pelo autoritarismo de seus patrões, e que persegue as empregadas domésticas até os dias atuais. 1071
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Após a abolição da escravidão, os negros foram libertos, entretanto não lhes foram dadas condições para que fossem inseridos na nova dinâmica econômica e social fazendo-os enfrentarem uma série de dificuldades sendo a primeira a de encontrar um lugar, pois a lei de terras de 1850 só permitia o acesso à terra para quem pudesse compra-la; a segunda foi o trabalho, com a substituição da força de trabalho escrava pela do imigrante, deixando as populações negras sem trabalho. Sem emprego, sem amparo do Estado e tendo que sobreviver, os negros e negras livres tiveram que recorrer a outras formas de trabalho, como o trabalho informal nos grandes centros, ou tentando retornar para seus antigos patrões, como aponta Biavaschi (2014, p. 6) Quando da Abolição, porém, em 1888, as novas oportunidades de trabalho aproveitavam-nas os imigrantes. Moldados em um sistema servil, muitos antigos escravos ficaram nas propriedades rurais. Outros, errantes, trabalhavam aqui, acolá. Outros tantos buscavam nas cidades oportunidades de trabalho, onde, em regra, desenvolviam atividades das mais subalternas. Marginalizavam-se. Nesse processo, consolidava-se a exploração de uma mão de obra barata, em uma sociedade cujo tecido era costurado pelo signo da desigualdade e da exclusão social. Tendo em vista sua impossível inserção no mercado de trabalho assalariado, e considerando que aos ex-escravizados não eram permitidos a educação, homens negros e mulheres negras foram colocados à margem da sociedade. Para as mulheres recém- libertas, o trabalho doméstico se tornou a única forma de sobrevivência, e uma forma das poucas formas possibilidades de inserção no mercado de trabalho. No entanto, [...] o trabalho doméstico ainda era visto com preconceito e caráter residual, designado aos ex-escravos e a população mais pobre, menos instruída e inapta ao trabalho intelectual, considerado mais nobre. Apesar de os escravos terem sido libertos, o trabalho doméstico era comumente “pago” com moradia e alimentação, não havendo real liberdade para os trabalhadores, já que estes tornavam-se dependentes das famílias empregadoras.” (TROMBETA, 2014, p.27) Dessa forma, nota-se que a abolição ocorreu só no âmbito formal, e as mulheres recém-libertas, negras, ocuparam as suas antigas funções na casa grande, passando de escravas domésticas para empregadas domésticas, sendo mantida a relação hierárquica e de poder entre senhores, senhoras e escravos, escravas. 1072
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Sendo assim, fica evidente que desde o início, o trabalho doméstico foi historicamente destituído de direitos, sendo associado cada vez mais à figura da mulher negra, o que contribuiu para a carga de inferioridade ao emprego, assim como na precariedade do trabalho doméstico. Emprego com sua raiz na escravidão, sendo executado por mulheres negras e à margem da sociedade, e marcado pela informalidade e submissão pelo julgamento de sua cor. O fruto das raízes escravistas é o fato de as mulheres negras ainda serem as que mais trabalham como domésticas, apesar da redução, pois ... é possível perceber que, entre 1995 e 2018 – período acompanhado pelo projeto Retrato –, a proporção de mulheres ocupadas no trabalho doméstico apresentou uma tendência de redução: no início da série, essa proporção estava em torno de 17% (chegando a 22% para as negras), e alcançou os 14,6% de 2017. (IPEA, 2018, p. 12) Além disso, De acordo com o IBGE, aproximadamente 15% das mulheres ocupadas (mais de 6 milhões de pessoas) eram empregadas domésticas no Brasil no primeiro trimestre de 2012 - dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, do IBGE. No primeiro trimestre de 2019, essa proporção se reduziu para 13,99% das mulheres ocupadas. Caracterizada por ser uma atividade tipicamente feminina e tipicamente negra – mais de 90% dos trabalhadores domésticos são mulheres e mais de 60% das mulheres que são empregadas domésticas são negras –, essa ocupação é historicamente associada a más condições de trabalho, como a informalidade, os salários baixos e as horas de trabalho semanais elevadas (PINHEIRO, GONZALEZ E FONTOURA, 2012, citados por IPEA, 2019, p.48) Dessa forma fica evidente que mesmo com o passar dos anos e a evolução da sociedade brasileira em termos de direitos, e aos direitos das empregadas domésticas, o pensamento conservador ainda perdura em volta das relações de patrões e empregados no âmbito familiar, carregando resquícios da sociedade escravocrata, o que pode ser observado por elementos como o fato de grande parte das diaristas e empregadas domésticas serem negras e pobres; a segregação da empregada ao espaço da cozinha, com um quarto minúsculo sem ventilação, entulhado de coisas inúteis, e um banheiro menor ainda; assim como a separação dos elevadores em “social” e de ‘serviço” nos prédios, mantendo assim o servilismo, o controle, e muitas vezes o abuso presentes no período colonial. 1073
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Diante disso fica evidente os laços intrínsecos entre casa-grande e senzala em um contexto moderno, onde a classe dominante resiste em mudar, mantendo imutável a ideia de que merece ser servida sempre e se negando a reconhecer as empregadas domésticas como sujeitos que possuem direitos. Apesar disso as conquistas trabalhistas das trabalhadoras domésticas, passaram por um longo processo legislativo, sendo regulamentados somente após a EC 72/2013, e pela Lei Complementar 150/2015, esse processo de evolução na legislação em relação ao trabalho doméstico será especificado no próximo item. 3 OS DIREITOS PARA AS TRABALHADORAS DOMÉSTICAS: UM LONGO CAMINHO Ao longo dos anos e até os dias atuais empregadas(os) domésticas(os) vêm lutando para conquistar seus direitos, respeito e valorização profissional. Desde a colônia até os dias atuais, várias iniciativas através de leis e decretos concebidos ao longo dos anos foram feitas para a regulamentação da profissão. A luta das domésticas ganha visibilidade através de Laudelina de Campos Melo, grande defensora dos direitos das mulheres, integrante do grupo da Frente Negra, que lutava pelo direito dos negros. Empregada doméstica e fundadora da primeira Associação de Trabalhadores Domésticos de Santos, São Paulo, em 1936. O movimento e luta da categoria crescia e ganhou o apoio da igreja católica, e em 1960 aconteceu o 1° Congresso das Trabalhadoras Domésticas, organizado pela Juventude Operária Católica (JOC), no Rio de Janeiro. Em 1923 é aprovado o primeiro decreto sobre os serviços domésticos, o Decreto n°16.107, de 30/07/1923, que regulamentou em seu artigo segundo São locadores de serviços domesticos: os cozinheiros e ajudantes, copeiros, arrumadores, lavadeiras, engommadeiras, jardineiros, hortelões, porteiros ou serventes, enceradores, amas seccas ou de loite, costureiras, damas de companhia e, de um modo geral, todos quantos se empregam, á soldada, em quaesquer outros serviços de natureza identica, em hoteis, restaurantes ou casas de pasto, pensões, bars, escriptorios ou consultorios e casas particulares. (BRASIL, 1923, p. 21901) Alguns anos mais tarde, em 1841, o decreto de lei n° 3.078, determinou que o empregado doméstico era o que prestava serviço em residências particulares, assim 1074
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI como o empregado teria direito a aviso prévio de oito dias, depois de um período de prova de seis meses, e que também poderia rescindir ao contrato em caso de algum atentado à sua integridade física. Em 1943, com a instituição da Consolidação das Leis do Trabalho, houve a definição da figura do “empregado do lar”, porém nem todos os direitos garantidos pela CLT foram estendidos para algumas categorias de trabalhadores, dentre elas as domésticas, sendo-lhes concedido somente o direito ao aviso prévio. A situação do empregado doméstico passa por decretos estaduais como o n°19.216, de 02/03/1950, do estado de São Paulo, que distingui com clareza os empregados domésticos. Houve alguns avanços como com a lei n° 3.807, de 1960, a Lei Orgânica da Previdência Social, que em seu artigo 161 permitiu a filiação dos empregados domésticos como segurados facultativos. A lei n°5.316 de 14/09/1967, que integrou o seguro de trabalho à Previdência Social, considerou, também, os empregados domésticos. Durante o período da ditadura militar, houve perseguição aos movimentos sociais, e sendo assim a organização das trabalhadoras domésticas também foi perseguida e em 1964 a Associação de Empregadas Domésticas de Campinas foi fechada, algumas domésticas, padres e freiras foram presos, mas nunca desistiram da luta, se encontrando algumas vezes clandestinamente e em outras se organizando abertamente. E como resultado dessa resistência e da luta obteve-se a lei n° 5.859, de 11/12/1972, regulamentada pelo Decreto n° 71.885 de 09/03/1973, que confere aos domésticos vários direitos como férias anuais remuneradas, os benefícios e serviços da Lei Orgânica da Previdência Social, como segurados obrigatórios, bem como a anotação da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS). Em seu artigo1°, a lei n°5.859, conceitua o empregado doméstico como “[...] aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas.” (BRASIL, 1972. p. 11065) Na sua luta e mobilização pela redemocratização, e no processo de elaboração da Nova Constituinte em 1988, as empregadas domésticas são reconhecidas como categoria e as Associações das Domésticas se transformam em Sindicatos das(os) Trabalhadoras(es) Domésticas(os). O reconhecimento como categoria profissional 1075
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI possibilitou a criação da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), em 1997, filiando em 1998 à Central Única dos Trabalhadores (CUT), assim como à Confederacion Latinoamericana y Caribeña de Trabajadores Del hogar (CONLACTRAHO); estabeleceu intercâmbio com a Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e Serviço (CONTRACS). A Fenatrad tem 27 sindicatos e uma associação, distribuídos por 15 estados brasileiros - Acre, Bahia, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Sergipe. A constituição de 1988 significou grande avanço no que diz respeito aos direitos da categoria, entretanto apesar da garantia constitucional, não têm sido efetivados na prática. Em termos de legislação para as trabalhadoras domésticas o Brasil vivenciou um longo caminho até os direitos atuais. Neste sentido após a virada do século XX, houve algumas alterações na lei n° 5.859/72 no sentido de ampliação dos direitos, o Decreto n°3.361, de 2000, e a Medida Provisória n°2.104-16, de 2001, transformada na lei n° 10.208 de 23 de março de 2001, garante à empregada doméstica o acesso facultativo ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS e o seguro-desemprego, porém, por ser facultativo nem todas as empregadas tinham acesso a esses benefícios. Em 2006, houve avanços com a promulgação da lei n° 11.324, de julho de 2006, como resultado da conversão da MP 184/06 (que tornava obrigatório o recolhimento do FGTS, que foi vetada pelo então presidente Lula). A lei estendeu os direitos trabalhistas das domésticas que passariam a ter férias de 30 dias remuneradas, direito aos feriados civis e religiosos, estabilidade em caso de gravidez e a proibição de descontos no pagamento com moradia, alimentação e produtos de higiene pessoal utilizado no local de trabalho. Outro grande avanço se refere à valorização do trabalho doméstico e que proíbe o trabalho doméstico infantil, foi o Decreto n° 6.481, de 12 de junho de 2008, que proibiu o trabalho doméstico para menores de 18 anos. Este decreto regulamentou artigos da Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1999, ratificada pelo Brasil em 2000, que cuida da erradicação das piores formas de trabalho infantil. Durante a 100ª Reunião da Conferência Internacional do Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em julho 2011, o trabalho entrou na pauta, e foi incluído um capítulo específico para os trabalhadores domésticos no qual 1076
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI recomendava que estes deveriam gozar de todos os direitos dados aos outros trabalhadores, como a obrigatoriedade do FGTS, e do Seguro-desemprego, a definição de uma jornada de trabalho de 8 horas, e o pagamento das horas extras. Em 2010, começa a trajetória da famosa PEC das Domésticas, primeiro com a PEC 478/10, apresentada pelo deputado Carlos Bezerra (PMDB/MT), que propôs a revogação do artigo 7 da CLT, que excluía as domésticas dos direitos trabalhistas previstos. Depois de tramitar na Câmara, e depois no Senado e sendo aprovada, em 02 de abril, a PEC foi transformada pela Emenda Constitucional 72/2013, que iguala os direitos dos trabalhadores domésticos com os outros trabalhadores, como controle da jornada de trabalho, com limite de 8 horas diárias, pagamento das horas extras, FGTS obrigatório e seguro-desemprego. Em 2013, foi apresentado e aprovado o projeto de lei complementar, PLS n° 224/2013, que regulamenta os direitos instituídos pela Emenda Constitucional n°72, aprovada em 22 de abril de 2013 com algumas mudanças e culminado na Lei Complementar 150/2015, que altera as leis anteriores, assim como o conceito de empregado doméstico, que no seu artigo 1° determina: Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana, aplica-se o disposto nesta Lei. (BRASIL, 2015. p.1) A referida lei estabeleceu a jornada do empregado doméstico em 8 horas diárias e 44 semanais, determinou o funcionamento da jornada de trabalho para quando acompanhar o seu empregador em uma viagem ou este viajar, além de possibilitar a prática de horas extras sob o regime de compensação, na forma de um dia de repouso ou remuneradas como horas extras, a lei trouxe o direito ao intervalo para descanso e refeição de no mínimo (1) uma hora, assim como o adicional noturno para os trabalhadores que tem uma jornada entre 22h00min e 05h00min, estabeleceu também a indenização nos casos de demissão sem justa causa, garantindo ao empregado doméstico o direito à multa de 40%sobrer os depósitos do FGTS. Os principais avanços foram as leis de regulamentação do trabalho da doméstica e a garantia do direito, diminuindo um pouco a desigualdade quanto aos direitos básicos trabalhistas que foram negados às empregadas domésticas durante anos, buscando a diminuição da informalidade, garantindo uma maior equidade no mundo do trabalho. A 1077
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI principal mudança que a lei trouxe para as empregadas domésticas, foi a possibilidade de serem reconhecidas como trabalhadoras, desmitificando o trabalho doméstico do imaginário social, onde a empregada não precisa ser valorizada economicamente. Entretanto os estigmas que permeiam o trabalho doméstico permanecem, onde as classes dominantes reproduzem os resquícios da época colonial pautados na servidão e no racismo, no qual as empregadas domésticas devem estar sempre prontas para servir, e que sendo negras devem servir em troca de favores e presentes usados, estando sempre prontas e não tendo o direito ao descanso, e muitas vezes nem sendo vistas como sujeitos portadores de direitos, de modo que isso é expresso na resistência em não querer pagar corretamente às empregadas. A lei complementar nº 150/2015 ser aprovada foi um grande avanço, no entanto ainda não foi acatada por todos empregadores, permanecendo, em muitos casos, além da informalidade, o preconceito e os abusos, e isso se reflete nas condições do empregados que muitas vezes não têm o seu horário de almoço, ou esperam os patrões para só depois almoçar, refletindo na sua qualidade de vida, adquirindo muitas vezes doenças gástricas, e como as empregadas domésticas não têm suas funções bem delimitadas e muitas vezes acabam por fazer “favores” que desviam de suas funções, assim como uma só empregada para desempenhar função de babá, cozinheira e cuidar dos serviços de limpeza da casa, ou então funções pesadas para empregadas que acabam adquirindo problemas e doenças físicas. Frente aos desmonte dos direitos e com a reforma trabalhista atual no Brasil, as empregadas domésticas, cujos direitos foram recentemente conquistados, sentiram o impacto na profissão, com a grande número de trabalhadoras na informalidade, sem a carteira assinada, no caso as diaristas. De modo geral, destaca-se que as ampliações dos direitos das empregadas domésticos, não são suficientes para erradicar as desigualdades e a exploração do trabalho doméstico na atual sociedade. 4 CONCLUSÃO Ao se falar em empregada doméstica, para o imaginário popular trata-se de uma mulher negra, gorda, que cozinha bem, que é pobre e que “não sabe se portar”. Relaciono esse pensamento ao fato de negras e negros terem e têm tido um papel 1078
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI central na história brasileira, assim como os indígenas, mas ambos, enquanto sujeitos do processo, têm sido sistematicamente diminuídos na história pelo pensamento da classe dominante, porém, “O negro fez tudo. Ao negro deve-se tudo. O trabalho escravo do negro é o centro, o núcleo de toda a história do Brasil.” (CHIAVENATO, 1987, p. 101) É, portanto, no contexto de discriminação e racismo que as empregadas domésticas ainda representam a herança do Brasil escravocrata, desigual e servil, posto que, majoritariamente, o trabalho doméstico e exercido por mulheres negras e por assim ser, as relações daí estabelecidas refletem as desigualdades sociais, políticas, econômicas e de gênero que caracterizam a sociedade brasileira. O trabalho doméstico foi um dos últimos a serem reconhecidos pela legislação trabalhista, destacando-se para tanto a organização das profissionais da área, mas apesar do avanço da legislação em torno do emprego doméstico, ainda persiste a divisão sexual do trabalho doméstico, sendo uma profissão exercida, principalmente, por mulheres negras e de baixa renda. Portanto, entender a luta histórica das empregadas domésticas, permite compreender os embates sócio históricos do trabalho doméstico as desde a “casa grande” do período colonial até à configuração do trabalho doméstico contemporâneo. Desta forma a conquista de direitos, em especial a lei complementar nº 150/2015, diminuiu a desigualdade entre as trabalhadoras domésticas e os outros trabalhadores, porém a sociedade ainda desvaloriza essa profissão o que implica em grandes dificuldades na efetivação desses direitos. Destaca-se, neste momento, o avanço do desmonte das garantias dos direitos trabalhistas no Brasil, o que, obviamente, terá intenso e profundo rebatimento no conjunto das trabalhadoras domésticas. REFERÊNCIAS ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: SOUZA, Laura de Melo e (Org.). História da Vida Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa, São Paulo: Companhia das letras, 1997 (História da vida privada no Brasil 1) BIAVASCHI, Magda B. Os direitos das trabalhadoras domésticas e as dificuldades de implementação no Brasil: condições e tensões sociais. Fundação Friedrich Ebert Stifung Brasil. São Paulo. Dez.2014 1079
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI BRASIL. Decreto n°16.107, de 30 de julho de 1923. Diário Oficial da União - Seção 1 - 2/8/1923, Página 21901 (Publicação Original). Disponível em https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1920-1929/decreto-16107-30-julho- 1923-526605-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em:4 de mar. de 2020. ______. Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972. Diário Oficial da União - Seção 1 - 12/12/1972, Página 11065 (Publicação Original) disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5859-11-dezembro-1972- 358025-publicacaooriginal-1-pl.html Acesso em:4 de mar. de 2020. ______. Lei complementar nº 150, de 1º de junho de 2015. Diário Oficial da União - Seção 1 - 2/6/2015, Página 1 (Publicação Original) Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm Acesso em:4 de mar. de 2020. CHIAVENATTO, Julio José. O negro no Brasil: da senzala à guerra do Paraguai. 4ª.ed. Brasiliense: São Paulo, 1987. IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Texto para discussão. Brasília, nov. 2019 ______. Boletim de Mercado de Trabalho: conjuntura e análise. Notas Técnicas. n. 67. Ano 25 Brasília: Ipea, out.2019 SANTOS, Judith Karine Cavalcanti. Quebrando as correntes invisíveis: uma análise crítica do trabalho doméstico no Brasil. 2010. 120 f., il. Dissertação (Mestrado em Direito) -Universidade de Brasília, Brasília, 2010. TROMBETA, Nathália M.C. A extensão dos direitos trabalhistas ao empregado doméstico pela Emenda Constitucional n° 72/13 e suas implicações.2014. Monografia (Graduação em Direito) - Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Ribeirão PRETO, 2014. 1080
EIXO TEMÁTICO 2 | TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS PRIMEIRA INFÂNCIA, PROTEÇÃO SOCIAL E INTERSETORIALIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS1 FIRST CHILDHOOD, SOCIAL PROTECTION AND INTERSECTORIALITY OF SOCIAL POLICIES Karla Kaliane de Moura Sousa2 RESUMO Esse estudo com base na análise histórica do arcabouço conceitual e legal da proteção à Infância, e das múltiplas expressões da questão social que atravessam a vida desse segmento de população, analisa os desafios que estão postos para a proteção social à primeira infância numa sociedade fortemente marcada pela desigualdade social. No cenário atual, estão presentes, descontinuidades no âmbito das políticas sociais e do sistema de garantia de direito que geram obstáculos à exequibilidade da proteção social desse segmento geracional, em virtude da prevalência de princípios neoliberais, que se opõe ao paradigma da proteção integral à infância no país. O contexto revela a importância da intersetorialidade das políticas sociais públicas para a efetivação da proteção social desse segmento de população e da construção de um sistema de proteção social em consonância com o paradigma da proteção integral preconizado pelo ECA (1990). Palavras-Chaves: Criança. Política Social. Proteção Social. ABSTRACT The article, based on the historical analysis of the conceptual and legal framework of childhood protection and the multiple expressions of the social issue that cross the life of this segment of the population, 1 Esse trabalho é produto financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), código de financiamento 001. 2 Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, na Linha de Cultura, Identidade e Processos Sociais, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Bolsista CAPES. Graduada em Serviço Social. Brasil. ORCID: 0000-0003-0138-896X. E-mail: [email protected]. 1081
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI emphasizes the challenges that are posed to social protection to childhood in a society strongly marked for social inequality. In the current scenario, discontinuities in the scope of social policies and of the system of guarantee of rights are present, which create obstacles to the practicability of social protection in this generational segment due to the prevalence of neoliberal principles that oppose the paradigm of integral protection to childhood in the country. The analysis highlights the importance of intersectoriality of public social policies for the effectuation of social protection to this segment of the population. It highlights the presence of the minorist perspective in the current scenario, as opposed to the construction of a social protection system with the paradigm of integral protection advocated by ECA. Keywords: Children. Social policy. Social protection. INTRODUÇÃO O estudo tem como objetivo analisar a temática da proteção social à população da primeira infância visando ampliar a compreensão tanto da configuração conceitual e legal bem como discutir a questão da proteção à criança com idade entre zero a seis anos, especialmente aquelas que estão submetidas à situação de vulnerabilidade social3. A análise proposta tem no horizonte de reflexão a proposição de atenção que preconiza a Lei sobre Políticas Públicas para a Primeira Infância 4no Brasil (2016). O presente trabalho empreende uma análise que busca dar centralidade a relação que abrange a temática do Estado e dos direitos sociais e de suas implicações para as políticas de Educação, Assistência Social e Saúde voltados para a Primeira Infância em um cenário de fragilização da dimensão universal das políticas sociais, bem como da necessidade de afirmação do sistema brasileiro de proteção social diante do agravamento da desigualdade estrutural vigente. 3 Segundo Castel (1998, p. 24) a vulnerabilidade social é “uma zona intermediária, instável, que conjuga a precariedade do trabalho e a fragilidade dos suportes de proximidade”. Para um aprofundamento consultar CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998, especialmente a página 24 et seq. 4 Lei 13 257/ 2016 08.03. 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) 1082
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 2 PROTEÇÃO SOCIAL E INFÂNCIA NO BRASIL: fundamentos e história O reconhecimento da importância de uma Política Pública direcionada à atenção a Infância no Brasil se deu na história recente do país, haja vista a promulgação da Constituição Federal de 1988 e da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), uma vez que, “é a partir daí que se instaura e se desdobra o reconhecimento constitucional de criança/adolescente como sujeitos de direito em situação peculiar de desenvolvimento e da adoção da proteção integral” (MELIM, 2012, p. 168). Uma recapitulação da história da assistência à infância no Brasil, desde o período colonial, revela “que toda prática assistencial voltada para crianças pobres se pautava no trabalho” (MELIM, 2012, p. 168). Dessa forma, [...] As crianças índias eram catequizadas enquanto aprendiam a trabalhar; os pequenos escravos, desde muito cedo, passavam a servir aos seus senhores; as crianças abandonadas recebiam “proteção das Santas Casas de Misericórdia até os sete anos de idade e depois eram entregues para o trabalho; as crianças órfãs eram destinadas aos asilos, onde aprendiam a desenvolver “o sentimento de amor ao trabalho” (MELIM, 2012, p. 168). É de suma importância estar atento à análise de Melim, que destaca que, “de fato, antes disso, os direitos não fizeram parte da história da infância/adolescência, cujas práticas sociais no Brasil [foram] voltadas aos estratos empobrecidos da classe trabalhadora [tendo] marcas assistencialistas, corretivas e repressoras” (MELIM, 2012, p. 168). A autora afirma ainda que “no Brasil, mesmo em se tratando de uma industrialização tardia, a criança passou a ser vista como futura mão-de-obra para a indústria, e a capacidade de trabalho se apresentou, de acordo com a ideologia dominante, como o único bem da população empobrecida” (2012, p. 168). O que revela que “a centralidade do trabalho nas ações de assistência para os pobres continuará ainda no período republicano. Também se mantiveram a aplicação de castigos violentos e as péssimas condições de vida a que as crianças eram submetidas” (MELIM, 2012, p. 169). Marcílio (1997) afirma que “a roda de expostos foi uma das instituições brasileiras de mais longa vida, sobrevivendo aos três grandes regimes de nossa História” (op. cit., p.53). Criada ainda no período do Brasil Colônia (1500 a 1822), a Roda dos Expostos atravessou e multiplicou-se no período Imperial (1822 a 1889), conseguindo 1083
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI sustentar-se durante a República (1889 até por volta dos anos de 1950) e só foi extinta, definitivamente, em 1950. Durante mais de um século, a Roda dos Expostos foi praticamente a única instituição de assistência à criança abandonada em todo Brasil. Entretanto, analisando o fenômeno do abandono partindo de uma perspectiva histórica ampla, é possível afirmar [...] “que a maioria das crianças que os pais abandonaram não foram assistidas por instituições especializadas. Elas foram acolhidas por famílias substitutas” (MARCÍLIO, 1997, p. 55). Além disso, “na Casa dos Expostos, a mortalidade era bastante elevada, tendo atingido a faixa dos 70% nos anos de 1852 e 1853 no Rio de Janeiro, devido à falta de condições adequadas de higiene, alimentação e cuidados em geral” (RIZZINI; PILOTTI, 2011, p. 20). “Fundam-se aí as bases da puericultura no Brasil, definida como a ciência que trata da higiene física e social da criança” (RIZZINI; 2011, p. 106). A partir do século XIX, “o asilo de órfãos, abandonados ou desvalidos, [...] daqueles que estivessem ‘soltos’, fugindo ao controle das famílias e ameaçando a ‘ordem pública’, tornou-se uma prática corrente no século XIX, quando teve impulso a ideia de propiciar educação industrial aos meninos e educação doméstica às meninas, preparando-os para ocupar seu lugar na sociedade” (RIZZINI; PILOTTI, 2011, p. 20, destaques dos autores). Nesse sentido, “nas primeiras décadas após o advento da independência do Brasil, as leis refletiam a preocupação fundada na ideologia cristã, no sentido de amparar a infância desvalida, recolhendo-a em estabelecimentos destinados à sua criação (RIZZINI, 2011, p. 106- 107). Na passagem do século XIX para o XX, juristas defendiam em congressos internacionais, a ideia de um ‘novo direito’, com participação ativa da Europa, Estados Unidos e América Latina (RIZZINI; PILOTTI, 2011, p. 22, destaques dos autores). Dessa forma, “Falava-se numa justiça mais humana, que relevasse a reeducação, em detrimento da punição. As novas ideias foram logo transpostas para o caso dos menores, em parte por que, em termos penais, as fases da infância e da juventude chamavam a atenção (o aumento da criminalidade entre menores era fato documentado, na época, em diversos países); e, em parte porque, sob o ponto de vista da medicina e, mais tarde, da psicologia vislumbravam- se novas possibilidades de formação do homem, a partir da criança (RIZZINI; PILOTTI, 2011, p.22, destaques nossos). 1084
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Essas práticas perduraram até que, em 1927 criou-se uma legislação específica para a infância brasileira – o Código de Menores, Juiz Mello Matos. “Pela primeira vez, foram criadas, em forma de legislação, orientações para o ‘cuidado’ com a infância empobrecida. Entretanto, essas diretrizes eram apenas relacionadas ao internamento das crianças, reforçando as práticas anteriores (MELIM, 2012, p. 170, grifos da autora). Melim assinala que apenas nos anos 40 “o governo inaugura uma política mais nítida de atendimento à infância pobre, criando órgãos federais responsáveis por planejar e gerir as ações voltadas para essa parcela da população” (MELIM, 2012, p. 170). Com o intuito de atender os “menores” foi criado no governo de Vargas, em 1942, o Serviço de Assistência aos Menores (SAM) que se configurava como um órgão do Ministério da Justiça que funcionava como um equivalente do sistema penitenciário para a população ‘menor’ de idade. Rizzini (2011, p. 264) pontua que “as finalidades do SAM, previstas no decreto-lei que o instituiu, não representaram nenhuma novidade no campo das ideias e das práticas correntes no atendimento ao menor”. As mudanças ocorreram “apenas no âmbito da nomenclatura uma vez que, as práticas e representações continuavam iguais, pois, as crianças e os adolescentes pobres ainda eram considerados ‘menores’ perante a sociedade” (MELIM, 2012, p. 172), por conseguinte, a hostilidade e violência praticada contra eles ainda era aceita por uma parcela significativa da população o mesmo se dando, sob a égide da Ditadura Militar, quando é estabelecido um novo Código de Menores, em 1979 onde a intervenção do Estado se dava sob a lógica da “situação irregular” da criança e/ou adolescente na família. Ao analisar as instituições na época Melim pontua que “a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) era o órgão central, de caráter normativo e encarregado de repassar recursos” (MELIM, 2012, p. 172). “E, para que houvesse esse repasse, era necessária a criação de organismos locais. Desse modo, foram criadas, nos estados brasileiros, as Fundações Estaduais do Bem- Estar do Menor – FEBEMs” (op, cit., p. 172). Contudo, o projeto da FUNABEM, de atendimento à criança e ao adolescente considerados menores, mediante campanhas preventivas e descentralização de suas atividades, não logrou resultados satisfatórios. Pelo contrário: era crescente a quantidade de internações. Diante desse cenário, foi implantada a Comissão 1085
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Parlamentar de Inquérito, que ficou conhecida como a CPI do menor que mostrou a ineficácia do atendimento prestado por essas instituições. Destaca Melim (2012, p.173) que “foi somente a partir da década de 1980, com a abertura política e através da luta pela redemocratização do país, que a FUNABEM passou a ser questionada posto que, um dos elementos que contribuíram para essa discussão foi a participação e reivindicação popular”. Além disso, outras questões foram preponderantes como, por exemplo, os estudos sobre as consequências da institucionalização bem como o interesse de profissionais de diversas áreas do conhecimento sobre a atuação nesse campo. Acrescenta-se a esse debate a discussão sobre a proteção da Infância, respaldados nos Novos Movimentos Sociais, nos Direitos Humanos, dentre outros, fazendo o Paradigma da Situação Irregular do Menor, com suas ações focalizadas, estigmatizantes, filantrópicas e assistencialistas, oriundas de ações sem planejamento, de forma pontual e improvisada, sofrer um processo de derrocada e emergir um novo paradigma, alicerçado na Doutrina da Proteção Integral, “onde a criança e ao adolescente são reconhecidos como sujeitos de direitos, devendo ser respeitado por sua condição peculiar de desenvolvimento” (SILVA, 2011, p. 112-113). A infância é um período submetido a intensas mudanças, nunca podendo ser inteiramente separada das outras dimensões, tais como a cultura, a sociabilidade, a idade, o gênero. A criança deve ser vista como um ser ativo que constrói sentidos e que é marcado por múltiplas determinações. Silva (2011, p. 232), assinala que “a infância deve ser entendida enquanto uma construção social, ou seja, a infância, não é nem uma característica natural, nem uma característica universal dos grupos humanos”, mas sim um componente cultural da e na sociedade. 2.1 Proteção a Primeira Infância e políticas públicas No Brasil o conceito de criança está definido no arcabouço jurídico e normativo da Constituição Federal (1988) o qual estabelece que, É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, 1086
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI exploração, violência, crueldade e opressão (CF, 1988, art. 227, destaques nossos). A Lei 13 257/ 2016, dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância, e para tanto estabelece princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano, em consonância com a Constituição Federal e com o Estatuto da Criança e do Adolescente e com o ordenamento jurídico brasileiro em vigor. No artigo 2.º da supracitada lei se considera primeira infância o período que abrange os primeiros seis anos completos ou setenta e dois meses de vida da criança. A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) houve uma modificação nas políticas públicas voltadas para a infância e adolescência, que devem atuar no formato em Rede, com instituições e atores sociais articulados e integrados na garantia e proteção dos direitos desses sujeitos (SILVA; ALBERTO, 2019, p. 2). Dessa forma, o desafio para materialização das políticas públicas, e com isso a garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes passa pelo atendimento das políticas numa perspectiva de Rede. Entende-se o conceito de Rede como um tecido de relações que são estabelecidas a partir de uma finalidade em comum e se interconectam por ações em conjunto (RIZZINI, 2006). A Rede é uma ferramenta das políticas públicas cujo objetivo é proteger os direitos da criança e do adolescente, formada pelos atores sociais das várias instituições engajadas no mesmo propósito. Para Rizzini (2006), uma Rede integrada e articulada deve estar ligada com os diversos setores das políticas públicas (Saúde, Educação, Justiça, entre outros), pois, dessa forma, ofertará um atendimento completo à criança, ao adolescente e a suas famílias. Entretanto, a política social é um conceito complexo, que segundo Pereira (2014) não condiz com a “ideia pragmática de mera provisão, ato governamental, receita técnica ou decisões tomadas pelo Estado e alocadas verticalmente na sociedade para além de um conceito” (PEREIRA, 2014, p. 24). Isso em virtude de que a política social constitui “um processo internamente contraditório, que simultaneamente, atende interesses opostos” (op. cit., p. 24). Decorre desse fato a exigência de um esforço “mais aprofundado de conhecimento dos seus movimentos, tendências, contratendências e 1087
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI relações, com vista ao estabelecimento de estratégias de políticas dialeticamente interligadas” (op. cit., p. 24). Diante da premissa de que a política social é um conceito internamente contraditório, tem-se que “o cenário contemporâneo, marcado pelas múltiplas complexidades da questão social tem no fortalecimento da intersetorialidade das políticas sociais um dos grandes desafios a ser enfrentado” (ARAÚJO; JOAZEIRO, 2019, p. 35). Pereira (2014, p. 24) assinala que a intersetorialidade tem sido considerada como uma “nova lógica de gestão, que transcende um único ‘setor’ da política social; e/ou uma estratégia de articulação entre “setores\" sociais diversos e especializados”, pois, [...] relacionada à sua condição de estratégia, a intersetorialidade também é entendida como: instrumento de otimização de saberes; competências e relações sinérgicas, em prol de um objetivo comum; e prática social compartilhada, que requer pesquisa, planejamento e avaliação para a realização de ações conjuntas (PEREIRA, 2014, p. 24, destaques da autora). Ianni (1989 assinala que “a história da sociedade brasileira está permeada de situações nas quais um ou mais aspectos importantes da questão social estão presentes [...]”. Essa configuração remete também aos desafios postos à garantia e ao fortalecimento das políticas sociais públicas que visem assegurar a promoção, a proteção e o fortalecimento do direito da criança no Brasil. Nesse sentido, essa perspectiva analítica requer que estejamos atentos à análise de Joazeiro e Mariosa (2015, p. 185) que assinalam que “a compreensão das múltiplas dimensões da realidade social pressupõe a necessidade de uma leitura na perspectiva da totalidade”. A criança que vivencia situações de vulnerabilidade social em seu cotidiano atravessa um cenário marcado por múltiplas precariedades, uma delas é o viver em sociedade, o acesso à cultura, à oportunidades e às próprias condições subjetivas da vivência em família. Diante disso, Cavalcanti e Macedo (2016, p. 192) assinalam que “a intersetorialidade entra em cena com a perspectiva de conjugar as políticas sociais, para que num dado espaço seja possível alcançar o indivíduo de forma totalizante e assim reproduzir ou generalizar a experiência para raios de abrangência maiores”. Nesse sentido, as relações tecidas na e entre a Rede de Proteção Social à criança e o papel desempenhado pelos profissionais em suas respectivas políticas sociais 1088
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI públicas possibilitará fortalecer as interfaces que marcam a proteção social à infância na sua relação particular com um território específico. 3 ESTRUTURA, CONJUNTURA E POLÍTICAS PÚBLICAS No novo ordenamento jurídico adotado após a Constituição Federal de 1988, a infância e a adolescência adquiriram “status de sujeitos de direitos, revelando a profunda alteração representada em termos legislativos, normativos, culturais e conceituais para as diretrizes, políticas públicas e serviços” (PEREZ; PASSONE, 2010, p. 651). No que tange ao custeio das ações voltadas para o segmento da criança e do adolescente a Constituição Federal (1988) no parágrafo único estabelece que “o Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos”. No parágrafo único estabelece que o Estado adotará os seguintes preceitos para a aplicação de recursos, I – aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; II – criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação (Brasil, 1988). O Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) no artigo 90 define que § 2º Os recursos destinados à implementação e manutenção dos programas relacionados neste artigo serão previstos nas dotações orçamentárias dos órgãos públicos encarregados das áreas de Educação, Saúde e Assistência Social, dentre outros, observando-se o princípio da prioridade absoluta à criança e ao adolescente preconizado pelo caput do art. 227 da Constituição Federal e pelo caput e parágrafo único do art. 4º desta Lei.5 5 Artigo 4.º, incluído pela Lei 12.010 de 2009. 1089
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI É importante assinalar que o texto supramencionado faz referência explícita as políticas de Educação, Saúde e Assistência Social demarcando a relevância dessas para a Proteção à Criança no país. Nesse sentido, torna-se importante destacar que o Estatuto da Criança e do Adolescente, considera “criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (ECA, 1990, artigo 2.º). Na interpretação do Estatuto deve ser levado em conta “os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento” (ECA, 1990, art. 6º, destaques nossos). Diante do arcabouço legal que define o conceito de infância e do fato de que no presente trabalho estabelece-se o recorte etário com base na Lei 13 257/ 2016 que dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância, e para tanto estabelece princípios e diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a criança na faixa etária de zero a seis anos de idade preconizando a necessidade da atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano, em consonância com a Constituição Federal e com o Estatuto da Criança e do Adolescente e com o ordenamento jurídico brasileiro em vigor. Ora pensar a relação entre políticas públicas, significa adentrar no universo dos conceitos com os quais a política intervém e aqueles que ela almeja transformar, ao pensar a primeira infância há uma série de conceitos que são inerentes a esse universo, são eles, agravos à saúde, questão social, necessidades humanas, terapêuticas e riscos pessoais e sociais. Ou seja, para nelas intervir há que se compreender que, o processo de formação e desenvolvimento das políticas públicas, exige de quem dela participa que seja capaz de apreender que “na base de cada uma delas encontram-se necessidades humanas, que foram problematizadas e se transformaram em questões de direito” (PEREIRA, 2006, p. 68). Pereira afirma que “se não houvesse necessidades percebidas e socialmente compartilhadas, não existiriam políticas, direitos, normas protetoras, trabalho e tantas outras respostas resultantes da práxis humana” uma vez que é por seu intermédio que “tanto a natureza quanto a sociedade (e os próprios atores sociais) são transformados” (PEREIRA, 2006, p. 68). 1090
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI A emergência do modo de produção capitalista desencadeia uma série de implicações, que modelam a forma de organização, produção e acumulação. Por conseguinte, a questão social é produzida e reproduzida, fator este que demanda respostas do Estado que se consubstanciam em políticas sociais. Na atualidade, pensar a dimensão da proteção social à criança requer reconhecer as múltiplas expressões da questão social que marcam a vida desse segmento de população, em virtude das situações de vulnerabilidade social, de risco social e de fragilização dos vínculos familiares e de pertencimento social. Nessa perspectiva, para enfrentar esse fenômeno, é indispensável o envolvimento das políticas públicas, bem como, do Sistema de Garantia de Direitos tornando possível imprimir potência a Rede de Proteção Social de forma a fortalecer as suas interfaces. 4 CONCLUSÃO A infância é marcada por heterogeneidades, entre elas a de classe. Nessa perspectiva, o enfrentamento das disparidades sociais que assolam uma parcela significativa desse segmento geracional exige ações governamentais para melhoria da qualidade de assistência prestada a essa população, bem como ações intersetoriais, sendo fundamental a articulação com as diferentes políticas sociais. É a articulação rigorosa e sinérgica das políticas públicas supracitadas que permitirá a efetivação do artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente define o imperativo ético de que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. Nesse sentido, é indispensável construir um movimento contínuo em defesa da cidadania que seja capaz de resistir à dinâmica excludente do capitalismo de forma que os diversos profissionais e gestores inseridos nos diversos espaços sócio ocupacionais referentes às políticas arroladas ao longo do estudo construam o seu fazer profissional marcado pela defesa da cidadania e da democracia diante do cenário vigente. 1091
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI REFERÊNCIAS ARAÚJO, L. J. C.; JOAZEIRO, E. M. G. Direitos sociais em tempos de crise: desigualdades sociais e agravos à saúde. O SOCIAL EM QUESTÃO, v. xxii, p. 21-44, 2019. BEHRING. E. R.; BOSCHETTI, I. Política Social: fundamentos e história. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2010. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Presidência da República. 5 de outubro de 1988. Brasília, DF. BRASIL. Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8069.htm#art266>. Acesso em: 20 fev. 2020. BRASIL. Presidência da República. Lei 13 257, de 08 de março 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13257.htm Acesso em: 14 de mar. 2020. CASTEL, R. As Metamorfoses da Questão Social: Uma Crônica do Salário. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda. 1998. p.21-35 CAVALCANTI, P. B., & MACEDO, E. F. T. (2016). A relação complexa entre o serviço social no contexto da saúde e o uso da intersetorialidade. Serviço Social E Saúde, 14(2), 187-210. JOAZEIRO, E. M. G., MARIOSA, D. F. (2015). Formação em serviço social: articulação entre expressões da “questão social”, políticas sociais e território. Serviço Social & Saúde, v. 12, n. 2, p. 185- 209, jul./dez, 2015. MARCILIO, M. L. A roda dos expostos e a criança abandonada no Brasil colonial: 1726- 1950. FREITAS, M. C. (Org.). História Social da Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997. MELIM, J. I. (2015). Trajetória da proteção social brasileira à infância e à adolescência nos marcos das relações sociais capitalistas. Serviço Social & Saúde, 11(2), 167-184. OLIVEIRA E SILVA, M. L. Entre proteção e punição: o controle sociopenal dos adolescentes. São Paulo: Editora Unifesp, 2011. PEREIRA. P. A. P. A intersetorialidade das políticas sociais na perspectiva dialética In. MONNERAT, G. L; ALMEIDA, N. L. T.; SOUZA, R. G. A intersetorialidade na agenda das políticas sociais. Campinas (SP): Papel Social, 2014. p. 21-40. 1092
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI PEREIRA, P. A. P. Necessidades Humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006. RIZZINI, I.; PILOTTI, F. (Org.). Introdução. In: RIZZINI, I.; PILOTTI, F. A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 2. ed. rev. São Paulo: Cortez, 2011. RIZZINI, I. Crianças e menores: do pátrio poder ao pátrio dever. Um histórico da legislação para a infância no Brasil In: A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 2. ed. rev. São Paulo: Cortez, 2011. RIZZINI, I. Meninos desvalidos e menores transviados: a trajetória da assistência pública até a Era Vargas In: A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. 2. ed. rev. São Paulo: Cortez, 2011. 1093
EIXO TEMÁTICO 2 | TRABALHO, QUESTÃO SOCIAL E POLÍTICAS PÚBLICAS AS POSSIBILIDADES DA TECNOLOGIA: a inserção de ferramentas tecnológicas no exercício profissional do Assistente Social em tempos de pandemia do Covid-19 THE POSSIBILITIES OF TECHNOLOGY: the insertion of technological tools in the professional practice of Social Workers in times of pandemic of the Covid-19 Victória Régia Oliveira Malato1 Célia Maria Grandini Albiero2 RESUMO O estudo em tela envolvendo o Serviço Social e a tecnologia é um ensaio bibliográfico que objetiva analisar os rebatimentos da inserção de ferramentas tecnológicas no exercício profissional do Assistente Social aproximando-nos do contexto pandêmico atual, o qual foi dividido em duas partes. Inicialmente explana-se sobre o conceito de tecnologia e da “Era Tecnológica”, com o intuito de refletir em relação ao viés ideológico que envolve estes conceitos em uma sociedade capitalista, bem como de que forma o Serviço Social tem se colocado diante destes novos aparatos que tem feito parte dos processos de trabalho dos Assistentes Sociais. Entende-se que é necessário refletir acerca do domínio da categoria em relação a novas formas de atuar profissionalmente para que o Assistente Social tenha condições de reconhecer as intempéries que compõem a inserção da tecnologia, bem como as possibilidades que ela desvenda para a profissão. 1 Graduada em Serviço Social pela Faculdade ITOP, 2019. Mestranda da 2ª turma do curso de Serviço Social da Universidade Federal do Tocantins (2020.1); Membro do Grupo de Pesquisa em Formação e Exercício Profissional (GPESSFEP). Orientadora: Célia Maria Grandini Albiero. E-mail: [email protected]. 2 Graduada em Serviço Social pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru/SP (ITE/SP), 1985; Mestra e Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), 2000 e 2006 respectivamente. Atualmente, é Professora Associada II da Universidade Federal do Tocantins (UFT/TO), Docente desde 2008 e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social desde 2018. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Serviço Social, Formação e Exercício Profissional (GEPESSFEP) desde 2008. Membro da comissão de formação profissional do CRESS - 25ª região. E-mail: [email protected]. 1094
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Palavras-Chaves: Serviço Social. Tecnologia da Informação. Pandemia. COVID-19. Possibilidades. ABSTRACT The on-screen study involving Social Work and technology is a bibliographic essay that aims to analyze the repercussions of the insertion of technological tools in the professional practice of the Social Worker, bringing us closer to the current pandemic context, which was divided into two parts. Initially, the concept of technology and the “Technological Era” are explained, with the aim of reflecting in relation to the ideological bias that involves these concepts in a capitalist society, as well as how Social Work has been facing these new devices. which has been part of the work processes of Social Workers. It is understood that it is necessary to reflect on the domain of the category in relation to new ways of acting professionally so that the Social Worker is able to recognize the bad weather that make up the insertion of technology, as well as the possibilities that it reveals for the profession. Keywords: Social Work. Information Technology. Pandemic. COVID- 19. Possibilities. INTRODUÇÃO O ano de 2020 escancarou as fragilidades da sociedade capitalista para o mundo, pois em pleno século da valorização do poder da tecnologia a sua dependência da ação humana foi evidenciada em meio a pandemia do COVID-19. Vivenciamos atualmente grandes avanços tecnológicos, estando os maiores laboratórios do mundo organizados em busca de tratamentos e da cura para a Covid- 19. Portanto, até o momento ainda não temos um resultado concreto. Se considerarmos as afirmações a atualidade como a “Era Tecnológica” sem precedentes e sem limitações, com máquinas capazes de substituir fazer e até o pensar humano, não estaríamos diante de um paradoxo esta mesma sociedade ser assolada por um vírus ainda desconhecido pelas indústrias e laboratórios farmacêuticos mundialmente reconhecidos? Isto, portanto, permite reconhecer a tecnologia como uma ferramenta, haja vista sua essência e os resultados alcançados por seu intermédio estarem intimamente relacionados à consciência e ao fazer humano. É preciso reconhecer que não existe, então, a tecnologia por si, como agente transformador, há a tecnologia como meio da transformação pensada e executada pelo homem em função de suas próprias necessidades. (VIEIRA PINTO, 2005). 1095
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI O Serviço Social, assim como diversas outras profissões, vinha sendo sutilmente inserido neste universo tecnológico, porém com o início do isolamento social em virtude do surto da Covid-19 vivenciado em 2020 essa nova roupagem dos processos de trabalho veio ainda mais à tona exigindo a reflexão acerca dos entraves e das possibilidades que a tecnologia representa no exercício profissional dos Assistentes Sociais. Com o objetivo de analisar os rebatimentos da inserção de ferramentas tecnológicas no exercício profissional do Assistente Social aproximando-nos do contexto pandêmico atual, este estudo foi dividido em duas partes. Inicialmente explana-se sobre o conceito de tecnologia e de “Era Tecnológica”, com o intuito de refletir em relação ao viés ideológico que envolve estes conceitos em uma sociedade capitalista. A partir de então, busca-se analisar de que forma o Serviço Social tem se colocado diante destes novos aparatos que tem feito parte dos processos de trabalho dos Assistentes Sociais. Para isso, sustentados na bibliografia de autores como Renato Veloso (2006), Álvaro Vieira Pinto (2005), Karl Marx (1988), Faleiros (2014), Guerra (2018), Abramides (2019) dentre outros, movem-se esforços para discutir a questão da tecnologia, tão aparente na vida cotidiana atual, e responder a seguinte questão: é possível considerar a tecnologia como um meio de ampliação e até fortalecimento da atuação profissional do Assistente Social em acordo com os compromissos éticos do projeto político da profissão? 2 A DINAMICIDADE DA “ERA TECNOLÓGICA”: UMA ANÁLISE ACERCA DO CONCEITO DE TECNOLOGIA Discutir a tecnologia e seus rebatimentos exige desprendimento em relação aos conceitos que supervalorizam as ferramentas tecnológicas, mas também às perspectivas derrotistas acerca da inserção destas ferramentas nos mais diversos espaços da vida social. Buscando desviar-nos de análises essencialmente fatalistas, deslocadas da realidade, acerca dessa temática que tem se sobressaído atualmente, especialmente dadas às condições que o isolamento social compulsório em virtude da Covid-19 tem imposto sob a sociedade. Assim, discutir a tal “Era Tecnológica” tem sua relevância ainda mais acentuada em função da imersão acelerada de diversas atividades e profissões 1096
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI neste universo para o qual, em sua maioria, até pouco tempo vinham sutilmente caminhando, dentre elas o Serviço Social. Cabe salientar que compreendemos, nestes escritos, a tecnologia como “[...] um estado de desenvolvimento do trabalho social [...]” (VELOSO, 2006, p. 31) composto por um conjunto de técnicas, teorias e procedimentos voltados para o atendimento das necessidades humanas de cada época. A tecnologia, portanto, é tida como algo complexo e humano, dotada de um viés histórico e que, em função disso envolve um contexto muito mais amplo que um simples microcomputador, smartphone ou uma conexão via internet, reduzindo estes a ferramentas (micro) que a compõem (macro), portanto fazendo parte dela, não como sendo sua centralidade. Para Vieira Pinto (2005) as máquinas são apreendidas como um produto histórico. Silva (2003, p. 4) apresenta o microcomputador enquanto “[...] uma máquina que objetiva funções cerebrais abstratas [...]”, evidenciando, aliado ao que aponta Veloso (2006) quando salienta que a técnica está relacionada ao modo de se desenvolver uma atividade, a relevância da atividade humana na sistematização de processos e ferramentas tecnológicas, reafirmando a complexidade deste universo que impede de tornar sinônimos a tecnologia e suas ferramentas, tais como o microcomputador. Há que se considerar que só é possível compreender a tecnologia se enxergarmos que ela se materializou através da ação de um indivíduo, não de si mesma sem precedentes, o que desloca a análise acerca dos avanços tecnológicos de um desenvolvimento histórico-social. (VELOSO, 2006) Por isso, pensar a atualidade como a “Era Tecnológica” em si e por si só é uma prerrogativa ideologizada, estática e anti- histórica. O capital se constrói em torno de avanços tecnológicos, vivenciados hoje com um ideário fetichista de supervalorização da atualidade em detrimento de construções que se desenvolveram no curso histórico das sociedades capitalistas. O viés político- ideológico que se relaciona com a tecnologia em favor do capital, se sustenta na desconstrução histórica da humanidade e na apropriação alienada da força de trabalho dos sujeitos, quando retira do homem a consciência e a possibilidade do criar e remete esse mérito ao capital como agente possibilitador dessa inovação, enxergada nos avanços tecnológicos. (VELOSO, 2006). 1097
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