ASTERIX E O FANTÁSTICO: ENTRE HISTORIOGRAFIA E SUBVERSÃO Rafael Silva FOUTO (UFSC)1 RESUMO Asterix (Astérix, em francês) é uma série de quadrinhos mundialmente famosa, criada originalmente em 1959 pela dupla francesa René Goscinny e Albert Uderzo e continuada, a partir de 2013, por Jean-Yves Ferri e Didier Conrad. Narra as aventuras de Asterix e seu companheiro Obelix, membros de uma vila gaulesa de guerreiros indômitos logo após o período das Guerras Gálicas. Em uma versão imaginária desse momento histórico, a pequena vila na Gália resiste aos romanos graças à poção mágica criada pelo druida Panoramix, que dá super força aos gauleses. O contato com vários povos tanto do período em que se passa a narrativa quanto de épocas posteriores permite às histórias de Asterix mesclar aspectos da realidade historiográfica com a fantasia, com comentários sociais embasados na comédia textual e visual. Desse modo, trabalhando a questão das histórias em quadrinhos como gênero híbrido dentro da literatura (MESKIN, 2009; PIZZINO, 2016), o presente trabalho analisa o fantástico em Asterix como um elemento de subversão, conforme explanado por Rosemary Jackson (1981). Por esse viés, as aventuras de Asterix e Obelix contra os romanos e outras culturas buscam subverter a historiografia com o objetivo de questionar aspectos contemporâneos como opressão, resistência, colonização e mesmo estratificação econômica, tendo como base a poção mágica que torna a vila de Asterix o epicentro de transformações sociais. Palavras-chave: Histórias em quadrinhos, literatura fantástica, subversão. 1 Mestre em Inglês pela UFSC, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura – UFSC. Órgão financiador: CAPES. E-mail: [email protected]. 197
Anais ABSTRACT Asterix (Astérix, in French) is a world-famous comic book series, originally created in 1959 by French duo René Goscinny and Albert Uderzo, and continued from 2013 onwards by Jean- Yves Ferri and Didier Conrad. It narrates the adventures of Asterix and his companion Obelix, members of a Gallic village of indomitable warriors shortly after the period of the Gallic Wars. In an imaginary version of this historic moment, the small village in Gaul resists the Romans thanks to the magic potion created by the druid Getafix, which gives the Gauls super strength. Contact with various peoples both from the period in which the narrative takes place and from later times allows Asterix's stories to mix aspects of historiographical reality with fantasy, with social commentary based on textual and visual comedy. Thus, by working on the issue of comics as a hybrid genre within literature (MESKIN, 2009; PIZZINO, 2016), this work analyzes the fantastic in Asterix as an element of subversion, as explained by Rosemary Jackson (1981). From this perspective, the adventures of Asterix and Obelix against the Romans and other cultures seek to subvert historiography in order to question contemporary aspects such as oppression, resistance, colonization and even economic stratification, based on the magic potion that makes Asterix’s village the epicenter of social transformations. Keywords: Comics, fantasy literature, subversion. Introdução Asterix (Astérix, em francês) é talvez um dos quadrinhos mais reconhecido mundialmente, traduzido para 83 línguas e 29 dialetos, com diversas adaptações para o cinema e em formato de animações. Criado originalmente pelos franceses René Goscinny e Albert Uderzo em 1959, as aventuras de Asterix e seu amigo Obelix continuaram a ser escritas por Uderzo após o falecimento de Goscinny em 1977, sendo atualmente produzidas por Jean-Yves Ferri e Didier Conrad, com um total de 39 volumes desde 2021. Passando-se no ano 50 a.C., em uma pequena aldeia de gauleses, a narrativa ocorre após a conquista romana na Gália, conforme descrita por Júlio César em De Bello Gallico (“Comentários sobre a Guerra Gálica”, em latim), sendo ele muitas vezes o antagonista principal nos quadrinhos. Os gauleses dessa aldeia são chamados de “irredutíveis”, uma vez que continuam a resistir ao poderio romano, ao contrário do resto da Gália. Com a ajuda da poção mágica feita pelo druida Panoramix, que concede super força aos habitantes da vila, Asterix e seus amigos são capazes de derrotar todos os esforços romanos em dominá-los. Por vezes terminam por zombar tanto de Roma quanto de César, sendo a frase “esses romanos são loucos!” uma piada recorrente ao longo dos volumes. 198
Anais Goscinny e Uderzo criam em Asterix uma versão cômica de diversos aspectos históricos da Antiguidade romana, utilizando-se do mito fundador francês que coloca os gauleses como os ancestrais da França e de seu espírito de resistência. Dessa perspectiva histórica retiram também diversos mitos e estereótipos referentes não apenas aos gauleses, mas às culturas ditas celtas, que aparecem desde a nomenclatura dos personagens a seus hábitos culturais, expandindo para os diversos grupos com que Asterix e Obelix entram em contato. Por consequência, uma análise a respeito de Asterix deve considerar também seus elementos historiográficos, bem como a relação destes com o fantástico e o meio visual das histórias em quadrinhos. Fantasia, historiografia e histórias em quadrinhos: subversão e hibridização A classificação conceitual das histórias em quadrinhos talvez seja, até hoje, uma das mais difíceis de ser feita. Caminhando no limiar entre literatura e arte visual, os quadrinhos desenvolvem características que fogem a ambos esses campos, criando uma forma de narrativa única. Christopher Pizzino (2016) compreende a situação das histórias em quadrinhos como um meio textual considerado ainda ilegítimo, mesmo havendo a ascensão atual da noção de graphic novel e dos filmes baseados em quadrinhos de super heróis. Há, nesse sentido, um entendimento tácito de que histórias em quadrinhos eram originalmente um meio voltado ao público juvenil e que agora merecem um certo nível de atenção adulta por sua maturação ocasionada pelo cinema (PIZZINO, 2016). Ainda que não mais marginalizado no mesmo nível que no passado, muitas vezes se compreende esse meio como inferior a outras formas de arte, excluindo-o, por exemplo, do campo da literatura. O que isso gera, conforme Pizzino, é um grau de autoconsciência da ilegitimidade dos quadrinhos na cultura por parte dos próprios escritores desse meio, algo que Pizzino nomeia de autoclasm, ou “autorrompimento” (2016), isto é, a necessidade que esses autores de histórias em quadrinhos encontram de justificar a relevância de seu próprio trabalho dentro do meio, sendo um problema de status social. No caso de Asterix, o mero estudo de uma história em quadrinhos de caráter cômico e fantasioso soma novas camadas de ilegitimidade a esse autoclasm, uma vez que explora mais dois aspectos contra os quais a academia e a sociedade demonstram resistência: o fantástico e a comédia dentro da literatura, considerados historicamente formas menores de arte. 199
Anais Desse modo, torna-se importante a legitimação dos quadrinhos como arte e, mais importante, sua posição em relação à literatura. Aaron Meskin (2009) sugere classificar as histórias em quadrinhos como uma forma híbrida de arte, visto que determinados quadrinhos se aproximam ou se afastam daquilo que se pode compreender como literatura, mas simultaneamente descendem desta em sua evolução como gênero artístico e textual. A relação com a imagem, entretanto, vai além do que ocorre na literatura tradicional ou mesmo no cinema, sendo algo que Scott McCloud (1994) chama de uma dança silenciosa entre o visível e o invisível, o jogo contido entre os quadros que permitem compreender o todo, e exigem o esforço visual do leitor para ser compreendido. Essa dança, conforme McCloud, é única às histórias em quadrinhos; nesse sentido, ele se mostra contra a ideia dos quadrinhos como híbrido entre arte gráfica e ficção em prosa, porque não há necessidade da presença de texto para de fato ocorrer a dança visual mencionada. Contudo, o caso dos quadrinhos que incluem textos não pode ser ignorado, e a hibridização proposta por Meskin não seria no sentido de uma mera junção dos dois elementos apontados por McCloud, mas sim uma mistura deles: Image and text determine narrative content in standard comics by working together (i.e. by ‘blending’ in some important sense) rather than remaining distinct as do text and pictures in traditional illustrated literature. Words and pictures in comics do then typically combine to create a unified, albeit complex, whole. (MESKIN, 2009, p. 235).2 De fato, no caso específico de Asterix, poder-se-ia falar de uma dupla hibridização, não apenas estrutural, entre ilustração e texto, mas também temática, entre historiografia tradicional e fantasia, a relação imagética entre as culturas materiais históricas representadas na ilustração e seu uso de maneira fantástica, que é misturado ao texto para criar o efeito cômico. Dessa maneira, Goscinny e Uderzo trabalham simultaneamente com os achados arqueológicos disponíveis a respeito dos gauleses e com o imaginário popular desses povos, utilizando-os com o propósito de fazer diversos comentários sociais e culturais a respeito da modernidade. A identificação de Asterix como obra de fantasia, por sua vez, é 2 “Imagem e texto determinam o conteúdo narrativo em histórias em quadrinhos padrões ao trabalharem em conjunto (ou seja, “misturando-se” em algum sentido importante) em vez de permanecerem distintos como o fazem texto e imagens na literatura ilustrada tradicional. Palavras e imagens nos quadrinhos tipicamente se combinam para criar um todo unificado, embora complexo”. Tradução nossa. 200
Anais claramente apontada por John Clute e John Grant no famoso trabalho The Encyclopedia of Fantasy (1997), especialmente em sua capacidade de satirizar contextos históricos e sociais por meio do fantástico. Cabe ressaltar, nessa perspectiva, a necessidade já apontada por Rosemary Jackson (2009) em localizar a escrita da fantasia em seu contexto social de produção. Uma análise estruturalista como a de Tzvetan Todorov (1970), por exemplo, não daria conta de caracterizar os aspectos fantásticos trazidos por uma história em quadrinhos como Asterix, calcada na observação de especificidades culturais. Assim, a discussão trazida por Todorov e outros referente a diferenciação entre os conceitos de “fantasia” e o “fantástico” não será trazida na análise aqui presente: ambos as palavras serão abordadas de maneira intercambiável, a primeiro como substantivo, e a segunda como seu adjetivo. Ainda conforme Jackson, a fantasia seria uma literatura do desejo, buscando a experiência daquilo que é entendido como algo culturalmente ausente ou perdido (JACKSON, 2009). Desse modo, In expressing desire, fantasy can operate in two ways (according to the different meanings of ‘express’): it can tell of, manifest or show desire (expression in the sense of portrayal, representation, manifestation, linguistic utterance, mention, description), or it can expel desire, when this desire is a disturbing element which threatens cultural order and continuity (expression in the sense of pressing out, squeezing, expulsion, getting rid of something by force). In many cases fantastic literature fulfils both functions at once, for desire can be ‘expelled’ through having been told of and thus vicariously experienced by author and reader. In this way fantastic literature points to or suggests the basis upon which cultural order rests, for it opens up, for a brief moment, on to disorder, on to illegality, on to that which lies outside the law, that which is outside dominant value systems. (JACKSON, 2009, p. 2).3 Nesse sentido, a autora reforça que a fantasia não se focaria em um transcendentalismo, na invenção de mundos não humanos, mas sim na subversão daquilo 3 “Ao expressar o desejo, a fantasia pode operar de duas maneiras (de acordo com os diferentes significados de 'expressar'): pode contar, manifestar ou mostrar desejo (expressão no sentido de retrato, representação, manifestação, enunciado linguístico, menção, descrição), ou pode expulsar o desejo, quando esse desejo é um elemento perturbador que ameaça a ordem e a continuidade cultural (expressão no sentido de pressionar, espremer, expulsar, livrar-se de algo pela força). Em muitos casos, a literatura fantástica cumpre ambas as funções ao mesmo tempo, pois o desejo pode ser ‘expulso’ através de ter sido contado e, assim, vicariamente experimentado pelo autor e pelo leitor. Assim, a literatura fantástica aponta ou sugere a base sobre a qual repousa a ordem cultural, pois se abre, por um breve momento, à desordem, à ilegalidade, ao que está fora da lei, ao que está fora dos sistemas dominantes de valor”. Tradução nossa. 201
Anais que é deste mundo, transformação do familiar em algo aparentemente outro e estranho. Atua em uma relação simbiótica com o real, uma vez que não pode se desfazer dele, apenas expressar o desejo por algo diferente desse real, ou expulsar esse desejo de modo a mostrar aquilo que escapa ou é mal visto pela ordem dominante. Considerando o elemento central satírico em Asterix, a presente análise seguirá o conceito de fantasia como subversão de Jackson para investigar as maneiras como Goscinny e Uderzo (e, em menor grau, Uderzo apenas) expressam o desejo pela desordem e diferença em sua visão de um passado particularmente próximo da modernidade. Asterix e a Gália passada: espelhos das ansiedades contemporâneas A hibridização contida em Asterix inclui também um passado tremendamente preocupado com o presente em seus anacronismos. Roma e Júlio César são mostrados por Goscinny e Uderzo como os grandes vilões da pequena vila de gauleses indômitos, especificamente por causa de seu imperialismo: ao situar as histórias de Asterix por volta do ano 50 a.C., os autores delimitam a narrativa dentro de um período histórico colonial para várias regiões da Europa, norte da África e Oriente Médio, como é possível ver no seguinte exemplo: Figura 1 – O período histórico de Asterix Fonte: GOSCINNY; UDERZO, 2022, p. 5. 202
Anais Vários grandes chefes haviam de fato sido derrotados por Roma, sendo Vercingetorix, líder de uma aliança de diversas tribos gaulesas, um dos mais famosos. Repete-se o mito dos gauleses como antepassados dos franceses modernos, já desmistificado por vários historiadores e acadêmicos, mais famoso entre eles o pesquisador Jean-Louis Bruneaux (2018), como fruto de uma invenção nacionalista criada no século XIX para prover a nação francesa de um passado heroico, em que a trágica figura de Vercingetorix é apropriada para representar o espírito resiliente francês. Entretanto, como pode ser visto na Figura 1, Goscinny e Uderzo ao mesmo tempo subvertem essa narrativa ao localizarem a aldeia de gauleses irredutíveis na região da Armórica: conforme John Koch (2006), historicamente uma província que de fato causou problemas ao controle romano, essa região também é palco das migrações de povos bretões vindos das Ilhas Britânicas para o continente, razão pela qual recebe hoje o nome de Bretanha (Bretagne, em francês). A Bretanha é, até hoje, de uma cultura diferente do resto da França, dita “céltica” em função dos falantes da língua bretã, aparentada ao idioma galês. Desse modo, a escolha da Armórica como pátria de Asterix e seus amigos reforça tanto a alteridade quando a celticidade desse grupo em particular de gauleses, epicentro do fantástico nos quadrinhos. Não apenas isso, essa relação de parentesco entre todos os grupos que são chamados atualmente de “celtas” é reforçada, como se pode se ver no volume 8 dos quadrinhos, Asterix entre os Bretões: Figura 2 – O parentesco celta em Asterix Fonte: GOSCINNY; UDERZO, 1985, p. 6. Assim, os bretões são chamados de parentes dos gauleses, pressagiando a relação íntima que haveria entre esses dois povos na Gália romana. Como um híbrido entre literatura e arte visual, tem-se a piada imagética da frota romana observada por dois bretões que pouco 203
Anais se intimidam com sua presença, comentando-a de modo positivo, ao mesmo tempo em que, textualmente, invertem substantivo e adjetivo, referência à gramática do idioma inglês moderno falado na Grã-Bretanha. Por meio desse aparente anacronismo se desvela novamente uma subversão da historiografia pelos autores, de modo a posicionar a cultura moderna da Inglaterra no mesmo espaço geográfico da antiguidade. Figura central para o desenvolvimento do fantástico em Asterix, a imagem do druida é talvez o aspecto mais literário incluído por Goscinny e Uderzo. Cercados pelas brumas do tempo, os druidas se mostram até hoje como uma classe de indivíduos cujas práticas são largamente desconhecidas, e mesmo durante a Idade Média já haviam se tornado parte do imaginário literário, especialmente no que tange à mitologia irlandesa (KOCH, 2006). Em Asterix, a mesma ideia do druida como praticante de magia é ressaltada: Figura 3 – Asterix e os druidas Fonte: GOSCINNY; UDERZO, 1983a, p. 10 Toda a caracterização apresentada pelos quadrinhos segue a famosa descrição feita por Plínio, o Velho em sua História Natural (77 d.C.). Os druidas de Asterix, portanto, vestem- se com robes brancos, e com uma foice dourada colhem visgo de carvalhos, que utilizam para a fabricação de poções e magias. Como é a única descrição sobrevivente de um ritual druídico, o relato de Plínio é até hoje considerado essencial para o estudo dessa temática, 204
Anais sendo influente em todas as representações posteriores a respeito dos druidas. Barry Cunliffe (2010), por exemplo, considera que a informação provida por esse naturalista romano é confiável em vários aspectos, e possivelmente baseada em escritos anteriores do historiador grego Timeu. Goscinny e Uderzo retomam essa mesma descrição de maneira cômica, com os druidas competindo para subir e colher visgo em uma mesma árvore, e discutindo suas foices e magias de maneira informal, como se estivessem em uma convenção. Subvertem, dessa maneira, o próprio fantástico já contido na descrição histórica dos druidas, banalizando em sua sátira as atitudes dessa suposta casta de magos altivos e respeitáveis. Ainda assim, como principal propiciador do sobrenatural na narrativa, o druida Panoramix da vila dos gauleses irredutíveis é capaz de produzir o mais importante veículo do fantástico em Asterix, a poção mágica que dá super força aos habitantes da vila: Figura 4 – A poção mágica de Asterix Fonte: GOSCINNY; UDERZO, 2002, p. 21. Como mostra a Figura 4, essa poção permite a Asterix arremessar, estapear e surrar todos os soldados romanos que encontra em seu caminho, ainda que não lhe garanta invulnerabilidade a eles. Obelix, por outro lado, é capaz de tudo isso por conta própria, já que caiu em um caldeirão cheio da poção quando era bebê – uma das piadas recorrentes entre os volumes é o desejo de Obelix em beber a poção, apenas para ser lembrado do que ocorreu em sua infância e dos efeitos perigosos em bebê-la novamente. Como esperado, esse efeito mágico abre caminhos para que Asterix e Obelix possam causar destruição e discórdia no próprio coração de Roma, desmoralizando César e seus esforços para conquistar a diminuta e indômita vila gaulesa. Essa desmoralização ocorre em todos os níveis, desde a constante caça a exércitos romanos, descritos quase como uma delicadeza culinária por Obelix, até mesmo aos jogos de gladiadores no Coliseu de Roma. Este último é infiltrado pela dupla no 205
Anais volume Asterix Gladiador, e desmoralizado quando conseguem incutir uma consciência de classe entre os gladiadores e convencê-los em jogar simples jogos de adivinhação entre si em vez de lutarem publicamente, para o desalento dos romanos. Desse modo, a poção mágica é também o elemento primário do fantástico como comentário social subversivo nos quadrinhos, possibilitando não apenas as revoltas da vila gaulesa aos romanos, mas também outros povos e culturas que Asterix e Obelix encontram em suas aventuras. Cabe ressaltar, nesse sentido, o impacto da poção no volume Asterix e o Domínio dos Deuses, que envolve diversas análises sociais relevantes, em especial quanto à questão da exploração trabalhista e a escravidão, conforme é possível ver na figura seguinte: Figura 5 – O uso da poção mágica como elemento de subversão em Asterix Fonte: GOSCINNY; UDERZO, 1983b, p. 16 A crítica social fica clara nessa passagem, não menos pela escolha de um escravo africano para representar o líder dos escravos no acampamento romano, algo certamente possível e talvez comum na Antiguidade, mas que remete principalmente à colonização europeia – e francesa – na África e nas Américas e à escravidão durante a era moderna. A escolha da maneira de representar esse escravo é questionável, uma vez que claramente se utiliza de estereótipos racistas na construção fenotípica do personagem, algo esperado em uma obra feita por dois franceses brancos no início dos anos 1970, fato este que requer uma discussão específica aprofundada, infelizmente inviável na presente análise. Entretanto, a presença de Asterix e Obelix oferecendo a poção mágica para que o líder dos escravos se revolte contra seus mestres é uma poderosa mensagem social, provocando a inversão de poderes dentro do acampamento, representada posteriormente pelos escravos ganhando poder de negociação e salários pelos seu trabalho. Não se pode evitar verificar que, nessa negociação entre Asterix e o líder de escravos, talvez se encontre também ansiedades modernas da sociedade francesa em lidar com seu passado escravocrata, expressando o 206
Anais desejo, conforme apontado por Jackson (2009), em modificar e reparar por meio do fantástico essa dívida histórica. Por fim, um último elemento fantástico que merece menção em Asterix é a presença do bardo Chatotorix (Assurancetourix, no original francês, e Cacofonix, na tradução portuguesa). Para esse personagem, Goscinny e Uderzo trabalham novamente com a subversão de expectativas do fantástico apontada por Jackson (2009), por meio da inversão do papel do bardo histórico, originalmente um grande mestre da poesia, exaltação e música nas fontes da Antiguidade a respeito dos gauleses (KOCH, 2006). Em Asterix, todavia, Chatotorix é desafinado e considerado péssimo em suas canções, com a piada recorrente de terminar sempre amarrado próximo a uma árvore nos banquetes que concluem cada volume dos quadrinhos. Contudo, no volume Asterix e os Normandos, Chatotorix demonstra uma habilidade fantástica própria: Figura 6 – Chatotorix e a inversão das habilidades do bardo histórico Fonte: GOSCINNY; UDERZO, 1969, p. 38 Os normandos, buscando descobrir o que é o medo, vêm até a Gália e raptam o medroso Encucadix, sobrinho do chefe Abracurcix. Asterix e Obelix tentam resgatar o garoto, mas é Chatotorix quem rouba a cena no volume: suas canções são tão ruins que fazem com que todos os inimigos sumam de seu caminho, até entornando o leite das vacas que têm o 207
Anais desprazer de ouvi-lo. Mais importante, suas habilidades fazem com que os normandos sintam o medo pela primeira vez e fujam também, concluindo assim a missão de resgate. Em outras ocasiões, como em As 1001 Horas de Asterix (UDERZO, 1987), Chatotorix é capaz até mesmo de fazer chover com sua música, demonstrando que suas habilidades (ruins) são, de fato, mágicas. É nessa fusão entre relato histórico dos bardos – em particular em sua capacidade de satirizar os oponentes, conforme mencionada em fontes medievais insulares (KOCH, 2006) – e inversão paródica de sua função social que Goscinny e Uderzo subvertem mais uma vez a realidade. Considerações finais Com base no que foi analisado, pôde-se verificar que junto à hibridização de forma em Asterix, isto é, a união entre literatura e arte visual dos quadrinhos, soma-se uma segunda hibridização, de caráter narrativo: a fusão entre historiografia e fantasia. A escolha de gauleses como o foco das histórias não é à toa, uma cultura celta oprimida e apagada historicamente, possibilitando a comparação com a realidade atual das culturas falantes de línguas celtas, que ainda vivenciam os efeitos da vida às margens, linguística e geograficamente, das sociedades europeias, na chamada “franja céltica”. Por meio da representação dessa pequena vila gaulesa cercada pelo domínio romano por todos os lados, Goscinny e Uderzo se remetem à figura universal do underdog, o azarão cujas chances de vencer são ínfimas, e subvertem essa figura de modo a torná-la um constante vencedor, utilizando simultaneamente o veículo underdog das artes, as histórias em quadrinhos. Expressam, por meio da poção mágica, o desejo do oprimido por uma força que o permita não apenas se revoltar contra o opressor, mas derrotá-lo ao ponto de ser deixado livre em sua própria posição marginal. Dessa maneira, Asterix demonstra a razão pela qual sua narrativa – e as histórias em quadrinhos em geral – continua a ocupar um espaço especial nos dias atuais. Mesmo após a morte de seus criadores, Asterix dialoga, através de seus personagens fantásticos semi-históricos, com os debates sociais contemporâneos que visam romper e desfazer os sistemas culturais dominantes há séculos. Esses opressores são loucos! REFERÊNCIAS BRUNEAUX, Jean-Louis. Les gaulois: vérités et légends. Paris: Perrin, 2018. 208
Anais CLUTE, John; GRANT, John (orgs.). The encyclopedia of fantasy. London: Orbit, 1997. CUNLIFFE, Barry. Druids: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2010. GOSCINNY, René; UDERZO, Albert. Asterix e os godos. Tradução de Eli Gomes. Rio de Janeiro: Record, 1983a. ______. Asterix e os normandos. Tradução de Eli Gomes. Rio de Janeiro: Cedibra, 1969. ______. Asterix entre os bretões. Tradução de Jorge Faure Pontual. Rio de Janeiro: Record, 1985. ______. Asterix gladiador. Tradução de Cláudio Varga. Rio de Janeiro: Record, 2002. ______. Asterix o domínio dos deuses. Tradução de Cláudio Varga. Rio de Janeiro: Record, 1983b. ______. Asterix o gaulês. Tradução de Tânia Calmon. Rio de Janeiro: Record, 2022. JACKSON, Rosemary. Fantasy: the literature of subversion. London and New York: Routledge, 2009. KOCH, John T. Celtic culture: a historical encyclopedia. Santa Barbara: ABC-CLIO, 2006. McCLOUD, Scott. Understanding comics: the invisible art. New York: HarperPerennial, 1994. MESKIN, Aaron. Comics as literature? British Journal of Aesthetics, Oxford, v. 49, n. 3, p. 219- 239, jul. 2009. PIZZINO, Christopher. Arresting development: comics at the boundaries of literature. Austin: University of Texas Press, 2016. UDERZO, Albert. As 1001 horas de Asterix. Tradução de Gilson D. Koatz. Rio de Janeiro: Record, 1987. 209
AS VISITAS DO DR. VALDEZ PELO VIÉS PSICANALÍTICO: RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E PSICANÁLISE Nelsilene dos Santos SILVA (UEPB) Reginaldo Oliveira da SILVA (UEPB) RESUMO A literatura é um vasto mundo a ser explorado, as narrativas ultrapassam os fatos expostos ficcionalizados e transfiguram aquilo que é dito, ou seja, o que se conserva imêmore atrás do que já foi pronunciado, ouvido ou até mesmo lido. Freud (1908) já articulara que a literatura é uma escola que instrui a “ler” escritos e almas. Sendo assim, a literatura com suas representações e significações, tende a contribuir significativamente com a psicanálise, bem como a psicanálise tem o poder de contribuir com a literatura para elucidar as indagações elencadas durante uma análise ou até mesmo no proceder à leitura. Encontramos em João Paulo Borges Coelho uma narrativa construída a partir da história e da memória do povo moçambicano. No romance “As visitas do Dr. Valdez”, a narrativa apresenta e sugere um imbricado entrelaçamento entre a literatura e a psicanálise pois o enredo alimenta-se de memórias e lembranças de um passado presentificado. A memória funciona como mediadora entre os acontecimentos do passado e do presente, tornando-se, componente importante na construção dos personagens e de suas histórias. Quanto a sua ficção, João Paulo Borges Coelho, desenvolve de uma maneira clara as referências históricas, utilizando-as principalmente como elemento da crítica social. Tais referências aos fatos históricos permitem ao leitor um vislumbre do Moçambique durante quase um século de invasões, início e fim de guerras, a memória é o instrumento crucial para ampliar o conhecimento do leitor a respeito da crítica colonial. Palavras-chave: Memória, João Paulo Borges Coelho e Freud. 210
Anais ABSTRACT Literature is a vast world to be explored, narratives go beyond fictionalized exposed facts and transfigure what is said, that is, what remains immemorial behind what has already been pronounced, heard or even read. Freud (1908) had already articulated that literature is a school that instructs to “read” writings and souls. Therefore, literature with its representations and meanings tends to contribute significantly to psychoanalysis, as well as psychoanalysis has the power to contribute to literature to elucidate the questions listed during an analysis or even in reading. We find in João Paulo Borges Coelho a narrative built from the history and memory of the Mozambican people. In the novel “The Visits of Dr. Valdez”, the narrative presents and suggests an imbricated intertwining between literature and psychoanalysis. For the plot feeds on memories and memories of the past. Memory works as a mediator between past and present events, thus becoming an important component in the construction of characters and their stories. As for the text, João Paulo Borges Coelho clearly develops the historical references, using them mainly as an element of social criticism. Such references to historical facts allow the reader a glimpse of Mozambique during almost a century of invasions, beginning and end of wars, memory is the crucial instrument to expand the reader's knowledge about colonial criticism. Keywords: Memory, João Paulo Borges Coelho and Freud. AS VISITAS DO DR. VALDEZ PELO VIÉS PSICANALÍTICO: RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E PSICANÁLISE João Paulo Borges Coelho, filho de mãe moçambicana e pai português, nascido no Porto, em 1955, mas que cedo foi viver com os pais em Moçambique, adquirindo a nacionalidade deste país. Historiador, ficcionista e professor de História Contemporânea de Moçambique e África Austral na Universidade Eduardo Mondlane em Maputo, assim como também atua na função de professor convidado no Mestrado em História da África da Universidade de Lisboa. A literatura é um vasto mundo a ser explorado, as narrativas ultrapassam o explanado e os fatos expostos transpassam aquilo que é dito, ou seja, o que se conserva imêmore atrás do que já foi pronunciado, ouvido ou até mesmo lido. Freud (1908) já articulava que a literatura é uma escola que instrui a “ler” escritos e almas. A narrativa de um autor é uma elegante quimera sobre sua própria vida, seu relato é dirigido aos seus leitores na busca de atenção e visibilidade. O escritor está dirigindo sua narrativa a um “outro”, pois tudo o que ele almeja é ser escutado e percebido. Sendo assim, a Literatura de ficção com suas representações e significações tende a contribuir significativamente com a Psicanálise, bem como a psicanálise tem o poder de 211
Anais contribuir com a literatura para elucidar as indagações elencadas durante uma análise ou até mesmo durante a leitura. Portanto, podemos observar uma obra literária como sendo a construção de uma fantasia, pois retomando a teoria freudiana, Lacan (1986) que aponta três dimensões na fantasia, fazendo uma relação com os três pontos psíquicos por ele proposto: O real, o simbólico e o imaginário. Assim, a literatura pode ser observada como uma espécie de tela de projeção, na qual o leitor tem acesso ao mundo do escritor e dos personagens, encontrando no exercício da escrita e da leitura, uma maneira de ligar-se ao outro, estabelecendo um sentido para a própria vida, utilizando-se da fantasia e do imaginário como ferramenta de defesa mediante as situações traumáticas vivenciadas e ou observadas. Abordar a literatura e a psicanálise é desenvolver um olhar diverso, capaz de reger à apreensão de significados para além do que se apresenta como mera aparência, em favor do que está implícito nas entrelinhas. Portanto, o escritor se desobriga da obediência ao real, o que o atribui total liberdade de reflexão e criação. Logo, a literatura permite a cada indivíduo transformar o mistério, o inútil, a humilhação e o sofrimento dela proveniente, em criação e reflexão buscando dar sentido ao caos, para isso a melhor forma de aprimoramento é a escrita literária. Freud (1909), confere a denominação “cenas originárias” aos acontecimentos reais, traumatizantes, cuja a lembrança por vezes é elaborada ou camuflada por fantasias. O aspecto que me escapou na solução da histeria reside na descoberta de uma fonte diferente, da qual emerge um novo elemento da produção do inconsciente. O que tenho em mente são as fantasias histéricas, que (...) remontam sistematicamente as coisas que as crianças entreouvem em idade precoce e que só compreendem numa ocasião posterior. (Carta Freud-Fliess de 06/04/1897 apud Masson, 1986, p. 235). É notório que Freud busca explorar a fantasia, a qual ele atribui concepção de “fachadas psíquicas”, sendo assim em seus estudos, aponta que o que desencadeia as neuroses podem ser elementos imaginários, que provocam o trauma, mesmo que que o mundo da fantasia esteja situado entre o mundo interior, onde a satisfação se dê por meio da imaginação, e o mundo exterior, que impõe os fatos reais, é visível que o mundo do sujeito em neurose é originalmente o mundo do inconsciente. 212
Anais Conjunturas traumáticas conferem a possibilidade de ver a personagem de uma obra por meio de sua ótica dos acontecimentos. Segundo Freud: [...] o termo “traumático” não tem outro sentido senão o sentido econômico. Aplicando-o a uma experiência que, em curto período de tempo, aporta à mente um acréscimo de estímulo excessivamente poderoso para ser manejado ou elaborado de maneira normal, e isto só pode resultar em perturbações permanentes da forma em que essa energia opera. Esta analogia nos compele a descrever como traumáticas também aquelas experiências nas quais nossos pacientes neuróticos parecem se haver fixado. Isto nos proporia uma causa única para o início da neurose. Assim, a neurose poderia equivaler a uma doença traumática, e apareceria em virtude da incapacidade de lidar com uma experiência cujo tom afetivo fosse excessivamente intenso. (Freud, 1917 [1916-17] a, p.283). É nesse momento que apreendemos o desaparecimento dos limites entre interno e externo, de maneira que o trauma apareça ligado àquilo que os personagens das narrativas trazem como experiência traumáticas e os danos que tais traumas desencadeiam em suas histórias. Na obra de João Paulo Borges Coelho, em especial no romance “As visitas do Dr. Valdez” temos um enredo que nos apresenta um imbricado entrelaçamento entre a literatura e a psicanálise. A narrativa mescla fatos históricos e o dia a dia de uma família herdeira de costumes dos colonizadores, a mesma circula entre o tempo presente, onde encontramos os momentos de pré-independência e o passado por meio das memórias das personagens duplamente herdeiras, uma vez dos bens da família e da colonização portuguesa. Durante a narrativa podemos acompanhar três personagens, as irmãs Sá Caetana, Sá Amélia e o criado Vicente, todos carregados de traumas e sofrimentos, o cotidiano dessas três personagens é o ponto para os constantes rebates na narrativa ao passado da família das irmãs que cresceu tendo, a família de Vicente como criada, passando o fardo de geração para geração. A referência aos fatos históricos no texto nos permite um vislumbre dos traumas e sofrimentos vividos pelo personagem subalternizado Vicente, pois o autor se vale do olhar colado às personagens, capturando e transmitindo suas angústias, medos e, a culpa que Vicente sente em ter que permanecer obedecendo ou negando os ensinamentos que seu pai lhe transmitiu. 213
Anais No transcorrer da narrativa, que inicia focada na história da família de Sá Caetana e Sá Amélia, ambas filhas de Ana Bessa e órfãs de pai, começa a tomar novos rumos e voltar os olhares para a história de Vicente, neto do primeiro criado da família, Vicente tem na figura do pai Cosmo Paulino, uma representação de lealdade e submissão à família de Ana Bessa. Quando as irmãs e o criado Vicente se veem obrigados a seguir para a cidade de Beira, Vicente desenvolve um novo olhar, surgem questionamentos e reflexões acerca dos traumas vividos, o fato que desencadeia esse novo olhar é o surgimento do Dr. Valdez; médico amigo das irmãs que já morreu, mas devido ao surto de loucura de Sá Amélia, Sá Caetana convence Vicente a se fantasiar de Dr. Valdez, antigo amigo da senhora, com o intuito de distraí-la e acalmá-la. A personagem Sá Amélia é norteada por um certo ar de alienação, o que ao mesmo tempo se apresenta como uma justificativa para seus caprichos. - Por hoje está resolvido – concluiu Sá Caetana tapando a irmã com o lençol, dando um jeito ao quarto desarrumado para apagar os traços da crise que de alguma maneira a envergonhavam. - E amanhã? Amanhã a patroinha vai querer saber quando chega esse doutor - disse Vicente, intranquilizando a patroa. – Ela lembra-se sempre daquilo que lhe faz falta. Vicente conhece bem Sá Amélia, a quem chama patroinha talvez pelos modos infantis da senhora. Conhece-a melhor que ninguém, de passar as tardes contando-lhes histórias tal como Nastácia as contava quando ela era pequena. E quem atravessa a vida ouvindo histórias estás sempre disposto a acreditar. Saber, além disso, que Sá Amélia se arranja todos os dias com cuidado, não vá uma visita inesperada apanhá-la descomposta. Custa-lhe vê- la ao fim da tarde, quando ela invariavelmente conclui que já não virá ninguém e se deixa apagar numa grande decepção. Sabe que por detrás da loucura da doença e da idade ela é capaz de usar da lembrança para cobrar o que lhe devem com a mesma facilidade com que recorre ao esquecimento para se isentar de responsabilidades. (COELHO, 2016, P. 41-42). O fragmento acima ilustra os conflitos vividos pelas irmãs, Sá Caetana envergonhada com a condição da irmã. Sá Amélia, alienada oscilando entre momentos de lucidez e delírios. Vicente observando-a na busca de identificar como o comportamento de ausência da patroa serve como uma fuga da realidade e consequentemente das responsabilidades. Ela se utiliza dos delírios para se isolar em meio as suas memorias. Para solucionar o problema Vicente encontrou uma solução: Vicente encarou a patroa com um ar sorrateiro, embora também inseguro. Já pensou na solução, só não sabe é como ela será recebida. 214
Anais - Amanhã serei eu o Dr. Valdez! – disse, após curta pausa, esforçando um ar inocente. Como se a proposta lhe tivesse saído espontânea. Sá Caetana surpreendeu-se. Depois relutou. Como pode um jovem fazer de adulto? Como pode um criado fazer de Doutor? Como pode, até um preto fazer de branco? [...] Sá Caetana acabou assim por aceitar. (COELHO, 2016, P. 42) O jovem ao visitar a senhora vestido de médico, desperta para questionamentos sobre os traumas aos quais toda a vida viveu, ao está na pele daquele que detém o poder questiona- se sobre a fragilidade do argumento da superioridade racial. Nesse momento da narrativa podemos observar como o olhar de Vicente muda a partir do momento que ele começa a observar o mundo através do olhar do Dr. Valdez. Quando Vicente partiu com as irmãs para cidade de Beira, seu pai Cosmo Paulino lhe deixou um último ensinamento: “’Vais com a Senhora Grande, entendes?’ [...] ‘Vais para fazer tudo o que ela te mandar, sem exceção. [...] Quando ela te ordenar alguma coisa será a mim que ordena. E se desobedeceres, serei também eu próprio quem desobedece. Entendes?’” (COELHO, 2019, p. 29). Portanto, a submissão ensinada pelo pai, passa a refletir as angústias vividas por Vicente ao despertar para um novo olhar do mundo. Olhar esse que não mais aceita a submissão como obrigação, olhar que questiona a legitimidade da argumentação para os traumas vividos. Podemos notar que ao mesmo tempo que Vicente vê o médico refletido no espelho, o médico retornar à ação ao notar Vicente por detrás do olhar. Horas em que foi constituído um doutor que era o velho doutor que ele via passar quando criança. [...] Tanto tempo levou a preparar-se porque também por dentro se quis transformar. Como pensa um branco? Como sente um branco? Como age um homem branco? Já mascarado, passeou-se na escuridão do quarto para lá e para cá, procurando entrar na pele do Dr. Valdez. (COELHO, 2019. p. 49). No fragmento acima disposto, Vicente está se preparando para encenar o Dr. Valdez pela primeira vez. Já nesse momento surgem os primeiros questionamentos do personagem com relação a representação do outro, o colonizador, branco e que representa seu oposto. 215
Anais Ao se vestir de Dr. Valdez faz com que Vicente perceba que o “branco” é tudo aquilo que a ele é negado em uma sociedade dominada pelo outro. Por causa da encenação Vicente poderá pela primeira vez sentar no sofá da casa em que mora, recebe a autorização para conversar de igual para igual com Sá Amélia e Sá Caetana. A máscara utilizada por Vicente confere a ele o poder de se conhecer sentimentos nunca antes permitidos, como a indignação diante de injustiças praticadas pelas irmãs, pois enquanto criado ele não tem a permissão para conhecer tal sentimento. No entanto, quando ele é o médico, seu status social lhe confere o poder de ultrapassar a fronteira de submissão. Senta-se pela primeira vez naquele sofá que conhece tão bem por tantas vezes lhe ter sacudido o pó. Sentar-se ali tem um gosto especial que ele não sabia ainda definir, não só por ser mais macio para o rabo do que a esteira onde se senta a ouvir futebol português e simangemange nas tardes de domingo, ou a lata de petróleo que lhe serve de assento ao jantar. Sentar-se ali no sofá é gozar uma promiscuidade nova com um mundo que tão bem conhece, mas que até agora lhe estava vedado. (COELHO, 2016, p. 58). Ao transcorrer da narrativa fica evidente que Vicente vai questionando os traumas e lugares a ele conferido, enquanto que Sá Amélia dá indícios de que a loucura é uma forma encontrada por ela para falar o que ela não teria coragem sem esses momentos de demência. Portanto, toda a composição de uma circunstância traumática é causada por diversos fatores que muitas das vezes vão além do sujeito, fatores esses, associados ao social. O que nos remete ao objetivo do tratamento psíquico, pois desde os primórdios da obra de Freud, que consistiu em trazer a consciência as lembranças recalcadas, Freud conclui que recordar não é retratar os acontecimentos de uma maneira fiel, pois os mesmos constituem um material que foi processado e transformado psiquicamente. Sendo assim, as experiências vividas são ressignificadas no contexto dadas experiências atuais. Como podemos observar no seguinte fragmento: O material presente em forma de traços de memória estaria sujeito de tempos em tempos a um rearranjo segundo novas circunstâncias - a uma retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de indicações [...] os sucessivos registros representam a realização psíquica de épocas sucessivas da vida (Freud, [1896a] 1974: 254-5). 216
Anais Portanto, a tese de Freud de retratação, onde ele afirma que somente haverá trauma psíquico posteriormente ao acontecimento traumático, nos remete para o fato de que retomar as memórias consistiria na articulação de dois tempos, onde o segundo momento estaria ressignificando o primeiro. Assim sendo, aos analisar uma obra literária pelo viés da Psicanálise nos possibilita adentrar não apenas no mundo exterior dos personagens, mas principalmente em seu mundo interior e assim ressignificando os traumas vividos. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. O conhecimento do inconsciente e o método psicanalítico. In.: _______. Primeiros Escritos Filosóficos. COELHO, João Paulo Borges. As visitas do Dr. Valdez. São Paulo: Editoria Kapulana, 2019. FREUD, S. Obras completas, Vol. 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). FREUD, Sigmund. (1909) Notas sobre um caso de neurose obsessiva. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. FREUD, Sigmund. Obras completas, Vol. 7: O chiste e sua relação com o inconsciente (1905). 217
HISTÓRIA LITERÁRIA, MODERNISMOS E A TEMÁTICA DO INSÓLITO Joachin de Melo AZEVEDO NETO (UPE/Campus Petrolina)1 RESUMO A noção do modernismo é concebida enquanto movimento artístico que produziu manifestações estéticas a partir do processo de modernização das sociedades industriais. Já a ideia de história literária consiste na constatação de que se trata de um campo teórico e metodológico que se apresenta como uma alternativa mais consistente empiricamente do que a proposta generalizante da história da literatura. Este trabalho tem como objetivo lançar reflexões, de maneira ensaística, acerca de determinadas representações modernistas do insólito. A literatura modernista é uma leitura não apenas do belo, mas também do medo, do horror, das desconfianças e do desencanto moderno conforme autores canônicos como Dostoievsky (1821-1881), Kafka (1883-1924) e até mesmo para Freud (1856-1939): pai da Psicanálise. O entrelaçamento, portanto, de ficções modernistas com a temática do insólito visou causar estranhamentos e questionamentos diante de hábitos culturais presentes no processo de formação das sociedades industriais. Palavras-chave: História Literária, Modernismo, Insólito. ABSTRACT The notion of modernism is conceived as an artistic movement that produced aesthetic manifestations from the process of modernization of industrial societies. The idea of literary 1 Doutor em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Professor adjunto de História Contemporânea e Historiografia e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa de Política e História Literária – GEPPHIL na Universidade de Pernambuco – UPE/Campus Petrolina. Contato: [email protected] 218
Anais history, on the other hand, consists in the realization that it is a theoretical and methodological field that presents itself as a more empirically consistent alternative than the generalizing proposal of the history of literature. This work aims to launch reflections, in an essayistic way, about certain modernist representations of the unusual. Modernist literature is a reading not only of the beautiful, but also of fear, horror, distrust and modern disenchantment according to canonical authors such as Dostoievsky (1821-1881), Kafka (1883-1924) and even for Freud (1856-1881). 1939): father of psychoanalysis. The intertwining, therefore, of modernist fictions with the theme of the unusual aimed to cause estrangement and questioning in the face of cultural habits present in the process of formation of industrial societies. KEYWORDS: Literary History, Modernism, Unusual. Este trabalho tem como objetivo lançar reflexões, de maneira ensaística, acerca de determinadas representações modernistas do insólito. Em termos de história literária, a literatura modernista é uma leitura não apenas do belo, mas também do medo, do horror, das desconfianças e do desencanto com as sociedades industriais. Esse é o mote principal de autores canônicos como Freud (1856-1939): pai da Psicanálise, Dostoievsky (1821-1881) e Kafka (1883-1924). Discussões e representações feitas por esses autores serão tratadas como chaves de leitura para uma melhor compreensão da condição humana no mundo contemporâneo. O entrelaçamento, portanto, de ficções modernistas com a temática do insólito visou causar estranhamentos e questionamentos diante de hábitos culturais presentes no processo de implantação da razão moderna. No ensaio Teoria da história literária, traduzido para português e publicado no Brasil em 1965, o crítico literário estadunidense Howard M. Jones elenca uma série de preocupações em relação à legitimação de um campo de estudos que eclodia em meio ao advento da interdisciplinaridade nas ciências humanas. Segundo H. M. Jones, a história literária enfrentava, na época, desafios morais e estéticos. O primeiro deles deve-se ao fato de que “salvo nos seminários universitários, o animal humano toma a página impressa calmamente e não como um problema de casuística” (JONES, 1965, p. 16). Não querendo adentrar aqui na labiríntica discussão sobre a relação entre leitor e escrita ou sobre uma suposta hierarquia entre leitura contemplativa e a analítica, endosso a constatação, ainda bastante atual, do autor de que o outro grande impasse desse campo de pesquisa diz respeito à pluralidade e as dissensões em torno tanto do conceito de “história”, bem como o de “literatura”. As provocações de H. M. Jones – embora possuam fortes limitações patrióticas, porque legitimam a oficialização nacionalista de uma história literária estadunidense – ainda estão 219
Anais revestidas de certa atualidade ao colocar em pauta as contradições que revestem o conceito de história literária e ao clamarem para que a atividade literária não seja reduzida, por historiadores e críticos, a uma espécie de espelho do mundo vivido ou de mero reflexo das relações humanas. A saída proposta pelo citado autor foi a de considerar que, ao se construir uma reflexão sobre uma determinada história literária partindo de recortes temáticos bem delimitados, os estudiosos da escrita precisam dominar e equilibrar as tensões entre os procedimentos metodológicos que embasam interpretações criteriosas e cognitivas dos textos com a constatação de que as artes possuem suas próprias dinâmicas estéticas. Essa proposta nos conduz a perspectiva, ainda válida, dentre outras, de que trabalhar com o campo da história literária é considerar a “literatura como experiência comunizada” (Idem, p. 24). Em outros termos, isso significa levar em conta as implicações sociais, políticas e culturais dos textos artísticos precisam ser sempre levadas em conta pelos estudiosos dessa ampla área de investigações. O processo de interpretação aprofundada da ficção modernista pode e deve ser enriquecido a partir de procedimentos comparativos que busquem colocar a literatura em constante diálogo com artigos de opinião, correspondências, imagens diversas, periódicos, magazines, diários, notas e até mesmo catálogos de bibliotecas. Dessa forma, penso a história literária a partir da verificação de que se trata de um campo teórico e metodológico que se apresenta como uma alternativa mais consistente empiricamente do que a genérica e inalcançável ideia de uma história da literatura. Segundo os críticos literários James McFarlane e Malcolm Bradbury, ao prefaciarem a obra Modernismo: guia geral (1890-1930), o modernismo enquanto movimento literário foi bastante expressivo e abarcou manifestações políticas, teorias e grupos sociais, ocorrendo em diferentes lugares e momentos. Alguns manifestos presentes nessa fase eram feitos através de redes de intelectuais, que tinham em comum o gosto pela discussão de teorias e correntes estéticas, passando de um país a outro e também por meio de pequenos grupos ativistas formados por produtores culturais. O modernismo enquanto expressão estética e experiência histórica representa, a partir de fins do século XIX, na Europa, um novo olhar para a arte, bem como suas funções (McFARLANE; BRADBURY, 1989, p. 19). Na mesma obra, John Fletcher e M. Bradbury, esclarecem que a noção de modernismo é concebida enquanto movimento artístico que produziu manifestações estéticas a partir do processo de modernização das sociedades industriais. Nesse sentido, a prosa modernista questiona não apenas os limites da representação da realidade, mas também propõe 220
Anais rupturas ou mesmo dilatações em relação a noção de mundo vivido e real. Nesse sentido, o romance modernista agrega, para conseguir atender a essa complexa proposta, uma série de considerações em torno da composição e criatividade artística; representações da intimidade psicológica dos indivíduos; um desconfortável ou fatídico mal-estar niilista em relação aos padrões burgueses de comportamento e, em alguns casos, a radical defesa das liberdades narrativas. Esses postulados permitem aqui compreender temáticas frequentes nas obras de cânones modernistas como o misticismo de cunho simbolista, a autoconsciência literária dos autores, o futurismo, a paródia, o pastiche, a ironia, a introversão, o mitológico, o atemporal e, sobretudo, o compromisso com a destruição estética dos ideais de beleza que perpassam o classicismo greco-latino e de engajamento político no caso do realismo. Daí a potência vanguardista, por exemplo, de obras como Em busca do tempo perdido (1913-27), de Marcel Proust; O homem sem qualidades (1930-43), de Musil; Ulysses (1914-21), de James Joyce e Mrs. Dalloway (1925), de Virgínia Woolf, na medida em que se tratam de romances nos quais, de modo resumido, pode-se constatar que “a literatura é um ordenamento posterior aos desencontros caóticos da vida” (FLETCHER; BRADBURY, In: Idem, p. 335). Ainda de acordo com Fletcher e Bradbury, “o romance modernista”, enquanto instrumento feito para pensar e interpretar as sociedades contemporâneas, explorou “a confusão da vida humana, entre a Poesia e a História, entre o símbolo metamórfico e seu lugar no tempo desordenado” (Idem, p. 336). Daí a supervalorização feita por diversos artistas modernistas em relação a autonomia do campo artístico, pois essa tendência estética tem sérias dúvidas não só a respeito do que se pode entender enquanto realidade, mas também no tocante aos discursos que orientam a atividade criativa apenas para a finalidade de se adequar a percepção dominante tanto de ficção, bem como do verdadeiro. Em se tratando da ideia de insólito, o criador da Psicanálise, Sigmund Freud (1856- 1939), forneceu relevantes considerações, inclusive, em diálogo com a história literária. Na antologia Escritos sobre literatura, traduzida para português em 2014, o autor interpretou a dimensão simbólica de temáticas como o parricídio e o insólito presentes nas obras de escritores como Ernest T. Hoffman e Dostoievsky. Para Freud, a literatura é uma leitura não apenas do belo, mas do medo e do horror. Sobre o conceito de insólito ou estranho (unheimlich), sugere que a palavra é o contrário de familiar (heimish). Para o autor, o conceito dá conta do estranhamento que acontece quando algo novo e não familiar é inserido em uma rotina. 221
Anais O insólito, portanto, é tudo aquilo que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas que veio à tona. Analisa esse tema de investigação a narrativa “O homem da areia”, da obra Contos noturnos, do escritor de literatura fantástica Ernest Hoffmann. Qual o motivo do Homem de areia, que arranca os olhos das crianças? O protagonista Natanael sempre relembra, mesmo já adulto, quando teve contato com esse mito folclórico ao longo de sua infância. Não consegue esquecer também a misteriosa morte do pai. A mãe assustava o pequeno Natanael e seus irmãos para não saírem das suas camas: se saíssem, seriam vítimas da crueldade do homem da areia. Natanael decide esperar pelo Homem da área para se certificar de sua aparência horrenda, mesmo com muito medo. O efeito de estranhamento no conto é que o Homem da areia é o Dr. Coppelius, advogado da família e ao mesmo tempo seu pai que havia sido dado como falecido. A partir daí o enredo não deixa claro o que é realidade ou a imaginação da criança. Freud discorre sobre o seguinte: o medo de ferir os olhos acompanha os indivíduos durante toda a vida. O medo de se cegar é um substituto simbólico para o medo da castração: Portanto, também aqui o fator infantil é de fácil comprovação; mas deve-se notar que, no caso do Homem de Areia, trata-se do despertar de um antigo medo infantil (...). A fonte do sentimento estranho não seria aqui um medo infantil, mas um desejo infantil ou mesmo uma crença infantil. Parece uma contradição; é bem possível que seja apenas uma variante, que possa vir a favorecer nossa compreensão. E. T. A. Hoffman é o mestre inigualável do estranho na literatura. O seu romance Elixir do Diabo apresenta todo um feixe de motivos aos quais se poderia atribuir o efeito estranho da história. (FREUD, 2014, p. 52-3). A fonte que causa estranhamento nesse conto não é um medo infantil, mas um desejo infantil que é constantemente reprimido pelos adultos que o cercam, seja a mãe, o advogado da família ou até mesmo pela memória de seu falecido pai. O elixir do diabo, novela de autoria do escritor citado, trata de uma sociedade de sósias nos quais os indivíduos são submetidos a um tratamento que os deixam iguais uns aos outros, fisicamente, mentalmente, chegando inclusive a haver comunicação telepática entre indivíduo e sósia. Essa sociedade entra em crise após, por meio do uso do elixir, os sósias se tornarem imagens aterrorizantes do eu originário. Para Freud, o romance trata de neuroses obsessivas. A sociedade descrita no livro de Hoffmann é constituída de indivíduos que vivem mais no universo dos pensamentos do que na vida material e querem, portanto, driblar a morte, alcançar a eternidade. É um 222
Anais romance sobre superestimação narcisista: um traço típico da sociedade de consumo contemporânea. Nesse sentido, a literatura russa também chamou a atenção de Freud por causa da densidade com a qual representou a conturbada condição psicológica moderna. Ao explorar, com uma ousadia bastante modernista, as implicações psicanalíticas da ficção de Dostoievsky, deduziu que o escritor russo tinha personalidades distintas como as de intelectual, neurótico, ético e pecador. Considerou a obra Os irmãos Karamazov (1879) uma das mais altas realizações da literatura mundial. Na leitura de Freud, Dostoievsky lembrava os bárbaros que durante o grande processo de migração territorial dos povos antigos, matavam e faziam disso uma penitência indireta. A preocupação com a moralidade é um traço muito peculiar do comportamento russo e o resultado do embate travado por Dostoievski contra a hipocrisia das elites de seu tempo não foi nada glorioso, na medida em que o literato russo acabou “por se submeter tanto à autoridade mundana como à espiritual e, pela veneração ao tzar e ao deus dos cristãos, ele retrocede a um tacanho nacionalismo russo” (Idem, p. 10) e, de acordo com os lamentos de Freud, “Dostoievsky deixou de ser um mestre e um libertador dos homens, indo se associar a seus verdugos; o futuro cultural da humanidade pouco terá devido a ele” (Idem, ibid.). Outro ponto que o psicanalista considerou importante esclarecer foi a impertinência de julgamentos negativos da literatura desse escritor eslavo com base na destacada empatia por toda sorte de criminosos diluída em várias de suas obras. Para Freud, a imensa generosidade e amor pela condição humana de Dostoievsky dividia espaço com um estilo artístico que agregou também uma forte pulsão destrutiva. Sua preferência por personagens brutais, assassinos e egoístas pode ter sido uma sublimação e não a manifestação de uma suposta inclinação do autor russo para o mundo do crime. Sua pulsão de destruição foi orientada para dentro de si e não para fora, como fazem criminosos comuns. Assim, o psicanalista detectou também estruturas masoquistas e sádicas presentes nas obras e vida privada do escritor. Embora já exista um amplo debate acadêmico que aponta para as lacunas que podem ser suscitadas no método de interpretação que relaciona a personalidade do escritor com seus textos ficcionais, em termos de história literária esse procedimento, desde que seja sempre considerado a liberdade criativa do fazer artístico, pode ainda render reflexões instigantes. Desde que tomadas as devidas precauções teóricas, evidentemente, afim de evitar se cair em determinismos. 223
Anais Notas do subterrâneo, de Dostoievsky, obra publicada originalmente na Rússia em 1864, será analisada aqui enquanto marco ficcional que se vale de uma estética insólita para oferecer um prognóstico da modernidade. Longe de almejar fazer um aprofundamento de uma pretensa análise psicológica do homem dos subterrâneos, interessa aqui, para este começo de conversa, compreender que esse polêmico personagem, longe de espelhar o modo através do qual seu criador enxergava o mundo, é na verdade um sintoma – ou até mesmo um paradigma – de sua época. Antes de detalhar melhor a vida desse personagem, o autor russo coloca os leitores diante das amarguradas ruminações de pensamentos do homem do subterrâneo por meio das quais se pode ter uma ideia do seu niilismo geracional: Sim, no século XIX, um homem inteligente deve, está moralmente obrigado a ser, em essência, uma criatura sem caráter; o homem que tem caráter, o homem de ação, é fundamentalmente uma criatura limitada. Essa é minha convicção de quarenta anos. Tenho agora quarenta anos, e quarenta anos são toda uma vida, são a mais irremediável velhice. Viver mais de quarenta anos é impróprio, é vulgar, imoral! Quem vive além dos quarenta? – Respondei, sincera e honestamente. Dir-vos-ei quem: os idiotas e os inúteis. (DOSTOIEVSKY, 1989, p. 11). A ironia ferina e, muitas vezes, autodepreciativa; a sensibilidade doentia; a ausência de prazer em sua existência e a supervalorização de ciúmes, crueldade e vários formas de ódios cotidianos expressadas por esse personagem realmente condiz com um momento biográfico no qual Dostoievsky atravessava uma crise marcada pelas rondas constantes da polícia do Tzar em torno de seu trabalho; dívidas de diversas ordens; cobranças financeiras feitas por familiares; vários traumas e ressentimentos relativos aos dez anos de cárcere político, por ter se envolvido com um círculo de militantes liberais na juventude, que cumpriu na Sibéria. Porém, Notas do subterrâneo é um texto que continua tendo bastante a dizer em torno da desencantada relação entre intelectuais e modernidade. Sobretudo, quando se trata da intelligentsia que habita sociedades inseridas no chamado capitalismo periférico. Nesse sentido, o crítico Malcolm Bradbury, em O mundo moderno: dez grandes escritores (1989), sugere um arguto roteiro de leitura para uma melhor compreensão das conotações vanguardistas de Notas do subterrâneo ao considerar que esse homem profundamente ofendido e humilhado é um icônico herói anti-moderno: 224
Anais De seu esconderijo num canto, o homem do subterrâneo viria a exercer uma influência duradoura sobre a literatura do modernismo. Nesse personagem sem caráter nascia uma nova figura, e sua voz confessional e irônica, autoconsciente e desconfiada em relação a sua própria autenticidade seria ouvida muitas vezes nas páginas das obras de ficção modernas. (...) Dostoievsky quis revelar as contradições e as crises de sua época. Mas a nova era que se seguiu viria a reconhecer constantemente neles, em seus conflitos, dilemas e ódios explosivos, algo que se tornaria um componente fundamental da literatura da modernidade. (BRADBURY, 1989, p. 42). A leitura de uma modernidade, marcada pela ascensão de potências industriais e seus ditames, mesmo ainda estando em sua forma embrionária, mas que já era percebida como angustiante, entediante e opressora, condiz com as sensibilidades modernistas que buscaram dessacralizar os próprios pilares da modernidade. Ou seja, o ceticismo desse personagem diante de ideias românticas, revolucionárias e fraternas, além da descrição de uma cidade como São Petersburgo enquanto urbe insalubre, promíscua e marcada por uma cultura política autoritária, fazem das Notas do subterrâneo um dos mais vívidos testemunhos de uma consciência, mesmo que seja ficcional, bastante potente de contradições morais que podem ser encontradas não só na Rússia Tzarista, mas em muitas culturas que conciliaram modernidade e relações sociais baseadas em servidão. Esses postulados, por exemplo, forneceram elementos suficientes para embasar um criterioso estudo histórico e literário intitulado Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade (1986), de autoria do filósofo Marshall Berman. O próprio título do trabalho, que parte de uma metáfora de Karl Marx (1818-1883) para caracterizar a volatilidade dos valores, no chamado mundo burguês, indica que o autor buscou tratar de certas experiências culturais que estão na contramão de uma definição do moderno a partir de ênfases nas ideias de cálculo de interesse ou de que esse período foi estabelecido por forças puramente racionais. Chama a atenção de Berman, portanto, formas dialéticas do desenvolvimento europeu que mesclam tragédia humana e progresso; as ruas das metrópoles industriais transformadas em fonte de inspiração artística e o chamado modernismo do subdesenvolvimento. São Petersburgo, “a mais clara expressão da modernidade no solo da Rússia” (BERMAN, 1986, p. 170), erguida em meio a um pântano de difícil acesso, o que implicou em inúmeras perdas humanas, foi idealizada pelo Tzar Pedro I, em 1703, para ser um tipo de vitrine do luxo e distinção ostentados pela aristocracia russa. É nesse ambiente profundamente conservador que o modernismo russo, desde seus primórdios, apresenta-se vinculado a uma consciência bastante crítica que procurou trazer para a literatura a voz de 225
Anais suburbanos, estudantes pobres, burocratas de baixo escalão no serviço público, presos políticos, místicos, criminosos comuns e outros tantos sujeitos marginalizados pela então ordem feudal dominante. Embora seja um personagem bastante atormentado, sempre temendo ou lamentando as consequências de suas ações, o Homem do subterrâneo, de Dostoievsky, aspira por ter sua dignidade reconhecida na cidade em que vive. Esse anseio é bem ilustrado pela passagem na qual, após anos se sentindo humilhado por ter de ceder espaço para um oficial militar nas ruas, para não haver um choque de ombros, entre subalterno e um alto funcionário público em via pública, o protagonista do romance decide, de propósito, esbarrar nesse superior hierárquico em meio a uma Avenida Nevsky já tomada por reformas urbanas: Mas Dostoievsky é, aí, especialmente sensível ao mostrar com as nuanças da degradação emergem não das anormalidades de seu herói, mas da estrutura e operação normal da vida de Petersburgo. O Projeto Nevski é um moderno espaço público que oferece uma fascinante promessa de liberdade; e, no momento, para o funcionário pobre da rua, as configurações de casta da Rússia feudal são mais rígidas e humilhantes do que nunca. (Idem, p. 213- 14). Em linhas gerais, é neste pequeno gesto cotidiano de insubmissão – meticulosamente planejado – que reside a redenção do Homem do subterrâneo. De pária egoísta e covarde, esse indivíduo “agiu decisivamente para mudar a sua vida” (Idem, p. 217). Mesmo que a afronta ao poder, personificado no monólogo por um arrogante oficial militar, nunca mais se repita, essa atitude “dramatiza tão poderosamente a luta pelos direitos humanos – por igualdade, dignidade e reconhecimento – que Dostoievsky nunca poderia ter se transformado num escritor reacionário” (Idem, ibid.). O próprio Marshall Berman salienta que por mais que tenha se reconciliado com a igreja ortodoxa russa e Nicolau I, vários estudantes choraram copiosamente durante o enterro do escritor russo em 1881. Evidência, portanto, de que o modernismo, muitas vezes insólito, de Dostoievsky é portador de vigorosas sementes da rebeldia. Em se tratando do potencial da ficção do escritor austro-húngaro Franz Kafka (1883- 1924) para a exploração da temática do insólito enquanto promissor filão de estudos voltados para a história literária, optamos aqui por um diálogo entre A Metamorfose, romance-conto publicado em 1915, trechos do diário do autor escritos entre 1909 e 1923, bem como amostras da fortuna crítica já existente em torno da literatura kafkiana. 226
Anais Basicamente, a prosa de Kafka brotou de referenciais caóticos, de um testemunho pessimista e profético em torno da percepção da modernidade e do capitalismo burocrático enquanto alicerces de selvas de pedra nas quais todos travam uma luta solitária e egocêntrica contra todos. Personagens kafkianos constatam a brutalidade da ausência de sentido do mundo, mas são condenadas a compactuar até serem triturados pelas engrenagens que fazem funcionar uma irracional e opressora ordem dominante. Os diários de Kafka foram reunidos e publicados, pela primeira vez, em 1937, a partir de seleção feita por Max Brod, amigo pessoal do escritor, com o título Tagebücher und Briefe [Diários e cartas] pela editora Heinrich Mercy Sohn. A versão completa, também organizada por M. Brod, intitulada Tagebücher 1910-1923 [Diários 1910-1923], só veio a público em 1951. A edição traduzida para português, utilizada aqui, partiu do minucioso trabalho do tradutor Sergio Tellaroli que teve contato com os doze cadernos originais sem pauta, contendo de vinte a cinquenta páginas, além de nove folhas soltas, nos quais Kafka mesclou experimentações literárias, crítica cultural, observações do cotidiano e reflexões existenciais. Trata-se de uma excelente fonte de informações acerca do fazer literário do escritor na medida em que, justamente, não foi feito com o intuito de vir a público. Considerados, hoje em dia, marcos fundamentais do modernismo, esses textos intimistas possuem interessantes revelações acerca das motivações literárias de Kafka, que a partir de suas próprias convicções, registradas em outubro de 1921, será considerado aqui enquanto esteta do desespero: Ainda que meus recursos sejam miseráveis, “sob circunstâncias idênticas” até mesmo os mais miseráveis deste mundo (sobretudo considerando-se a fraqueza da vontade), cabe-me, com eles, e do meu ponto de vista, buscar alcançar o melhor; é um sofisma vazio dizer que, com esses recursos, eu só poderia alcançar uma coisa, o desespero, e que este seria, portanto, o melhor. (KAFKA, 2021, p. 636). Linhas escritas no auge de turbulências pessoais que afetavam a vida privada e a saúde do autor, morto precocemente por tuberculose, que apontam para o seguinte questionamento: o que significa extrair o melhor desse desespero? De fato, implica em transformá-lo em inspiração artística. Essa condição pessoal angustiante forneceu as lentes necessárias para que Kafka enxergasse, com desencanto, a crueldade por trás de uma modernidade sedimentada teoricamente em ideais libertários, mas que na prática promoveu 227
Anais uma padronização e controle bestial da condição humana que foi radicalizada mais ainda durante a ascensão dos Estados totalitários na Europa. A metamorfose, obra de ficção fantástica, com fortes elementos surrealistas, publicada originalmente em 1915, é iniciada da seguinte maneira: “Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto” (KAFKA, 2020, p. 02). Quer dizer, no universo ficcional de Kafka, o simples ato de despertar em um mundo industrial de tendências opressoras é bastante perigoso e insólito. A desconfiança radical dos pilares institucionais da ordem burguesa, como a família, a atividade policial e os dogmas religiosos, fizeram de Franz Kafka um escritor maldito cuja obra foi considerada proibida em países da Europa oriental mesmo sob ocupação de um dito Estado marxista como no caso do russo. Apesar da censura, a atualidade profética dessa literatura distópica fez com que Kafka seja “provavelmente o escritor deste século que mais cativa a imaginação moderna” (BRADBURY, 1989, p. 217). Os filósofos Gilles Deleuze e Félix Guatarri, em Kafka: para uma literatura menor (2003), propõem uma leitura da obra do escritor tcheco distanciada das perspectivas mais comuns, focadas nas questões do trágico e da culpabilidade e mais enfocada na temática da alegria e política. O fato dessa ficção com elementos surrealistas que conferem ao mundo burguês um sistema pessimista de coordenadas ter sido escrita por um judeu desterritorializado em solo europeu, tendo optado em representar aspectos desumanos da lei; a violência da autoridade patriarcal e a barbárie enquanto elemento fundante da cultura industrial, a tornam uma literatura menor no sentido de buscar dar voz para minorias; para os desajustados. Nesse sentido, o modernismo de Kafka é considerado politicamente revolucionário por esses comentadores (Cf. DELEUZE & GUATARRI, 2003). Esta breve e ensaística reflexão pretendeu fornecer elementos imprescindíveis para a exploração da temática do insólito a partir de cânones do modernismo que ocupam lugar de destaque artístico na chamada história literária. Conforme pode-se deduzir, o uso de recursos fictícios que visam questionar poeticamente a padronização de comportamentos, a subserviência ou complacência diante de ordens sociais e políticas autoritárias não invalida a literatura modernista enquanto testemunho histórico. Pelo contrário. Escritores como Dostoievsky e Kafka com suas terríveis visões sobre as humilhações enfrentadas pelas pessoas comuns, impotências cotidianas diante dos abusos de poder cometidos pela ordem dominante e a frágil distinção entre autoridades e criminosos forneceram valiosas representações simbólicas da psicologia do mundo contemporâneo. 228
Anais REFERÊNCIAS: BRADBURY, Malcolm. O mundo moderno: dez grandes escritores. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moisés {et. al.}. São Paulo. Companhia de Letras, 1986. DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Trad. Rafael Godinho. Lisboa: Alvim & Assírio, 2003. DOSTOIEVSKY, Fiodor. Notas do Subterrâneo. Trad. Moacir Castro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. FREUD, Sigmund. Escritos sobre literatura. Organização de Iuri Pereira. São. Paulo: Hedra, 2014. JONES, Howard M. Teoria da História Literária. Trad. Eglê Malheiros. Rio de Janeiro: Editora Lidador, 1965. KAFKA, Franz. Diários (1909-1923). Trad. Sérgio Tellaroli. São Paulo: Todavia, 2021. ____. A metamorfose. Belém/PA: UNAMA/NEAD, 2020. McFARLANE, James; BRADBURY, Malcolm. Modernismo: Guia Geral (1890-1930). Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 229
GUIMARÃES ROSA, MACHADO DE ASSIS E MARCOS FÁBIO BELO MATOS E AS MEMÓRIAS AMOROSAS UNIVERSAIS Evandro Abreu Figueiredo FILHO (UEMA)1 Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2 RESUMO Este trabalho assevera sobre as memórias amorosas universais e será embasado pelas obras Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; Dom Casmurro, de Machado de Assis; e Crônicas de Menino, do escritor maranhense Marcos Fábio Belo Matos. Destarte, o texto aborda dilemas sentimentais que Riobaldo vivenciava na sua relação com Diadorim, na primeira obra, e da obsessão, do ciúme, da amargura, dentre outros aspectos, que Bentinho sentia no seu relacionamento com Capitu no segundo romance. São dilemas subjetivos que ultrapassam o regional para se inscreverem como sentimentos humanos universais. As análises feitas, nas obras mencionadas acima, serão inter-relacionadas com passagens da narrativa Crônicas de Menino referentes aos casos amorosos vividos pelo autor/narrador na sua infância/adolescência, tendo por alicerce as três dimensões do amor: Eros, Philia e Ágape. Assim, busca-se a visão de como essas memórias amorosas são indispensáveis para a composição mais ampla de percepções memorialísticas universais em Crônicas de Menino. Nessa perspectiva, o escopo deste trabalho foi investigar as memórias amorosas universais em Grande Sertão: Veredas, Dom Casmurro e Crônicas de Menino. Dessarte, o artigo teve como questão norteadora: quais as memórias amorosas universais encontradas em Grande 1 Mestre em Letras com ênfase em Teoria Literária pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Ciência da Literatura pela UEMA/UFRJ. E-mail: [email protected] 230
Anais Sertão: Veredas, Dom Casmurro e Crônicas de Menino? Para a elaboração deste constructo, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, tendo por base textos de teóricos, como: Assis (2016), Rosa (2001), Fromm (2015) e Matos (2005). Assim, percebeu-se que o Amor e outros sentimentos humanos são construídos pelos autores Rosa, Assis e Marcos Fábio a partir do Regional, mas que transcendem para se inserirem no Universal. Palavras-Chave: Memórias amorosas universais. Literatura maranhense. Dimensões do amor. ABSTRACT The present study assert about the universal loving memories and it is based on the works of Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa; Dom Casmurro, Machado de Assis; and Crônicas de Menino, of the maranhense writer Marcos Fábio Belo Matos. Thus, the article approches sentimental dilemmas, in the relationship between Riobaldo and Diadorim, in the first work, of the obssession, the jelous, the bitterness, among other aspects, that Bentinho felt in his relationship with Capitu in the second romance. These subjective dilemmas overtake the regional in order to subscribe as universal humans feelings. The analysis done, on the woks mentioned above, will be inter-related with narrative passages of Crônicas de Menino regarding love affair experienced by the author/narrator in his childhood/adolescence, having as foundation the three dimensions of love: Eros, Philia and Ágape.Therefore, we search the view how those memories of love are indispensable to compose a wide universal memorialistic perceptions in Crônicas de Menino. In this way, the article had as guiding question: which universal loving memories were founded in Grande Sertão: Veredas, Dom Casmurro and Crônicas de Menino? The elaboration of this construct, we have used a bibliographic research, based on theoretical text, such as: Assis (2016), Rosa (2001), Fromm (2015) and Matos (2005). As a result, we realized that The Love and other humans feelings are construtecd by the authors Rosa, Assis and Marcos Fábio from regional, but they transcend to be inserted in the Universal. Keywords: Universal Loving Memories. Maranhense Literature. Dimesion of Love. Considerações Iniciais O propósito deste artigo, no que se refere aos dilemas sentimentais, as memórias amorosas universais e as dimensões do amor em Grande Sertão: Veredas (2001), Dom Casmurro (2016) e, consequentemente, na analogia feita com Crônicas de Menino (2005), pauta-se nos pressupostos de que os mais diversos sentimentos, vingança, medo, ódio, amor, saudade, arrependimento, ciúme, amargura, solidão, obsessão, presentes em maior ou menor escala nas obras, compõem a memória individual e, posteriormente, a cultural dos indivíduos. Tais sentimentos são comuns a todas as pessoas, se universalizam e trazem à tona reminiscências que marcam para sempre os sujeitos. 231
Anais O mesmo pode ser percebido no tocante às dimensões do amor: Eros, Philia e Ágape. Cada uma é responsável por administrar, cotidianamente, nas pessoas, esse sentimento indispensável à humanidade. O primeiro, extremamente passional, sexual, pode ser percebido de duas formas: Eros Vulgar, terreno, e Eros Divino, platônico, sem contato físico. Já o segundo é voltado mais para a amizade, o carinho, externado à família e aos amigos, é sólido, pois constrói parcerias, elos significativos. O terceiro, por sua vez, se estabelece a partir da perspectiva de um amor puro, desinteressado, visa à coletividade, à humanidade. Destarte, no livro Crônicas de Menino (2005), alguns desses sentimentos alocados e as dimensões do amor aparecem, gradativamente, na narrativa e estabelecem inter-relações que perpassam do regional ao universal, e isso, através da memória individual, gera uma transmissão da identidade cultural ou coletiva a pessoas que, consequentemente, compartilham essas lembranças. Guimarães Rosa e Machado de Assis e as Memórias Amorosas Universais O romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, pertence à Geração de 45 do Pós-Modernismo brasileiro e é considerado uma das narrativas que mais contributos deixaram para o cenário literário mundial. A obra possui particularidades marcantes: a linguagem e a originalidade, estas que receberam e recebem muitos elogios por críticos da literatura do mundo inteiro, presentes no estilo da personagem Riobaldo, principalmente quando rememora o amor reprimido por Diadorim, seus medos, suas angústias e suas lutas. Com relação ao título do livro Grande Sertão: Veredas, deve-se ter em mente que o grande Sertão expressa, além de um espaço geográfico, uma série de outros significados que ligam o homem ao seu contato com o meio ambiente; assim, em muitas passagens, a narração deixa de lado o tom de reprodução para dar lugar a aspectos contados fielmente já que o romancista nasceu no Sertão e pôde rememorar elementos por ele vividos. Nesse cenário, faz-se essencial uma abordagem sobre as memórias amorosas universais em Grande Sertão: Veredas, ao se falar sobre os dilemas sentimentais de Riobaldo com relação à Diadorim. Nessa vertente, a mente do jagunço estava desordenada, cheia de questionamentos, angústias, por causa do amor impossível que este sentia por ela. A partir dos sentimentos guardados por Diadorim, nascem temas universais, comuns a todas as pessoas, como: a vingança, o medo, o ódio, o amor, a saudade e o arrependimento. 232
Anais Uma boa parte desse mosaico de sentimentos e das aflições de Riobaldo surge através do caráter de ambiguidade de Diadorim, que apresenta questões maniqueístas e acaba por introduzi-lo no ambiente jagunço, pois ela também é nomenclaturada como Reinaldo, já que se traveste de homem para se inserir na jagunçada, e, desse modo, o amor entre eles não poder ser concretizado, primeiramente por Riobaldo não saber da verdade, e depois, já sabendo do mistério que o seu amigo/amor carrega, para que a sua verdadeira identidade não possa ser descoberta. Nessa perspectiva, Pereira cita: A necessidade de reviver os caminhos traçados ao lado do amigo conduz o protagonista a uma travessia memorialística pelo Sertão. Diadorim, personagem ambígua, configura-se, concomitantemente, como luz e sombra, desejo e repulsa, ordem e desordem, visto que é ele quem encaminha o narrador para o universo jagunço, assim como é sua lembrança que organiza o imaginário narrativo de Riobaldo. (PEREIRA, 2012, p. 12). Nessas circunstâncias, Riobaldo perpassa por um turbilhão de emoções por causa do sentimento que alimenta por Diadorim, dentre eles o medo; assim, aparece o medo da guerra, o medo do “Demo” e o medo contra si próprio. Ele, posteriormente, descobre que Diadorim é, na verdade, uma mulher, porém, com medo da revelação e do impacto que causaria no ambiente rude e masculinizado do Sertão, sofre durante toda a narrativa e só revela a verdade no final para o doutor que mantém com ele um diálogo/monólogo no romance. Com relação ao Amor, outro tema universal presente em Riobaldo, devido ao seu tumulto mental ocasionado por Diadorim, este pôde vivê-lo três vezes: com a própria Diadorim, com Nhorinhá e com Otacília; nesse contexto, um complementa o outro, um nutre o outro, pois o amor platônico pela jagunça é concretizado de maneira carnal com a segunda e experimentado quase que devocionalmente, por meio de oração, com a terceira. Assim, Riobaldo vê em Otacília a oportunidade de dizimar os seus muitos pecados e de manter uma vida serena, pacata, longe dos conflitos, através das preces feitas por ela. Os amores experienciados por Riobaldo podem ser percebidos através das dimensões do Amor que, ainda, serão abordados neste artigo: o Eros, no seu relacionamento com a prostituta Nhorinhá, quando se materializa a paixão entre o homem e a mulher, quando o Amor passa a ser sensual e carnal, representado pelo sexo; o ágape, na sua união com Otacília, quando há um Amor puro, genuíno, livre de interesses pessoais, um Amor santo e cheios de sacrifícios; e o Amor Philia, na sua relação com Diadorim, que é caracterizado por um Amor entre 233
Anais amigos, familiar, mas que se transforma posteriormente em platônico, chamado também de Eros divino. Nesse último caso, Riobaldo queria manter com Diadorim um Amor Eros, porém, como este não foi concretizado, ele a tratou como irmão e, em razão disso, sofreu bastante. Outros temas universais em Riobaldo, e que têm forte ligação com o seu desajuste emocional oriundo do convívio e das lembranças de Diadorim, são o ódio, a vingança e a saudade. Estes sentimentos surgem quando os jagunços Hermógenes e Ricardão assassinam Joca Ramiro, pai de Diadorim, e Riobaldo faz um pacto com a sertanista para vingar a sua morte. Desse modo, combateram até que, no final, na batalha do Paredão, Hermógenes e Diadorim tombaram, e isso levou ao desespero Riobaldo que não teria mais o seu grande amor lutando ao seu lado nem compartilhando aventuras no sertão; destarte, a saudade surge e, com ela, as reminiscências são narradas pelo velho fazendeiro ao doutor (ROSA, 2001). Nessa abordagem, deve-se observar que, por causa da impossibilidade de amar Diadorim, Riobaldo volta-se para outras questões com o intuito de desviar o seu pensamento da jagunça, o que gera essa miscelânea de abordagens comuns a todas as pessoas, como as temáticas já mencionadas neste texto. Referente à obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, ela foi publicada pela primeira vez em 1899 e faz parte da escola realista, no Brasil, que predominou na segunda metade do século XIX. Tal escola e obra são caracterizadas pela crítica social latente a algumas instituições, como a burguesia, a monarquia e o clero. Nessa perspectiva, o título do livro, que possui 148 capítulos, é explicado pelo próprio narrador já com a idade um pouco avançada; destarte, ele diz que recebeu de um poeta iniciante o epíteto de Dom Casmurro, pois este, ao tentar ler alguns de seus versos a ele, foi surpreendido pelo cochilo de Bentinho no decorrer da leitura. Chateado, o poeta começou a chamá-lo de Casmurro que significa “fechado em si mesmo”, “que não demonstra alegria em nada”; em outras palavras, é uma crítica ao burguês, sonolento, cansado de não fazer nada, pois evitava o labor e vivia ocioso socialmente. A narrativa também polemiza sobre o caráter de Capitu, esposa de Bentinho, que, por ataques sucessivos de ciúmes por parte deste, é vista, por vários leitores, como adúltera; no entanto, o autor não explicita, no texto, se ela realmente traía o seu esposo. Esse ciúme deriva de um complexo de inferioridade de Bento Santiago que provém de uma personalidade com características dele ser um “menino eterno” ou “puer aeternus” já que não consegue se desvencilhar da proteção e do cuidado da sua mãe, dona Glória; nessa vertente, ele usa esse distúrbio como um sistema de defesa. Dessa forma, Capitu é vista como uma personagem 234
Anais forte, decidida e é a detentora dessa fragilidade da alma de Bentinho que, por não ter controle da situação, acaba por sucumbir ao ciúme (GRINBERG, 2000). Nesse cenário, assim como ocorre com Riobaldo e a influência marcante de Diadorim na sua existência em Grande Sertão: Veredas, a personagem Bento Santiago, de Dom Casmurro, desconfiado da fidelidade de Capitu, também traz, em suas memórias amorosas, temas universais comuns que podem servir não somente para um homem velho da cidade do Rio de Janeiro, casado com uma mulher, possuidora de “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, mas para todos que têm a sensação da presença de uma pessoa adúltera ao seu lado; assim, essas temáticas são, além do ciúme, já falado acima, a amargura, a neurose, a solidão, a obsessão e o parasitismo social já que Bentinho não trabalha, vive de renda. O narrador de Dom Casmurro neurótico, amargurado e obsessivo surge a partir da habilidade de Machado de Assis em conduzir as análises sobre o psicológico das suas personagens; Capitu manipula Bento Santiago a ponto deste, movido pelo Amor, representado pela dimensão Eros, e pelo ciúme doentio, não controlar a sua mente, muitas vezes fugindo um pouco da realidade. Nesse sentido, tudo passa a girar naquilo que ele acredita e não no que, de fato, acontece, daí as incertezas pairarem acerca da suposta traição de Capitu visto que não se conhecem os episódios contados na visão dela. Todo esse conjunto de temas amorosos universais, inerentes ao romance, e o clima nada amistoso no casamento, por vezes Capitu pede o divórcio, acabam por deixar o narrador solitário posto que, cheio de dúvidas e angústias, manda Capitu e Ezequiel, seu filho, para a Suíça a fim de tentar organizar a sua mente e a sua vida. Capitu manda-lhe cartas saudosas, afetuosas e sem ódio; porém, Bentinho, ainda motivado pelo ciúme obsessivo, responde a ela friamente. Com a morte de Capitu, Bento Santiago continua amargurado e cheio de neuroses, principalmente relacionadas ao ciúme, pois, com o regresso de Ezequiel, ele percebe traços de Escobar em seu rosto. Nesse ambiente, a amargura é tão grande que, quando o filho, formado em Arqueologia, pede dinheiro a ele para realizar uma viagem de pesquisa pelo Oriente, o narrador diz “antes lhe pagasse a lepra” (ASSIS, 2016, p. 182). Ezequiel não morreu de lepra, mas de tifo; isso aumenta mais a solidão de Bentinho. As Dimensões Universais do Amor Quando se fala em Amor, é fulcral a necessidade de se entender questões relacionadas às suas dimensões a fim de que não haja confusão sobre a linha demarcatória de cada uma. 235
Anais No sentido amplo, a palavra está atrelada a um relacionamento longevo, quiçá permanente, com outra pessoa e, também, a um forte sentimento, quase inexplicável, quando se está diante dessa pessoa. Conforme essa visão, o Amor pode ser calmo, sereno, harmônico, mas também pode ser violento, opressor e obsessivo; nos dois casos, há a certeza de que todos os indivíduos já viveram, vivem ou viverão esse sentimento. Já semanticamente, o vocábulo Amor possui inúmeros significados. Assevera-se sobre Amor a uma mulher ou a um homem, Amor de amigos, Amor pela humanidade, Amor pela família, por irmãos, pelo seu país, Amor pelo trabalho, Amor a Deus, ao próximo, enfim a muitas coisas, objetos ou animais; porém o que se sobressai como o modelo a ser seguido é o Amor entre um homem e uma mulher, ou seja, que entrecruzam o corpo e a alma em busca de uma felicidade arrebatadora. Dessa maneira, os demais sentidos do termo parecem se esconder por trás deste, o que dá a entender que eles não existem ou não têm importância os seus conhecimentos (BENTO XVI, 2005). Nessas circunstâncias, três são as dimensões universais do Amor que devem ser levadas em consideração: Eros, Philia e Ágape, elas são responsáveis por gerir esse sentimento nos sujeitos, nas mais variadas situações do dia a dia. O Amor Eros expressa a concepção de Amor entre um homem e uma mulher em que prevalece um imenso desejo passional, sexual, sensual, além do indivíduo ser dominado pelo deleite, pela satisfação e pelo prazer carnal. Já o Amor Philia é aquele voltado para a sua família e amigos; por fim, o Amor Ágape volta-se para a humanidade, para causas existenciais. Desse modo, o Amor Eros dissemina a percepção do desejo efetivado entre duas pessoas que se atraem e se envolvem e, também, o sentido da sensualidade, além de, em muitos casos, significar apenas prazer, gozo. Nesse cenário, o Amor erótico é o desejo exacerbado da união, da fusão com outro indivíduo; não tem o caráter social, coletivo, mas sim exclusivo, o que o torna, em muitas situações, a dimensão de Amor mais enganosa que existe já que individualiza e, às vezes, se torna obsessiva, como o que ocorreu com Bento Santiago e Capitu, em Dom Casmurro (FROMM, 2015). Outra informação relevante, referente ao Amor Eros, é a divisão dessa dimensão proposta, na obra de Platão O Banquete, por Pausânias; este divide esse Amor em Eros Vulgar, ou Amor terreno, e Eros divino, ou Amor divino. Para ele, o primeiro é uma atração pela beleza de um indivíduo com o intuito de se chegar ao prazer físico e à procriação; já o segundo, parte da atração física, entretanto evolui para um Amor cuja essência é análoga ao divino. Assim, a partir do Eros divino, há uma progressão para o Amor platônico, aquele em 236
Anais que não existe a concretização de uma relação amorosa por inúmeros motivos, ou também pode ser um Amor não correspondido, daí ser considerado difícil e impossível (MARQUES, 2010). No que se refere ao Amor Philia, este é entendido como uma sensação de empatia natural, de extensa amizade, estima, de carinho, dado aos amigos e a familiares. Esta dimensão do Amor é um sentimento resistente, sólido e profundo do coração que dissemina parcerias, companheirismo e propaga os mais nobres afetos entre os entes queridos. O Amor Philia possui como características: a lealdade, a sinceridade, a reciprocidade, a gentileza, o bem-estar das outras pessoas; assim, quando não existe mais o brilho do Amor Eros, é o Amor Philia que continua a manter os casais juntos. A última dimensão de Amor existente é o Ágape que se exterioriza, a priori, nos seguintes formatos: Amor de Deus ao homem, Amor do homem a Deus e, posteriormente, Amor do homem ao seu próximo; nessa conjectura, existem algumas características para esse Amor, como: é um Amor genuíno, puro, é desinteressado, pois não visa a interesses próprios, mas coletivos, ligados à humanidade; é intransponível, invencível, não escolhe a quem amar, ou seja, para essa dimensão amorosa, até o mais execrável dos indivíduos é digno de ser amado. Na visão do apóstolo Paulo, o Amor Ágape não é insensato, inconstante, leviano, não se envaidece, ensoberbece, não é injusto, não deseja o mal, é caridoso, piedoso, é sereno. Para ele, essa dimensão por tudo se atormenta, em tudo acredita, confia, em tudo espera e suporta. Nessa perspectiva, esse Amor é originado em Deus que o publiciza aos Seus seguidores, e estes fazem desses ensinamentos a lição, o alimento do dia a dia; desse modo, essa dimensão acaba por retomar a Ele. Dimensões do Amor em Crônicas de Menino A obra Crônicas de Menino apresenta, de certa forma, umas, em menor escala, outras, em maior, as três dimensões do Amor mencionadas acima nesta dissertação. No livro, o autor Marcos Fábio Belo Matos aborda o Amor Eros, representado pelo Eros divino (Amor platônico), colocado por Pausânias em O Banquete, de Platão, em algumas passagens da crônica; aparece também, em muitos trechos do livro, o Amor Philia (dimensão que se exterioriza com mais frequência); e, em apenas uma crônica, surge a dimensão Ágape. 237
Anais Com relação ao Amor Eros, a obra não aborda esta dimensão com as características iniciais dela, ou seja, a presença da sensualidade e do amor carnal, presentes em Grande Sertão: Veredas, simbolizado pelo relacionamento de Riobaldo com a prostituta Nhorinhá, e em Dom Casmurro, refletido pela relação doentia, ciumenta entre Bentinho e Capitu, esse fato é facilmente explicado porque se trata de um livro voltado para um público infantojuvenil. Nessa perspectiva, Marcos Fábio traz, para Crônicas de Menino, o Eros divino ou Amor platônico em duas narrativas: Meninas e Sesi. O autor menciona na sua crônica Meninas: Meninas eram o alvo de todas as nossas atenções. Não havia muitas no grupo que eu frequentava. Mas as que andavam por lá eram bem bonitinhas!... As meninas com quem eu convivia eram do Sesi ou da igreja. As da minha rua eram poucas, quase todas mais velhas que eu. Algumas meninas me arrancaram paixões infantis. E ficaram lá no fundinho da lembrança, uma doce saudade de irrealizações. (MATOS, 2005, p. 49). Desse modo, percebe-se um Amor não concretizado, guardado na memória do narrador, transcendental, preso no mundo das ideias, como idealizado por Platão; estas mesmas particularidades aparecem também na crônica Sesi apresentada a seguir: [...] Enquanto vivi em Bacabal, vivi no Sesi. E por lá aprendi um monte de coisa boa. Por lá conheci e convivi com os meninos e as meninas de quem até hoje tenho saudades. Por lá me apaixonei um monte de vezes, vivi alguns namoricos e muito platonismo [...] (MATOS, 2005, p. 43). Percebe-se claramente uma inter-relação entre o Eros, de Matos, e o Eros, de Guimarães Rosa visto que ambos são platônicos. Em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo vive o seu platonismo de forma dolorosa, pois, no primeiro momento, pensa ser Diadorim/Reinaldo, homem; posteriormente, ao saber da verdade, não pode assumir o relacionamento com medo dela ser descoberta pelos outros jagunços e ser expulsa do bando. Assim, Rosa comenta: Digo, porque até hoje tenho isso tudo do momento riscado em mim, como a mente vigia atrás dos olhos. Por que, meu, senhor? Lhe ensino: porque eu tinha negado, renegado Diadorim, e por isso mesmo logo depois era de Diadorim que eu mais gostava. A espécie do que senti. O sol entrado. (ROSA, 2001, p.123). O Eros sensual, carnal, também chamado de Eros vulgar, não é discutido em Crônicas de Menino como em Grande Sertão: Veredas e Dom Casmurro. No primeiro romance, esse 238
Anais amor é compreendido pelas mãos de Riobaldo e da prostituta Nhorinhá, esta que satisfazia os desejos sexuais, ardentes, de Riobaldo visto que ele não podia viver toda essa volúpia com Diadorim/Reinaldo. Nessa direção, Rosa esclarece: Consoante, outras, as mulheres livres, dadas, respondem: — “Dorme- comigo…” Assim era que devia de haver de ter de me dizer aquela linda moça Nhorinhá, filha de Ana Duzuza, nos Gerais confins; e que também gostou de mim e eu dela gostei. Ah, a flôr do amor tem muitos nomes. Nhorinhá prostituta, pimenta branca, boca cheirosa, o bafo de menino-pequeno. Confusa é a vida da gente; como esse rio meu Urucúia vai se levar no mar. (ROSA, 2001, p. 121). Em Dom Casmurro, o Amor Eros é representado pela obsessão, pelo ciúme doentio de Bentinho por Capitu. Antes do casamento, os dois enamorados lutam contra tudo e todos para ficarem juntos, mas, quando isso acontece, Bento Santiago surge como uma figura insegura, infeliz, possessiva e ciumenta, o que acaba por destruir a sua família. Nessa vertente, Barthes comenta sobre o ciúme que, para ele, nasce de o medo da pessoa extremamente apaixonada perder o seu posto, ser preterida por outro. Dessa forma: Como ciumento, sofro quatro vezes porque sou ciumento, porque me reprovo por sê-lo, porque temo que meu ciúme fira o outro, porque me deixo sujeitar por uma banalidade: sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum (BARTHES, 2003, p. 69). Em Crônicas de Menino, o Amor Philia aparece em vários trechos da obra, como nas crônicas A Serraria e Dona Conceição. Nessa perspectiva, seguem algumas passagens com a presença dessa dimensão: “[...]Paizinho tinha também uma carroça, com a qual ia pegar casca de arroz para fazer caeira – caeira é um monte de madeira coberta com casca de arroz, para fazer carvão[...]”; Paizinho era o nome carinhoso que todos chamavam o avô do narrador. “[...] Quando ele passava lá em casa, não tinha jeito: desvencilhava-me do que estivesse fazendo e ia com ele pegar a carrada lá na usina. Às vezes, ia embaixo, no eixo, perto do rabo do cavalo [...]”. “[...] Outras vezes, ele me dava a felicidade de ir em cima, segurando o cabresto e guiando a carroça. Ia orgulhoso, sorriso nos lábios e acompanhado pelo olhar amoroso do meu avô[...]” (MATOS, 2005, p. 45 – A Serraria). Nessa abordagem, o Amor Philia, como já mencionado antes, caracteriza-se pelo Amor aos amigos e, no caso da crônica A Serraria, a familiares. 239
Anais Já em Dona Conceição: “Dona Conceição era professora particular, ensinava na casa dela, uma casa simples, mas muito aconchegante [...]. Logo que chegávamos, tínhamos que tomar-lhe a benção. De início, fazíamos por respeito. Depois, por respeito e um sentimento familiar[...]” “[...] Ceição ensinava com amor e atenção [...]” “[...]Dia desses encontrei Ceição na rua. Parei o carro e fui falar com ela. Mostrei-lhe minha filha. Desejei-lhe felicidades. Dei- lhe uns dois abraços. Mas antes de tudo, tomei-lhe a benção.” (MATOS, 2005, p. 59). Nessa narrativa, Marcos Fábio assevera sobre o amor a uma antiga professora, que se transformou em amiga e, consequentemente, o autor passou a vê-la como um familiar. A obra Dom Casmurro não apresenta o Amor Philia. No entanto, Grande Sertão: Veredas aborda essa dimensão ainda na interação entre Riobaldo e Diadorim quando aquele não sabia o segredo guardado por este que, para vingar a morte do seu pai, Joca Ramiro, teve que se vestir de homem e viver junto com a jagunçada pelos sertões de Minas Gerais. Dessa maneira, o Amor Philia em Rosa simboliza os mesmos aspectos abordados por Matos, ou seja, o Amor por amigos, no caso de Marcos Fábio também o Amor pela família. Com relação ao que foi falado, Rosa lembra: Aprendi a medir a noite em meus dedos. Achei que em qualquer hora eu podia ter coragem. Isso que vem, de mansinho, com uma risada boa, cachaça aos goles, dormida com a gente encostado em coronha de sua arma. O que carece é a companheiragem de todos no simples, assim irmãos. Diadorim e eu, a sombra da gente uma só uma formava. Amizade, na lei dela. Como a gente estava, estava bem (ROSA, 2001, p. 152). O Amor Ágape aparece, de modo tímido, somente em um trecho no livro Crônicas de Menino: “[...]Mamãe teve uma crucial influência na minha formação. Tinha pouco estudo, mas muita vivência, uma fantástica experiência de vida, uma formidável capacidade de dar conselhos certos. O seu senso de humanidade, de respeito e de justiça carrego ainda hoje[...]” (MATOS, 2005, p. 53 - Mamãe). Destarte, aparece o Amor pela humanidade na presença da mãe do narrador ao aconselhar as pessoas e, consequentemente, tentar melhorar o mundo, característica fulcral dessa dimensão do Amor. O Amor Ágape não aparece em Dom Casmurro, mas está consolidado em Grande Sertão: Veredas na figura de Otacília que representa o Amor puro e verdadeiro de Riobaldo. Por esta análise comparativa das obras Grande Sertão, Dom Casmurro e Crônicas de menino, ficou demonstrado que o Amor e outros sentimentos humanos são construídos pelos 240
Anais autores Rosa, Assis e Matos, respectivamente, a partir de experiências humanas regionais, mas que tais afetos transbordam este limite para se inserirem na perspectiva Universal. Considerações Finais O escopo deste artigo foi analisar as memórias amorosas universais e as dimensões do amor em Grande Sertão: Veredas (2001) e Dom Casmurro (2016) e suas inter-relações com Crônicas de Menino (2005). Assim, fundamentou-se na análise de que as diversas catarses que aparecem nas duas obras, vingança, medo, saudade, amor, ódio, amargura, solidão, obsessão, constituem reminiscências individuais e, em seguida, as coletivas ou culturais dos sujeitos a partir de uma regionalidade até atingir o aspecto universal. A pesquisa buscou também conhecer, de forma mais aprofundada, as três dimensões do amor: Eros, Philia e Ágape, sentimento este fulcral para os sujeitos pertencentes a uma sociedade. As temáticas discutidas neste trabalho científico não se encerram aqui, há ainda muitas outras abordagens a serem trabalhadas e bastantes autores maranhenses que, ainda desconhecidos, precisam estar a aparecer para o grande público, para os leitores, pesquisadores, professores. A literatura maranhense é rica, cheia de nuances e percepções, estas se intertextualizam com outras literaturas do passado e do presente e deixam contributos sociais fundamentais para o crescimento dos sujeitos aptos por conhecimentos. REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2016. BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fonseca, 2003. BENTO XVI. Carta encíclica Deus Caritas Est. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2005. FROMM, Erich. A arte de amar. São Paulo: Martins Fontes - selo Martins. 2015. GRINBERG, Luiz Paulo. A traição de Bentinho: um estudo sobre a psicopatologia do ciúme e da traição. Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. São Paulo, n. 18, p. 67 – 76, 2000. MARQUES, Marcelo P. Amor platônico. Revista Cult, São Paulo, v. 146, mai. 2010. MATOS, Marcos Fábio Belo. Crônicas de Menino. São Luís: Banco do Nordeste, 2005. 241
Anais PEREIRA, Fernanda Perpétua. As trímeras de Riobaldo: a constituição de uma personagem como narrador. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. São José do Rio Preto – SP, p. 119. 2012. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 242
SÍMBOLOS ATRÁS DA PORTA: UMA REFLEXÃO SIMBÓLICA E PSICANALÍTICA SOBRE O QUE ESTÁ DO LADO DE DENTRO Dayanna Roberta Costa da ROCHA (UEPA)1 Izabelly Reis LOUREIRO (UEPA)2 Raphael Bessa FERREIRA (UEPA)3 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo principal centrar-se na observação das manifestações líricas presentes nos poemas musicados “Atrás da Porta”, de Francisco Buarque de Hollanda e Francis Victor Walter Hime, e “Do Lado de Dentro”, de Marcelo Camelo de Sousa, a fim de demonstrar como essas duas construções trazem em seu repertório a possibilidade de temas capazes de criar uma paisagem metafísica em um chamado universo imaginário próprio do autor e que são recorrentes ao longo de toda produção. A relevância deste estudo evidencia- se em buscar a imagem da visão feminina nesses textos poéticos contemporâneos. Dessa forma, pode-se destacar a criação desse todo a partir do elemento simbólico “porta” nas 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa e Suas Respectivas Literaturas pela UEPA. Especialista em Língua Portuguesa e Análise Literária pela UEPA. Graduada em Letras - Habilitação em Língua Portuguesa - pela UFPA. E-mail: [email protected] 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa e Suas Respectivas Literaturas pela UEPA. Especialista em Saberes, Linguagens e Práticas Educacionais na Amazônia pelo IFPA. Graduada em Letras - Habilitação em Língua Portuguesa - pela UFPA. E-mail: [email protected] 3 Doutor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Língua Portuguesa pela USP. Mestre em Literatura Brasileira pelo CES/JF. Graduado em Letras pela UNAMA. E-mail: [email protected] 243
Anais canções citadas, permitindo o recurso linguístico da intertextualidade, uma das ferramentas que viabiliza a ideia comunicativa entre obras, a partir de um fio condutor, como o jungir de elementos, com o propósito de estabelecer uma relação entre elas a partir da perspectiva psicanalítica e simbólica. A análise leva em conta uma abordagem temática da porta como uma espécie de paisagem sentimental metafórica e ambígua de aprisionamento consensual e de liberdade conquistada pela figura feminina. Para embasar tal estudo, serão utilizados autores como Sigmund Freud, através de suas Obras completas (2014); A simbologia da porta, por Chevalier e Gheerbrant (2007) e A poética do espaço em Bachelard (1958). Palavras-chave: Porta. Psicanálise. Relação Amorosa. Submissão. Liberdade ABSTRACT The main objective of this work is to focus on the observation of the lyrical manifestations present in the poems set to music “Atrás da Porta”, by Francisco Buarque de Hollanda and Francis Victor Walter Hime, and “Do Lado de Dentro”, by Marcelo Camelo de Sousa, in order to demonstrate how these two constructions bring in their repertoire the possibility of themes capable of creating a metaphysical landscape in a so-called imaginary universe of the author and which are recurrent throughout the entire production. The relevance of this study is evident in seeking the image of the feminine vision in these contemporary poetic texts. In this way, the creation of this whole can be highlighted from the symbolic element porta in the aforementioned songs, allowing the linguistic resource of intertextuality, one of the tools that enables the communicative idea between works, from a guiding thread, such as the joining of elements, in order to establish a relationship between them from a psychoanalytic and symbolic perspective. The analysis takes into account a thematic approach to the door as a kind of metaphorical and ambiguous sentimental landscape of consensual imprisonment and freedom conquered by the female figure. To support this study, authors such as Sigmund Freud will be used, through his Complete Works (2014); The symbology of the door, by Chevalier and Gheerbrant (2007) and The poetics of space in Bachelard (1958). Key-words: Door. Psychoanalysis. Loving relationship. Submission. Freedom. Considerações iniciais A canção “Atrás da porta”, dos compositores Francisco Buarque de Hollanda e Francis Victor Walter Hime, assim como “Do lado de dentro”, composta por Camelo Marcelo de Souza apresentam o recurso linguístico da intertextualidade, uma das ferramentas que viabiliza a ideia comunicativa entre obras a partir de um fio condutor, como o jungir de elementos, com a intenção de estabelecer uma relação entre elas. Essas duas construções trazem em seu repertório a possibilidade de temas capazes de criar uma paisagem metafísica num chamado universo imaginário próprio do autor e que são recorrentes ao longo de toda produção. Dessa forma, pode-se destacar a criação desse 244
Anais todo a partir do elemento simbólico porta nas canções citadas. Em ambas as composições, o elemento exibe uma espécie de transição de ambiente, de um estar fora para um estar dentro; de um elemento que fecha e deve ser aberto e que também deve ser fechado se estiver aberto; uma espécie de zona de conforto e/ou zona de desconforto, como se fosse a demonstração de um ritual de passagem ou mesmo a representação medieval do bem e do mal. Além disso, há a indicação de utilidade de delimitação de um espaço físico para um espaço único de acesso, sendo possível dar mais importância ao elemento quando pensado na presença ou ausência do mesmo. As ideias que permeiam essa produção acadêmica abrangem a possibilidade de um olhar não voltado tão somente ao plano do conteúdo, de modo que seja centralizado apenas na análise dos aspectos histórico e social da figura feminina, mas também que sejam alicerçadas no plano expressivo, ou seja, no plano da forma, permitindo o desvendar das camadas interpretativas e de composição das duas obras, exibindo as habilidades e estratégias trazidas pelos autores, assim como os estratos sensíveis da estruturação das escolhas e seleções vocabulares presentes. Dessa forma, configurando-se no alinhar dos dois planos, tanto o do conteúdo quanto o da forma, como o parâmetro solicitado pela BNCC - Base Nacional Comum Curricular - garantindo a oportunidade de leituras variadas no ambiente escolar, a apresentação do estilo particular do autor, o esmiuçar dos versos e com tudo isso a amplitude de análises. Sendo assim, cabe ao presente trabalho analisar a influência da simbologia da porta como um elemento de destaque que configura, de forma expressiva, o ritmo da relação amorosa presente nas duas composições acima citadas, bem como a conduta feminina no que diz respeito à tensão vivida dentro de uma relação erótica e sensualizada, mas marcada de pelo sofrimento amoroso da partida o que trará à tona o caráter psicanalítico de análise. Para isso, o uso de autores como Sigmund Freud, através de suas Obras completas (2014); A simbologia da porta, por Chevalier e Gheerbrant (2007) e A poética do espaço em Bachelard (2009) estarão fundamentando essa produção. Quanto ao desenvolvimento da pesquisa, a mesma se fará da seguinte maneira: apresentar-se-á por meio de subtópicos os versos de ambas as composições Atrás da porta 4 e Do lado de dentro 5 que demonstrem, primeiramente, a perspectiva de análise do elemento 4 https://www.letras.mus.br/chico-buarque/45113/ 5 https://www.letras.mus.br/los-hermanos/67556/ 245
Anais simbólico porta e, segundamente, a interpretação psicanalítica do estado tensivo do eu lírico alinhado ao encontro do universo criado a partir do elemento simbólico, a fim de observar momentos em que se extraiam a paisagem sentimental metafórica e ambígua de aprisionamento consensual e de liberdade conquistada pela figura feminina. A imagem simbólica da porta: criação de um universo imaginário em trânsito Em A poética do espaço, de Gaston Bachelard, reconhece-se um tratado poético sobre as imagens desencadeadas a partir de diferentes lugares recorrentes na literatura: a casa, o porão, o sótão, a cabana, a gaveta, o cofre, o armário, o ninho, a concha e o canto. Com ênfase na representatividade da vida e das relações afetivas desses locais no texto literário. Bachelard afirma que, através do locus, pode-se chegar a uma fenomenologia da imaginação, de modo a conhecer a imagem em sua origem, em sua essência e pureza (BACHELARD, 2009, p. 20). Desse modo, o autor defende a análise interdisciplinar, unindo Literatura, Filosofia e Psicologia, especialmente quando trata do papel do fenomenólogo, o qual deve fazer, como tarefa primeira, “o esforço preciso para compreender o germe da felicidade central, seguro e imediato, de modo a encontrar a ‘concha inicial’ em toda moradia, mesmo no castelo” (BACHELARD, 2009, p.199). Sendo assim, vislumbrar o papel da porta nas produções apresentadas requer uma busca ao cerne dessa concha inicial, representada pela moradia em que esse portal se encontra. Em ambas as canções aqui analisadas, esse germe da felicidade central pode ser compreendido como os lares em que dois casais, que partilham de uma relação amorosa, vivem ou viveram juntos. Na obra de Camelo, tem-se a menção a um castelo. Na de Chico Buarque e Francis Victor, a menção ao lar – e embora não haja a palavra exata de qual tipo de edifício seria esse, o portal que cerceou os personagens indica objetos pertinentes a um quarto de dormir, como nas referências aos pés da cama, ao tapete, ao pijama, e, em foco no nosso trabalho, à porta. Sobre o papel de tal objeto que cerra um espaço do outro, há diversos símbolos a serem recorridos para analisá-lo. À luz da simbologia de Chevalier e Gheerbrant, “a porta simboliza local de passagem entre dois estados, entre dois mundos, entre o conhecido e o desconhecido, a luz e as trevas, o tesouro e a pobreza extrema” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 734-735). Na canção “Do lado de dentro”, essa representação relacionada a um rito 246
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