Anais b. Quem é Bambolina? c. Com o que ou com quem Bambolina se parece? Uma vez que o livro e a personagem tenham sido apresentados, a professora pode permitir que os alunos toquem e brinquem com a boneca-personagem Bambolina. Em seguida, deve-se, então, realizar a contação da história. A ideia é que a professora estimule as crianças a trazerem seus conhecimentos prévios para ajudar a contribuir na construção e no desenvolvimento do enredo. Isso é especialmente válido quando se pensa em livros de imagem, que é o caso de As Aventuras de Bambolina. Segundo Duarte, Silva e Formiga (2017): O livro de imagem concede ao leitor, qualquer que seja a faixa etária, a oportunidade de coautoria, uma vez que abre o espaço para que ele crie virtualmente a narrativa, dependendo de sua criatividade e de sua experiência leitora. (DUARTE; SILVA; FORMIGA, 2017). Esse ato de contar em conjunto, estimulado a partir da mediação, tende aser ri co: se a professora fizer perguntas a respeito das personagens que aparecem na narrativa e também sobre os espaços em que a boneca circula (“quem é o homem que dança com Bambolina?”, “por que ela foi jogada fora?”, “por que as crianças fugiram do policial?”, “quais os lugares pelos quais Bambolina passou?”, etc.), os alunos, voluntariamente, contribuirão com suas distintas visões sobre as mesmas imagens e, assim, o sentido será construído de forma coletiva. 4.3 Depois Pensando que a experiência literária se estende para além do ato de ler a história, elaboramos algumas ações que podem ser executadas após a contação. A ideia é que o conjunto dessas ações faça com que a supramencionada experiência literária não se encerre em si mesma e se estenda para além das paredes da escola, afetando não só os alunos como também seus familiares e a comunidade escolar como um todo. Assim, durante a semana, a cada dois dias, um aluno é sorteado para levar uma sacola para casa, contendo a boneca réplica da personagem Bambolina e o livro As Aventuras de Bambolina. A criança que levar a sacola para a casa deve ser orientada a contar a história do 97
Anais livro para um familiar, envolvendo outras pessoas no processo de leitura. Além disso, ela deve ser estimulada a criar e a viver suas próprias aventuras com a personagem. A dinâmica da ação deve continuar mesmo depois dos alunos trazerem o livro de volta para a escola. Após o retorno, a criança deve recontar a história de Bambolina para a turma e também narrar sua experiência com a personagem. Dessa forma, cada um, a seu modo, irá relatar o que viveu com Bambolina (exercitando sua capacidade de organização de ideias e sua criatividade) e também recontar a história que fora contada antes, em sala de aula. Esse reconto é especialmente interessante quando se pensa que: Ouvir várias vezes a mesma história ou canção, brincar das mesmas coisas, são para ela [a criança] atividades saudáveis ao seu desenvolvimento, pois não só ajudam a entender condutas humanas como operar com sentido pessoal de acordo com o significado social. (GRACILIANO; MELLO, 2018). Outra ação que pode ser executada é a da escrita de uma ficha de leitura do livro (ver apêndice). Essa atividade, que é solicitada não só na ação do subprojeto, mas também em toda e qualquer contação efetuada na escola, consiste em fazer com que o aluno ilustre e escreva a história que ouviu na contação, visando exercitar a escrita e a imaginação das crianças. É importante que esta atividade seja feita em sala e seja mediada pela professora. É pedido, assim, que a professora escreva no quadro o nome do livro e do autor da obra em pauta e, em seguida, distribua para os alunos as fichas. Na frente da ficha, a criança é orientada a recontar por escrito a história de Bambolina – mesmo que de um jeito não convencional, uma vez que estas crianças se encontram nos estágios iniciais de alfabetização e ainda não dominam, obviamente, questões relacionadas à norma padrão. É pedido também que ela ilustre o que conta. Uma vez que o aluno tenha concluído a atividade, a professora deve, no verso da ficha, reescrever o que o aluno contou dentro do registro padrão. Dessa maneira, graças ao conjunto de ações relacionadas à experiência literária (o antes, o durante, o depois), Bambolina tende a contribuir para que a criatividade e a imaginação de cada criança fiquem cada vez mais aguçadas, fazendo com que elas percebam que leitura não é feita apenas de palavras, mas também de imagens. E que percebam também, desde cedo, que ler literatura é algo que pode propiciar diversão, contentamento e também aprendizagem. 98
Anais 5. Resultados: considerações e reflexões Durante o ano de 2019 as ações descritas neste subprojeto foram, de fato, executadas. Ao longo dos processos, as professoras se depararam com alguns desafios e alguns relatos inusitados. Neste tópico, elencaremos alguns destes desafios e relatos e, partindo deles, faremos algumas reflexões sobre a prática e os efeitos observados na comunidade escolar. Logo no início, foi especialmente interessante notar o envolvimento e engajamento das crianças. Um exemplo desse engajamento foi quando elas, vendo um dos professores da escola com um violão na mão, pediram que cantassem “a música da Bambolina”. De maneira orgânica e lúdica, alguns versos foram criados em cima de uma melodia improvisada. Esses versos viraram “a música da Bambolina” e foram entoados em ocasiões diversas. Abaixo, a letra da canção: Bambolina {8 vezes} Bambolina é uma boneca Que não pode jogar fora Ela pula, ela senta, ela anda e rebola. Não foram apenas as crianças que se engajaram no subprojeto. Os pais dessas crianças também. Há famílias que se comprometeram tanto com o projeto que contribuíram em deixar a personagem Bambolina cada vez mais bem cuidada. Certa vez, depois de algumas idas às casas das crianças, a boneca apareceu com um pequeno rasgo no braço. O pai de um dos alunos, vendo aquilo, pediu autorização para costurar Bambolina e deixá-la novinha. Essa atitude ilustra muito bem o envolvimento e o cuidado das famílias. Isso sem contar que as famílias também são envolvidas em situações de leitura, já que seus filhos recontam a história quando levam o livro e a personagem para a casa. Ainda assim, há alguns pais que não aceitam que os filhos levem a personagem para a casa, às vezes por questões religiosas ou por questões culturais. Todavia, esses casos, perto do todo, acabam sendo exceções. Pensando nessas crianças e no fato de que algumas delas manifestaram o desejo de participar das atividades, as professoras, então, têm reservado um espaço nas aulas para que esses alunos também possam (re)contar para a turma a história do livro. A respeito das aventuras que os alunos vivenciaram com as personagens, há inúmeras histórias curiosas. Houve quem dissesse que Bambolina fez xixi na cama, que dançou ballet, 99
Anais que brincou de carrinho e até que acordou a criança “jogando um balde de água com sabão”. Uma das alunas contou, inclusive, que acordou no meio da noite e viu “Bambolina com aquele olhão” a vigiando. Quando indagada pela professora se teve medo, a criança foi enfática ao dizer que não, que “aquele olhão dizia ‘vai dormir mais!’”. É interessante notar como a boneca-personagem ganha, pela imaginação das crianças, ares de “real”. A fabulação e a criatividade se tornam elementos ativos da experiência literária. A boneca, nesses contextos, acaba virando mais do que uma mera boneca, ela é encarada como personagem e vira uma amiga que, de fato, vivência junto dos pequenos uma porção de aventuras. Não à toa, ela já participou, na qualidade de convidada, de festas de aniversário, brincadeiras e piquenique. Isso se reflete e transparece também quando alguns dos alunos reescrevem a história de Bambolina nas fichas de leitura – espaço este que, originalmente, fora desenvolvido para que a criança recontasse a história do livro. A criatividade é tamanha que há quem registre suas próprias aventuras, acrescentando elementos que não estavam no enredo original. Ciente disso, as professoras começaram a pensar que talvez, no próximo ano, seja interessante, como tarefa, desenvolver no papel, deliberadamente, também as próprias fabulações das crianças – como se elas fossem autoras não só do reconto da história, mas de suas próprias aventuras com Bambolina. Não obstante o fato de que as crianças desenvolveram a imaginação e trabalharam suas habilidades de escrita, a experiência do subprojeto propiciou uma onda de leitores mais atentos. Depois de Bambolina, as crianças passaram a prestar mais atenção nas imagens, a observar mais detalhes dos cenários e na fisionomia das personagens. Algumas crianças passaram a distinguir, por exemplo, rua, túnel e viaduto; além de chamar a atenção das professoras a alguns detalhes do enredo. Eles passaram, também, a completar o sentido das imagens com suas próprias experiências (o homem que dança com Bambolina na história original, segundo as crianças, é “o homem do saco”) e, na hora do reconto, passaram a estabelecer conexões visíveis entre as partes da história com uso de recursos de coesão (“e depois...” e “e aí”, principalmente). A mudança de percepção (e, consequentemente, prática) também atravessou as professoras que, notando o interesse das crianças, passaram a fazer, durante outras contações, perguntas mais específicas sobre as imagens – tornando-se assim mediadoras mais atentas. Algumas delas, que até então não tinham experiência na leitura e na mediação de livros de imagens, disseram que passaram a preferir usar livros desse tipo em suas aulas 100
Anais por causa do leque de possibilidades de trabalho, já que, no livro de imagens, “uma coisa puxa a outra” e as experiências tendem a ser riquíssimas, uma vez que as crianças, sentindo- se mais à vontade com esse tipo de literatura, parecem se engajar e se apropriar das histórias, justamente por perceberem que imagens também podem contar histórias de forma mais ativa e autônoma: se em livros ilustrados ou em materiais de leitura com texto verbal as crianças tendem a entregar os objetos para a professora, com os livros de imagem elas se tornam exímias contadoras, que não só descrevem o que veem, mas que também concatenam ideias e criam enredos possíveis a partir das imagens. Diante de tudo, pode-se dizer que, embora o subprojeto ainda esteja em andamento, as transformações e consequências observáveis a partir dele já são sentidas nas frentes descritas até aqui. Isso faz com que acreditemos que As Aventuras de Bambolina, o livro, está sendo um passo importante na bagagem leitora das crianças e que As Aventuras de Bambolina, o subprojeto, está sendo um passo igualmente importante na formação leitora dos alunos e das alunas. REFERÊNCIAS CHAGAS, Lilalne Maria de Moura; DOMINGUES, Chirley. A literatura infantil na alfabetização da criança leitora. Revista Perspectiva, Florianópolis, v. 33, n. 1, p. 77-95, jan./abr. 2015. DUARTE, Cristina Rothier; SILVA, Ana Paula Serafim Marques da; FORMIGA, Girlene Marques. Lendo imagens e compondo histórias em A Pequena Marionete, de Gabrielle Vicente. SELIMEL – X Seminário Nacional sobre Ensino de Língua Materna, Estrangeira e de Literaturas. Universidade Federal de Campina Grande, nov. de 2017. GRACILIANO, Eliana Cláudia; MELLO, Maria Aparecida. A Organização do Ensino de Leitura de Histórias Para Crianças Na Educação Infantil. In: IACOCCA, Michele. As Aventuras de Bambolina. São Paulo: Editora Ática, 2000. MACHADO, Heloíse Martins. A literatura infantil, a contação de histórias e o processo inicial de escolarização: em discussão a proposta do MEC. Educere - XII Congresso Nacional de Educação, 2004. SEGABINAZI, Daniela Maria; SOUZA, Renata Junqueira de; GIROTTO, Cyntia Graziella Guizelim Simões. Educação Literária: infância, mediação e práticas escolares. Tubarão (SC): Copiart, 2018. 101
ASSOMBRAÇÃO: A CONFIGURAÇÃO DA IMAGEM DO CASARÃO DO MARECHAL RONDON NO ASSENTAMENTO ANTÔNIO CONSELHEIRO Maria Madalena da Silva DIAS (UNEMAT/PPGEL)1 RESUMO Há neste estudo a ânsia de problematizar a partir de um conjunto de narrativas de testemunho e histórias de si do livro “Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro” (2009) a representação do casarão do Marechal trazendo a dimensão da relação do homem do campo com a terra. Desse conjunto de narrativas, selecionamos para analisar a configuração da imagem do Casarão as narrativas: “Família e acampamento”, “Escola Marechal Candido Rondon”, “A organização da comunidade católica”, “Sou trabalhador da terra”, “Contente com a terra”, “O fantasma do casarão ataca mais uma vez...”, “A cobra e o casarão”, “História de assombração”, “Dúvida?”, “O fantasma de branco”, “Fantasma assombra motorista no casarão” e “Casarão assombrado”. Do livro habitado por vozes, o poder de fala é exclusivo dos homens e das mulheres que ocupam a posição de comunidades frágeis, por serem ignorados pelos aparelhos de Estado. Se a história que o povo conta parece viver profundo desprestígio, num país que não se quer ouvir falar de povo; ainda mais grave quando o povo é aquele denominado de vagabundo, roceiro e arruaceiro; sim, aqueles que lutaram pela reforma agrária. Organizaram-se em Movimento de retorno pela terra (MST), se uniram e 1 Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Literários (PPGEL) da Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT campus de Tangará da Serra. Bolsista CAPES/Edital 013/Amazônia Legal/2020. E- mail: [email protected] 102
Anais conquistaram o direito de retornar ao campo. Para pensar essa questão, partimos de conceitos teóricos apresentados por Antonio Candido e Gaston Bachelard. Palavras-chave: Casarão Assombrado: Espaço: Narrativas Orais e Comunidade. ABSTRACT In this study, there is an eagerness to problematize, from a set of testimonial narratives and self-stories from the book “Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro” (2009), the representation of Marechal’s big old mansion, bringing the dimension of the rural man’s relationship with the land. From this set of narratives, we have selected narratives to analyze the image configuration from the Casarão: “Família e acampamento”, “Escola Marechal Candido Rondon”, “A organização da comunidade católica”, “Sou trabalhador da terra”, “Contente com a terra”, “O fantasma do casarão ataca mais uma vez…”, “A cobra e a mansão”, “História de assombração”, “Dúvida?”, “O fantasma de branco”, “Fantasma assombra motorista no casarão” and \"Casarão assombrado\". From the book inhabited by voices, the power of speech is exclusive to men and women who occupy the position of fragile communities, as they are ignored by the State apparatus. If the story that the people tell seems to experience a deep loss of prestige, in a country that doesn't want to hear about the poor; it gets even more serious when those people are called vagabonds, peasants and troublemakers; yes, those who fought for agrarian reform. They organized themselves into the Landless Rural Workers' Movement in Brazil (MST), united and won the right to return to the countryside. To think about this question, we have used theoretical concepts presented by Antonio Candido and Gaston Bachelard. KEYWORDS: Haunted House: Space: Oral Narratives and Community. Por que um casarão pode despertar interesse? Diriam alguns que a prosa deste texto deveria começar contando a história desse casarão. Outros duvidariam da sua existência, não fosse seu antigo dono um cidadão ilustre, desses que a História não cansa de consagrar como o herói. E, acaso, há heróis neste país? Aliás, como falar de heróis nestes tempos tenebrosos? Avancemos. Fato é que a história oficial já foi contada. Quem não sabe do Marechal Rondon e o telégrafo levando progresso para o sertão? Pois, sim. Pois, sim. O casarão foi do Marechal Rondon2 que andou até por estas bandas de Tangará da Serra, passando por Barra do Bugres, como destemido homem do telégrafo. Verdade que até hoje progresso não veio por estas bandas, nem telégrafo, nem ferrovias, não há por léguas e léguas, nunca houve, nem sei se um dia haverá. Fato é também que o sertão ganhou uma rota como ânsia de progresso. Não falaremos do Marechal, falaremos de narrativas que dão vida a um lugar, falaremos de histórias que o povo conta. Como diria Machado de Assis, acaso o leitor não se 2 Mais informações sobre as Expedições Telegráficas na localização do casarão ler o capítulo “Comissão de Linhas Telegráficas de Mato Grosso ao Amazonas V” na obra Rondon conta sua vida (2010), de Esther Viveiros. 103
Anais interesse por histórias, por histórias que o povo conta, deite fora este texto. Quem mesmo quer saber? E dentre as histórias do povo deste sertão, uma delas chamou-nos a atenção: as histórias do casarão, localizado no Assentamento Antônio Conselheiro3. São histórias contadas por seus moradores, assentados, vigilantes da terra. Da história ouvida da boca, contada por mais de um, há de ser verdade, não é, não? Essa coisa de espreitar a verdade na sabedoria popular. Tanto em tanto de ouvir as histórias do povo do assentamento, se achou tanto em tanto de verdade que se colocou em livro. E está lá para todo mundo vê. Para todo mundo lê. O livro Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro, publicado em 2009, organiza um conjunto de narrativas de testemunho/ou histórias de si, a partir do lugar do homem assentado, construindo uma imagem do homem e da sua relação com a terra. Desse conjunto de narrativas, selecionamos para analisar a configuração da imagem do Casarão. As narrativas escolhidas são: “Família e acampamento”, “Escola Marechal Candido Rondon”, “A organização da comunidade católica”, “Sou trabalhador da terra”, “Contente com a terra”, “O fantasma do casarão ataca mais uma vez...”, “A cobra e o casarão”, “História de assombração”, “Dúvida?”, “O fantasma de branco”, “Fantasma assombra motorista no casarão” e “Casarão assombrado”. Do livro habitado por vozes, o poder de fala é exclusivo dos homens e das mulheres que ocupam a posição de comunidades frágeis, por serem ignorados pelos aparelhos de Estado. Se a história que o povo conta parece viver profundo desprestígio, num país que não se quer ouvir falar de povo; ainda mais grave quando o povo é aquele denominado de vagabundo, roceiro e arruaceiro; sim, aqueles que lutaram pela reforma agrária4. Organizaram-se em Movimento de retorno pela terra (MST), se uniram e conquistaram o direito de retornar ao campo. Em território de latifundiário, de agronegócio, quem vai querer 3 O Assentamento Antônio Conselheiro, situado no Estado do Mato Grosso, é um dos maiores assentamentos da América Latina, o território que o compõe é bem extenso, 38.337 hectares e é cortado por 527 quilômetros de estrada. Geograficamente, abrange os municípios de Tangará da Serra, Barra dos Bugres e Nova Olímpia e, é resultado de uma luta do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Comporta hoje um total de 999 famílias divididas, espacialmente, em sessenta e três agrovilas e, em três microrregiões: Zumbi dos Palmares, na região de Nova Olímpia; Che Guevara na região de Tangará da Serra e Paulo Freire na região da Barra dos Bugres. A divisão legal do assentamento ocorreu no ano de 1998, porém, as lutas iniciaram bem antes, os primeiros registros que se tem de que os assentados já acampavam essa região é de 9 de outubro de 1996. 4 Maiores informações sobre o movimento de luta pela terra, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a origem do Assentamento Antônio Conselheiro ler os artigos: “Movimento dos homens e mulheres e a luta pela terra no Mato Grosso”, “Um olhar sobre o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra – MST” e “História do Assentamento Antônio Conselheiro: A Escrita de Si” na obra Olhares: realidade, construção, saberes na terra em assentamento de Mato Grosso (2012), Walnice Vilalva (Org) [et/al]. 104
Anais saber de histórias de assentados? O homem do campo e a narrativa do seu retorno à terra, tal qual em êxodo, precisa contar o que foi essa experiência. Há o desejo neste sujeito em conquistar a terra, bem como conquistar a casa própria, a casa que é o seu lugar de morada, de proteção. Segundo Gaston Bachelard (1993, p. 200), a casa tem uma simbologia muito significativa na história de cada indivíduo, “a casa é nosso canto do mundo [...] nosso primeiro universo”, ou seja, a casa é nosso espaço de pertencimento no mundo, ela nos permite uma espécie de reconhecimento. Se a casa é um símbolo de conquista, a narrativa é o meio de expressar essa conquista, e o meio pelo qual o homem expressa seu lugar no mundo, desde o mundo em que habita ao mundo em que deseja. E nesse sentido, como explica Antônio Candido, a estrutura narrativa carrega e faz emergir as condições de uma sociedade e as identidades complexas do seu discurso. As narrativas do retorno ao campo formulam pela contingência de um meio de produção (social e histórico) e reproduz pela linguagem, pela formulação de cada narrativa, suas bases sociais e históricas como representação do mundo. Bem verdade que um mundo mutilado, desigual, injusto e cruel. Os assentados tiveram um longo percurso de luta para sair da cidade e realizar o grande desejo de ter a posse de um pedaço de terra: “encontrar um pedaço de terra, onde a gente pudesse criar a família” (2009, p. 41) e “trabalhar no que era da gente” (2009, p. 29). Essas narrativas mostram a força do grupo, que viveu o seu passado no campo, e no presente narra o seu retorno à terra para reviver as suas origens/raízes “sempre gostei de trabalhar na terra” (2009, p. 50). A luta de homens e mulheres para edificar o assentamento foi árdua tanto para a conquista da terra “possuir uma terra” (2009, p. 36), quanto para ter a tão sonhada casa, “não tínhamos casa [...] Essa casa foi pelo financiamento” (2009, p. 52). Para eles, ter a posse da casa representa uma mudança de realidade de vida, pois ao possuí-la, deixam um passado de aprisionamento e privações por causa de aluguel. A casa, de acordo com Bachelard, é um espaço sagrado, é o lar do indivíduo, é um espaço no qual o sujeito busca por segurança. Se a marca do discurso em todas as narrativas é a do retorno, do desejo pela casa e pelo lar, os assentados encontram uma casa que refugia outro passado, com o qual não há identidade, nem semelhanças. 105
Anais A terra cortada da fazenda Tapirapuã5 para alojar os assentados na construção do Assentamento Antônio Conselheiro, guarda na sua história um casarão, construído no ano de 1906. Morada de passagem de um dos maiores heróis nacionais. Além de guardar um passado distante, anterior aos testemunhos dos assentados, o casarão é o principal espaço do enredo de muitas narrativas presentes no livro. A casa, chamada de Casarão pelos assentados, pelo tamanho da morada de ninguém, pela força em que sobressai ao tempo, numa terra de lutas, pelo passado de latifúndio que representa. O Casarão é a morada de ninguém que assume outras ocupações no assentamento, sem perder o seu valor histórico, contrasta com o presente e o futuro das casas modestas dos assentados. Um Casarão à beira do rio Sepotuba, rodeado por um imenso quintal, cheio de árvores e plantas. O idílio para qualquer assentado. Eis que essa casa já estava lá, feita já grandiosa por alguém e para alguém, mesmo sendo casa de ninguém. É o Casarão que representa a figura do patrão, do latifundiário, tal qual a casa grande (não tão velha) e a tão conhecida senzala. A relação que os assentados têm com suas casas e este casarão é muito distinta. Os assentados chamam as suas moradas de “barracos”, “nós fizemos um barraco” (2009, p. 29), sem poder para sonhar com um casarão. Assim, o casarão além de trazer uma metáfora do passado opressor, vivido pelos assentados “depois que eu entrei dentro desse sítio aqui, eu nunca trabalhei pra fora pra adquirir recurso. Vivo daqui” (2009, p. 50), representa uma metáfora de tudo o que os assentados lutaram contra a sujeição a posição de empregado mal remunerado “sempre pensei que, no dia que eu pegasse um pedaço de chão pra mim sobrevivê, eu numa saia pra enriquecer fazendeiro” (2009, p. 50). O casarão une dois tipos de sujeitos pelas histórias dessa casa grande, pois há narrativas narradas tanto por moradores do assentamento quanto por narradores que não vivem na comunidade, sendo que seu vínculo com o assentamento é o de prestador de serviço na comunidade e com o casarão é de usá-lo como alojamento6. Os contadores dessas histórias marcam bem sua função no espaço. 5 Mais informações sobre a fazenda Tapirapuã no artigo “História do Assentamento Antônio Conselheiro: A Escrita de Si” na obra Olhares: realidade, construção, saberes na terra em assentamento de Mato Grosso (2012), Walnice Vilalva (Org) [et/al]. 6 Não há pesquisas cientificas sobre a Escola Estadual Marechal Candido Rondon. Apenas para fins de conhecimento sobre a casa de Marechal Rondon e o uso da mesma como alojamento há uma matéria jornalística “Casa de Marechal Rondon é tombada como patrimônio histórico em MT” (2012) no site G1. Disponível em: http://g1.globo.com/mato- grosso/noticia/2012/03/casa-de-marechal-rondon-e-tombada-como-patrimonio-historico-em-mt.html. Visualizado no dia 28 de junho de 2021 às 15 horas. 106
Anais Renata Lourenço, que se propõe a contar a história do casarão, diz logo no início “Moro no assentamento Antônio conselheiro há 8 anos [...] Eu vou contar a história do casarão. Lá na agrovila 10, tinha uma velhinha” (2009, p. 80). Sebastião Pinto de Souza, assim como Renata, começa falando de sua relação com o espaço, o assentamento: “Moro em Tangará há muito tempo. Trabalhei um ano e meio puxando alunos na escola Marechal [...] algo que aconteceu comigo” (2009, p. 107). As noites na grande casa do assentamento não são como as noites na maioria das casas na cidade. O Casarão de ontem do Marechal Rondon e o Casarão de hoje no assentamento, com luz elétrica, acabando-se com o tempo, sem conservação, isolado, distante, com paredes úmidas é um local com cheiro forte de mofo, cheio de entulhos, muitos insetos e roedores. É nesse espaço mal iluminado que ocorrem ruídos e aparições estranhas. Adriana de Fátima Novais foi uma das pessoas que morou no casarão enquanto trabalhava na escola, situada no mesmo terreno, “moro e trabalho aqui na escola”: “Aconteceu comigo”. “Dizem, que o lugar é mal-assombrado”. Ela descreve a experiência como “algo de outro mundo”. Adriana narra que estava sozinha no quarto do casarão “eu tava sozinha” e era noite “apagando todas as luzes pra gente dormi”. Ela narra com muito respeito e medo “A coisa, a assombração resolveu puxar o meu travesseiro, daí, sim, que eu fiquei com medo” (2009, p. 81). Ela não teve apenas uma experiência com a assombração: “E não foi só essa vez que eu vi. Da outra vez que eu senti, parecia [...] alguém me olhando; assim, passou do meu lado. Olhei não era nada [...] Eu estava sozinha” (2009, p. 82). Sebastião Pinto de Souza, assim como Adriana de Fátima Novais, também já havia escutado histórias sobre o casarão “o Reginaldo [...] o trem não deixou ele dormi [...] puxava ele pela perna [...] Ele disse que o cara chegava de cavalo, entrava pela cozinha andava no corredor”. Sua experiência com o fantasma do casarão aconteceu também no período da noite “era base de meia noite [...] eu percebi que abriu a porta [...] Eu fiquei todo arrepiado, de cabelo em pé [...] Chegô aonde eu estava e começo a me enforcar, e foi me enforcando [...] eu rezei [...] e ele foi embora” (2009, p. 107). O motorista contou para os outros colegas de trabalho e eles riram e não acreditaram: “Daí, no outro dia, pegou o Santiago [...] sozinho a gente num dormia mais aí no casarão [...] passado uma semana, pegou o outro motorista, o Marcelo [...] eles acreditaram em mim [...] Muitos não acreditam ainda. Eu não duvido mais” (2009, p. 108). As narrativas são experiências que possuem o casarão como o elo entre os sujeitos, tornando-se meio comunicativo de acessibilidade e comuns aos integrantes do 107
Anais assentamento. Tais narrativas, portanto, estão aliadas a um sistema simbólico vigente, uma vez que os narradores utilizam um discurso reiterado por outrem, representando a expressão de uma sociedade, a comunidade do Assentamento Antônio Conselheiro. Diferente de Sebastião e Adriana, Oscarino Santana, narrador de acontecimentos sobrenaturais no casarão, é um morador do assentamento. Ele demarca isso no seu discurso “Resido aqui no assentamento Antônio Conselheiro, na agrovila 17. Trabalho no colégio Marechal Rondon”. Ele narra que também à noite estava dormindo no casarão e teve um encontro com o fantasma “eu vi que era barulho de cavalo [...] ele desceu do cavalo [...] veio para o lado do quarto que nós tava dormindo [...] eu vi quando a porta abriu [...] Eu queria gritá” (2009, p. 109). As histórias de assombro, a figura do sobrenatural habitando um espaço social e econômico. O Casarão é lugar de fantasmas. Há na narrativa de Sebastião e Oscarino a permanência desse mesmo conteúdo narrado, o fantasma que vem a cavalo. É possível perceber que nessas narrativas o conteúdo traz aspectos de marcação discursiva do grupo, na reiteração do elemento sobrenatural. Aconteceu comigo e com ele também. E todos remendando o dia, igualmente aos outros narradores, trazendo a afirmação que viu/viveu: “esse casarão do marechal Candido Rondon é assombrado” (2009, p. 109). Assim, além de as narrativas trazerem como características a transmissão de experiências, elas trazem a comunicação expressiva de uma crença, de uma verdade compartilhada: o casarão é assombrado. O narrador ainda faz um alerta “Todas as pessoas que dormem sozinho aqui, essa criatura assombra eles” (2009, p. 110). Renata diz que a velhinha da agrovila 10 lhe contou a história do casarão. Segundo a idosa, o casarão já teve escravos morando lá antigamente e que o marechal Cândido Rondon, visto pela história oficial como o herói das linhas telegráficas, era “muito antiquado [...] Aquelas coisas antigas dele”. Há no casarão, no meio da grande sala, um buraco no chão chamado de “o túnel” pelos moradores do assentamento, “no casarão tinha um túnel que dava direto no rio”. Existem muitas histórias sobre a utilidade que o Marechal dava para o túnel. O Marechal é descrito por essa narradora como cruel, “todas as maldades do Marechal” no hábito de matar os escravos “O Marechal ficou bravo, foi atrás desses escravos, matou-os e jogou seus corpos no túnel” (2009, p. 80). Segundo a narrativa dos assentados, o casarão foi palco de acontecimentos ruins. Essas histórias de assombro dos assentados carregam um significado histórico e social. Tais narrativas configuram o mundo habitado do assentamento, configuram a terra e, nela, o espaço da casa. São as histórias que o homem do campo conta. São histórias de 108
Anais assentados. Quem dirá se são verdadeiras, senão eles próprios? E com essas narrativas tanto a simbologia da casa deixa o lugar de morada segura quanto a imagem do Marechal Rondon está subtraída da condição de herói. Essa necessidade em contar e compartilhar as experiências de assombro no casarão é uma dinâmica e uma experiência coletiva, ou seja, contar a história habita a rotina do assentamento como forma integradora da sua complexidade e sua identidade. Narrar é uma experiência que permite o ato de compartilhamento. É pela necessidade de contar a história que se formula uma identidade complexa como registro na fronteira entre o histórico e o simbólico, entre o natural e o sobrenatural. Deste modo, essas histórias possuem uma repercussão muito grande e significativa dentro da comunidade, na voz dos assentados e dos não-assentados. As narrativas do fantasma do casarão fazem com que os sujeitos tenham uma interação social dentro do espaço em que vivem, uma vez que há tanto entre os moradores do assentamento quanto os moradores do casarão uma ação discursiva. O casarão é um símbolo cultural de pertencimento para uns e de mau presságio para outros, porque “a arte é um sistema simbólico de comunicação inter-humana” (Candido, 2006, p. 31), uma vez que as narrativas de assombro, que são relatadas na comunidade, passam a simbolizar o pertencimento do sujeito ao grupo, elas se apresentam como legado e herança cultural passada pela oralidade dentro da comunidade. Existe uma transmissão direta dos valores e crenças que resulta na/da expectativa social. Ademais, elas também se apresentam como uma narrativa de alerta quando contada aos novos sujeitos que aparecem na comunidade, principalmente, os sujeitos chamados de “pessoas da cidade”. Pessoas que acabam usurpando, na visão da maioria dos assentados, os empregos gerados dentro da comunidade, como nas escolas e nos postos de saúde que, para eles, devem ser ocupados pelas “pessoas da comunidade”, pois somente o povo da comunidade conhece suas próprias necessidades e anseios. Essas narrativas de assombro servem para manter esses intrusos em estado de vigília, pois ao contar sobre a assombração do casarão, “quando você dúvida de alguma coisa [...] atrai os maus fluidos” (2009, p. 94), se estabelece um limite e um alerta. A história do fantasma do casarão circula nas vozes de dois tipos de sujeitos: o assentado e aquele que trabalha na escola e habita temporariamente o Casarão. A casa do Marechal se apresenta como um espaço simbólico de habitação/morada (ainda que temporária). Segundo Gaston Bachelard, a casa é um espaço que nos fornece imagens: o casarão fornece aos seus moradores imagens discursivas, entre essas imagens está a do assombro. Pessoas habitam o casarão; se “todo espaço verdadeiramente habitado traz a 109
Anais essência da noção de casa” (Bachelard, 1993, p. 200), o casarão não constitui em uma morada tranquila como a dos assentados; mas, sim, uma morada desassossegada e cheia de mistérios. Sabemos que o ato de habitar é essencial ao ser humano, se a primeira morada é a barriga da mãe, a segunda é a casa. Há, desta forma, também uma interação dos moradores do casarão com esse espaço. Assim, os alojados se relacionam com o espaço do casarão como suas casas. Quando os sujeitos que estão alojados no casarão levam seus pertences para lá, como um simples porta-retrato ou até mesmo um fogão para cozinhar, esse simples fato de levar objetos pessoais representa, inconscientemente, um pertencimento ao espaço. Com o ato de levar coisas pessoais, os alojados dizem indiretamente que estão fixando morada no casarão. Eles sentem que o casarão lhes pertence, mesmo que por uma estada curta, pois eles habitam naquele espaço. Esse espaço os molda e influencia as atitudes e o discurso narrativo desses sujeitos. O casarão recebe os alojados, acolhe e assombra: “a casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos” (Bachelard, 1993, p. 201). No espaço casarão, as narrativas de assombro nomeiam a imagem do fantasma. Ao ouvir os relatos, é possível perceber um pacto social entre os falantes no qual todos enxergam, se não a mesma coisa, uma coisa muito semelhante. Ou seja, o casarão mantém os narradores, tanto do próprio casarão quanto os da comunidade, fazendo uma tessitura de narrativas com um enredo muito parecido. Há entre os moradores uma tradição ininterrupta: narrar a história do casarão. O que chamamos aqui de tradição é este ato de transmitir pela oralidade de uma geração a outra histórias, crenças e costumes de um povo. Assim a vida social no assentamento se faz por meio de um ritual que consiste na repetição do passado do casarão, sua história na época do Marechal, inspirando novas experiências narrativas, a assombração do casarão no presente da enunciação. As narrativas organizadas no Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro são narrativas de retorno do homem para o campo. Entre este homem do campo e o homem alojado no casarão prevalece o discurso narrativo ressignificando a história e trazendo o sobrenatural, pois celebram em suas vozes uma experiência que é própria do assentamento. Esse discurso narrativo está estritamente ligado ao meio de vida e organização social do assentamento, visto que representa uma tradição cultural que traz a consciência de dois grupos distintos que se assemelham e se completam. Porém, ao mesmo tempo em que o casarão carrega uma imagem negativa, porque foi palco de acontecimentos muito ruins que mantém no local viva uma assombração, na memória do assentado o casarão traz à 110
Anais lembrança o passado não completamente superado, ultrapassado de tudo o que representa uma Casa Grande (o trabalho escravo, a violência, a morte). O Casarão é a memória viva de um passado histórico ainda não superado pela realidade dos assentados. A simbologia do casarão abre horizontes complexos de significação: edifica na experiência a necessidade de narrar mesmo as coisas terríveis e cruéis de uma história não oficial, contrariando assim a História, desmontando o heroísmo e registrando o não-reconhecimento do herói Marechal. CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise proposta é um olhar transversal sobre “O Casarão de Rondon” ponto de referência no processo de ocupação da Fazenda Itapirapuã, localizado estrategicamente à margem esquerda do Rio Sepotuba (rio abaixo), em direção noroeste-norte, formando uma simbiose com o cotidiano da vida dos assentados (homens e mulheres que têm vida e gostam da terra) e de trabalhadores externos (alojados) que gravitam no espaço em que se localiza o casarão. É espaço de memória, presente no contexto das relações sociais do assentamento, tomando formas diversas: na perspectiva sobrenatural; como memória de um passado de opressão; e, como símbolo de uma conquista, permeada por uma trajetória de lutas pela terra, forjada no âmbito das lutas desencadeadas pelo MST. O casarão traz desde a gênese da ocupação daquele latifúndio uma simbologia que ao longo do tempo, tomou forma de uma lenda, quando seus ocupantes (professores, motoristas e demais trabalhadores da escola) ocupam aquele espaço para suas estadas durante o período de trabalho. Para esses, “O Casarão de Rondon” se apresenta como uma simbologia mítica, que aterroriza por ser mal-assombrado, enfeitiçado, local habitado por assombrações e fantasmas que atormentam a noite e o sono de quem se aventura a dormir ou habitar o “casarão”. É um espaço em que o cotidiano da vida se mistura com o sobrenatural, servindo inclusive de repelente para corpos e almas que buscam trabalhar na escola e que são percebidos por intrusos, isto porque, ocupariam postos de trabalhos de membros da comunidade. Nesse caso, o sobrenatural toma forma viva na função de repelir intrusos. Para além da dimensão sobrenatural que é dada ao casarão, está presente no imaginário e na memória das pessoas e do MST como um símbolo do latifúndio e da opressão, encarnado na figura do Marechal Cândido Rondon, militar que transitou por aquele espaço no processo de avanço dominante em direção ao noroeste e norte do Brasil. Nesta perspectiva, o casarão é a simbologia de uma relação de poder, em que a tônica foram as 111
Anais relações de opressão, pois tratava-se de expedições intrusas em áreas indígenas, com o propósito de expandir as fronteiras de desenvolvimento na perspectiva dos colonizadores. A figura de Rondon é controversa, assim como o casarão. Por outro lado, a ocupação da fazenda e por conseguinte do casarão se coloca também como um símbolo de uma conquista, forjada na luta de centenas e milhares de famílias vinculadas ao MST que conquistaram a terra, a terra que era um latifúndio, e que agora é terra de trabalho e de produção da vida material e imaterial para muitas famílias. O casarão também o é, pois faz parte da conquista. É uma forma viva de contraposição a uma lógica colonizadora, calcada na opressão e no latifúndio. Ocupar o casarão tem significado de luta, e na luta, a caminhada rumo à libertação opressora. Assim, o casarão é muito mais que o Casarão. É um símbolo cultural de pertencimento para uns e de mau presságio para outros. É memória sobrenatural que aterroriza seus moradores (é tenso morar no Casarão), é memória que expressa as relações de luta pela terra, é símbolo de luta contra a opressão, é permanente luta de homens e mulheres para permanecerem na terra de trabalho e de memória, lócus de produção da vida material. É cultura e história, forjadas na luta pela terra e para nela permanecer. Como brasa acesa, é memória viva de homens e mulheres moradores e moradoras do Assentamento Antônio Conselheiro. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. 3. ed. São Paulo: SCHWARCZ, 2004. CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. Ed. São Paulo: Centauro, 2015. ROSA, Marinês, LAFORGA, Gilmar, VILALVA, Walnice (Org.) Olhares: realidade, construção, saberes na terra em assentamento de Mato Grosso. São Paulo: Artes e Ciência, 2012. VILALVA, Walnice, LAFORGA, Gilmar (Org). Vozes do Assentamento Antônio Conselheiro. Tangará da Serra: Gráfica e Editora Sanches LTDA. 2009. VIVEIROS. Esther Maria Terestrello da Câmara. Rondon conta sua vida. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2010. 112
A PALAVRA POÉTICA EM FERREIRA GULLAR E IRAIDE DA SILVA MARTINS: uma análise memorialística na literatura e cultura popular maranhense Luís Fernando Lima CAMELO (UFMA) Rubenil da Silva OLIVEIRA (UFMA) RESUMO Este trabalho está vinculado ao campo dos Estudos Culturais e Literatura Comparada, analisando assim fronteiras discursivas entre a poesia de Ferreira Gullar e Iraide da Silva Martins. O presente artigo visa conhecer as características sociais na poesia gullariana e iraidiana, estabelecendo assim um diálogo da ideia de poesia social por suas próprias reflexões críticas. Com isso, a pesquisa tem como destaques duas poesias da literatura brasileira contemporânea: “Dois e dois: quatro” (1966) e “Intolerância” (2020), evidenciando a posição estética dos poemas como instrumentos de crítica social para a literatura e cultura popular maranhense. O estudo proposto traz as concepções de memória e suas manifestações na literatura e na cultura, compreendendo a memória como registro do vivido, resgate de imagens, preservação e reparação da experiência humana. Assim, as poesias descrevem uma ação constante do ser humano que é a busca do sentido da vida. À vista disso, a pesquisa tem como aporte teórico observações de autores como Carvalho (2021), Corrêa (2016), Cevasco (2003), Halbwachs (2006), Nitrini (2015). Palavras-chave: Vida; Memória; Poesia Social; Literatura Maranhense. 113
Anais ABSTRACT This work is linked to the field of Cultural Studies and Comparative Literature, thus analyzing discursive boundaries between the poetry of Ferreira Gullar and Iraide da Silva Martins. The present article aims to know the social characteristics in Gullarian and Iraqi poetry, thus establishing a dialogue of the idea of social poetry through its own critical reflections. With this, the research highlights two poems from contemporary Brazilian literature: “Dois e Dois: Quatro” (1966) and “Intolerância” (2020), evidencing the aesthetic position of the poems as instruments of social criticism for literature and popular culture. from maranhão The proposed study brings the conceptions of memory and its manifestations in literature and culture, understanding memory as a record of what has been lived, rescue of images, preservation and repair of human experience. Thus, the poems describe a constant action of the human being that is the search for the meaning of life. In view of this, the research has as theoretical support observations of authors such as Carvalho (2021), Corrêa (2016), Cevasco (2003), Halbwachs (2006), Nitrini (2015). KEYWORDS: Life; Memory; Social Poetry; Literature from Maranhão. INTRODUÇÃO Historicamente, a literatura desempenha uma dupla função, vale-se como expressão artística e também como meio de transmitir conhecimentos. Começou a existir através da oralidade com o objetivo de perpetuar as histórias e a cultura para as gerações seguintes. Deste modo, pode-se afirmar que a literatura é o reflexo do que somos, de nossos anseios, interesses, e está sempre associada com as características histórico-sociais de cada tempo. A partir do século V a.C. existe uma separação da literatura em gêneros, elaborado por Aristóteles em sua obra Poética. São eles: o gênero dramático, gênero épico ou narrativo e gênero lírico. Mas, o que é poética? Para que a poética da palavra? Para entendermos essas concepções é importante frisar que a obra de Aristóteles desperta no decurso dos séculos à expressão “ciência da literatura”, vista como a base teórica dos estudos literários. A Poética significaria a denominação de uma ciência, e que hoje é chamada de “teoria da literatura”. Nesse contexto, a obra de Aristóteles é iniciada com uma proposição que hoje em dia parece ser perceptível, “Poesia é imitação”. Assim, Aristóteles comprende que a imitação é algo natural no ser humano, o que ele comprova na certeza de que as primeiras coisas que o homem aprende é por imitação dos outros, e essa representaria uma das origens da poesia, enquanto a outra estaria relacionada com o caráter dos homens que fazem a imitação, cada 114
Anais um deles dando origem a um tipo de representação artística diferente. Ou seja, a poética da palavra. O sentido originário da palavra poética descolonaliza a cultura, pois a língua é muito viva, e ela reflete todas as relações da sociedade. Diante disso, o estudo destaca duas poesias da literatura brasileira contemporânea, Dois e dois: quatro (1966) e Intolerância (2020), destacando a posição estética dos poemas como instrumentos de crítica social na literatura e cultura popular maranhense. Assim, a poética da palavra apresenta-se como recurso político, social, poético e cultural. O que é poesia social ou literatura de engajamento? A quem se destina essa produção? A denominação de literatura engajada ou poesia social tem sido questionado em debates no meio acadêmico, filosófico e literário, e inclusive há indagações se a literatura engajada pode tornar-se um “gênero literário”. Verifica-se que, é um aspecto da literatura poética, na qual os valores políticos e sociais são destacados para aproximar-se do leitor. Ainda assim, pelo fato de a literatura também ser uma cotidiana prática social, que atinge múltiplos leitores, impactando-os, socializando-os é que diversos autores observam um importante instrumento para denunciar as mazelas e injustiças sociais. Deste modo, que a literatura de engajamento, cada vez mais, vem ganhando espaço socialmente, observando assim que a prática literária tem suas crises e desafios, onde a litertaura pode enfrentar e abordar. Dessa forma, surgiu a poesia social, e frente a essa linha de pensamento temos Ferreira Gullar e Iraide Martins, que usaram da palavra, demarcada pela autenticidade de uma linguagem corpo a corpo com a poesia. Importante salientar que mediante as leituras e as interpretações dos poemas estudados é que a memória integra o presente e o passado, além de projetar o futuro, proporcionando reconhecimento, reencontro, significado, sentido de que não haveria a memória sem o sujeito. É a memória social que constrói a identidade cultural do sujeito. O estudo proposto traz essas concepções de memória e suas manifestações na literatura e na cultura, compreendendo a memória como registro do vivido, resgate de imagens, preservação e reparação da experiência humana. Assim, as poesias descrevem uma ação constante do ser humano que é a busca do sentido da vida. A pesquisa tem como objetivo conhecer as características sociais na poesia gullariana e iraidiana, estabelecendo assim um diálogo da ideia de poesia social por suas próprias reflexões críticas. Partindo desse fazer poético, mediante a representação da realidade e estética, o trabalho está dividido em três subtópicos. 115
Anais Em “Algumas palavras sobre a literatura maranhense”, conheceremos um pouco da realidade e fatos decisivos para a prática literária no Maranhão, assim como suas características e evolução no decorrer dos tempos, tais como 1832 a 1868, destaque para Odorico Mendes, João Lisboa, Gonçalves Dias; 1868 a 1894, destaque para Aluísio Azevedo, Coelho Neto, Graça Aranha; 1894 até os dias atuais, além de fazer um paralelo sobre a literatura e a representação social de Gullar à Iraide. No tópico “Gullar e ditadura: Dois e dois quatro”, analisaremos a produção poética de Ferreira Gullar, através de sua criação no período de vigência da ditadura militar no Brasil, fase em que o escritor tenta resistir à ordem ditatorial por meio de uma atuação revolucionária, que se reflete na produção de poemas ousados e questionadores. Assim, o foco central será no poema Dois e dois: quatro, destacando o poema como instrumento de crítica social. Em “A sopa poética de Iraide Martins”, situaremos a poesia da professora Iraide da Silva Martins no cenário da literatura bacabalense, e principalmente da literatura maranhense, para compreendermos algumas questões que fazem parte do modo como a poetisa constrói seus poemas e que podem elucidar as relações de sua poesia. Dessa forma, frisaremos o poema Intolerância para analisar sua construção poética, fazendo assim uma ligação à memória e poesia social de Ferreira Gullar. Por fim, com o intuito de definir os aspectos da poesia de Ferreira Gullar e Iraide Martins a serem tratados neste trabalho, recorremos à Memória Coletiva, de Maurice Halbwachs (2006); os Estudos Culturais em Maria Cevasco (2003); Literatura Comparada em Sandra Nitrini (2015); além da percepção de como os poemas podem servir de instrumentos de crítica social. ALGUMAS PALAVRAS SOBRE A LITERATURA MARANHENSE Existem várias formas e contextos para entendermos as contribuições histórico- sociais de um lugar, com isto, destacamos a arte e a literatura como propagação eficiente dessa construção. Grande parte do Brasil termina por conhecer o lugar por meio das obras literárias que o descrevem. No Maranhão não é diferente, alguns de seus escritos descrevem- no através de uma sutilieza em destaque para suas belezas naturais e seu processo histórico. Para fixar essas ideias, o Grupo de Estudos em Literatura Maranhense – GELMA – destaca 116
Anais alguns pontos centrais na visão do escritor Antônio dos Reis Carvalho (1874-1946). Diante desses estudos, a literatura maranhense é dividida através de ciclos, a pontuar: O primeiro ciclo vai de 1832 a 1868; principia com a célebre poesia de Odorico Mendes, Hino à tarde, publicada no Rio de Janeiro em 1832, e fecha- se com a revista literária Semanário Maranhense, que suspendeu a publicação em 1868, tendo durado apenas dois anos. Os Primeiros Cantos, de Gonçalves Dias, vindos à luz no Rio de Janeiro, em 1846, são o livro representativo desse período. O segundo ciclo compreende cerca de vinte e seis anos, de 1868 a 1894. A sua obra representativa é O Mulato, de Aluísio Azevedo, publicada em 1881, na cidade de São Luís. O terceiro ciclo, finalmente, vai de 1894 até hoje. É iniciado com o livro de Inácio Carvalho, Frutos Selvagens, publicado em São Luís naquele ano. A obra principal deste período são os Mosaicos, de Domingos Barbosa, publicados em São Luís, em 1808, se se abstrair o Canaã, de Graça Aranha, publicado no Rio de Janeiro, em 1904, livro de autor maranhense, pertencente, pela idade, mais ao segundo que ao terceiro ciclo, e pensado e escrito fora do Maranhão. (CARVALHO, 2021, p.11) Apesar de ter deixado uma pequena contribuição para as pesquisas sobre a literatura maranhense, o nome de Antônio dos Reis Carvalho ainda é pouco conhecido. Além de ensaísta e poeta, Antônio dos Reis Carvalho, nasceu em São Luís do Maranhão, em 10 de abril 1874, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1946, foi também dramaturgo, jornalista e professor. Merecedor de respeito e estima, o escritor foi bastante admirado por seus contemporâneos, porém, com o transcorrer do tempo, decaiu no esquecimento. Sua maior contribuição dentro desse estudo é intitulado A literatura maranhense, que foi publicado como primeiro verbete do vigésimo volume da Biblioteca Internacional de Obras Célebres, em 1923. Vários outros escritores ajudam com a divulgação da cultura maranhense através de seus estudos. Cada qual dispõe uma forma de escrita, com suas especificidades e grande valor na construção do legado histórico-cultural do Maranhão. Escritores maranhenses, como Aluíso Azevedo e Josué Montello, mostram a questão racial em sua literatura, recortes para O Mulato e Tambores de São Luís, obras inspiradas na vida maranhense da época. Destacam-se também, Arthur Azevedo, Bandeira Tribuzi, Ferreira Gullar, João do Vale, Gonçalves Dias, Graça Aranha, Maria Firmina dos Reis, Raimundo Correia, Humberto de Campos e vários outros. Em artigo publicado pela Revista Plural nº 3, Abril/2012, Ricardo Leão - maranhense, doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp – sintetiza essa arte literária abordando que “o Maranhão é terra de nomes que a todo momento deveriam ser cultuados e lembrados pelos seus filhos”. Ele complementa: 117
Anais O Maranhão é berço de grandes representantes da intelectualidade brasileira, dignos de serem eternizados na nossa memória (jamais esquecidos). E não seria, não é mesmo, para nos sentirmos honrados, orgulhosos de ser maranhenses? [...] A verdade é que fomos perdendo a consciência (e temos que lembrar, a cada nova geração) de que esta terra já erigiu monumentos da cultura e da literatura brasileira e de língua portuguesa, cuja memória poderia, poderá ser evocada periodicamente, em colégios, academias, universidades... instituições que, a propósito, deveriam impor-se como baluartes de uma cultura detentora de insignes representantes da nossa história, da nossa literatura, da inteligência brasileira. Enfim, investir-se da missão difusora desses valores eternos. (LEÃO 2012, p.40). Dessa forma, percebe-se que a Literatura Maranhense é magnifica, pois consegue apresentar pontos importantes da formação de seu povo, refletindo assim as tradições e culturas dos nossos antepassados, carregadas de encantos em suas histórias, poesias, cordéis, apresentando musicalidade em seus enredos que descrevem as belezas do Maranhão. Hoje, quando falamos em Literatura Maranhense, o grande destaque nacional está em Maria Firmina dos Reis, sua obra Úrsula (1859), também considerado o primeiro romance brasileiro de temática abolicionista, marcado pela presença do negro escravo (sofrido, explorado, à mercê de um sistema escravista, desumano e injusto) e pelo que se pode dizer, hoje, um sentimento de brasilidade, de quem anseia e projeta, para um futuro não tão distante, o sonho de uma pátria-mãe acolhedora, em que todos possam viver e conviver em igualdade de condições, inclusive a mulher, com direito à escolaridade, podendo ler e escrever como os homens. Obra que inaugura um novo olhar, quanto à problemática da escravidão, à medida que a autora “assume o ponto de vista do outro, tanto no que diz respeito à representação dos escravizados, quanto no inédito enfoque das relações de dominação patriarcal sob a perspectiva da mulher” (DUARTE, 2004, p. 443). Sendo uma arte, a literatura consegue apresentar e descrever tradições, épocas e lugares. É assim na escrita maranhense. Conhecer grandes nomes da literatura é de suma importância para que a história seja protegida, e sendo assim, não seja esquecida ou estancada. No Maranhão, em várias cidades, além de São Luís, dispõe de artigos, estudos, projetos, artigos e até mesmo paisagens arquitetônicas em praças demonstram o valor dos escritores da literatura maranhense. 118
Anais Como diz a pesquisadora Dinacy Mendonça Corrêa, em sua tese de doutorado intitulado Da Literatura Maranhense: romance e romancistas maranhenses do Século XX: Evocamos o velho jargão a caracterizar esta nossa terra gonçalvina e a encher de orgulho a Athenas Brasileira: “o Maranhão é terra de poetas” – como ainda se faz comum dizer/ouvir neste nosso Estado, sobretudo nesta “Ilha Magnética”, “Ilha do Amor”, “Ilha-Poesia”, “Ilha Rebelde”, “Cidade dos Azulejos”, e ultimamente também “Jamaica Brasileira”, onde, em cada esquina, pode haver um poeta em transportes líricos. Já o nosso romance, aqui, ainda é desconhecido, esquecido. Não obstante, como nos está sendo dado constatar, aqui também se produz o romance. Esperamos, pois, que este trabalho venha a contribuir para que possamos reconhecer e dizer, numa completude: “O Maranhão é terra de poetas e de romancistas”. Assim seja. (CORRÊA, 2016, p.201). GULLAR E A DITADURA EM “DOIS E DOIS: QUATRO” Em 10 de setembro de 1930 nascia, em São Luís do Maranhão, José de Ribamar Ferreira. Com o pseudônimo de Ferreira Gullar, se tornaria um dos nomes mais relevantes da literatura brasileira do século 20, por seu trabalho como escritor, poeta, crítico de arte, tradutor, memorialista, teatrólogo e ensaísta. Durante a adolescência despertou seu interesse pela poesia, largando as brincadeiras na rua para dedicar-se à leitura. Aos 18 anos, já trabalhava como redator no jornal Diário de São Luís e finalizava seu primeiro livro, Um pouco acima do chão (1949), lançado com apoio do Centro Cultural Gonçalves Dias. Ainda no final dos anos 1940, trabalhou como radialista na Rádio Timbira e como colaborador do caderno literário do Diário de São Luís. Em 1950, venceu o concurso literário do Jornal de Letras, com o poema O galo. No ano seguinte, se mudou para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como redator da Revista do Instituto de Aposentadoria e Pensão do Comércio, e pouco tempo depois, passaria a fazer parte da equipe da revista O Cruzeiro, como revisor. Em 1953, se casa com a atriz Thereza de Aragão, com quem teve três filhos e permaneceram juntos até 1994. Além de seu casamento, o ano de 1953 foi marcado pelo lançamento de seu livro A luta corporal e pelo seu começo como redator na revista Manchete. No período que viveu no Rio de Janeiro, também trabalhou para o Diário Carioca e para o Jornal do Brasil. Nos anos 1960, Ferreira Gullar dirigiu a Fundação Cultural de Brasília e foi responsável pela criação do Museu de Arte Popular. Além disso, trabalhou no jornal O Estado 119
Anais de São Paulo e se tornou presidente do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/ UNE). Exilado desde 1971, após ser preso pela ditadura militar com outros artistas e músicos, como Caetano e Gil, ele vai retornar ao Brasil em 1977. A partir daí, passa a trabalhar como roteirista de televisão para a Rede Globo, onde trabalhou por 20 anos e viria a escrever, em parceria com Dias Gomes, os roteiros de Araponga (1990) e As Noivas de Copacabana (1992). Entre 1992 e 1995, atuou como diretor da Funarte. Ferreira Gullar faleceu em 2016, aos 86 anos. Ferreira Gullar poeta, estudioso da cultura brasileira, da poesia brasileira, da música, da arte brasileira, era um teórico de crítica brasileira. “Dois e dois: quatro” foi publicado em um livro que reúne obras de Gullar escritas entre 1962 e 1975. No poema, o eu lírico compara sua convicção de que a vida vale a pena a outras certezas que ele tem. Para compreendermos o poema em estudo é preciso saber que o escritor viveu o período da ditadura militar no Brasil. O golpe militar de 1964 deu início à ditadura, que perseguiu e torturou políticos, intelectuais, artistas, operários e outros cidadãos que se manifestaram contra o regime. A censura vetou a exibição e a divulgação de livros, filmes, peças de teatro, músicas, programas de televisão. Esses acontecimentos afetaram a produção literária e, segundo a crítica, o movimento concretista – poesia nova, em que o poema passa a ser ele mesmo um objeto de apreciação, foi a mais marcante novidade da poesia brasileira que começou a se produzir nos anos de 1950-1960, ou seja, a primeira tendência da poesia brasileira contemporânea – mantinha-se à margem dessa realidade. Assim, alguns poetas que tinham aderido ao concretismo romperam com o movimento e começaram a produzir poemas que dizem respeito à realidade imediata em que vivia a maior parte do povo. Propunham o retorno ao verso, o emprego de uma linguagem mais simples e direta e o uso da poesia como instrumento de participação política. É o caso de Ferreira Gullar, o autor do texto lido. Se não soubéssemos essa característica de Ferreira Gullar, não conseguiremos entender o poema Dois e dois: quatro. Sabendo disso, que Ferreira Gullar nasceu em 1930 e morreu em 2016, vejamos trechos do poema: “Como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena embora o pão seja caro e a liberdade pequena” (GULLAR, 2010, p.66). 120
Anais Observa-se que o poema fala sobre esse contexto ditatorial, analisando o trecho acima, consideremos que ele fala o tempo todo no poema de “pão caro”, coisas caras, “liberdade pequena”, não se podia falar tudo. Isso é um contexto da ditadura militar, 1964- 68. Porém, o poema também contextualiza a atualidade do Brasil. Quando a gente ler uma poesia como essa de Ferreira Gullar é muito provável que associamos aos dias de hoje, não tem como a gente ler e associar ao nosso cotidiano no Brasil. Apesar de ter sido escrito em um período de ditadura militar, mas também ele é um poema contemporâneo. A literatura é atemporal! Os problemas são os mesmos, seja em 1964, seja em 2021-2022, e isso é uma característica da boa literatura, da boa arte, que é ser atemporal, que é falar de questões que continuam com o passar do tempo. [...] como é azul o oceano e a lagoa, serena como um tempo de alegria por trás do terror me acena [...] (GULLAR, 2010, p.66) Esse trecho também fala sobre a período militar, fala de esperança. A lagoa alí representa a esperança de dias melhores. Essa lagoa que está atrás de tantos problemas que estamos vivenciando hoje, ela é quem nos dar esperança de que as coisas vão passar, nada dura para sempre. Por conseguinte, o poema de Gullar está estruturado em versos livres, fazendo parte assim da literatura contemporânea, apresenta algumas figuras de linguagens, como anáforas (repetição de palavras no início dos versos), além de contemplar a simbologia do contexto da ditadura militar. O mais importante desse poema é relacioná-lo aos nossos dias. Segundo o crítico Alfredo Bosi, na fase mais participante de Ferreira Gullar é possível perceber o abandono dos experimentos no corpo da palavra e uma opção pela estrutura mais tradicional do verso. A mensagem assume o primeiro plano, em detrimento da forma, e o engajamento social se evidencia. um primeiro olhar sobre sua poesia permite discernir-lhe temas e imagens que se repetem obsessivamente e apontam para a existência de “uma personalidade poética bastante coesa no interior da obra” (BOSI, 2003. p.171). Segundo o crítico, o aprofundamento desse olhar, após algumas releituras, avança para a identificação de um “universo bem determinado”, de modo que o leitor fica tentado a “desenhar-lhe o mapa”. (BOSI, 2003. p.171). 121
Anais Assim, além do poema “Dois e dois: quatro” (1966), de Ferreira Gullar, o estudo contempla também o poema “Intolerância” (2020), de Iraide Martins, as falas de concepções de memória e suas manifestações na literatura e na cultura, compreendendo a memória como registro do vivido, resgate de imagens, preservação e reparação da experiência humana. Assim, as poesias descrevem uma ação constante do ser humano que é a busca do sentido da vida. Partindo dos pressupostos teóricos sobre estudos literários comparados, temos Sandra Nitrini. Em seu livro Literatura Comparada. História, Teoria e Crítica, ela apresenta conceitos como influência, imitação e originalidade, assim como apresenta as principais teorias que contribuíram mais recentemente para o desenvolvimento da estética da recepção e a intertextualidade. Vejamos como Nitrini pontua o termo “literatura comparada”: O termo surgiu justamente no período de formação das nações, quando novas fronteiras estavam sendo erigidas e a ampla questão da cultura e identidade nacional estava sendo discutida em toda a Europa, [...] ampliando, portanto, seu objeto de interesse no campo das relações inter-literárias e em consonância com o movimento geral dos estudos literários que abrem espaço para as chamadas literaturas não canônicas. (NITRINI, 2000, p. 20 e 279). O livro Literatura Comparada, de Tânia Franco Carvalhal, complementa essa análise: A literatura comparada é o estudo da literatura além das fronteiras de um país específico e o estudo das relações entre, por um lado, a literatura, e, por outro, diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes (por exemplo, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música), a filosofia, a história, as ciências sociais (por exemplo, a política, a economia, a sociologia), as ciências, a religião, em suma, é a comparação de uma literatura com outra ou outras e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana. (REMAK apud COUTINHO; CARVALHAL, 1994, p.175). A partir dessa definição no campo dos estudo comparatista dos estudos literários, fica compreensível que, a Literatura Comparada não exclui o contexto social, histórico e político da metodologia comparatista nos objetos de estudo, incorporando meios e materiais no campo de investigação. É válido destacar que os estudos de Carvalhal são de suma importância para os estudos comparados, uma vez que ela enfatiza e destaca reflexões sobre a natureza e o 122
Anais funcionamento dos textos e sobre as relações que a literatura mantém com outros sistemas semióticos, abrindo caminhos para a intertextualidade e procedimentos de criação literária. A SOPA POÉTICA DE IRAIDE MARTINS Iraide da Silva Martins, bacabalense, nascida em 21 de setembro de 1962. Graduada em Letras pela UEMA, pós-graduação em Arte, Educação e Tecnologias Contemporâneas (UnB), dirigente do Partido Comunista do Brasil (PCdoB/Bacabal), sindicalista e militante no movimento feminista. Fundadora da cadeira nº 4 da Academia Bacabalense de Letras – ABL, onde exerceu por duas vezes o cargo de vice-presidente. Professora de Língua Portuguesa da rede estadual de ensino, exerceu a função de Gestora Regional de Educação. No meio artístico atuou junto a outros artistas pela valorização da produção artístico- cultural da região. Produziu e dirigiu o projeto “Sopa, Música e Poesia”, em parceria com a Academia Bacabalense de Letras, sarau que durou oito meses, no ano de 2015. Amante das mais variadas linguagens artísticas, entre seus escritores prediletos estão: Carlos Drummond de Andrade, Cora Coralina, Elisa Lucinda, Vinícius de Moraes, Fernando Pessoa e Patativa do Assaré. A Professora Iraide da Silva Martins faleceu em 2020, aos 57 anos. Bacabal possui em sua história social o florescer de poetas e escritores nativos que produziram e permaneceram sepultados pelo anonimato por décadas. Não raro se torna a admiração da comunidade local ao saber que bacabalense também escreve literatura. Hoje tem sopa, Música e Poesia. Esse evento acontecia todas as quintas no Restaurante Colher de Pau, o bar da Janete, idealizado pela poetisa Iraide Martins, que recebia um grande número de poetas e amantes da arte e depois dos recitais, era servida uma saborosa sopa. Tomemos como destaque a querida e imortal, professora Iraide da Silva Martins, e seu poema “Intolerável” para ilustrar a palavra poética dessa bacabalense que nos deixou um legado de glórias e resistência. Intolerável mania de acreditar Acreditar, simplesmente. Ponto final? Não! Ponto contínuo. (MARTINS. 2020). 123
Anais Percebe-se que a grande Iraide em sua escrita magnífica conversa com seu leitor, traçando uma reflexão. Os poemas parecem empurrar seus leitores para um estado de meditação que se prolonga para muito além da leitura. O título “Intolerável” traz esse recado em seu discurso poético. Que não se consegue tolerar; que não se pode suportar; que não é aceitável; insuportável: comportamento intolerável; pessoa intolerável. Quanto mais acredito, mais cética permaneço Ante ao crepúsculo. Já viste o entardecer nas fases de lua cheia? Magnífico! Encerra e inicia novo ciclo “alumêa”, ou será “alumia”? (MARTINS. 2020). Este poema é belo, é intrigante, é complexo, é filosófico, é poético. Percebe-se que a escrita é como se fosse uma ruptura de perpetuação à vida. E pode sim fazer um paralelo à escrita de Gullar, uma vez que ambos têm uma visão otimista da vida “sei que a vida vale a pena/embora o pão seja caro”. O mundo. O dos iluminados, O dos desanimados E a história segue seu rumo A contada e a descontada. Mas não se desaponte. Se não quiser tropeçar Procure um atalho Ou construa uma ponte. Ponto. (MARTINS, 2020). A voz feminina parece rebelar-se, queixar-se, dando ênfase ao significado puro do título do poema. Se compararmos ao “Dois e dois: quatro”, de Ferreira Gullar, veremos que tem esse sentido de instigar o leitor a buscar um conceito do que é a vida em sua plenitude. Apesar dos altos e baixos, cada ser humano é único e deve buscar sua plenitude no seu percurso de vida. Como a própria Iraide diz “a história segue seu rumo”. Além disso, a pesquisa investiga também como Ferreira Gullar e Iraide Martins na condição de escritores maranhenses recuperam essa memória dentro de suas narrativas. Como esses autores percorrem nos escritos, os vestígios de uma memória para restabelecer uma história de vida filosófica. Conforme Maurice Halbwachs (2006), a memória sempre estará relacionada ao passado, ou melhor dizendo, associadas às leituras do passado mediante lembranças, cujos 124
Anais vazios são complementados com nossa criatividade e experiências. Deste modo, “se o que vemos hoje toma lugar no quadro de referências de nossas lembranças antigas, inversamente essas lembranças se adaptam ao conjunto de nossas percepções do presente”. (HALBWACHS, 2006, p. 29). Halbwachs (2006) relata ainda que, nossas lembranças são coletivas, mesmo que se trate de eventos que somente nós participamos ou objetos que foram visto somente por nós. O escritor diz que, isso se sucede, pois jamais estamos sós e sempre levamos pessoas que não se confundem. Então, para recordar uma lembrança não é necessário que outras pessoas estejam presentes sob uma forma material e sensível. Se a memória é o caminho de autoconhecimento do poeta/poetisa, então é só através dela, e somente dela que a voz narrativa vai se reconstruindo e assim passamos a conhecer a voz que fala no poema. Não bastante reconstituir pedaço a pedaço a imagem de um acontecimento passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstrução funcione a partir de dados ou de noções comuns que estejam em nosso espírito e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para aquele e vice-versa, o que será possível somente se tiverem feito parte e continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo. Somente assim podemos compreender que uma lembrança seja ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída. (HALBWACHS, 2006, p. 39). Os poemas em estudo descrevem essas lembranças que buscam o significado na vida. O/A poeta(a) quer de alguma forma ter certeza de que “a vida vale a pena”. Sendo assim, fazendo referência aos Estudos Culturais, Maria Cevasco (2003) nos diz que “a posição teórica dos estudos culturais se distingue por pensar as características da arte e da sociedade em conjunto, não como aspectos que devem ser relacionados, mas como processos que têm diferentes maneiras de se materializar, na sociedade e na arte. [...] Os elementos normalmente considerados externos a um projeto artístico ou intelectual - por exemplo, o modo de vida de uma determinada sociedade - são internos na medida em que estruturam a forma das obras e dos projetos que, por sua vez, articulam os significados e os valores dessa sociedade”. (CEVASCO, 2003, p.64). CONSIDERAÇÕES FINAIS A literatura contemporânea pode sim, humanizar o homem, além de ser utilizada como instrumento de crítica social. No que se refere da poesia, conhecida especificamente 125
Anais por exprimir os estados de ânimo dos sujeitos, passa a inserir na modernidade fatos levam a refletir e questionar a vida em sociedade, além de entender nossa condição humana. Com isso, possibilita um novo olhar para a realidade. Neste trabalho procuramos demonstrar a relevância da atuação de Ferreira Gullar e Iraide Martins tanto na literatura quanto em seu papel de intelectuais da Poesia Social no Brasil. A fim de alcançar o objetivo proposto no desenvolvimento da pesquisa, fez-se necessário um mapeamento da obra poética de Gullar e Iraide. Importante esclarecer que, considerando-se o que tem sido publicado há décadas sobre sua obra e atuação estética e política, dentro e fora do Brasil, sua poética vai muito além do que foi discutido e interpretado neste trabalho. Além disso, investigamos os processos memorialísticos e autobiográficos, sem perder de vista a relação entre os poemas que compuseram o corpus. Ferreira Gullar deixa claro que sua poesia sempre teve uma aproximação da realidade: “Devo dizer que a ligação com o real foi sempre uma necessidade em minha poesia” (GULLAR, 2006b, p. 163). E a sua produção poética realmente se situa na realidade e também no artístico, estabelecendo em seus escritos uma relação entre memória e história. Memória, pois, em algumas obras, ele rememora o seu passado e baseado nisso realiza seus poemas. Como salienta Jacques Le Goff: “A poesia, identificada com a memória, faz desta um saber e mesmo uma sabedoria, uma Sophia. O poeta tem o seu lugar entre os “mestres da verdade” (LE GOFF, 1990, p. 434), isto é, o escritor que trabalha com a memória, transforma sua poesia em um saber fundamentado, pois é histórico. Assim sendo, podemos considerar parte do percurso poético de Gullar e Iraide formam uma verdade, justamente por estabelecer o momento real, de sua memória, sendo o conceito de verdade entendido como aquilo que realmente acontece/aconteceu. Os dois poemas são lindos, instigantes, reflexivos, filosóficos. A vida, realmente, vale a pena. Ao aproximarmos a complexidade da obra de Ferreira Gullar e da obra de Iraide Martins, observamos muitos pontos em comum, entre eles, a evolução da abordagem de crítica social, buscando o entendimento do homem no mundo, ou seja, poesias de resistências e de engajamento. A poética de ambas é ampla, valorizando as características da literatura brasileira contemporânea. Assim, tanto Iraide quanto Gullar podem ser considerados escritores empenhados com as causas sociais e do homem em seu texto. Portanto, são várias as perspectivas de leitura da poética da palavra. Essa pluralidade de leituras que demonstra a sua atualidade. As poesias em estudo, “Dois e dois: quatro” (1966) e “Intolerância” (2020), podem ser vistas como ponto de reflexão e crítica à 126
Anais sociedade da qual fazem parte. Muitos pontos acabam por nos revelar aspectos da realidade, da política, da ética e, até mesmo, do trágico, que foi o caso do regime ditatorial no Brasil. Entretanto, é a relação de humanidade, a dimensão humana que estabelece com o interlocutor que faz a obra em análise atemporal e passível de interpretações várias. Gullar e Iraide, em vários pontos, vai além da relação pessoal dos temas que abordam, eles conseguem despertar no leitor a sensação de reconhecimento, transcedendo assim, a relação autor-texto, atingindo seu alvo que é o homem-sociedade, em que podem reconhecer suas faltas e excessos do cotidiano em que vive. REFERÊNCIAS BOSI, Alfredo. “Roteiro do poeta Ferreira Gullar”. In:________. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. 2. ed. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. São Paulo: Ática, 2006. CARVALHO, Antônio dos. A literatura maranhense. Organizadores, José Neres e Dino Cavalcante. São Luís. EDUFMA, 2021. CEVASCO, Maria Eliza. Dez lições sobre estudos culturais. Editora Boitempo. 2003. CORRÊA, Dinacy. Da Literatura Maranhense: o Romance do Século XX. São Luís-MA: Eduema, 2016. ISBN 978-85-8227-121-6 DUARTE, Eduardo de Assis. Maria Firmina dos Reis e os primórdios da ficção afrobrasileira. Posfácio Úrsula. De Maria Firmina dos Reis. 4ª. ed. Florianópoles: Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004. GULLAR, Ferreira. Melhores Poemas – Seleção Alfredo Bosi. Editora Global. 2010. GULLAR, Ferreira. Sobre arte sobre poesia (Uma luz do chão). Rio de Janeiro: José Olimpo, 2006b. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. LEÃO, Ricardo. Uma Atenas sem Panteões. In: Revista Plural. Nº 3 – Abril/Maio de 2012 – São Luís-Ma. p.40-49. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão et al. Campinas: UNICAMP, 1990. NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. 127
“A CIDADE ME VIGIA”: EXPERIÊNCIAS DO URBANO EM OS CLANDESTINOS DE FERNANDO NAMORA Karina Frez CURSINO (UFF)1 RESUMO O presente trabalho tem como principal objetivo propor um diálogo entre paisagem urbana e literatura a partir do romance Os Clandestinos (1972), de Fernando Namora, visando demonstrar o quanto o jogo ficcional do autor explora a paisagem e a ambiência urbanas para criar sensações e estabelecer significados. Para tal tarefa, são utilizadas teorias a respeito da paisagem e da interação que a mesma estabelece com a narrativa. A metodologia adotada é baseada na recolha e leitura de bibliografia que verse sobre a obra de Namora e sobre a presença da paisagem na literatura, intuindo analisar como os personagens do escritor estão incorporados no espaço citadino e o que a velocidade desse contexto traz como consequência para a existência dos mesmos. O estudo conta, principalmente, com a teoria sobre espaço/corpo, de Félix Guattari (1992), com os Pontos de vista sobre a percepção de paisagens, de Michel Collot (2012), com A arquitetura e os sentidos (2011), do filósofo/arquiteto Juhani Pallasmaa, além do livro Literatura e Paisagem em diálogo (2012), organizado por Carmen Negreiros, Ida Alves e Masé Lemos, entre outros. O trabalho se vale ainda do conceito de dromologia, cunhado por Paul Virilio (1993), de modo a pensar na aceleração dos corpos no espaço urbano e na consequente angústia dos mesmos. A articulação das teorias assinaladas com o texto literário proposto transmite indícios 1 Doutoranda em Literatura Comparada pelo programa de Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense (UFF) / Bolsista CAPES. Orientada pelo Prof. Dr. Silvio Renato Jorge. E-mail: [email protected] 128
Anais relevantes para demonstrarmos a paisagem citadina como um mecanismo da criação literária do escritor. Palavras-chave: Fernando Namora; literatura portuguesa; paisagem; cidade; neorrealismo. ABSTRACT The main objective of this work is to propose a dialogue between urban landscape and literature from the novel Os Clandestinos (1972), by Fernando Namora, aiming to demonstrate how much the author's fictional game explores the urban landscape and ambience to create sensations and establish meanings. For this task, theories about the landscape and the interaction that it establishes with the narrative are used. The methodology adopted is based on the collection and reading of bibliography that deals with Namora's work and the presence of landscape in literature, intuiting to analyze how the writer's characters are incorporated in the city space and what the speed of this context brings as a consequence for their existence. The study relies mainly on the theory of space/body, by Félix Guattari (1992), Points of view on the perception of landscapes, by Michel Collot (2012), with The architecture and the senses (2011), by the philosopher/architect Juhani Pallasmaa, in addition to the book Literature and Landscape in Dialogue (2012), edited by Carmen Negreiros, Ida Alves and Masé Lemos, among others. The work also uses the concept of dromology, coined by Paul Virilio (1993), in order to think about the acceleration of bodies in urban space and their consequent anguish. The articulation of the indicated theories with the proposed literary text conveys relevant evidence to demonstrate the city landscape as a mechanism of the writer's literary creation. KEYWORDS: Fernando Namora; portuguese literature; landscape; city; neorealism. O presente trabalho tem como principal objetivo refletir sobre a experiência da cidade no romance Os Clandestinos (1972), do escritor português Fernando Namora. Autor de uma extensa obra, das mais divulgadas e traduzidas nos anos 70 e 80, Namora escreveu poesias, romances, contos, memórias e impressões de viagem. Em sua primeira fase de produção literária dialogou de forma direta com os ideais neorrealistas, e, portanto, esteve muito engajado com as questões sociais de sua época. Porém, sua escrita é marcada por fases distintas, apresentando diferentes faces ao longo do tempo. O momento que por ora nos interessa é o ciclo citadino, que o mesmo desenvolveu produtivamente a partir de um olhar atento ao interior dos personagens, deixando evidências para analisarmos suas obras desse período a partir de um diálogo profícuo entre o indivíduo e a cidade que o cerca. Namora transitou por gêneros literários diversos, mas cabe salientar que ele inicia sua trajetória como escritor a partir da poesia. Por mais que ele tenha sido reconhecido internacionalmente por sua prosa, não podemos esquecer a importância como poeta em sua caminhada literária, pois seus primeiros versos influenciaram diretamente suas publicações posteriores. Em seus livros iniciais de poesia: Relevos (1938) e Mar de Sargaços (1939) 129
Anais encontramos poemas que dão destaque aos elementos cotidianos da atmosfera citadina de Lisboa, característica essa que mais tarde vai ecoar fortemente em sua prosa urbana, como ocorre, por exemplo, em Os Clandestinos, que tem como cenário, predominantemente, as ruas de Lisboa. Os aspectos negativos da vida na cidade, primeiramente evocados nas poesias iniciais de Namora, são deixados de lado para a criação de obras sintonizadas diretamente com os ideais neorrealistas. Tais publicações vão delimitar um segundo ciclo de escrita, iniciado, segundo Álvaro Salema (2003), pela publicação de Casa da Malta, em 1945, e organizado pelas obras que têm como ambiente o campo, fazendo do meio rural pano de fundo e também eixo norteador na constituição dos personagens, geralmente, camponeses. Mais tarde, contrapondo-se ao cenário campestre, inicia-se, a partir da publicação de O Homem Disfarçado, em 1957, seu ciclo citadino, no qual o autor escreveu livros que têm como marca o contexto urbano. Para realçarmos o momento em que Namora elege a cidade como espaço primordial de suas obras, escolhemos analisar brevemente como os elementos da cidade de Lisboa são trabalhados em Os Clandestinos, demonstrando o quanto os espaços, além de algumas vezes demarcarem geograficamente uma localização, estabelecem trocas com os corpos narrados, provocando sensações nesses personagens. O romance escolhido foi publicado em 1972 e está inserido no ciclo urbano do autor, marcado pela relação dos indivíduos com a cidade, principalmente, com Lisboa. Sendo assim, intuímos percorrer esses espaços lisbonenses, tecidos juntamente com os personagens, indicando o quanto a paisagem ressalta as emoções dos sujeitos narrados, participando ativamente do jogo narrativo. Percebemos que a interação entre o homem e o espaço urbano é ponto chave no romance, sendo evidenciada, entre outras coisas, pelo ritmo acelerado da cidade e pelos corpos incapazes de comunicarem-se verdadeiramente uns com os outros. Essa desarticulação do sujeito com o mundo ao qual está inserido atravessa a trajetória de escrita de Fernando Namora, ganhando ainda mais relevo no ciclo citadino, onde é possível propormos um diálogo entre os dramas existenciais dos personagens com o contexto citadino em que os mesmos se encontram. DESENVOLVIMENTO Selecionamos algumas teorias que refletem, sobretudo, sobre espaço, paisagem, sujeitos e literatura, o que possibilitou projetarmos um olhar transdisciplinar para a 130
Anais interação entre os personagens e os elementos da paisagem urbana, criados e escolhidos por Namora de maneira a despertar sentidos e evocar emoções em suas obras. A cidade se tornou o grande centro de suas narrativas no fim dos anos 50. Tal mudança de cenário traz também personagens e sensações diferentes para os leitores, o que nos permite estabelecermos ressonâncias entre o novo contexto escolhido (Lisboa dos anos 60/70/80) e a própria Literatura. De acordo com o historiador interdisciplinar Carl Emil Schorske (1989), o pensamento europeu do século XIX desconstruiu a ideia Iluminista de cidade como espaço de emancipação humana e de realização do potencial utópico das sociedades, instaurando uma visão da urbe pela falência dessas expectativas, passando a representar a cidade a partir de seus vícios e problemas. É iniciado um processo de desvalorização da cidade como conceito, tanto no pensamento político-social quanto nas artes e na Literatura: “Sem a brilhante imagem da cidade como virtude, herança do Iluminismo, a ideia de cidade como vício dificilmente teria se tornado tão forte na mentalidade europeia” (SCHORSKE, 1989, p. 51). Por esse viés, observamos que a metrópole oitocentista assume, nas diversas formas de expressão artística, um caos urbano para a época, evidenciado por uma desumanização e desagregação moral e psicológica do homem urbano. Essa ideia de cidade caótica que prevalece no século XIX começa a surgir com frequência na Literatura, tendo como um dos grandes expoentes Charles Baudalaire e a figura do flâneur, “que é uma espécie de botânico do asfalto para quem a vida na sua inesgotável riqueza de variações só se desenvolve entre as pedras cinzentas da calçada (BENJAMIN, 2020, p. 39). Tal modo de registrar na Literatura as experiências urbanas passa a ser cada vez mais recorrente a partir, especialmente, de Baudelaire. No caso da Literatura portuguesa é Cesário Verde que instaura efetivamente uma visão melancólica sobre a cidade de Lisboa. O olhar inaugural que o poeta dedica aos elementos do cotidiano, transformando objetos não líricos em líricos, torna-o uma figura singular, pronta para ser revisitada por literatos posteriores. Em sua poesia, os marginalizados são convertidos em matéria para os versos, tais como os operários, a peixeira, o pequeno proprietário, projetando na Literatura portuguesa uma nova perspectiva de observar e descrever os espaços, principalmente, as ruas de Lisboa. Apesar de não ter sido compreendido e reconhecido enquanto vivo, a partir da leitura que Fernando Pessoa fez de Cesário, sua voz começa a ecoar em muitas outras vozes posteriores. Compartilhando a ideia proposta por Silvio Renato Jorge em seu texto “Pelas Ruas de uma cidade triste: Lisboa e 131
Anais as imagens da solidão” (2020), percebemos que Namora acompanha o olhar angustiado a respeito da cidade de Lisboa, iniciado na Literatura portuguesa por Cesário Verde em O Sentimento dum Ocidental e continuado por Fernando Pessoa, em especial, pela voz de Álvaro de Campos. Fernando Namora seguiu a linha dos observadores atentos de uma Lisboa já encarada como urbe e de seus consequentes problemas, refletidos em seus habitantes. Dessa forma, Os Clandestinos, juntamente com as outras narrativas do ciclo urbano do autor, são textos que carregam em comum o discurso de um determinado tempo histórico e que falam da representação da cidade moderna que emergia naquele momento. A caracterização da Lisboa de Namora é marcada temporalmente no fim dos anos 50 até os anos 80, porém as sensações dos indivíduos narrados nos oferecem a possibilidade de estabelecermos ressonâncias com as reflexões sobre os sujeitos e as cidades da atualidade, permitindo uma reflexão atemporal, pautada na transposição de teorias contemporâneas para pensar também nas obras do autor. Félix Guattari, filósofo francês, em seu capítulo “Espaço e corporeidade”, um dos estudos que compõe a obra Caosmose (1992), parte do princípio da interação entre corpo e espaço, propondo uma indistinção entre tais categorias, ressaltando uma inseparabilidade entre os mesmos. Essa relação entre espaço/corpo é muito cara para começarmos a refletir sobre paisagem e literatura, uma vez que na obra escolhida os personagens e seus corpos se mostram em tessitura com os ambientes urbanos nos quais estão inseridos, parecendo mesmo serem indissociáveis de tais contextos. Para o autor, a paisagem desencadeia afetos e provoca sensações nos corpos, causando uma experiência de subjetivação do espaço. Sendo assim, ele defende que o alcance dos espaços construídos vai bem além de suas estruturas visíveis e funcionais: “... a cidade, a rua, o prédio, a porta, o corredor... modelizam, cada um por sua parte e em composições globais, focos de subjetivação”. (GUATTARI, 1992, p. 161). O arquiteto e filósofo finlandês, Juhani Pallasmaa, também destaca em sua obra Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos (2011), a direta relação estabelecida entre espaço/corpo: “Nossos corpos e movimentos estão em constante interação com o ambiente; o mundo e a individualidade humana se redefinem um ao outro constantemente” (PALLASMAA, 2011, p. 38). O olhar filosófico de Pallasmaa sobre a arquitetura e sobre os espaços permite considerarmos a troca estabelecida entre os indivíduos e os ambientes, e consequentemente, as paisagens. Em Essências, livro que reúne quatro ensaios do autor a partir desse viés da 132
Anais Filosofia, o arquiteto traz uma reflexão sobre o intenso intercâmbio entre os corpos e os espaços habitados. Mais especificamente no ensaio Espaço, lugar, memória e imaginação, presente no livro citado, nos deparamos com o olhar sensível do arquiteto/filósofo sobre a experiência na cidade, espaço de nosso maior interesse no presente trabalho: “A experiência de um lugar ou espaço sempre é uma troca curiosa: à medida que me assento em um espaço, o espaço se assenta em mim. Vivo em uma cidade, e a cidade vive em mim.” (PALLASMAA, 2018, p. 25). Percorremos a experiência dos corpos narrados no romance de Fernando Namora a partir desse diálogo do indivíduo com o espaço urbano, observando, principalmente, como a angústia humana se entrelaça com o narrar dos elementos da própria cidade, evidenciando a relação dos sentimentos dos personagens com os ambientes. Pallasmaa (2011) discorre sobre a associação do isolamento e da angústia existencial com o espaço urbano e também com a tecnologia. Mesmo que por meio de transposições e deslocamentos temporais entre a cidade de Pallasmaa e a Lisboa de Namora, podemos pensar na crise existencial de Vasco, personagem central da obra analisada, a partir das reflexões do teórico finlandês. De acordo com o filósofo/arquiteto: “A cidade contemporânea é a cidade dos olhos, do distanciamento e da exterioridade” (PALLASMAA, 2011, p. 31). Considerando essa interação entre corpo e espaço, acreditamos ser possível olhar para Os Clandestinos buscando refletir sobre a associação dos personagens com a paisagem urbana lisbonense, explorada no livro. O espaço urbano de Lisboa está constantemente em questão, ainda quando não de maneira explícita, se evidencia a partir da própria angústia, da solidão, do esvaziamento das relações, dos corpos acelerados ou até mesmo da falta de paisagem natural no ambiente urbano. Em introdução para o livro Literatura e Paisagem em diálogo (2012) as organizadoras Carmen Negreiros, Ida Alves e Masé Lemos estabelecem significativas considerações a respeito da interação entre a Literatura e a paisagem. Nessa seção introdutória percebemos a importância dos modos de olhar para o estabelecimento das relações entre os espaços, as artes e os sujeitos. Notamos que são modos de olhar, pois não se trata apenas da visão, mas sim da percepção sobre essa associação entre corpos e espaços, refletindo sobre o estar no mundo e o estar também na escrita. Compreendemos dessa maneira que a paisagem não é um objeto apenas para ser visto ou texto para ser lido, mas compreende-se como um meio de troca entre indivíduo e espaço. 133
Anais Para Michel Collot (2012), em Pontos de vista sobre a percepção de paisagens, o termo paisagem é muito polissêmico dando margem a diversas interpretações que podem ir desde o senso comum aos estudos científicos. Pensando nisso, o teórico traz duas definições de dicionário para a palavra, sendo que em ambas aparece a questão do olhar, ou seja, de sua característica visível. Dessa forma, a paisagem se mostra, inicialmente, como um espaço percebido. Porém, enquanto construção simbólica, a paisagem não pode ser determinada apenas por um único dado sensorial; ela se constitui pelo recebimento de vários dados sensoriais e pela organização desses dados em forma de sentido. Contribuem ainda para a definição da paisagem outros aspectos, como o ponto de vista, a ideia de parte e a ideia de todo, detalhadamente explorados por Collot, pois para o teórico, a paisagem caracteriza-se como um espaço disponível ao olhar e também acessível a um corpo, sendo ao mesmo tempo público e privado, suscetível de uma modelagem a partir de um sujeito. Refletindo sobre essa comunicação entre corpo e espaço, e concentrando a visão na paisagem citadina, exploramos o artigo Poesia e Paisagem urbana: diálogos do olhar, da professora Ida Alves, presente em Literatura e Paisagem (2012), de forma a especificar a espacialidade que pretendemos observar em Os Clandestinos. Tal artigo foi de extrema valia para a composição do estudo aqui proposto, pois além de focar na paisagem urbana também se debruça sobre a Literatura Portuguesa, área de nosso interesse. Apesar de fazer uma análise da paisagem na poesia, foi muito possível pensarmos também na narrativa através de tais apontamentos. Alves (2012) salienta a atenção dada pela poética portuguesa à vida urbana, manifestando assim peculiaridades desse contexto, tais como as contradições sociais, culturais e identitárias e as tensões existenciais, ao mesmo tempo em que observamos uma velocidade cada vez mais acelerada nas relações. A autora evidenciou essas características na poesia a partir dos anos 70 à atualidade. Essas marcas de urbanização aparecem já bem ilustradas em Os Clandestinos, publicado em 1972. O conceito de dromologia, cunhado por Paul Virilio em sua obra O Espaço Crítico (1993), no qual o filósofo estuda os efeitos da aceleração da velocidade na sociedade, tecendo considerações a respeito da complexidade das relações sociais contemporâneas é muito caro para refletirmos sobre o espaço urbano na Literatura. Segundo Virilio (1993), a dromologia é uma área de estudo interdisciplinar sobre a velocidade e o modo como a mesma é capaz de mudar a percepção do tempo e do espaço e, portanto, causando entre outras consequências a sensação de um sujeito desarticulado espacialmente e temporalmente. 134
Anais As colocações sobre esse indivíduo que se sente deslocado na paisagem urbana muito nos interessa, pois os personagens da narrativa escolhida passam por tensões com o meio no qual se encontram. A velocidade da vida urbana parece atravessar esses corpos, fazendo com que os mesmos não se enquadrem, demonstrando uma vivência errante frente ao contexto no qual vivem. São figuras que não conseguem estabelecer relações significativas, parecendo sempre viver superficialmente, sem participar inteiramente de nenhuma situação. São pessoas que estão em constante afastamento, seja da sociedade em geral, seja da própria família. Muitas vezes parecem seres incompreendidos, sujeitos “fora do tempo”. Pensando nessa expressão “fora do tempo”, muito nos vale o estudo sobre a problematização entre o tempo do indivíduo e o tempo da cidade, desenvolvido por Ana Fani Carlos (2001). Carlos (2001) levanta essa incompatibilidade entre o tempo individual e o tempo coletivo acelerado, sentido nas transformações urbanas, mostrando o quanto o indivíduo não acompanha esse ritmo intenso e acaba sofrendo as consequências de estranhamento dessa disparidade temporal. As teorias analisadas permitem a produção do diálogo entre paisagem urbana e literatura, fornecendo indícios para percorrermos Os Clandestinos a partir da ótica que coloca o sujeito e a cidade em constante troca, na qual o indivíduo insere suas marcas no espaço urbano e vice-versa. O romance tem como figura central Vasco Rocha, um conhecido escultor que no passado foi militante de esquerda. As lembranças do tempo de ativista político surgem em forma de memórias que vão e vêm na narrativa. Ele relembra os dias de perseguição, prisão e tortura. Vasco recorda o quanto precisou se esconder, mudando de nome, de país, e consequentemente, perdendo algumas características de sua personalidade. A clandestinidade necessária no passado parece nunca ter fim. Através da narração da rotina de um Vasco já consolidado como escultor observamos um homem que tenta incessantemente passar oculto pela vida, pela esposa Maria Cristina e pela sociedade que o rodeia. Ele tem frequentemente a sensação de que a cidade o vigia, assim como quando era perseguido pela polícia política em tempos de ativismo (conforme relembra na citação abaixo). Observamos que ele procura constantemente se esconder, seja por meio dos encontros extraconjugais com Jacinta no apartamento discreto de Bárbara, seja em sua própria personalidade reservada: Percebi depois que era seguido. Dirigimo-nos para as ruas que, mesmo àquela hora, tivessem algum trânsito, e, na primeira oportunidade, estacionei num sítio onde o nosso carro poderia passar despercebido 135
Anais entre os demais. [...] Mas uma intranquilidade indefinida dizia-me que eu continuava a ser seguido. [...] Ainda hoje sinto essa intranquilidade. Ainda hoje sinto que toda a cidade me vigia, que olhos secretos estão dentro e fora de mim, que me é necessário ocultar o que sou e não sou, ainda hoje não sei quando as palavras e gestos me pertencem. E se é de Maria Cristina, de Jacinta, do Veres, dos esbirros, ou de toda a cidade, que tento dissimular o que talvez já não mereça dissimulações. (NAMORA, 1972, p. 172, grifo nosso). A cidade de Lisboa aparece no livro como um espaço pronto a vigiar, funcionando na narrativa como um mecanismo que reforça a angústia e a intranquilidade de Vasco. O contexto urbano, apresentado em Os Clandestinos, é determinado por um ritmo veloz, característico da cidade moderna, apontado nas teorias acima investigadas. Essa velocidade exerce influência na vida do personagem central, causando desconforto e fazendo com que ele se sinta deslocado. No início do livro a avenida é comparada a um rio que corre, demonstrando a aceleração e a consequente repetição daquele espaço: Era mais ou menos assim de todas as vezes, nessa avenida que parecia um rio. O rio descia, correndo, suspendia-se ali, remoinhando, e passava adiante; mas entre chegar e passar adiante, muitas coisas podiam acontecer, muita gente poderia reconhecê-lo, a ele, Vasco Rocha, escultor a quem meia Lisboa tirava o chapéu [...]. (NAMORA, 1972, p. 10, grifo nosso). Assim como Lisboa corre como um rio também o seu pensamento e as suas memórias acompanham a velocidade das ruas. Suas lembranças aparecem como percepções fragmentadas e confundem-se em seu presente: O tempo ia correndo, a avenida rugia, chamando-o, ouvia-se o crescer e o bater final das ondas do tráfego, ecos de voragem e cansaço, e gradualmente apercebia-se que as suas congeminações, o fluir desconexo da memória, a juntar coisas que pouco ou nada tinham umas com as outras [...] mas logo a apartá-las também, se afastavam cada vez de Jacinta e de Maria Cristina, embora ele tivesse de partir de qualquer delas, ou de ambas simultaneamente, para chegar a esse reencontro com um Vasco que talvez nunca houvesse existido ou só existia através de determinação em o reconstituir (NAMORA, 1972, p. 317, grifo nosso). A partir dessas duas citações do romance podemos perceber algumas imagens da cidade moderna, exploradas por Namora, e as consequências que tais aspectos urbanos podem causar em indivíduos como Vasco. A Lisboa colocada em destaque na narrativa é a dos anos 60/70, o que pode ser deduzido através de eventos recordados no livro, como, por 136
Anais exemplo, a Greve da Carris2, em 1964. Na época relatada pelo autor, muitas transformações urbanas, que começaram a emergir ainda no século XIX, continuam ocorrendo na capital portuguesa. Nos anos 50, Lisboa “trata-se de uma cidade alargada, já dentro da definição regionalizada de «Grande Lisboa» (FRANÇA, 1980, p. 118). Por mais que a Lisboa contextualizada em Os Clandestinos não fosse uma metrópole como a Paris da época vale ressaltarmos que os aspectos da modernidade já se encontravam naquele espaço. Notamos que as imagens mais recorrentes da essência da cidade moderna e do sujeito moderno, tais como a artificialidade, a inautenticidade e a percepção fragmentada, apontadas pela especialista em sociologia urbana Luciana Andrade (1996), podem ser facilmente projetadas na Lisboa de Namora. A artificialidade, apontada pela autora, nos leva ao modo de viver superficial demonstrado por Vasco no romance, repleto de vivências falsas, representadas por seres mecanizados, que se assemelham às máquinas, dominados por gestos repetitivos, comandados pelo tempo artificial do relógio: “Nesse momento, preparava-se para acertar escrupulosamente o relógio pelo Tissot gigante que trepara ao telhado do arranha-céus da praceta” (NAMORA, 1972, p. 10). É um viver sem autenticidade, moldado pelas convenções sociais ou movido pelo poder do dinheiro, gerando pessoas mascaradas. Os mecanismos dessa cidade moderna fazem com que Vasco tente buscar uma clandestinidade cotidiana, mas que acaba não sendo suficiente para fugir completamente daquele espaço: Um dia, Jacinta dissera-lhe: << Que cor tem o mundo na tua cabeça?>> E Bárbara repetia-lhe quase o mesmo. Bárbara e talvez alguém mais. Por isso, confundia as pessoas: os teus horrores, as suas máscaras, os seus ressentimentos, não tinham um alvo definido. Era o ambiente. Os medos, as frustrações, pertenciam à atmosfera que respiravam. O que ainda restava de vivo ardia sob a clandestinidade quotidiana, mas era já um calor gretado. Nele progredia a lava do enfado e da passividade. Assim acontecia a ele e aos outros − que tanto podiam ser Jacinta, Maria Cristina, Bárbara, como, afinal, todos (NAMORA, 1972, p. 121, grifo nosso). 2 No dia 1 de julho de 1968, teve início a Greve da Carris (também conhecida como “Greve da mala”). Os trabalhadores da Carris lutavam por melhores condições de salário. Iniciaram uma ação de protesto, não cobrando bilhetes, deixando as malas de cobrança nas estações e ocupando as estações de recolha de autocarros à noite. Fonte: https://www.esquerda.net/artigo/greve-da-mala-foi-ha-50- anos/55999. 137
Anais O uso de máscaras para suportar o viver falso a que estavam condicionados é atrelado na citação acima “à atmosfera que respiravam”. É por meio da existência de Vasco que o medo e as frustações, intensificados pelo ambiente urbano, são revelados de maneira mais evidente. Porém, através da passagem em análise, vemos que essa relação se estende aos outros personagens, reforçando a troca existente entre o corpo e a cidade: “Assim acontecia a ele e aos outros − que tanto podiam ser Jacinta, Maria Cristina, Bárbara, como, afinal, todos” (NAMORA, 1972, p. 121, grifo nosso). Essa clandestinidade cotidiana leva, entre outras coisas, a um esvaziamento das relações. O casamento de Vasco com Maria Cristina é o reflexo desse desgaste e da falta de interação, advindos da ambiência citadina, caracterizada pelos seus “precários redutos de um viver comunicativo” (NAMORA, 1972, p. 160). O desencanto e o desconforto, observados no casamento, se estendem para o seu trabalho. O escultor passava horas em seu estúdio, mas começava a desconfiar de sua atividade, demonstrando que até mesmo a arte poderia entrar no círculo vicioso da vida urbana burguesa. Assim como o estúdio passou a ser um local do desencontro o mesmo parece acontecer com os cafés. Espaços recorrentes nas obras do ciclo urbano de Namora, os cafés apresentam significativa importância no cenário citadino lisbonense do período narrado. Em Os Clandestinos, apesar de aparentar funcionar como ambiente de reuniões também revela a convivência superficial e artificiosa que se observava nesses estabelecimentos. A relação instituída pelos indivíduos que convivem no café era baseada na repetição que regia suas existências, funcionando mais como um meio que favorecia o não encontro: “Os dias eram iguais, iguais os silêncios e as pessoas − o hábito, um certo desamor por si próprios, soterrara-os na indiferença. O café tinha por vezes a atmosfera de um velório [...]” (NAMORA, 1972, p. 225, grifo nosso). Assim como o café e a importância que o mesmo transmite para o cenário urbano em transformação também notamos a presença de outros elementos da cidade de Lisboa que juntos vão dando corpo ao plano narrativo espacial que Namora quer destacar e relacionar com os personagens. O apartamento de Bárbara, local de encontro de Vasco e Jacinta, também é um espaço fundamental daquela cidade em constante transição. A arquitetura, marcada pelo cinza do cimento, revela o crescimento desse tipo de construção: 138
Anais “Do quarto de Bárbara, do quinto andar de um prédio de cimento, com persianas que punham um dique ao rumor exterior, Vasco estava à parte do formigueiro, do seu rodopio ao mesmo tempo assustador e euforizante” (NAMORA, 1972, p. 211, grifos nossos). Nos momentos que Vasco está no apartamento de Bárbara as janelas ganham espaço de destaque no texto. São as frestas das persianas, indicadas na citação anterior, que permitem o enquadramento pelo qual Vasco observa a vida urbana que o cerca. A janela que esconde o personagem é a mesma que possibilita que ele veja a Lisboa em transformação, o que o faz querer cada vez mais se isolar daquele contexto: “Olhou a rua, os táxis que se enfiavam nas raras abertas do trânsito, esperando que um deles fosse abrandar, que num deles, enfim, descesse Jacinta” (NAMORA, 1972, p. 210, grifo nosso). Nesse trecho, Vasco observa pela janela e aguarda ansiosamente a chegada de Jacinta, que sempre faz questão de atrasar, reforçando as angústias do escultor. No capítulo final da obra, ele toma a decisão de não esperar mais pela amante e se libertar de tudo o “que em si se pervertera” (NAMORA, 1980, p. 258): Achava-se mesmo um estranho a tudo o que o rodeava: alcova, odores e o estendal de horrendos bibelôs que apetecia atirar pela janela. Estranho e surpreso de se encontrar ali. Tinha agora os nervos singularmente apaziguados. Se havia um resto de inquietação, era para se ver lá fora, na rua, na inebriante mistura da rua. As coisas não seriam tão simples como ainda há pouco lhe pareciam, mas saberia enfrentá-las. E com outra força. E também com outra pureza (NAMORA, 1972, p. 331, grifo nosso). Dessa forma, tenta partir em busca da sua utopia – a demanda da sua felicidade –, que parece que não passará disso mesmo: uma utopia, irrealizável face às suas relações familiares e sociais profundamente desvirtuadas, reforçadas pelo meio em que se encontra. Considerações finais Levando em consideração a exposição teórico-literária até aqui colocada, nosso intuito foi evidenciar o diálogo produtivo entre paisagem e literatura, demonstrando de que maneira Fernando Namora se utilizou do espaço urbano para compor seus personagens e criar significados a partir da composição dos elementos citadinos em sua escrita. O livro escolhido permitiu exemplificar o quanto a cidade de Lisboa exerce influência e participa da 139
Anais criação da narrativa, contribuindo, entre outras coisas, para exacerbar a angústia dos personagens. Os apontamentos da paisagem urbana, observados em Os Clandestinos e destacados pelas próprias citações do livro, foram extremamente produtivos para pensarmos as marcas espaciais na narrativa. Através da ambientação urbana do romance em questão, concluímos que a escrita de Namora não se limita em percorrer lugares geograficamente estabelecidos, já que muitas vezes até sem descrever em detalhes a paisagem, o escritor consegue ir além da mesma quando demonstra, a partir do sentimento dos personagens, o que determinados espaços podem criar e intensificar nos corpos. REFERÊNCIAS ALVES, Ida. Poesia e paisagem urbana: diálogos do olhar. In: NEGREIROS, Carmem; LEMOS, Masé; ALVES, Ida (org). Literatura e Paisagem em diálogo. Rio de Janeiro: Edições Makunaima, 2012. ANDRADE, L. T. de. Representações Ambivalentes da Cidade Moderna: A Belo Horizonte dos Modernistas. 195f. Tese (Doutorado em Ciências Humanas: Sociologia) - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996. BENJAMIN, Walter. Baudelaire e a modernidade. Edição e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. CARLOS, Ana Fani Alessandri. Espaço-tempo na metrópole. São Paulo: Contexto, 2001. COLLOT, Michel. Points de vue sur la perception des paysages. In: Espace géographique, tome 15, n°3, 1986. pp. 211-217. ______. Pontos de vista sobre a percepção de paisagens. Tradução: Denise Grimm. In NEGREIROS, Carmem; LEMOS, Masé; ALVES, Ida (org). Literatura e Paisagem em diálogo. Rio de Janeiro: Edições Makunaima, 2012. FRANÇA, José-Augusto. Lisboa: Urbanismo e Arquitectura. 1a edição. Lisboa: Biblioteca Breve, 1980. GUATTARI, Félix. Espaço e corporeidade. In: Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 1992. JORGE, Silvio Renato. Pelas Ruas de uma cidade triste: Lisboa e as imagens da solidão. In: ALVES, Ida (Org.); CRUZ, Carlos Eduardo da (Org.). Paisagens em Movimento: Rio de Janeiro & Lisboa, Cidades Literárias. Volume 3. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2021, p. 193- 204. NAMORA, Fernando. O Homem Disfarçado. Lisboa: Arcádia, 1957. 140
Anais ______. Os Clandestinos. 3ª edição. Lisboa: Publicações Europa-América, 1982. NEGREIROS, Carmem; LEMOS, Masé; ALVES, Ida (org). Literatura e Paisagem em diálogo. Rio de Janeiro: Edições Makunaima, 2012. PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. Tradução técnica: Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Bookman, 2011. ______. Essências. Tradução de Alexandre Salvaterra. São Paulo: Gustavo Gili, 2018. SALEMA, Álvaro. “Fernando Gonçalves Namora”. Dicionário de Literatura. Actualização, 2. Porto, Figueirinhas, 2003, p. 557-558. SCHORSKE, C. E. A cidade segundo o pensamento europeu - de Voltaire a Spengler. In: Espaço & Debates: imagens e representação da cidade. Trad. Hélio Alan Saltorelli. São Paulo, n. 27, p.47-57, 1989. VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. 141
FOI UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA: O MERGULHO DA PALAVRA LIBERTA Roman LOPES (Univesp)1 RESUMO A insistência em uma apresentação sintetizada de reflexões que se espraiam e submergem em incontáveis e vastas esferas só pode ter como destino as gavetas emboloradas dos entes acadêmicos inflexíveis e amorfos. Não é possível resumir um sonho. Entretanto, para que as pessoas que se aventurarem na leitura das linhas abaixo, acima e aos lados possam, vagamente, supor o que as espera, vamos arriscar alguns tópicos emoldurados. O princípio de que toda palavra é uma metáfora inicia a tortuosa viagem em direção ao rio pós- metafórico, cujo mergulhar é o objetivo. Com esse princípio a cartografar nossos caminhos, arriscamos a trilha da negação de uma linguagem literal, vista apenas como imposição de um colonialismo discursivo que molda os nossos processos expressivos em nome de uma pretensa comunicabilidade. O princípio e a negação são os pincéis a colorir o trajeto dos estados de sentidos das palavras, cuja metaforicidade se aprofunda à medida que nos distanciamos das margens do rio. Na beleza do estado pós-metafórico alcançamos as profundezas e nos tornamos rio, para com isso libertarmos as palavras de qualquer tipo de imposição discursiva, fazendo-as existirem na imanência de suas forças sonoras, imagéticas e sinestésicas. Palavras-chave: colonialismo discursivo; estados de sentidos; pós-metáfora. 1 Especialista em Estudos da Linguagem pela UNIGRAN e em Literatura Contemporânea pela Faculdade São Luís. Mestre em Artes Cênicas pela UNESP. E-mail: [email protected] 142
Anais ABSTRACT The insistence on a synthesized presentation of reflections that sprawl and submerge into countless vast spheres can only be destined for the moldy drawers of inflexible and amorphous academic entities. It is not possible to summarize a dream. However, so that people who venture to read the lines below, above and to the sides can vaguely guess what awaits them, we will venture a few framed topics. The principle that every word is a metaphor begins the tortuous journey toward the post-metaphoric river, whose dipping is the goal. With this principle mapping our paths, we risk the denial of a literal language, seen only as an imposition of a discursive colonialism that molds our expressive processes in the name of an alleged communicability. Principle and negation are the brushes to color the path of the words' states of meaning, whose metaphoricity deepens as we distance ourselves from the river's banks. In the beauty of the post-metaphoric state we reach the depths and become a river, and thereby free the words from any kind of discursive imposition, making them exist in the immanence of their sonic, imagetic, and kinesthetic forces. KEYWORDS: discursive colonialism; sense states; post-metaphor. Prelúdio meramente elucidativo, embora dispensável O décimo linear prescrito para esse espaço anterior à desenvoltura das ideias que temos a seguir cumpre a função protocolar de indicar aos possíveis leitores desses devaneios algumas facilidades para lidarem com os caminhos a percorrerem nas subsecutivas laudas… Entretanto, o caminho é de pedras! Não há facilidade possível no mergulho em um rio desconhecido. Apenas a coragem do mergulhar e a vontade de tornar-se rio, para um correr fluído e livre, justificam a escolha em prosseguir na leitura. Uma leitura que leva a pessoa leitora à doçura de uma dolorosa libertação discursiva, assim como a um encontro sinestésico com as palavras. Bebamos, juntas e juntos, a seiva melodiosa da palavra que, liberta de suas funções discursivas, transforma-se em imagem, som e fúria. Molhando os pés em águas já conhecidas Partimos, nessa jornada aventureira pelos caminhos dos discursos, de um princípio fundamental: toda palavra é uma metáfora! Essa proposição, de lúdica polêmica, poderia ser vista como uma premissa. Entretanto, a polissemia do princípio torna-se mais atraente, uma vez que, além de apontar para o seu caráter fundante na estruturação de uma argumentação, a ideia de que algo está começando carrega forte carga de entusiasmo por parte desse pretenso proponente, que em verdade é um mero diletante… 143
Anais Ultrapassando o campo das obviedades, onde toda palavra pode, em qualquer medida, ser utilizada metaforicamente, queremos lançar aos quatro ventos e às inúmeras vazões a ideia de que o processo de originação das palavras, enquanto síntese das elaborações de pensamentos, é em verdade um processo de metaforização de uma experiência. Os signos linguísticos são o material de que se serve o homem em sua atividade cognoscitiva, de modo que a criatividade está na contínua seleção cognoscitiva que se opera face à realidade e não na combinação dos símbolos como tal. Estes não passam de um recurso institucionalmente garantido para exercerem aquela atividade primeira. (MARCUSCHI, 2000, p. 74). Com essa desarrazoada, adentramos a um rizoma de ideias, onde a metáfora tem a função primeva de qualquer estabelecimento comunicacional, pois é ela que nos possibilita transformar a experiência em um conjunto simbólico compartilhável, dando imagem ao invisível, sabor ao insípido, aroma ao inodoro... “A metáfora é um modo novo de conhecer e comunicar o mundo assim conhecido. Ela é, de certa forma, um recurso reestruturador da realidade, criando novas áreas de experiência que fogem ao indivíduo restrito à realidade puramente factual” (MARCUSCHI, 2000, p. 76). O sentido da experiência trazido pela palavra enquanto metáfora natural possibilita um sem número de ilações. A metáfora é uma experiência comunicacional da vida! É a construção simbólica de um discurso! Quando alguém utiliza uma metáfora, quer de alguma forma compartilhar uma experiência e acredita que o uso literal2 das palavras não corresponde à plenitude da experiência... “A chamada linguagem literal não só pode ter metáforas como está repleta delas e de forma sistemática” (LIMA, 2003, p. 169). Entretanto, abraçando o caos rizomático no qual pretendemos mergulhar, afirmamos com a segurança dos pássaros em voo profundo que o pretenso sentido literal das palavras é apenas um estado congelado do fluir metafórico permanente das palavras, condição paradoxalmente deliciosa, que é imanente a esse ente travesso da nossa experiência. Os padrões de comunicação pedem um significado mais reconhecível, para que os processos de comunicação sejam mais rápidos e mais efetivos. Por isso, o chamado sentido literal das palavras é apenas um dos possíveis sentidos que a palavra pode assumir, congelado por regras de comunicação. 2 Grifo necessário, embora ainda incompreensível. 144
Anais Estamos, então, assumindo diante de possíveis rostos banhados pela incredulidade, que não existe um sentido literal para as palavras, pois esse é apenas um dos possíveis sentidos que qualquer palavra pode assumir, em uma experiência comunicacional que é naturalmente aberta e fluída. A construção de discursos, enquanto reconstrução simbólica da própria experiência do viver, ao modo dos mergulhos das ariranhas e das danças dos enamorados, tem como elemento essencial o processo de elaboração metafórica, processo esse que acaba cristalizado nesse aqui negado sentido literal apenas porque o discurso precisa atender a demandas oriundas da necessidade de controle dos sistemas de vida, necessidade implantada como um chip a ecoar seus sussurros sedutores de poder em nossas combalidas convicções. As pedras do leito represado A produção dos discursos está relacionada à maneira como a pessoa carrega as marcas de um padrão impositivo de comportamento. De maneira geral, esses discursos são produzidos e lidos a partir de parâmetros que reforçam a imposição de modelos de conduta e de pensamento. Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 1996, p. 8). Mesmo quando os discursos, de alguma maneira, confrontam as estruturas de controle social, muitas vezes acabam por reproduzir suas premissas, quando não no conteúdo, na forma. E isso acontece porque está enraizada nas pessoas a necessidade de passar uma mensagem fechada para as outras. Essa necessidade, criada na artificialidade das estruturas de controle social, acaba por bloquear a fluidez discursiva, represando-a em sentidos aceitos pela condescendência do já posto. É de exorbitante translucidez que estamos diante da criatura férrea do colonialismo discursivo, com seus tentáculos que acariciam enquanto sufocam, deslizam enquanto encarceram, beijam enquanto engolem. O colonialismo discursivo baliza um perímetro onde se vende a ideia de que precisamos nos comunicar de maneira higienizada, sem ruídos de nenhuma espécie, pois esse asseio pressupõe a eficiência e a lisura das comunicações. E, 145
Anais justamente, essa higienização é que carrega o Cavalo de Tróia de um sistema discursivo repressor. A base do nosso sistema comunicacional é colonialista porque pressupõe uma linha direta, em sentido único, entre quem emite o discurso e quem recebe, reforçando ainda uma dinâmica na qual quem emite detém a verdade sobre o discurso e cabe a quem recebe a passiva situação de receptáculo vazio a ser preenchido por uma mensagem já previamente elaborada. E quando isso não acontece, recai sobre a pessoa que recebe o ônus da ignorância. As subjetividades que, naturalmente, fazem parte desse processo são simplesmente desprezadas, em nome de uma aparente comunhão que, em verdade, disfarça as relações de poder, das mais ínfimas às mais estratosféricas, enraizadas na epiderme social. O desejo diz: ‘Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem, uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como um destroço feliz’; E a instituição responde: ‘Você não tem por que temer começar; estamos todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar que o honra, mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de nós, só de nós, que ele lhe advém’. (FOUCAULT, 1996, p. 7). Uma das ferramentas utilitárias da construção discursiva colonialista é a planificação padronizada em nome de um corporativismo vendido em embalagem cúmplice. Um dos reflexos mais evidentes desse padrão revestido pelo brilho azulejado da compreensão é a delimitação das palavras em supostos sentidos literais, criando assim um monumento que represa todas as possibilidades comunicativas existentes. Para entender o mundo, ou para tentar compreendê-lo, a tradução da experiência em linguagem não basta. A linguagem mal toca a superfície da nossa experiência e transmite de uma pessoa a outra, num código convencional supostamente compartilhado, notações imperfeitas e ambíguas. (MANGUEL, 2017, p. 13). Logicamente esse manifesto pela dissolução do literal não pretende imprimir um caráter absolutista à emancipação dos discursos, pois não alimentamos a ilusão de que uma ruptura cabal seja o caminho. Na esteira da utopia que impulsiona os desejos libertários desse dileto viajante das paixões, o caminho que nos parece mais fluvial é aquele que 146
Search
Read the Text Version
- 1
- 2
- 3
- 4
- 5
- 6
- 7
- 8
- 9
- 10
- 11
- 12
- 13
- 14
- 15
- 16
- 17
- 18
- 19
- 20
- 21
- 22
- 23
- 24
- 25
- 26
- 27
- 28
- 29
- 30
- 31
- 32
- 33
- 34
- 35
- 36
- 37
- 38
- 39
- 40
- 41
- 42
- 43
- 44
- 45
- 46
- 47
- 48
- 49
- 50
- 51
- 52
- 53
- 54
- 55
- 56
- 57
- 58
- 59
- 60
- 61
- 62
- 63
- 64
- 65
- 66
- 67
- 68
- 69
- 70
- 71
- 72
- 73
- 74
- 75
- 76
- 77
- 78
- 79
- 80
- 81
- 82
- 83
- 84
- 85
- 86
- 87
- 88
- 89
- 90
- 91
- 92
- 93
- 94
- 95
- 96
- 97
- 98
- 99
- 100
- 101
- 102
- 103
- 104
- 105
- 106
- 107
- 108
- 109
- 110
- 111
- 112
- 113
- 114
- 115
- 116
- 117
- 118
- 119
- 120
- 121
- 122
- 123
- 124
- 125
- 126
- 127
- 128
- 129
- 130
- 131
- 132
- 133
- 134
- 135
- 136
- 137
- 138
- 139
- 140
- 141
- 142
- 143
- 144
- 145
- 146
- 147
- 148
- 149
- 150
- 151
- 152
- 153
- 154
- 155
- 156
- 157
- 158
- 159
- 160
- 161
- 162
- 163
- 164
- 165
- 166
- 167
- 168
- 169
- 170
- 171
- 172
- 173
- 174
- 175
- 176
- 177
- 178
- 179
- 180
- 181
- 182
- 183
- 184
- 185
- 186
- 187
- 188
- 189
- 190
- 191
- 192
- 193
- 194
- 195
- 196
- 197
- 198
- 199
- 200
- 201
- 202
- 203
- 204
- 205
- 206
- 207
- 208
- 209
- 210
- 211
- 212
- 213
- 214
- 215
- 216
- 217
- 218
- 219
- 220
- 221
- 222
- 223
- 224
- 225
- 226
- 227
- 228
- 229
- 230
- 231
- 232
- 233
- 234
- 235
- 236
- 237
- 238
- 239
- 240
- 241
- 242
- 243
- 244
- 245
- 246
- 247
- 248
- 249
- 250
- 251
- 252
- 253
- 254
- 255
- 256
- 257
- 258
- 259
- 260
- 261
- 262
- 263
- 264
- 265
- 266
- 267
- 268
- 269
- 270
- 271
- 272
- 273
- 274
- 275
- 276
- 277
- 278
- 279
- 280
- 281
- 282
- 283
- 284
- 285
- 286
- 287
- 288
- 289
- 290
- 291
- 292
- 293
- 294
- 295
- 296
- 297
- 298
- 299
- 300
- 301
- 302
- 303
- 304
- 305
- 306
- 307
- 308
- 309
- 310
- 311
- 312
- 313
- 314
- 315
- 316
- 317
- 318
- 319
- 320
- 321
- 322
- 323
- 324
- 325
- 326
- 327
- 328
- 329
- 330
- 331
- 332
- 333
- 334
- 335
- 336
- 337
- 338
- 339
- 340
- 341
- 342
- 343
- 344
- 345
- 346
- 347
- 348
- 349
- 350
- 351
- 352
- 353
- 354
- 355
- 356
- 357
- 358
- 359
- 360
- 361
- 362
- 363
- 364
- 365
- 366
- 367
- 368
- 369
- 370
- 371
- 372
- 373
- 374
- 375
- 376
- 377
- 378
- 379
- 380
- 381
- 382
- 383
- 384
- 385
- 386
- 387
- 388
- 389
- 390
- 391
- 392
- 393
- 394
- 395
- 396
- 397
- 398
- 399
- 400
- 401
- 402
- 403
- 404
- 405
- 406
- 407
- 408
- 409
- 410
- 411
- 412
- 413
- 414
- 415
- 416
- 417
- 418
- 419
- 420
- 421
- 422
- 423
- 424
- 425
- 426
- 427
- 428
- 429
- 430
- 431
- 432
- 433
- 434
- 435
- 436
- 437
- 438
- 439
- 440
- 441
- 442
- 443
- 444
- 445
- 446
- 447
- 448
- 449
- 450
- 451
- 452
- 453
- 454
- 455
- 456
- 457
- 458
- 459
- 460
- 461
- 462
- 463
- 464
- 465
- 466
- 467
- 468
- 469
- 470
- 471
- 472
- 473
- 474
- 475
- 476
- 477
- 478
- 479
- 480
- 481
- 482
- 483
- 484
- 485
- 486
- 487
- 488
- 489
- 490
- 491
- 492
- 493
- 494
- 495
- 496
- 497
- 498
- 499
- 500
- 501
- 502
- 503
- 504
- 505
- 506
- 507
- 508
- 509
- 510
- 511
- 512
- 513
- 514
- 515
- 516
- 517
- 518
- 519
- 520
- 521
- 522
- 523
- 524
- 525
- 526
- 527
- 528
- 529
- 530
- 531
- 532
- 533
- 534
- 535
- 536
- 537
- 538
- 539
- 540
- 541
- 542
- 543
- 544
- 545
- 546
- 547
- 548
- 549
- 550
- 551
- 552
- 553
- 554
- 555
- 556
- 557
- 558
- 559
- 560
- 561
- 562
- 563
- 564
- 565
- 566
- 567
- 568
- 569
- 570
- 571
- 572
- 573
- 574
- 575
- 576
- 577
- 578
- 579
- 580
- 581
- 582
- 583
- 584
- 585
- 586
- 587
- 588
- 589
- 590
- 591
- 592
- 593
- 594
- 595
- 596
- 597
- 598
- 599
- 600
- 601
- 602
- 603
- 604
- 605
- 606
- 607
- 608
- 609
- 610
- 611
- 612
- 613
- 614
- 615
- 1 - 50
- 51 - 100
- 101 - 150
- 151 - 200
- 201 - 250
- 251 - 300
- 301 - 350
- 351 - 400
- 401 - 450
- 451 - 500
- 501 - 550
- 551 - 600
- 601 - 615
Pages: