Anais familiar” (TODOROV,1939, p.30), remetendo-nos ao gênero insólito, sendo “inexplicável”, “inadmissível”, quando os introduz na “vida real” ou no mundo real”. Portanto, as reflexões acerca do insólito está no envolvimento do leitor para com a obra, pois, advém da hesitação - leitor e narrador, personagem e leitor – em que se mantém a dúvida, despertando a hesitação - “o quase cheguei a acreditar”11, opondo ao natural e ordinário. Correlacionando com a ficção do caxiense Rodrigues Marques, é possível destacar excertos que evidenciam o estilo aqui supracitado, de modo que, no decorrer da narrativa nos deparamos com fenômeno sobrenatural, surgimento de um nevoeiro - escuridão total - perdurou por mais de sete dias na cidade de Terramor, como explicita o trecho a seguir: DESCEU UMA NÉVOA PESADA SOBRE A CIDADE e durante seis dias ninguém saiu de casa – as luzes todas acesas sumidas dentro do cinza opaco. No sétimo dia apareceu o sol queimando o nevoeiro, mas, quando todos pensavam que o tempo ia normalizar, novamente o nevoeiro o venceu e as pesadas nuvens que começavam a avermelhar escureceram de novo outra vez e a cidade ficou perdida de si mesma [...] A maioria das mulheres engravidou de tanto não ter o que fazer naqueles dias e houve quem dissesse – mentindo - após tudo passado, que só não se perderia numa das ruas do centro porque estava com um facão na mão quando desceram as trevas e foi cortando o nevoeiro com a ferramenta para poder andar. ( MARQUES, 1976, p. 31). Perante a este acontecimento extraordinário que é parte integrante da realidade, porém é regida por leis desconhecidas por nós, conforme explica Todorov que “hesitação do leitor é, pois, a primeira condição do fantástico” (1939, p. 37), logo, se a narrativa sobrenatural recebe uma explicação racional, adentra para o fantástico-estranho definido como “incrível”, “extraordinário”, “chocante”, “inquietante”, “insólito” (TODOROV, 1939, p. 53. Grifo nosso). Fato que se conclui no trecho analisado, dado que, o prefeito percorre por toda cidade, após o nevoeiro para apurar a “extensão da tragédia” (p. 35) e o sacristão justifica uma provável causa para o evento ‘fantástico’, profere que: [...] que o nevoeiro só podia ser consequência dessas experiências dos russos e americanos e sugeriu ao Prefeito que pedisse uma indenização às duas nações” (MARQUES, 1976, p. 36). A fim de elucidar o aparecimento do Estranho na narrativa Duas Mulheres de Terramor, Todorov (1939) declara que “acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de toda a história, no fim recebem uma explicação racional” (TODOROV, 1939, p. 51). 11 Trecho retirado do artigo:O INSÓLITO NA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA, do prof Flavio García UERJ / UNISUAM. Publicações Dialogarts 2008 (http://www.dialogarts.uerj.br) 547
Anais Revelando assim “mecanismos dos fatos até então sucedidos” (Ide, Ibidem, p. 51). Dessa forma, o fenômeno Estranho na narrativa se dá pela explicação do nevoeiro que atingiu a cidade. Por conseguinte, assim como a presença do estranho, encontra-se fragmentos do fantástico, causando hesitação e dúvida no leitor - é importante ressaltar que a hesitação mencionada se dar pelo leitor implícito, visto que, “para se manter, o fantástico implica pois não só a existência de um acontecimento estranho, que provoca hesitação no leitor e no herói, mas também um certo modo de ler.” (TODOROV, 2003, 151) - circunstância observável na personagem Artemiza, que por vezes se perde nos próprios pensamentos, levando ao leitor perguntar se o evento se efetuou ou não. Diante disso, em uma entrevista a professora Maria Cristina Batalha acerca da literatura insólita na língua portuguesa12, afirma ter uma concepção mais aberta do fantástico, uma vez que, a concepção Todoroviana é mais restrita, por isso ela tem uma convicção muito mais aberta, considerando-o “macro-gênero, ou um gênero que pode comportar muitos subgêneros que têm o insólito como ponto em comum”, em conformidade, a narrativa manifesta traços do gênero fantástico comportando o insólito, retomando o episódio em que Antuza se ’perde’ em seus próprios pensamentos, impulsionando o leitor a questionar-se sobre a eventualidade, como pode-se observar o trecho: ARTEMIZA ANDOU PELO CASARÃO INTEIRO, a vista turva fazendo-a tropeçar nos móveis e no passado – os chinelos chec-chec-chec espantando coisas e sombras. Não sabia se mandaria fazer o caixão de Antuza, branco ou azul, simbolizando a virgindade inutilmente preservada ou se encomendaria um caixão de pinho, comum, lixado e envernizado, que qualquer mulher já imprensada sob homem poderia usar. Colheu, no jardim agora favorecido pelas doces chuvas de abril, todas as flores que suas mãos alcançaram, espalhando-as sobre a enorme pedra-mármore da cozinha, enchendo a pia e a banheira, as bacias e os jarros – mas todas separadas pela cor ou pelo perfume, pelo tamanho ou pela duração, ou – quem sabe? - até pela seriedade que poderiam dar à morte. (MARQUES, 1976, p. 17). Diante desta cena infere-se durante a leitura a morte da personagem Antuza, visto que, sua mãe ‘idealiza’ e pratica ações que nos dar a certeza do falecimento da filha, como quando ela cogita: “Antuza ficaria muito mais bonita com o seu caixão cheio das frutas da região do que todas aquelas flores. E seria diferente de qualquer enterro, satisfazendo seu 12 Entrevista publicada pela revista Desassossego, DESASSOSSEGO 11 | JUN/2014 | ISSN 2175-3180 DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v6i11p188-192 por Bruno Anselmi Matangrano. 548
Anais gosto de não fazer nada igual aos outros” (p., 18), porém, ao prosseguirmos deparamo-nos com a seguinte situação: Pensou em subir mais um lance de escada ir ver suas vacas, mas o cansaço das pernas a desestimulou. Contentava-se em ouvir seus longos mugidos vindo do outro lado do maciço portão. E com eles nos ouvidos desceu a escada e de novo estava diante de suas flores. Antuza quando a viu, o pensamento tão distante, quis saber onde a mãe estivera tanto tempo. - Depois que colhi as flores, subi um pouco para chorar no segundo andar. Quando cheguei lá em cima a vontade de chorar já havia passado. Nesse instante, Artemiza, como se voltasse de não do segundo andar, mas de um outro mundo, esbarrou em seu próprio susto: - Mas você não estava morta? Eu vi com meus próprios olhos você esticada sobre a mesa. Eu mesma vesti sua mortalha. - é possível. Eu às vezes acompanho meu próprio enterro. (MARQUES, 1976, p. 18/19). Como vimos, durante a leitura destes trechos destacados, o leitor é levado a se questionar sobre o ocorrido. Antuza, realmente, faleceu? Artemiza estava a delirar devido à velhice? Ou era lembrança de alguém que um dia viera a falecer na sua frente? Indagações que despertam no leitor e na própria personagem que hesita – e o leitor com ela – se o que aconteceu foi verdadeiro, se o que o cerca é de fato realidade - (neste caso, se Antuza faleceu ou não) ou se trata de um sonho delírio que aqui tomou forma de realidade posta diante de dúvidas? Para tal, consoante Todorov (1939, p. 36), em sua definição do que viria a ser o Fantástico na narrativa é o “Cheguei quase a acreditar”: eis a fórmula que resume o espírito do fantástico. - Pode-se aludir ao momento que Artemiza prepara o funeral da filha -, sendo a hesitação que lhe dá vida (ao fantástico) - instante em que personagem e leitor hesitam – somos assim transportados ao âmago do fantástico (TODOROV, 1939), pois, é um gênero que visa “perturbar o seu leitor” (VAX, 1972, p. 28)13. Ademais, conforme Nordier desenvolve sua teoria iniciada no ensaio de 1930 e aponta para a existência de três tipos de fantásticos: (1) a história fantástica falsa, (2) a história fantástica vaga e (3) a história fantástica verdadeira, sendo esta última aquela que “abala o coração profundamente sem custar sacrifícios à razão” e que, por isso, propicia ao leitor compartilhar das angústias da personagem tal qual o “espectador de uma cena de 13 Citação retirada do artigo: O FANTÁSTICO GENOLÓGICO: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E OUTRAS CONSIDERAÇÕES da autora Karla Menezes Lopes Niels (UFF) 549
Anais ilusões” (NORDIER, 1832, s/p. Apud LOPES NIELS, p. 640)14. \"Incerteza”,” imprecisão”,” ambiguidade”, “real”, “irreal”, “ilusório”, “imaginação”, “fantasia”, “criação”, “natural e sobrenatural” são alguns exemplos da força motriz da narrativa Fantástica. Considerações finais Em síntese, o insólito na narrativa na obra Duas Mulheres de Terramor (1976) se dá por meio do ‘estranho’, do novo, do não-habitual, entrelaçando cenas naturais e sobrenaturais. Rodrigues Marques nos apresenta à uma ‘viagem atemporal’ cercada de drama, mistérios, eventos sobrenaturais, romance e delírios por parte dos personagens. Conforme Maria Cristina Batalha explicita “a crítica designava como fantástica toda narrativa de fatos que não pertenciam ao mundo real, contrariando a realidade que nos cerca” (BATALHA, 2011, p.13), ademais, regido por leis desconhecidas por nós - referindo ao mundo real. É importante ressaltar que o viés aberto pela produção ficcional de Rodrigues Marques possibilita ser lida e estudada por outros “olhares”, trouxemos neste trabalho pontos que despertaram a curiosidade em pesquisar, delineando e destacando episódios da ficção que representam/conversam com o gênero insólito, visto que, “o gênero, como código literário, conjunto de normas, de regras do jogo, informa o leitor sobre a maneira pela qual ele deverá abordar o texto, assegurando dessa forma sua compreensão” (COMPAGNON, 2003, p. 158). Dessa forma, selecionamos e delimitamos ‘partes’ a serem estudadas. Por fim, um percurso surreal (real) do que encontrou-se na obra, fazendo jus ao que Rodrigues Marques (1976, S/P ) profere: “A geografia do cérebro comporta histórias de nível mais elevado do que os que povoam o chão de nossa vizinhança” e assim encerramos nossas reflexões aludindo às criações mais belas do cérebro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATALHA, Maria Cristina. LITERATURA FANTÁSTICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS. R. Let. & Let. Uberlândia-MG v.28 n.2 p.481-504 jul. Dez. 2012. Disponível em: https://www.passeidireto.com/arquivo/86849662/literatura-fantastica-algumas- consideracoes-teoricas. Acesso em: 23 de janeiro de 2022. 14 Citação retirada do artigo: O FANTÁSTICO GENOLÓGICO: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E OUTRAS CONSIDERAÇÕES, da autora Karla Menezes Lopes Niels (UFF) 550
Anais CARNIEL, Jean Carlos. EM BUSCA DE DEFINIÇÕES: SOBRE A PLURALIDADE DO FANTÁSTICO IN SEARCH OF DEFINITIONS: ON THE PLURALITY OF THE FANTASTIC. Revista Água Viva, Recebido em: 31 mai. 2021. Aceito em: 08 ago. 2021. DOI: 10.26512/aguaviva.v6i2.38272. Volume 6, Número 2, Edição Especial 2021 [[email protected]]. Entrevista com a professora Maria Cristina Batalha acerca da literatura insólita em língua portuguesa. Revista Desassossego. DESASSOSSEGO 11 | JUN/2014 | ISSN 2175-3180 DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v6i11p188-192 (p. 188 a 192). Flavio García. Regina Michelli. Marcello de Oliveira Pinto (orgs.) 2008. Poéticas do Insólito Conferências e Palestras do III Painel “Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional”: o insólito na literatura e no cinema. ISBN 978-85-86837-46-3. Disponível em: http://www.dialogarts.uerj.br/arquivos/poeticas_do_insolito.pdf. Acesso em: 03 de fevereiro de 2022. Flavio García; Marcello de Oliveira Pinto; Regina Michelli (org.) O insólito em questão Anais do V Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional I Encontro Nacional Insólito como Questão na Narrativa Ficcional - Simpósios - 2009. (pgs. 242). GARCIA, Flávio. Fantástico: a manifestação do insólito ficcional entre modo discursivo e gênero literário – literaturas comparadas de língua portuguesa em diálogo com as tradições teórica, crítica e ficcional. XII Congresso Internacional da ABRALIC Centro, Centros – Ética, Estética. 18 a 22 de julho de 2011 UFPR – Curitiba, Brasil. Disponível em: https://abralic.org.br/eventos/cong2011/AnaisOnline/resumos/TC0010-1.pdf Acesso em: 01 de janeiro de 2022. LACOURT, Gisela. A PRESENÇA DA FENOMENOLOGIA INSÓLITA NA NARRATIVA LITERÁRIA. Marques,R. Duas Mulheres de Terramor, impresso pela Gráfica editora do livro LTDA. Livraria São José,1976. O insólito na literatura [recurso eletrônico]: olhares multidisciplinares/ org. Cecil Albert Zinani, Cristina Löff Knapp. - Caxias do Sul, RS: Educs,2020. Dados, eletrônico (1 arquivo). Modo de acesso: Word Wide Web. SILVA, Antonia, Gisele. O espaço do insólito na literatura brasileira: um estudo dos contos “os cavalinhos de platiplanto” e “onde andam os didangos”, de josé j. veiga. SOUSA, A. S. OLIVEIRA, S. O.; ALVES, L H. A PESQUISA BIBLIOGRÁFICA: PRINCÍPIOS E FUNDAMENTOS. Cadernos da Fucamp, v.20, n.43, p.64-83/2021. TODOROV, Tzvetan, 1939 - Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. 4°. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017. 551
VITORIA E CHICA DA SILVA: PERSONAGENS HISTÓRICAS E LITERÁRIAS NO BRASIL COLÔNIA Jade Mariam Carvalho SILVA (UFDPar)1 Sávio Roberto Fonsêca de FREITAS (UFPB)² RESUMO O presente trabalho visa abordar a representação da mulher trans negra na literatura de Eliana Alves Cruz e a representação da mulher negra (cis) na obra de Joyce Ribeiro. A explanação do tema terá como base a análise da personagem literária Nada digo de ti que em ti não veja (2020) de Eliana Alves Cruz e analisar a personagem Chica da Silva do romance biográfico Chica da Silva- um romance de uma vida de Joyce Ribeiro (2016), obra que desmistifica a imagem construída sobre a história da mineira Chica da Silva, ex-escravizada forra que se torna a esposa do governador das Gerais o contratador João Fernandes de Oliveira, romance que aborda o aspecto afetivo da mulher que foi esposa, mãe, dama da sociedade que obteve visibilidade tendo uma história diferente do que se esperava para uma mulher negra. Para compreender as questões de gênero inerentes a obra se faz necessário o aporte teórico de autores como Judith Butler (2013), Paulo Roberto Ceccarelli (2019), entre outros teóricos. No que concerne à autoria negra feminina se faz necessário o aporte teórico 1 Mestranda em Estudos Africanos e Afro-brasileiros pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected] 2 Professor efetivo de Literaturas de Língua Portuguesa no Departamento de Letras do CCAE-UFPB (Campus IV-Mamanguape) e do PPGL-UFPB (Campus I-João Pessoa). E-mail: [email protected] 552
Anais de Ebonolowa (2021) e Ferreira (2019) para evidenciar a necessidade da valorização de um feminismo voltado para uma filosofia africana, como também um feminismo que pense o lugar da travesti negra no Brasil. Palavras-Chave: Trans; Literatura; Negra; Feminismo; Romance. ABSTRACT The present work aims to approach the representation of the black trans woman in the literature of Eliana Alves Cruz and the representation of the black woman (cis) in the work of Joyce Ribeiro. The explanation of the theme will be based on the analysis of the literary character Nada digo de ti que em ti não vem (2020) by Eliana Alves Cruz and analyze the character Chica da Silva from the biographical novel Chica da Silva- a novel of a lifetime by Joyce Ribeiro (2016), a work that demystifies the image built on the history of Chica da Silva from Minas Gerais, a former freed slave who becomes the wife of the governor of Gerais, the contractor João Fernandes de Oliveira, a novel that addresses the affective aspect of the woman who was a wife. , mother, society lady who gained visibility having a different story than what was expected for a black woman. To understand the gender issues inherent to the work, the theoretical contribution of authors such as Judith Butler (2013), Paulo Roberto Ceccarelli (2019), among other theorists is necessary. With regard to black female authorship, the theoretical contribution of Ebonolowa (2021) and Ferreira (2019) is necessary to highlight the need to value a feminism focused on an African philosophy, as well as a feminism that thinks about the place of the black transvestite in the world. Brazil. Keywords: Trans; Literature; black; Feminism; Romance. 1 INTRODUÇÃO O presente ensaio busca evidenciar a vivência de uma travesti no Brasil Colônia através da análise na obra Nada digo de ti que em ti não veja (2020), da autora afro-brasileira Eliana Alves Cruz, como também a intersecção que há entre este romance e Chica da Silva - romance de uma vida (2016), da jornalista e escritora Joyce Ribeiro. A pertinência destas obras escritas por mulheres negras consiste em: olhar para trás, entender como as coisas aconteceram e ousar pensar no amanhã (CRUZ, 2020), conforme as palavras de Eliana Alves Cruz concedidas em entrevista. Além de refletir que, atualmente, a literatura afro-brasileira está em evidência, pois autores afro-brasileiros contam sua própria história, ou seja, a história do povo negro através de sua literatura, o que podemos denominar escrevivência. Além disso, buscaremos abordar a representação da mulher trans na literatura de Eliana Alves Cruz, tendo como foco o âmbito afetivo-sexual e o fato dos corpos trans serem vistos como corpos abjetos em meio 553
Anais a uma sociedade heteronormativa. Para compreender as questões de gênero inerentes a obra se faz necessário o aporte teórico de autoras como Judith Butler, entre outros. 2 DESENVOLVIMENTO A sociedade baseia-se em um Cis-tema fundamentado na diferença sexual no qual o gênero, a sexualidade e o corpo seriam instâncias que se coadunam, não podendo ser dissociadas, logo os corpos que se distanciam dos padrões de gênero podem ser chamados corpos dissidentes, então é como se tais corpos representassem uma quebra na ordem estabelecida socialmente, conforme Bento (2006, p. 13). A terminologia Cis-tema tem o objetivo de explanar o sistema cisgênero dominante, ou seja, as normas da cisgeneridade que ditam padrões de gênero, que subjugam corpos transgêneros que não enquadram de modo simétrico nos seus ditames de sexo, identidade, orientação sexual e afetividade. Vergueiro (2015) evidencia a importância da interseccionalidade como aspecto crítico da cisnormatividade, a qual aponta o alinhamento de outros fatores normativos imbricados nessa relação, destacando-se um cenário no qual atuam padrões como os que podemos chamar de branquitude, cisgeneridade e cristianização. A heteronormatividade corresponde ao Cis-tema que supervaloriza um tipo de vivência em detrimento de todas as demais. A protagonista trans em Nada digo de ti que em ti não veja Vitória, a protagonista da obra literária, pode-se dizer que se trata de uma mulher trans negra que no início da história é escravizada, a narrativa se passa no século XVIII, e devido a sua astúcia consegue tornar-se uma mulher livre. Vitória, a negra forra e prostituída vive um amor proibido com o fidalgo Felipe Gama, que seria sua perdição. Porém, a trama nos faz refletir se o amor que os unia seria capaz de ser mais forte que as imposições sociais. Pensar nesta vivência é pensar numa vivência trans em um contexto em que a sociedade não reconhecia tal vivência, porém a pessoa trans existia naquela sociedade do Brasil Colônia setecentista, conforme os trechos “negro que se diz mulher” (CRUZ, 2020b, p.34) e “o medonho africano metamorfoseado em mulher” (CRUZ, 2020b, p 148), tais trechos revelam que Vitória pode ser lida conforme o que hoje denominamos travesti ou mulher trans, pois assumia socialmente uma identidade feminina ainda que tal identidade não tivesse reconhecimento por parte do Estado. Isto faz da personagem um ser errante, naquele contexto dominado pela Coroa, pelos poderes do Clero, tais poderes que poderiam condenar 554
Anais Vitória à morte tanto da sua identidade feminina, como também à sua morte física. Cruz (2020) em sua poética traz à tona a reconstituição de uma época, o início do século XVIII. Cruz investigou casos de pessoas nascidas com o sexo biológico masculino, que conforme constam em documentos históricos, se apresentavam como mulheres, assumiam socialmente uma identidade feminina, o que corrobora com Mott “quando o chamam de homem, não gosta disso. Comumente o chamam de Vitória e só queria que lhe chamassem de Vitória, e quem lhe chamava de negro, corria às pedradas” (MOTT, 2005, p. 12). Logo, este relato histórico que fala de uma outra Vitória, mulher trans, vamos denominá-la desse modo, que fora presa em 1556 em Lisboa, sob a acusação de sodomia. Vitória que era natural do Reino do Benin se prostituía, fazendo concorrência às demais mulheres profissionais do sexo, até que foi descoberto o seu sexo biológico sendo masculino, portanto, fora condenada ao degredo, trabalhando de forma análoga a escravidão nas galés de Algarve. A trama da obra literária analisada se passa em São Sebastião do Rio de Janeiro e revela que a sociedade é um tanto hipócrita em suas práticas, pois as famílias de escravocratas Gama e Muniz, antagonistas da trama, possuem segredos que são revelados no decorrer da narrativa, por exemplo, uma origem judaica que poderia resultar em uma acusação de lesa-majestade, punida com a morte por enforcamento ou fogueira. A trama dialoga com temas atuais do contexto brasileiro, como o racismo estrutural, as fake news, os dogmas da Igreja, como também uma possível redenção através da Delação Premiada diante do tribunal da Inquisição, ou melhor, Santo Ofício como era conhecido no Brasil. No desenrolar da história as personagens de origem judaica são acusadas de bruxaria juntamente com a travesti Vitória que se mostra como uma curandeira, calunduzeira, e era procurada pelas pessoas para a realização de práticas como reza para tirar “mau olhado”, tratamentos médicos, previsão do futuro, entre outras. A narrativa revela a associação entre ser mulher e a bruxaria, conforme o trecho “vossa mercê pensa que não sei de vosso intercâmbio com estas bruxas de um lado tens as feiticeiras judaizantes” (CRUZ, 2020, p. 148). O ponto forte da narrativa é a construção evidente da identidade de gênero feminina de Vitória conforme o trecho “Não sou negro. Sou negra! Ne- gra” (CRUZ, 2020, p. 184), mostrando assim o sentimento de pertença da personagem a uma identidade feminina, o que ocorre em diversos outros trechos da trama. Um dos pontos principais da narrativa é a relação entre o jovem Felipe Gama estaria fadada ao fracasso, pois seria impossível a relação entre um fidalgo e uma travesti negra (usar tal termo pode gerar um anacronismo), porém seu uso se dá devido às evidências de 555
Anais que a personagem de fato tinha uma identidade de gênero feminina assumida socialmente, conforme o trecho “Ela sabia que o mundo em que viviam não nutria pessoas como ele para que tivessem musculatura de espírito para viverem abertamente suas verdades” (CRUZ, 2020b, p. 183). A partir da narrativa vemos que seria inviável o personagem Felipe assumir socialmente sua relação com uma pessoa lida socialmente como “um negro que se diz mulher”, posto que tal relação trouxesse não somente consequências sociais, mas o risco iminente da morte, para além do opróbrio em que cairia a família do fidalgo. Porém, o desenrolar da história revela reviravoltas, como o desfecho em que diversos personagens são acusados pelo tribunal do Santo Ofício por diversas acusações e, por isso, um possível final feliz é vislumbrado para os amantes protagonistas da trama. Analisar esta narrativa aponta que a realidade brasileira carrega consigo o jugo de resquícios do processo histórico de escravização, fazendo-nos refletir acerca de uma nova perspectiva de enfrentamento à realidade, olhar para a África como um norte nesse processo decolonial. Conforme: A África é, atualmente, confrontada com os fenômenos neocoloniais do capitalismo e do racismo globalizados, um fato que, mais do que nunca, sugere a necessidade de um fortalecimento inventivo dos movimentos ao redor de políticas centradas em um engajamento consciente com diferentes posições e histórias de sofrimento. (OSSOME, 2018, p. 57). A partir desta narrativa podemos refletir sobre o lugar de uma travesti negra na sociedade, tendo em vista que até hoje o Brasil representa o país que mais mata travestis e transexuais, havendo grandes índices de transfeminicídio, ou seja, o extermínio sistemático de corpos trans negros, o que revela uma verdadeira necropolítica, na qual os corpos não importam em uma sociedade cis-heteronormativa. Com base nesta reflexão se faz necessário propor uma nova perspectiva de ver o mundo e defender os direitos de pessoas trans negras, o conceito que pode ser entendido como um norte para tal enfrentamento, pode estar dentro da perspectiva mulherista, abraçando conceito do mulherismo, ou seja, uma variação afroamericana do feminismo, que corresponde a abarcar pautas específicas das mulheres negras, tendo como uma das estratégias de enfrentamento ao patriarcalismo convidar os homens para a luta antimachista, com um olhar especial para o homem negro, conforme Ebonoluwa (2009). Em vista de que as mulheres negras trabalharam em condições sub-humanas devido ao colonialismo, assim como os homens negros. E partindo do ponto de que o feminismo 556
Anais surge de reivindicações de mulheres brancas europeias e estadunidenses por inclusão e melhores condições de trabalho, não olhando para pautas como a cidadania da população negra. Por esses pontos supracitados, o mulherismo defende um posicionamento não apenas direcionado ao combate às opressões de gênero, mas direcionando o olhar ao combate as opressões, tendo em vista as intersecções entre classe, raça e gênero (EBONOLUWA, 2009, p. 04). Chica da Silva, romance de uma vida No ano de 2016, a influente jornalista negra Joyce Ribeiro, conhecida por atuar como repórter da emissora de TV SBT, lança sua biografia romanceada de Chica da Silva, em sua releitura da clássica história da ex-escravizada, que se tornou a esposa do contratador dos diamantes, João Fernandes de Oliveira, a mulher negra que de escrava passou a ser rainha do Arraial do Tijuco. Em sua narrativa, Chica é uma mulher forte, determinada, porém resignada em determinados aspectos, como no que concerne ao cuidado da casa e dos filhos, e acima de tudo, ela é mostrada como uma mulher apaixonada. Podemos vê-la como uma mulher à frente do seu tempo, conforme o trecho “Chica era livre por natureza” (RIBEIRO, 2016, p. 08), não aceitando o destino de ser uma escrava ou mesmo uma simples amante, como se vê em “Chica não acreditava que o afeto era privilégio das mulheres brancas” (RIBEIRO, 2016, p. 08). Logo, Chica não se via inferior às mulheres brancas considerando-se digna do mesmo afeto e também do lugar de esposa de um fidalgo de El Rey. Com o contratador ela gerou filhos que teriam a chance de “branquear sua origem” devido à influência do pai, logo ela teve filhas que se tornaram monjas, o que na época representava uma posição de destaque na sociedade, tendo em vista a união entre Estado e Igreja, como também teve filhos que puderam estudar no Reino, garantindo assim um lugar de destaque na sociedade seja como religiosos ou bacharéis (RIBEIRO, 2016, p. 09). Devido ao fato de João Fernandes ser governador do Tijuco, era como se Chica fosse sua consorte, ainda que a houvesse comprado enquanto escrava a libertou e, inclusive, não fizera o uso daquele corpo sem o consentimento de Chica. A narrativa ribeiriana revela que havia “outras negras forras proprietárias de casa e escravos” (RIBEIRO, 2016, p. 20), porém ela tinha um diferencial, pois ainda que seu casamento não fosse oficialmente legalizado pela Igreja, não vivia como concubina, participando de determinadas atividades sociais, assim ela se mostra uma mulher religiosa dedicada ao lar e ao marido. Chica, que a princípio fora conhecida como 557
Anais Chica, a parda, era filha da escravizada africana Maria da Silva e do capitão português Antônio Caetano de Sá, posteriormente Chica recebera o nome de Francisca da Silva, tendo em vista que Silva, aquele que hoje é o sobrenome mais comum do povo brasileiro era na verdade um epíteto usado como sobrenome para quem não tinha família, logo ex- escravizados, entre outras pessoas tidas como ralé. Os filhos de Chica carregavam o sobrenome do pai, porém em seus registros constava “pai desconhecido”, o que não os impedia de estudar no Reino, era um branqueamento, porém sem detalhar maiores informações sobre o influente pai (RIBEIRO, 2016, p. 30). Em determinados momentos da narrativa Chica é mostrada como uma mulher luxuriosa, como, por exemplo, no trecho que afirma que ao se confessar, o homem que se enamorara por Chica “a cada confissão se livra do pecado da luxúria a que se entrega com entusiasmo com sua Chica” (RIBEIRO, 2016, p. 42). Ainda que esta faceta de luxúria não seja o foco da narrativa ribeiriana aparece também em outros trechos como “Ir para a cama está longe de ser um sacrifício ou obrigação como acontece com as brancas sem amor nem paixão” (RIBEIRO, 2016, p. 54). Podemos refletir também sobre o fato de Chica ser uma sinhá, portanto “por paradoxo, uma senhora de escravos” (RIBEIRO, 2016, p. 46) o que nos leva a problematizar como pôde uma mulher negra escravizar outrem, porém é preciso levar em conta que Chica apenas reproduz um padrão, ela demonstrara em determinados aspectos igualar-se ou quase igualar-se às mulheres brancas, inclusive neste aspecto negativo, o que numa perspectiva contemporânea, pode levar-nos a concluir que, o oprimido quando pode em determinadas circunstâncias assume um papel de opressor, ou sequer tem a consciência disto. É como se Chica houvesse herdado um lugar de rainha consorte e seus súditos fossem escravizados, logo determinadas conjecturas geram um anacronismo. Em determinado momento da narrativa, Chica e João Fernandes precisam separar-se, pois o contratador vai ao Reino resolver questões relativas a uma briga judicial com a viúva de seu pai, o que para Chica representa uma nostalgia sem fim, no entanto ela segue resignada como uma fervorosa mulher católica (2016, p. 82). Contudo, no arraial do Tejuco continua sendo tratada como a mulher do desembargador mesmo em sua ausência. E como nem tudo são aspectos positivos, a narrativa mostra a erotização dos corpos negros, Chica era vista como alguém “capaz de enfeitiçar” (2016, p. 114), ainda que respeitada socialmente ou supostamente respeitada, no mínimo, tendo um lugar de destaque como se fosse uma mulher branca, havia rumores de que em algum momento ela enfeitiçara o contratador, e 558
Anais com tal feitiço conseguira se tornar uma dama da sociedade colonial. Para a visão colonialista ela era “uma doidivanas capaz de manter cativo” um homem da estirpe de João Fernandes. No entanto, em seu funeral a dama negra do arraial teve honrarias de fidalgo. A Travesti negra enquanto autora literária No que concerne à discussão sobre a erotização dos corpos, pode-se refletir acerca do trecho do texto autoral de Jade Mariam Vaccari (2018), recitado no decorrer do II Seminário Mulheres e Universidade: Juntas contra o racismo, o machismo e a LBTfobia. Conforme Vaccari (2019), a mulher trans muitas vezes é vista como “Apenas um corpo destinado ao sexo, ao exotismo e à erotização. Uma mulher trans não é gente, é só um ser destinado ao prazer”. A poética de Vaccari evidencia o lugar de subalternidade, na qual a pessoa trans é relegada, fato frequente, tendo em vista que a sociedade está pautada em valores heteronormativos e, por isso determinadas relações sejam vividas apenas no “sigilo”, pois a masculinidade dos homens cisgênero pode ser posta em xeque caso venham se relacionar com uma travesti ou transexual. Atualmente vemos o emergir de um protagonismo de pessoas trans na arte, trazendo à tona questões como a realidade de ser mulher negra e trans, ser trans e periférica, entre outros recortes sociais, conforme a poética de Ferreira \"Todo livro escrito por uma travesti deveria ser saudado e encarado como um rasgo no tecido histórico\" (FERREIRA, 2019, p. 9). Sendo assim, tais escritos representam um marco histórico ao desviar-se do cânone literário, que inclusive, o âmbito acadêmico em geral aborda, mostrando que tais vozes são importantes. Destarte, o lugar de fala da mulher trans negra pode ser exposto em uma obra que seja de sua autoria, expondo seu ponto de vista da realidade. Somasse a isso o fato de que a sociedade está condicionada a valorizar a escrita de homens ou de mulheres cis, em sua maioria branca e heterossexual, como afirma Ferreira, \"sim, para a pele preta de signos coloridos essas coisas são privilégios\" (FERREIRA, 2019, p. 19). A poética de Ferreira desperta a atenção para realidades, como aquilo que podemos chamar de o privilégio cis da afetividade, que seria o fato de que para uma mulher trans, o vivenciar dos relacionamentos afetivo-sexuais está condicionado a diversos dilemas, como a dificuldade de estar em uma relação heterossexual com um homem cis, pelo fato da mulher trans ter sua identidade de gênero deslegitimada socialmente, não sendo vista enquanto mulher. Além disso, a masculinidade do homem que se relaciona com uma mulher trans é 559
Anais posta em xeque, como Ferreira reflete no trecho \"voei pro sol demais e minhas asas derreteram, eram apenas uma cis-ilusão\" (FERREIRA, 2019, p. 32). Sendo assim, para a poeta o fato de uma travesti negra se envolver afetivo-sexualmente com um homem é comparável ao mito de Ícaro, em que suas “asas” podem derreter a qualquer momento, ou seja, a relação se desvanecerá, logo a relação estaria fadada ao olhar preconceituoso da sociedade, como se a afetividade fosse apenas um atributo destinado às pessoas cis. A poética de Ferreira evidencia a abjeção dos corpos de pessoas trans, enquanto corpos dissidentes, pois o senso comum lhes aponta como corpos que não importam \"corpo que é almejado dentro de um saco como se fosse a coisa mais nojenta\" (FERREIRA, 2019, p. 57). Contemporaneamente, autores trans têm tido visibilidade através de publicações, como a obra Academia Transliterária (2019). Tal fator evidencia como pessoas trans estão galgando seu reconhecimento através da literatura, música e área de digital. Um exemplo disso é como os influencer ou como os youtubers muitas vezes usam de uma linguagem própria da população LGBTQ+, o pajubá, \"linguagem afro-centrada, como também a população trans tem sua cultura própria\" (JESUS, 2019, p. 16). 3 CONCLUSÃO A obra literária afro-brasileira Nada digo de ti que em ti não veja evidencia a existência de vivências de gênero dissidente e explana sobre a realidade de um corpo negro prostituído em um Brasil Colônia. Enquanto obra Chica da Silva romance de uma vida revela as facetas de uma mulher que marcou época na sociedade brasileira, e foi representada em diversos romances históricos, no entanto há o diferencial do romance analisado se tratar de uma obra de autoria negra. Logo, a literatura afro-brasileira nos convida a compreender a realidade de uma mulher negra, trans, escravizada, prostituta. O estudo desta narrativa mostra a importância de reconhecer as epistemologias que se formam a partir do estudo de obras com personagens negros, de autoria negra tendo em mente o conceito de Escrevivência, pois quem vive determinada realidade possui lugar de fala sobre aquela realidade, no que concerne também à sua própria ancestralidade. Logo, pode-se entender que a literatura tem um papel de trazer à tona a reflexão sobre determinadas vivências, quiçá possamos através do estudo deste tipo de literatura fomentar o desenvolvimento de leitores críticos cientes do seu papel de cidadão em prol de uma sociedade brasileira equânime. 560
Anais REFERÊNCIAS BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CHISALA, Upile. Eu destilo melanina e mel. Tradução de Isabela Aleixo. São Paulo: Leya, 2020. CRUZ, Eliana Alves. Nada digo de ti que em ti não veja. Rio de Janeiro: Pallas, 2020b. CRUZ, Eliana Alves. Novo romance de Eliana Alves Cruz expõe o apartheid brasileiro. [Entrevista concedida a] Guilherme Augusto. Jornal Estado de Minas, 28 jun. 2020a. Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/literafro/resenhas/ficcao/1354-eliana-alves- cruz-nada-digo-de-ti-que-em-ti-nao-veja>. Acesso em: 15 dez. 2021. EBUNOLOWA, Sotunsa Mobolanle. Feminismo por uma variação africana. Tradução para uso didático de EBUNOLUWA, Sotunsa Mobolanle. Feminism: The Quest for an African Variant. The Journal of Pan African Studies, vol.3, n.1, 2009, p. 227-234, por Luana Cristina Muñoz Roriz. Disponível em: https://filosofia-africana.weebly.com Acesso em 27 de dezembro de 2021, às 17:43. FERREIRA, Luna de Souto. Mem (orais) poéticas de uma byxa travesty preta de cortes. Bragança Paulista: Urutau, 2019. GREGORI, Juciane; ZAMBONI, Marcela. Relações afetivas e violência: sentidos da transfobia no contexto familiar e amoroso. João Pessoa: Editora UFPB, 2019. JESUS, Jaqueline Gomes de. Coletânea TransLiterária. Belo Horizonte: Editora Marginália, 2019. MOTT, Luiz. Bahia: inquisição & sociedade / Luiz Mott. - Salvador : EDUFBA, 2010. OSSOME, Lyn. Discursos pós-coloniais do ativismo queer e de classe na África. Traduzindo a África queer. Salvador: Devires, 2018. VACCARI, Jade Mariam. A Construção da Identidade de Gênero – Transexual: Errante Corpo Abjeto. Monografia (Graduação em Licenciatura em Filosofia) - Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, João Pessoa, 2017. VERGUEIRO, Viviane Simakawa. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. 2015. Tese (Mestrado) - Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. VERGUEIRO, Viviane Simakawa. Trans* Sexualidade: Reflexões sobre a mercantilização do sexo desde uma perspectiva transgênera. Revista Periódicus, 1.ed., mai./out., 2014. 561
Anais Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/revistape riodicus/article/viewFile/10154/7258>. Acesso em: 10 dez. 2021. 562
SIGNIFICADOS JUSTAPOSTOS: UMA ANÁLISE A RESPEITO DAS ESCOLHAS TERMINOLÓGICAS UTILIZADAS POR REINA ROFFÉ NA OBRA AVES EXÓTICAS Marta Mickaele Almeida ARRUDA (UEPB)1 Maria Luana Caminha VALOIS (UFPE)2 RESUMO Em função da tomada militar de poder na Argentina em 1976, a expatriação tornou-se uma possibilidade para prosseguir vivendo. À vista disso, um grupo de intelectuais, afetados pelo exílio, passaram a esboçar a vida, através de uma estatização da dor, convertendo-a em narrativa literária. Assim, a partir da obra Aves exóticas. Cinco cuentos con mujeres raras (2004) da autora Reina Roffé, nos dedicamos a pensar, o exílio e suas reverberações, à luz de autores como Paloma Vidal (2004), Ángel Rama (1985) y Losandro Tedeschi (2016) que permitem construir diálogos entre a literatura de autoria feminina e o contexto em que elas estão inseridas, em nosso caso, a ditadura argentina. Vale ressaltar que pretendemos apresentar um recorte do nosso trabalho de conclusão de curso defendido no ano de 2021 1 Graduada em Letras com Habilitação em Língua Espanhola pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), [email protected]. 2 Doutoranda em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Capes - CNPq, [email protected]. 563
Anais dentro do departamento de Letras da Universidade Estadual da Paraíba. Para esta finalidade, decidimos problematizar os títulos presentes na obra, bem como, os nomes das personagens principais, na tentativa de desvelar os significados que se aderem aos termos escolhidos pela autora estudada. Consideramos, portanto, que nossa pesquisa contribui em direção ao entendimento da literatura como uma ferramenta para a construção de uma nova ética de responsabilidade e cuidado, pois destacamos as vozes marginalizadas (da escritora e personagens), para contestar a historiografia oficial. Palavras Chaves: Literatura de Autoria Feminina; Exílio; Reina Roffé. ABSTRACT Due to the military takeover in Argentina in 1976, expatriation became a possibility to continue living. In view of this, a group of intellectuals, affected by exile, began to outline life, through a nationalization of pain, converting it into a literary narrative. Thus, based on Reina Roffé's work Aves exoticas: Cinco cuentos con mujeres Raras (2004), we dedicate ourselves to thinking about exile and its reverberations, in the light of authors such as Paloma Vidal (2004), Ángel Rama (1985) and Losandro Tedeschi (2016) that allow the construction of dialogues between literature by women and the context in which they are inserted, in our case, the Argentine dictatorship. It is worth mentioning that we intend to present a clipping of our course conclusion work defended in the year 2021 within the Department of Letters of the State University of Paraíba. For this purpose, we decided to problematize the titles present in the work, as well as the names of the main characters, in an attempt to unveil the meanings that adhere to the terms chosen by the studied author. We consider, therefore, that our research contributes towards the understanding of literature as a tool for the construction of a new ethics of responsibility and care, as we highlight the marginalized voices (of the writer and characters), to contest the official historiography. Keywords: Literature by female authors; Exile; Reina Roffé. INTRODUÇÃO Com a finalidade de compreender e ampliar o debate a respeito da escrita de autoria feminina, desenvolvida no período pós ditadura (1976 - 1983), bem como, a relação da literatura latino-americana com as vozes marginalizadas da sociedade, nosso trabalho se ocupa em pensar as formas de enunciação das dores e traumas psíquicos infligidos pela tirania militar no Cone Sul. Deste modo, apresentamos no primeiro item deste artigo um recorrido pela década de 1960, mais precisamente pela literatura hispano-americana; incluímos, ainda, alguns dos escritores que mais se destacaram neste período; e, por fim, um breve resumo da vida de Reina Roffé e do conto Convertir el desierto, que se encontra na obra Aves exóticas. Cinco cuentos con mujeres raras (2004). Já na segunda parte, iremos analisar, propriamente, a 564
Anais narrativa supracitada, a partir da perspectiva da crítica literária de autoria feminina. Com isso, buscaremos demonstrar os efeitos de sentido (sob) grafados no título escolhido, por isso, tomamos como ponto de partida os pressupostos teóricos descritos na obra A Metáfora Viva de Paul Ricoeur (1983). Consideramos, portanto, que nossa pesquisa contribui em direção ao entendimento da literatura como uma ferramenta para a construção de uma nova ética de responsabilidade e cuidado, pois destacamos as vozes marginalizadas (da escritora e personagem), para contestar a historiografia oficial. OS ENCADEAMENTOS LITERÁRIOS E POLÍTICOS NA DÉCADA DE 60: Descrevendo uma conjuntura Argentina Um grande marco na literatura latino-americana foi a década de 1960, que trouxe grandes contribuições, e, segundo Paloma Vidal (2004), em seu livro A história em seus restos: literatura e exílio no Cone Sul, a literatura da época começou a refletir os episódios políticos e sociais pelos quais os países hispânicos estavam passando. Na citação seguinte percebemos que: Segundo Donoso, a libertação das tendências criollistas, regionalistas e costumbristas assim do realismo social de épocas anteriores permitiu aos escritores da década de 60 conceber a literatura como o produto cultural de um continente. Definia-se um projeto identitário que reunia as novas escritas sob a designação de “literatura latino-americana”, diferenciando- as da literatura européia e, ao mesmo tempo, inscrevendo-as numa tradição ocidental. (VIDAL, 2004, p. 23-24). Assim, a América Latina buscava singularizar sua expressão escrita para inscrever- se na tradição do ocidente, além disso, devido à revolução cubana, o mercado consumidor nutria uma curiosidade a respeito deste território, dessa forma a literatura latino- americana assume mundialmente status de cânone literário. Este reconhecimento foi denominado boom latinoamericano3. Ressaltamos ainda, que o boom está ligado por ideais da Revolução Cubana (1953- 1959), já que, este movimento político influenciou diversas modificações no campo da 3 O termo boom é a denominação que a literatura latinoamericana recebe na década de 60. Este refere-se ao movimento explosivo a que esta é submetida, tendo a internacionalização, a demanda do mercado e a qualidade dos escritores. Vale ressaltar, ainda, que o vocábulo é problemático e segue em disputa pelos críticos literários, por se tratar de um termo em inglês. 565
Anais história e literatura Latinoamericana, transformando assim os escritos dos autores em verdadeiras utopias revolucionárias. Uma vez que, esta grande explosão das literaturas hispânicas se deu por meio da comercialização, nos mais diversos idiomas, das obras como um produto popular. Nesse contexto, um outro acontecimento aflige nosso território, são as violentas ditaduras militares (1976-1983) e com elas o imperativo do exílio. Por conseguinte, a escrita foi, para autores como Vargas Llosa, Carlos Fuentes, García Márquez, entre outros, uma forma de registrar suas culturas e manter uma conexão com seus lugares de origem, dos quais foram expulsos. Como bem aponta Vidal (2004): “Julio Cortázar, Angel Rama, Joé Nitrik e Marta Traba tentaram extrair do exílio um espaço literário de criação sem cair no saudosismo nacionalista nem no ressentimento dos derrotados” (VIDAL, p. 14). Como registro das reelaborações do que vivenciaram durante a expatriação - perseguições, ameaças, distanciamento de seus países entre outras violências - surgem novas maneiras de narrar, além de outros lugares de enunciação, como por exemplo a escrita de autoria feminina, tendo em vista as formas particulares de criação e as novas perspectivas de escrita, que antes não haviam sido ponderadas. Assim, podemos destacar algumas autoras importantes da literatura hispano- americana, como as uruguaias Ida Vitale (1923). Cristina Peri Rossi (1941) e Inés Bortagaray (1975), a peruana Isabel Allende (1942), a colombiana Albalucía Ángel (1939), a chilena Marcela Serrano (1951), as argentinas Silvina Ocampo (1903-1993), Marta Traba (1930-1983), Luisa Valenzuela (1938), Tununa Mercado (1939) e Reina Roffé (1951). Dentre as autoras citadas anteriormente, escolhemos trabalhar com a Reina Roffé. A referida escritora é uma romancista argentina que nasceu em 1951, seu processo de escrita começou na adolescência com contos e relatos curtos, e seu primeiro romance foi escrito aos 17 anos. Estudou jornalismo no Instituto Superior Mariano Moreno e literatura na Faculdade de Filosofia e Letras de Buenos Aires, mas enquanto ainda estudava, escrevia para diários e revistas, contos e entrevistava escritores. Quando a ditadura se instalou na Argentina em 1976, buscou lugares mais seguros para viver e criar suas obras, como os Estados Unidos e Espanha, onde viveu por quase 30 anos. Em 1984, quando a democracia foi restaurada, Reina Roffé voltou para a Argentina, continuando sua vida em seu país. Atualmente é colaboradora da revista Cuadernos Hispanoamericanos, e participa da seção Rinconete do Centro Virtual Cervantes. Algumas 566
Anais de suas obras são: Monte de Venus (1976), La rompiente (1987), Lorca en Buenos Aires (2016), Juan Rulfo: autobiografía armada (1973), Espejo de Escritores (1984), Juan Rulfo: las mañas del zorro (2003), dentre muitos outros contos, relatos, novelas e ensaios. Consequentemente, optamos por investigar a obra Aves exóticas. Cinco cuentos con mujeres raras (2004), que aborda as nuances do exílio - por um olhar feminino -, e o silenciamento imposto pelo sistema hetero-dominante4. A obra apresenta cinco histórias com protagonistas mulheres, que a partir de suas experiências materiais e subjetivas constroem um diálogo com o trauma. E a partir disso, tecem uma ressignificação acerca de suas perspectivas de vidas. O primeiro conto da obra é intitulado Convertir el desierto, este será nosso objeto de análise neste artigo. Nesta narrativa, conhecemos a história de uma mulher que teve que mudar para a Espanha para fugir de uma realidade traumática. Ao longo do texto é possível perceber que a protagonista carregava consigo um sentimento de vingança e ódio, os quais transformaram sua vida. Por fim, Maria R., ao longo de sua jornada, é dissuadida a não realizar sua retaliação. Destarte, buscamos constatar, neste item, como a década de 1960 e a revolução cubana influenciaram na literatura hispanoamericana, incluímos, ainda, alguns dos escritores que mais se destacaram neste período, por fim, trouxemos um breve resumo da vida de Reina Roffé e do conto Convertir el desierto, que se encontra na obra Aves exóticas. Cinco cuentos con mujeres raras (2004), o qual iremos investigar na parte seguinte deste estudo. Desta forma, buscaremos validar a importância da escrita de autoria feminina, bem como seus reflexos no texto literário. CONVERTIR EL DESIERTO: As sombras e seu ressignificado O título é uma síntese precisa do texto, cuja função é estratégica, pois: ele nomeia o texto após sua produção, sugere o sentido do mesmo, desperta o interesse do leitor para o tema, estabelece vínculos com informações textuais e extratextuais, e contribui para a orientação da conclusão. O título, então, tem a função de expressar o conteúdo temático de um texto, como também de orientar, em certa medida, a leitura, pois é usado para exprimir 4 Sempre que este termo for evocado dentro do trabalho, estaremos nos referindo ao Sistema de poder político, no qual as mulheres são reificadas e submetidas a dominação patriarcal branca. 567
Anais ou inferir o tema da narrativa, devendo ser interpretado em primeiro lugar, porque sua informação, formal ou semântica, inicia o complexo processo de compreensão. Dessa forma, decidimos pensar neste segmento a respeito do título Convertir el desierto presente na obra Aves Exóticas: Cinco cuentos com mujeres raras (2004) da autora Reina Roffé, bem como, o nome da personagem principal, na tentativa de desvelar os significados que se aderem aos termos escolhidos pela autora estudada. Com isso, buscaremos demonstrar os efeitos de sentido no título escolhido, tomamos como ponto de partida, os pressupostos teóricos descritos na obra A Metáfora Viva de Paul Ricoeur (1983). Partimos, dessa forma, da conjectura de que a metáfora é um veículo que produz conhecimento, dado conferível desde os estudos aristotélicos, e reiterado pelo filósofo francês supracitado. Assim, a plasticidade desta figura de linguagem tem o papel de criar diferentes efeitos no discurso com funções variadas, pois a metáfora se baseia na capacidade de ver os termos em lugar de outros. À vista disso, o tropo mencionado se materializa no título que estamos estudando, pois ao ler a narrativa Convertir el desierto, percebemos que Maria R., protagonista do conto, busca seu agressor “para matarlo y aniquilar en él el odio de su exilio involuntario, de su irremisible fracaso” (ROFFÉ, 2004, p. 7)5. Através do desejo de vingança, contra aquele que lhe causou sofrimento e a deixou sem aqueles que ama, a jovem vive solitária e alimentando as experiências traumáticas do passado. Este contexto, descrito pela autora, em nossa análise, e conforme a teoria alicerçada, é o deserto que precisa ser transformado. Mesmo com o passar do tempo, Maria R. ainda lembrava de aspectos marcantes: “veinte años queriendo haber sido uno de los cuerpos y no un muerto que veía a otro muerto” (ROFFÉ, 2004, p. 8)6, preferia ter sua vida retirada, pois, teria sido mais livre psicologicamente, o que não é, já que com o tempo ela esqueceu-se de viver, e dos prazeres que a vida poderia lhe proporcionar, como está posto na citação: “Había puesto diez mil kilómetros de distancia, se había esforzado por olvidar incluso creía haber olvidado el deseo de amar y ser amada, un título con honores, el ejercicio de una profesión y los prodigios que alguna vez 5 \"matá-lo e aniquilar nele o ódio de seu exílio involuntário, de seu fracasso irremissível\" (ROFFÉ, 2004, p. 7). 6 “vinte anos querendo ter sido um dos corpos e não um morto que viu outro morto” (ROFFÉ, 2004, p. 8). 568
Anais avistó en su futuro”. (ROFFÉ, 2004, p. 8) 7. Neste trecho frisamos que apesar da distância que ela coloca entre sua vida e o trauma, não conseguiu desvincular-se de tais sentimentos, pois, apenas um detalhe deflagrava uma gama de memórias do terror vivido, como podemos conferir no trecho: Pero unos meses atrás, un maletín de cuero con dos iniciales entrecruzadas la remitió a la casa y a los cuerpos, a las cosas que habían sido suyas y saqueadas. El maletín en el banco de andén, pertenecía a un extraño, un extraño con el que había convivido veinte años. (ROFFÉ, 2004, p. 8)8. Assim como no exemplo apresentado anteriormente, onde uma especificidade determina um significado, logo, destacamos que na metáfora o “mesmo”, opera, apesar do “diferente” (Ricoeur, 1983, p. 301). Em outras palavras, o texto apresenta uma gama de sentidos. Cada um deles se converte em outros caminhos, que se justapõem e se contrapõem na incompletude textual, cujo objetivo é buscar uma possibilidade de leitura, neste caso, relacionado com os eventos traumáticos que a protagonista vivenciou. Maria R. não fazia planos, repetia e repetia uma rotina angustiante que a mantinha solitária e em contato com seu trauma. Isto limitava a jovem a uma vida de isolamento e em contínua agonia: María tampoco había soñado con ir a la India. En realidad, prefería no recordar los sueños. A veces, al despertar, tenía atisbos de algo soterrado, tal vez la raíz de un deseo barrido por la consciencia de imitarse a sí misma, el prototipo de mujer que repetía cada mañana, previsible como la taza de té deliberadamente amargo que bebía antes de partir hacia el trabajo. Un trabajo sencillo, muy por debajo de sus cualidades, con una remuneración discreta, que le dejaba la tarde libre para encerrarse en su cuarto, en su tenaz aislamiento. (ROFFÉ, 2004, p. 9)9. 7 Afastou dez mil quilômetros, esforçou-se para esquecer, até acreditou ter esquecido o desejo de amar e ser amada, um título com honras, o exercício de uma profissão e as maravilhas que um dia viu em seu futuro. (ROFFÉ, 2004, p. 8) 8 Mas há alguns meses, uma pasta de couro com duas iniciais cruzadas a enviou para a casa e os corpos, para as coisas que haviam sido dela e saqueadas. A pasta no banco da plataforma pertencia a um estranho, um estranho com quem ele vivia há vinte anos. (ROFFÉ, 2004, p. 8). 9 Maria também nunca sonhou em ir para a Índia. Na verdade, ele preferiu não se lembrar dos sonhos. Às vezes, ao acordar, ela tinha vislumbres de algo enterrado, talvez a raiz de um desejo conscientemente varrido de imitar a si mesma, o protótipo de uma mulher que ela repetia todas as manhãs, previsível como a xícara de chá deliberadamente amarga que ela bebia antes de dormir. . Um trabalho simples, muito aquém 569
Anais Portanto, Maria R. passou anos tendo uma vida na qual repetia doentiamente a mesma rotina, com o anseio de encontrar o seu agressor. Isto a impedia de sonhar com outros caminhos possíveis para sua vida. Até que, durante uma de suas viagens em trem, se depara com el maestro, a princípio, apenas um senhor que lhe chamou atenção. Na citação a seguir demonstramos a primeira vez que a protagonista fixa atenção em alguém: Hacía un par de tardes que su trayecto coincidía con el de un anciano de boina blanca. Solía bautizar a los desconocidos con un nombre o un apelativo, y a éste lo llamó el maestro. Un mismo camino los había reunido, pero el itinerario de cada uno tenía finalidades distintas. Él iba a salvar a un hombre de la muerte, ella a matarlo. (ROFFÉ, 2004, p. 6)10. Sendo assim, mal sabia Maria R. que o ancião em questão iria ajudá-la a transformar suas inquietações com um passado de terror em um presente agradável: El maestro, que esta vez se había sentado frente a ella, la observaba con insistencia. Por un momento, le sostuvo la mirada; él aprovechó para decirle: -Hay que convertir el desierto. - Sí - respondió débilmente María, y pensó que había demasiados locos y demente seniles. Pensó, además, que el apelativo maestro le quedaba grande, más apropiado era denominarlo viejo a secas, no quería cometer el exceso de llamarlo viejo loco. (ROFFÉ, 2004, p. 6)11. A partir deste momento Maria R. começa a identificar o quanto sua vida estava previsível, solitária e sem perspectiva, apenas preenchida pelo seu desejo de retaliação ao das suas qualificações, com uma remuneração modesta, que lhe deixava a tarde livre para se fechar no quarto, no seu isolamento tenaz. (ROFFÉ, 2004, p. 9) 10 Durante algumas tardes, sua viagem coincidiu com a de um velho de boina branca. Ele batizava estranhos com um nome ou uma denominação, e este era chamado pelo professor. O mesmo caminho os havia reunido, mas o itinerário de cada um tinha propósitos diferentes. Ele ia salvar um homem da morte, ela ia matá-lo. (ROFFÉ, 2004, p. 6) 11 O Maestro, que desta vez estava sentada à sua frente, observava-a com insistência. Por um momento, ele segurou o olhar dela; aproveitou para dizer: -Você tem que converter o deserto. - Sim - respondeu Maria fracamente, e ela pensou que havia muitos loucos e loucos senis. Ele também achava que o mestre de denominação era grande demais para ele, era mais apropriado chamá-lo de velho, não queria chegar a chamá-lo de velho maluco. (ROFFÉ, 2004, p. 6). 570
Anais homem que a transformou em uma sombra de si mesma. Logo, a partir do exposto, percebemos que o silenciamento ecoa na vida da protagonista até o momento em que ela, contra sua vontade, estabelece uma relação fraternal com um senhor - Brais -, que a ajuda a vislumbrar outras possibilidades para sua vida: A las puertas del hospital, María habló: -¿Qué me quiso decir, cuando me dijo hay que convertir el desierto? Brais se quitó la gorra y meditó su respuesta: -Es un verso -dijo antes de despedirse-, Me sirve para entablar conversación. (ROFFÉ, 2004, p. 7)12. No trecho anterior salientamos que o impulso do maestro põe a protagonista em contato com a possibilidade de convivência fora do trauma, distante da neurose causada pela experiência da violência de Estado. Situando, então, Maria R. na realidade positiva do presente. Dessa maneira, a protagonista finalmente chega ao fim de sua busca: [...] María oyó la voz de un hombre, saludaba a alguien; luego vio al hombre darse la vuelta y dirigirse en dirección contraria a la suya. A medida que se acercaba a ella fue relacionando la voz, con la cara, la cara con los ojos, el puño cerrado con los cuerpos, el maletín de cuero con su vida entera. Sintió la omnipresencia de todos los momentos del tiempo y un odio infinitamente instalado. Estaba a tiro y era tan repugnante como lo recordaba. Había llegado el final de la búsqueda. (ROFFÉ, 2004, p. 10-11)13. Nesse processo de redescobrir as relações interpessoais, Maria R. ganha a possibilidade, a partir da amizade com Brais, de não mais alimentar a dor que sentia pelo trauma de ter visto toda sua família morrer devido a violência de Estado Argentina e, 12 Nos portões do hospital, Maria falou: -O que você quis dizer quando me disse que tem que converter o deserto? Brais tirou o boné e pensou na resposta: -É um verso -disse antes de se despedir-, me ajuda a iniciar uma conversa. (ROFFÉ, 2004, p. 7). 13 [...] Maria ouviu a voz de um homem cumprimentando alguém; então ele viu o homem se virar e seguir na direção oposta dele. Ao aproximar-se dela, relacionou a voz com o rosto, o rosto com os olhos, o punho cerrado com os corpos, a pasta de couro com toda a sua vida. Ele sentiu a onipresença de todos os momentos do tempo e um ódio infinitamente instalado. Estava dentro do alcance e era tão nojento quanto eu me lembrava. O fim da busca havia chegado. (ROFFÉ, 2004, p. 10-11). 571
Anais então, sair do ciclo vicioso no qual se encontrava: [...] No era cobardía sino destiempo. Acaso un error en la cadena del azar: lo había matado ya tantas veces que repetir la escena se le hacía oneroso, absurdo, un acto de violencia contra ella misma. Quería reservar su coraje para repechar por donde más duele y alimentar el repentino y floreciente deseo de empezar nuevamente. (ROFFÉ, 2004, p. 11)14. Ao final, destacamos que todo o conto é construído de forma que o título se confirma como metáfora do enredo escrito por Reina Roffé (2004). Isto gera um novo sentido, pois entendemos que as palavras não possuem um sentido próprio, imutável e irrefutável; antes, que seu sentido é construído pelo e no discurso, partindo de “sombras” de significado convencionadas pela sociedade. [...] a linguagem é “vitalmente metafórica” (Ricoeur, 1983, p. 128). Em síntese, corroboramos com Ricoeur, quando afirma que a metáfora é transporte, substituição, comparação, tensão, corpo singular, é tecido, unidade de referência, tornando-a assim um instrumento epistemológico, que dentro da narrativa se materializa no título que analisamos ao longo deste apartado. Assim, consideramos que a força das relações interpessoais ressignifica a maneira de estar no mundo da protagonista, dando a ela um outro sentido e significado para as experiências cruéis do passado. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste artigo, percebemos a interseção entre memória, escrita e exílio a partir da narrativa de autoria feminina latinoamericana. Assim, identificamos no título Convertir el Desierto e na personagem Maria R. sombras deixadas pelo exílio, na construção identitária do sujeito. O conto nos possibilitou pensar a potência das relações humanas, e como elas nos oferecem a percepção de novos sentidos para a vida da protagonista. De forma mais ampla, as aves raras de Reina Roffé são mulheres que experienciam, através do seu corpo e sua 14 [...] Não foi covardia, mas um mau momento. Talvez um erro na cadeia do acaso: ela já o havia matado tantas vezes que repetir a cena parecia oneroso, absurdo, um ato de violência contra si mesma. Ela queria reservar sua coragem para escolher onde dói mais e alimentar o repentino desejo de recomeçar. (ROFFÉ, 2004, p. 11). 572
Anais mente, a violência da necessidade de exilar-se. São raras no sentido de serem estranhas ou estrangeiras, por estarem fora da convenção social hetero-dominante. Por fim, de acordo com Consentino no artigo “A mudez, viva voz” (2010) “uma mulher rara é tão vasta para o imaginário social, que seria dificílimo, num só olhar, fazer uma descrição dela mesmo” (CONSENTINO, 2010, p. 2-3), e por serem consideradas raras, são excluídas, exiladas, silenciadas. Em contrapartida, reconhecemos que a potência das relações ressignifica a forma da jovem se relacionar com os efeitos de um passado cruel. REFERÊNCIAS COSENTINO, Gatón. A mudez, viva voz. Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, Universidade Federal de Santa Catarina, agosto de 2010. EAGLETON, T. Una introducción a la teoría literaria. Madrid: España, 1993. p. 153. ECO, U. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996. RICOEUR, P. A metáfora viva. Coimbra: Rés, 1983. ROFFÉ, Reina. Aves Exóticas. Cinco cuentos con mujeres raras. Editorial Leviatán, Buenos Aires - Argentina, 2004. p. 43. TODOROV, T. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979. VIDAL, Paloma. A história em seus restos: literatura e exílio no Cone Sul. São Paulo: Annablume, 2004. 98 p. 573
INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES: IDENTIDADE REFLETIDA NO ESPELHO DA LÁGRIMA Gisele Silva OLIVEIRA (Universidade Federal de São Carlos)1 RESUMO Este trabalho tem como foco a reflexão acerca do processo de formação identitária das mulheres negras representado no livro Insubmissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo, em especial no conto Maria do Rosário Imaculada dos Santos. Essa reflexão terá como base os conceitos de identidade e de pós-colonial, sob a perspectiva de Stuart Hall (1992; 2014; 2003) e ainda a categoria de amefricanidade proposta por Lelia Gonzalez (1988). Além disso será abordado o diálogo entre essa obra e narrativas mítico-religiosas relacionadas à Orixá Oxum. Palavras-chave: MULHER NEGRA; INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES; IDENTIDADE. ABSTRACT This work focuses on the reflection on the process of identity formation of black women represented in the book Unsubmissive women’s tears, by Conceição Evaristo, especially in the short story Maria do Rosário Imaculada dos Santos. This reflection will be based on the concepts of identity and post-colonial, from the perspective by Stuart Hall (1992; 2014; 2003) and also from the the category of Amefricanity proposed by Lelia Gonzalez (1988). In 1Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Literatura da Universidade Federal de São Carlos. Professora no Núcleo Dércio Andrade/Passos – Educafro/MG. Servidora do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Sul de Minas - Campus Passos, onde atua como auxiliar de biblioteca e membro dos: Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas e Núcleo de Estudos sobre Gênero e Sexualidade. 574
Anais addition, the dialogue between this work and mythical-religious narratives related to Oxum will be addressed. Keywords: BLACK WOMAN; WOMEN’S UNSUBMITTED TEAR; IDENTITY. Introdução Insubmissas lágrimas de mulheres é uma coletânea de contos, protagonizados por mulheres negras, cujos nomes intitulam as narrativas. O foco narrativo divide-se entre uma narradora ouvinte, que reuniu as histórias, e as protagonistas. Quando as protagonistas falam, os leitores são postos em paralelo com o lugar de escuta da narradora ouvinte. Assim, é perceptível a valorização da tradição oral africana, que, segundo Duarte (2014), se destaca na obra de muitos autores negros brasileiros, como Solano Trindade, Abdias Nascimento, Cuti e outros, que retomam a tradição griot na busca por trazer à tona uma voz coletiva e ancestral. Como comenta Conceição Evaristo, sua escrita tem na memória individual e coletiva, especialmente nas lembranças do que ouviu, um aspecto essencial de sua gênese. Não se trata, porém, da reprodução de eventos tais quais aconteceram, mas de uma escrita gestada no limiar entre o lembrar e o esquecer, típico das dinâmicas da memória. É o esquecimento – seja individual ou no âmbito coletivo, pelo silenciamento da história e cultura do povo negro no Brasil - que desperta a necessidade de inventar, pois, entre o esquecimento e a memória residiria a invenção. Ao escolher a mulher negra como centro de suas narrativas, Conceição Evaristo reafirma sua prática de escrevivência, descrita como um jogo entre “escrever e viver, se ver” (EVARISTO, 2019). A lágrima insubmissa é espelho metafórico da dor e insurreição das mulheres negras e de todo povo negro na obra analisada. Esse espelho de água/lágrima nos remete à conexão da escrita de Conceição Evaristo com algumas das narrativas mítico-religiosas sobre Oxum, que abordam a relação entre essa orixá de águas doces e o objeto espelho. Gonçalves (2009) ao tratar dessas narrativas, nos leva a perceber que nessas histórias o espelho é não só símbolo de culto ao belo, mas também de conhecimento e poder. Conceição Evaristo (2013) apresenta-nos ainda outro aspecto da figura de Oxum que inspira sua escrita. A autora retoma uma narrativa, em que Oxum, apresentada como uma mulher pobre, vendia produtos na feira e se revolta ao perceber que trabalhava muito e 575
Anais continuava pobre, mas o palácio do rei era coberto de ouro. Após consultar Ifá2, que lhe aconselhou a levar um cesto de guloseimas para o rei, Oxum decide seguir o conselho, mas chegando lá, em ira começa a gritar contra a injustiça de, apesar do árduo trabalho, não ter nada e o rei ter tanto ouro. O rei para acalmá-la manda darem-lhe ouro, porém Oxum não para de gritar e quanto mais grita, mais ouro recebe. Logo muitas mulheres a ela se juntam, em coro, no grito pelo direito ao ouro. Assim, ela fica conhecida como dona do ouro e porta- voz das mulheres. É esse papel de porta-voz das mulheres que Conceição Evaristo afirma desejar em sua escrita e que podemos perceber representado em Insubmissas lágrimas de mulheres. Conceição Evaristo (2005) reflete sobre a representação da mulher negra na literatura escrita no Brasil, cuja perspectiva autoral é majoritariamente branca e masculina. Destaca, nesse contexto, o caráter subversivo da escrita de autoria feminina negra e o cuidado que tais escritoras devem ter a fim de produzirem uma literatura que se contraponha a estereótipos de personagens, como Gabriela de Jorge Amado ou Rita Baiana e Bertoleza de Aluísio Azevedo. A escre(vivência) das mulheres negras explicita as aventuras e as desventuras de quem conhece uma dupla condição, que a sociedade teima em querer inferiorizada, mulher e negra. Na escrita busca-se afirmar as duas faces da moeda num um único movimento, pois o racismo como lucidamente observa Sueli Carneiro “determina a própria hierarquia de gênero” em sociedades como as latino-americanas, multirraciais, pluriculturais e racistas. (EVARISTO, 2005, p. 6). É a essa dupla face, em jogo na constituição identitária da mulher negra, que se pretende analisar em Insubmissas lágrimas de mulheres, tendo como foco especial a personagem Maria do Rosário Imaculada dos Santos, protagonista do conto homônimo, que personifica a experiência diaspórica do povo negro, encarnando as implicações da violência colonial escravocrata, que culminam na busca por uma identidade perdida, estilhaçada. Essa questão da identidade será analisada com base em Stuart Hall (2014), para quem na modernidade tardia, as identidades não devem ser tidas como unificadas, fixas ou singulares, pois seriam marcadas pela fragmentação, pela fratura, uma vez “que construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicas (HALL, 2014, p.108).” 2 Na tradição Yorubá trata-se de um sistema divinatório. Esse sistema também é relacionado ao orixá Orunmilá que também é conhecido como Ifá. (VERDUGO, 2016) 576
Anais Interessa-nos, sobretudo, o destaque que Hall (2014) atribui à influência da historicidade nas transformações às quais as identidades estão sujeitas. Nesse sentido, importa considerar as implicações da experiência colonial e escravocrata e, posteriormente, do pós-colonial e do pós-abolição, quando se aborda a formação identitária da mulher negra no Brasil. Dessa forma, as reflexões do autor acerca do pós-colonial contribuirão com este trabalho. Explorando a problematização teórica da ideia de pós-colonialismo, Hall (2003) busca compreender o modo como se configuram as relações e, especialmente, a diferença numa era, em que esta última já não se constitui de modo evidente, como na oposição binária anterior entre colonizador e colonizado. Discordando de autoras(es), como Ella Shohat, Anne McClintock, e Arif Dirlik, para Hall, a ambivalência do termo pós - que ao mesmo tempo denota ruptura e continuidade com relação ao colonial – não é negativa, mas sim reforça seu potencial analítico. O autor também rebate a crítica de Ella Shohat, de que não há clareza se o pós-colonial é um conceito referente a mudanças de abordagem epistêmica, ou a transformações restritas a cronologia da história em si. Segundo ele, trata-se de uma coisa e outra, pois este período, em que as fronteiras que estabeleciam as diferenças encontram-se desestabilizadas e sujeitas a constantes reconfigurações, não pode ser compreendido por uma epistemologia que se restrinja a um estruturalismo binário, fixo, como no colonialismo. Guiando-nos por esse entendimento, trataremos o pós-colonial a partir desse entrelaçamento entre o cronológico e o epistêmico. Com relação ao aspecto cronológico, em Insubmissas lágrimas de mulheres está representada a experiência de mulheres negras, num período histórico, que, se já não é mais colonial e escravista, ainda se encontra marcado por uma reatualização de práticas de dominação, mesmo que de modos menos evidentes ou binários, o que nos põe em diálogo com a já citada ambiguidade do “pós”, enquanto ruptura e continuidade. No que concerne ao aspecto epistêmico, as narrativas analisadas, também nos chamam a atenção para as reconfigurações das estratégias de dominação no campo do saber. Refletindo sobre essas relações entre poder e saber, convém ainda considerar a obra analisada, enquanto publicação efetivada em um contexto, em que a construção do saber por meio da escrita reflete as relações de poder existentes em nosso país. Conforme se pode observar no trabalho de Dalcastagné (2005), as opressões raciais e de gênero refletem-se nas publicações literárias das grandes editoras, as quais em sua maioria são de homens brancos, o mesmo perfil predominante na composição da Academia Brasileira de Letras. O livro de Conceição Evaristo constitui assim uma contraposição ao cânone literário nacional, 577
Anais no qual a persistência da ideia de superioridade cultural dos moldes europeus/colonizadores ainda ecoa. Ainda sobre o papel da historicidade nas dinâmicas identitárias importa entender historicamente as relações raciais no Brasil. Assim, o diálogo com Lélia Gonzalez (1988), que demonstra a contraposição entre o racismo aberto dos mecanismos de colonização anglo- saxões, e o racismo disfarçado, das estratégias de dominação espanhola e portuguesa na América Latina mostra-se potencialmente produtivo e viabiliza explorar os contos de Insubmissas lágrimas de mulheres em relação com o que essa autora conceitua como amefricanidade, categoria político-identitária pautada no reconhecimento do que há de comum na experiência de subjugação vivida pelos negros nos países da América, e em suas estratégias de resistência política, cultural e artística, não porque se busque o retorno a uma África mítica, mas porque reconhecer a amefricanidade “[...]é reconhecer um gigantesco trabalho de dinâmica cultural que não nos leva para o lado do atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma no que somos hoje: amefricanos (GONZALEZ, 1988, p 79).” Insubmissas lágrimas de mulheres: espelho identitário de mulheres negras A identificação em Insubmissas lágrimas de mulheres revela-se uma busca, a começar pelo valor atribuído ao nome. Os nomes das protagonistas intitulam os contos. Além disso, o ato de nomear e a procura por um nome que seja símbolo pessoal são aspectos valorizados. Um exemplo está em Natalina Soledad. Devido ao desgosto por ter uma filha mulher, o pai a batizou como Troçoleia Malvinda Silveira. Apesar de poder trocar seu nome, ela escolhe como novo Natalina Soledad, cujo significado denota um “nascer solitário”. O estigma da solidão é ressignificado de modo mais belo no novo nome, mas permanece presente. Ao tratar da identidade, Hall (2014) parte dos diferentes sentidos atribuídos ao conceito no decorrer da história e da crise que essa noção enfrenta na modernidade tardia. O autor descreve três prismas sob os quais a identidade já foi compreendida. O primeiro, iluminista, parte de uma compreensão do sujeito baseada numa ótica de indivíduo centrado, unificado, racional e ativo. O centro desse indivíduo seria um núcleo inato que se desenvolveria, mas em essência permaneceria o mesmo, constituindo a identidade. A essa concepção sobrevém uma noção sociológica. Fruto da complexificação gradativa das sociedades contemporâneas, propõe que a identidade se forma na interação entre o eu e a sociedade. Nesse caso, a identidade suturaria o sujeito à estrutura, trazendo a ambos 578
Anais estabilidade, unificação e predizibilidade. Chegando ao terceiro sentido, o autor expõe que as transformações institucionais e estruturais da sociedade na modernidade tardia conduziram a uma fragmentação do sujeito, que passa a compor-se não de uma, mas várias identidades, por vezes antagônicas. É a essa terceira concepção que recorreremos, especialmente. Em Isaltina Campo Belo há um exemplo dessa convivência de identidades conflitivas. A protagonista inicialmente vive um conflito com sua identidade de gênero. Acredita ser menino e sofre por ser tratada como mulher. Na juventude tenta explicar ao namorado que não sente atração sexual, mas ele argumenta que estaria enganada, pois sendo negra certamente teria a sensualidade e o desejo aflorados. O fato de “ser negra”, na visão do namorado, afasta Isaltina da condição de mulher, pois a desumaniza, e a remete a uma condição animalesca em que os instintos prevaleceriam e na qual ela não teria consciência sobre si. Afasta-a, sobretudo, da concepção que se tem de mulheres brancas como puras e destituídas de desejo. Nota-se aí o que diz Evaristo (2003), sobre a luta de mulheres negras diferir-se da luta de mulheres brancas, uma vez que a identidade de gênero não se dissocia dos processos de racialização. Mais à frente, ao se apaixonar por uma mulher, Isaltina entende que seu conflito não era com o gênero, mas com a orientação sexual socialmente esperada. Nessa representação não há uma identidade unificada e fixa que defina o “ser mulher negra”, o que nos aproxima da abordagem discursiva que “vê a identificação como uma construção, um processo nunca completado – como algo sempre em processo (HALL,1992, p. 106).” Com base em Hall (1992, p. 108), para quem as identidades estão sujeitas a uma historicização radical, sempre em processo de transformação, e na presença de temas, como, passado escravista, pós-abolição e reconfigurações de relações de poder entre negros e brancos nos contos analisados, o conceito de pós-colonial parece profícuo às reflexões propostas. Hall (2003) considera o pós-colonial em termos históricos e epistêmicos e defende que o conceito não representa total superação do colonial, mas reconfigura e reatualiza a relação: colonizador e colonizado, para além do aparente binarismo anterior. Em Insubmissas lágrimas de mulheres há exemplos dessas reconfigurações das relações coloniais-escravocratas. Um deles é o conto Regina Anastácia, cujo cenário é uma cidade, onde descendentes de exploradores escravocratas dominam, no início da história, o comércio e a política locais, tendo os descendentes dos escravizados como empregados. 579
Anais Também em Rose DusReis, personagem, cujo sobrenome tem como marca a violência sexual sofrida pela bisavó escravizada, tais reconfigurações são representadas. DusReis vive uma infância marcada pela negação de direitos. Obrigada a trabalhar sem remuneração na escola para ter o direito a frequentar, apesar de romper a barreira que impedia o acesso de pessoas negras à educação, a situação de desvantagem, com relação às colegas brancas continuou sendo expressa de diversas formas. Conseguindo vencer as dificuldades e se formando bailarina (quase sempre a única negra nas companhias que integrou), ao fim do conto, a personagem executa uma coreografia criada com inspiração numa dança, por meio da qual os Kandianos (povo que conheceu em viagem a África) celebra a vida. A coreografia, porém, não é idêntica à dança kandiana. A referência é posta em confluência com o que aprendeu nas companhias de balé de tradição branca/europeia. Esse episódio dialoga com a necessidade apontada por Hall (2003) de pensar o mundo pós-colonial de modo diaspórico não originário, sob a ótica de hibridismo cultural, transnacional e transcultural. Nesse contexto do pós (colonial ou moderno) enquanto ruptura e continuidade: “A identidade torna-se uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente (Hall 2014, p. 13).” O sobrenome DusReis também reflete esse hibridismo. No contexto escravocrata, o povo negro perdeu o direito ao nome de origem, tendo os sobrenomes muitas vezes substituídos pelos de seus opressores, como no caso da família dessa personagem. Mas, nesse caso, o sobrenome imposto sofreu modificação. Não foi adotado exatamente Dos Reis, mas DusReis, registro mais próximo ao modo como os antepassados de Rose pronunciavam. Há, assim, um registro no próprio nome de família, das relações de poder estabelecidas, que se por um lado impedem o resgate a um nome e identidade originais dessa família negra, por outro produzem alterações no nome/identidade branca, evidenciando uma dinâmica de hibridismo cultural e a impossibilidade de retorno a uma identidade pura. A essa marca de africanização decorrente da oralidade dos povos de origem africana em território brasileiro Gonzalez (1988) denomina pretoguês. O exemplo da coreografia evidencia ainda a viabilidade de pensar as dinâmicas identitárias representadas no livro também em diálogo com a categoria de amefricanidade de Gonzalez (1988), pois essas representações conversam com a ideia da autora de pensar a identidade negra em países do continente americano, sem visar ao retorno à pureza cultural 580
Anais de uma África mítica, mas considerando as experiências do povo amefricano, desde o continente, do qual forçadamente saiu, até os processos de subalternização e resistência política e cultural em nações americanas. Sobre a resistência amefricana, Lélia Gonzalez afirma: Já na época escravista ela se manifestava nas revoltas, nas elaborações de estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento de formas alternativas de organização social livre, cuja expressão concentra-se nos quilombos, cimarrones, cumbes, palenques, marronages e maroon societies, espraiadas pelas mais diferentes pairagens de todo o continente. (GONZALEZ,1988, p. 79). A menção a estratégias de resistência do povo negro aparece algumas vezes em Insubmissas Lágrimas de Mulheres. Em Regina Anastácia, por exemplo, há a presença de um clube cultural negro na cidade onde se passa a história. Esse clube funcionava à época da escravidão, não apenas como um espaço de celebração e manutenção cultural, mas como um ambiente onde se planejavam revoltas e fugas. Essa resistência, entretanto, não é representada como uma estratégia que assegure uma total impermeabilidade cultural, mas sim como uma forma de, mesmo no contato com novas práticas culturais, não abandonar de todo as referências culturais de origem, ainda que estas sofram modificações nesse processo. Essa dinâmica se revela também no sincretismo religioso, abordado no conto Adelha Santana Limoeiro, em que a figura de Sant’Ana é acolhida pela narradora-ouvinte, porém em correlação com a figura de Nanã, pois se a santa era branca, seu orixá correspondente era negra e parecida com Adelha. Nesse contato entre o povo negro e o catolicismo imposto, percebe-se que se por um lado havia a problemática de esse diálogo ter se dado de forma impositiva, de modo a promover um embranquecimento da cultura negra, não se pode negar, entretanto, que a cultura negra, de certo modo, também enegreceu o catolicismo praticado no Brasil. Exemplo disso, seriam as congadas citadas no livro analisado, celebrações em que não é possível separar o catolicismo dos elementos advindos de religiões de matriz africana. Os conceitos de identidade e amefricanidade e os aportes da teoria pós-colonial se mostraram produtivos para pensar a obra de Conceição Evaristo. Assim, na seção seguinte o conto Maria Imaculada do Rosário dos Santos, será abordado a partir desse referencial. 581
Anais Maria do Rosário Imaculada dos Santos: a mulher negra portadora de uma voz coletiva O conto Maria do Rosário Imaculada dos Santos nos leva a duas vias interpretativas, que se confundem e se complementam. A primeira seria pautada na história da protagonista em si, e a segunda partiria da premissa de essa personagem e, consequentemente, a narrativa constituírem uma alegoria do povo negro trazido para o Brasil em diáspora forçada. Maria do Rosário Imaculada dos Santos viveu até os cinco anos numa pequena comunidade familiar. Morando em uma casa com a mãe, dois irmãos, mais duas tias e um tio, além de dois primos e os avós, tinha como vizinhos parentes de diferentes graus. Era uma comunidade situada no Brasil, mas onde residiam apenas pessoas de descendência africana. Sob uma perspectiva alegórica, essa moradia inicial da personagem, onde tudo lhe é familiar, poderia corresponder à situação do povo negro no período anterior ao tráfico negreiro. Até esse momento a formação identitária da personagem e do povo que ela representa está em consonância com a concepção sociológica de identidade relembrada por Hall (2014), uma noção de identidade que resultaria do diálogo entre o sujeito e os mundos culturais exteriores. “A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis (HALL, 2014, p. 12).” Entretanto, Hall (2014) entende que esse sujeito unificado, estável, bem como as identidades possíveis na sociedade, entram em crise no contexto pós-moderno, em que a identidade é destituída de estabilidade e permanência, adquirindo um caráter de mobilidade e transformação. Há um momento em que essa crise se instaura na história de Maria, que é o seu rapto. De um local, onde todos se identificavam nas feições e hábitos uns dos outros, é roubada ainda criança por um casal que inicialmente pensa ser de estrangeiros, mas depois descobre serem do sul do Brasil. Esse contato forçado com uma cultura diferente coloca em xeque um processo de formação identitária que até o momento construía-se de modo estável. Como ocorreu com as pessoas negras trazidas à força da África durante o processo de colonização e escravização no Brasil, a personagem adentra em um universo social, no qual diferentes estratégias serão utilizadas a fim silenciar sua origem histórica, cultural, enfim sua identidade construída até o momento. Perde o direito ao próprio nome, não ouve ou tem possibilidades de compartilhar sua história com aqueles que a roubaram. Convém lembrar que Hall (2003), ao defender o potencial analítico do conceito de pós-colonial, em sua 582
Anais ambiguidade semântica: cronológica e epistemológica, faz-nos também compreender o colonial a partir desses dois âmbitos. Nesse sentido, é interessante destacar que Maria não é escravizada de imediato pelo casal, mas é antes submetida a táticas epistemicidas. Esse epistemicídio faz-se presente nas estratégias de silenciamento citadas e é usado na tentativa de provocar no sujeito - leia-se aqui tanto a personagem quanto a coletividade negra escravizada à qual representa - um esquecimento de si mesmo, de seu próprio saber, fazendo com que se torne cada vez mais suscetível a imposição do saber e, consequentemente do poder alheio. Lélia Gonzalez (1988) ao refletir sobre as estratégias de estilhaçamento cultural nas práticas de dominação luso-espanhola em países da América Latina, ressalta o caráter disfarçado do racismo por denegação, forma de racismo, que, baseado numa ideologia de embranquecimento, leva pessoas negras a internalizarem a crença na superioridade da cultura ocidental branca e a renegar sua cultura e identidade de origem, pelo desejo de embranquecer-se. A autora destaca, entretanto, a resistência que se fez obstáculo a uma plena alienação. No caso de Maria, ela costuma recontar a si mesma sua história, ainda que cada vez mais esqueça pormenores. À medida que esquece, reinventa sua própria narrativa, que se não mais corresponde à original, é ainda, uma forma de manter sua voz ativa mesmo que apenas para si, é um contraponto de resistência ao silêncio imposto. Essa criatividade, que nasce da fronteira entre lembrar e esquecer, é representação da própria escrevivência no interior do enredo. Conceição Evaristo (2003), que acredita ser o inventado às vezes mais real que o real, funde a memória individual à coletiva, na personagem Maria. Se ora a história parecia ter início num trajeto forçado dentro de um carro, ora a lembrança tinha ponto de partida numa dolorosa viagem nos porões de um navio negreiro. A personagem, como Oxum e como a autora, adquire papel de porta-voz de um grito coletivo. Pelas lembranças narradas, busca- se a reconstrução daquela identidade de entendimento sociológico descrita por Hall (2014), isto é, diante de seu descentramento, fragmentação, o sujeito – neste caso, a personagem e o povo a que representa - busca sua essência numa origem com a qual deseja uma ressutura. No entanto, como aponta Hall (2003), ao refletir sobre as identificações diaspóricas no pós- colonial, é impossível o retorno a uma identidade original e fechada. Maria se depara com essa dificuldade de retorno. Quando tinha 12 anos, o casal se separou e mandou-a para a casa de uma tia deles, onde foi explorada nas tarefas domésticas. Mas, mesmo após deixar essa casa e ter certa autonomia que lhe permitiria regressar a Flor 583
Anais de Mim, sua cidade de origem, o receio de não encontrar o que esperava a fazia adiar a volta. Mudava-se constantemente, aproximando-se, mas sem coragem de chegar de fato até lá. Talvez o medo não fosse só de encontrar um lugar diferente, mas de ela própria ter mudado a ponto de não se identificar como antes, mesmo que lá ainda fosse parecido com o que se lembrava. Como os antigos escravizados negros e seus descendentes, ainda que de volta à sua terra de origem, jamais teria uma experiência de identificação equivalente à anterior. Lélia Gonzalez (1988) reflete sobre essa perda e procura por uma identidade original, criticando a busca que alguns negros vindos dos Estados Unidos, fazem, ao tentar encontrar na Bahia a sobrevivência da cultura africana. Segundo ela, a noção de sobrevivência já seria problemática ao denotar que algo escapou ao evolucionismo cultural eurocêntrico. Além disso, essa busca teria como premissa a ignorância acerca de um potencial cultural, criativo e artístico que já não se pode mais compreender como africano. A autora reforça, desse modo, a necessidade de uma forma de autodesignação, cujo compromisso não deve ser com a restituição de uma identidade original africana, mas com uma conceituação que abarque as experiências comuns ao povo negro na América, sem com isso romper de todo os vínculos a uma herança africana. Por isso, formula a categoria político identitária de amefricanidade. O acolhimento da vivência de trânsito e a relevância dada ao ato de narrar as experiências desse trajeto histórico, que reconhece a origem como ponto de partida, mas não se prende a ela, são aspectos importantes da identificação amefricana, que se encontram bem representados ao fim do conto analisado. Nesse desfecho Maria encontra sua irmã mais nova, em um evento sobre crianças desaparecidas, ao qual compareceu e em que uma moça, muito semelhante à sua mãe, narra a história de uma irmã perdida, o que lhe perturba. Porém não era o relato de minha irmã nascida depois de minha partida forçada que eu ouvia. Não era a fala dela que me prendia. E sim o Jipe. Lá estava o Jipe ganhando distância, distância, distância… Lá estava o meu irmão chorando no meio da história e eu indo, indo, indo… Quando acordei do desmaio, a moça do relato segurava a minha mão; não foi preciso dizer mais nada. A nossa voz irmanada no sofrimento e no real parentesco falou por nós. Reconhecemo-nos. Eu não era mais a desaparecida. E Flor de Mim estava em mim, apesar de tudo. Sobrevivemos, eu e os meus. Desde sempre. (EVARISTO, 2011, p. 53). Esse parágrafo final, em que o motivo de crise é, sobretudo, essa rota forçada, também se relaciona com o que Hall (1992) estabelece, ao propor que, estando a identidade radicalmente subordinada a uma historicização, o debate sobre ela deve considerar aspectos 584
Anais históricos, em especial a globalização e dinâmicas de migração, claramente forçadas ou aparentemente livres, que abalaram a aparente estabilidade das estruturas sociais e culturais. A fala de Maria ao dizer: “Flor de Mim estava em mim, apesar de tudo ” vai ao encontro da afirmativa de Hall (1992, p. 108) de que “as identidades parecem invocar uma origem que residiria em um passado histórico com o qual elas continuariam a manter uma certa correspondência.” Todavia, o autor aborda a importância da história, da linguagem e da cultura num movimento de identificação, em que reflexões sobre quem somos ou nosso local de origem tornam-se secundárias à indagação de quem podemos nos tornar a partir do modo como somos representados. Na fala da irmã, Maria encontra uma representação, em que sua infância não foi relegada ao silêncio. Pela primeira vez, pode ouvir sua história contada por uma voz que não é sua, mas uma voz irmã, familiar. A voz de alguém com quem pode revezar o papel de porta-voz, de si mesmo, das mulheres e do povo negro, vítima da diáspora forçada. Há, assim, tanto nos atos narrativos internos ao enredo, quanto na escrita de Conceição Evaristo em si, o que Stuart Hall (1992) chama de narrativização do eu, ação que se não permite um retorno à origem ou um voltar a ser quem se foi, abre possibilidades sobre quem podemos nos tornar. Convém destacar o autor diz, sobre o ficcional nessa narrativização. A natureza necessariamente ficcional desse processo não diminui, de forma alguma, sua eficácia discursiva mesmo que a sensação de pertencimento, ou seja, a suturação à história, por meio da qual as identidades surgem, esteja em parte no imaginário (assim como no simbólico e, portanto, sempre em parte construída na fantasia ou, ao menos, no interior de um campo fantasmático. (HALL, 1992, p. 109). Enfim, o conto em questão demonstra a riqueza da escrita de Conceição Evaristo, como prática, em que o jogo entre real e ficcional permite pensar a identidade negra, em especial da mulher negra, a partir de suas representações no interior do discurso literário. Considerações finais As análises sobre a obra objeto de estudo, evidenciara a busca por uma reconstrução identitária negra na literatura de Conceição Evaristo. Nessa busca, o poder de narrar, atribuído às mulheres negras, como herdeiras de Oxum, em seu potencial de fazer ecoar um 585
Anais grito e refletir especularmente a história de suas iguais e do povo negro teria papel fundamental. Nesse sentido, os estudos de Lélia Gonzalez (1988) e sua categoria de amefricanidade permitiram pensar a identificação racial representada nos contos, considerando os processos de dominação e resistência em países do continente americano e, especialmente, compreenderesse processo opressor luso-espanhol, baseado em estratégias de racismo disfarçado (por denegação), como fator que complexificou a identificação racial em países como o Brasil. Atentar-se a essa complexidade e à intersecção entre raça e gênero foi importante para que se considerasse a identidade em sua historicidade e multiplicidade, fatores, que como aponta Stuart Hall (2014), caracterizam os mecanismos de identificação na modernidade tardia. O diálogo com os conceitos de identidade e pós-colonial (HALL,1992, 2003, 2014) mostrou-se bastante produtivo para se compreender como os modos de representação e a narrativização do eu – mesmo marcada pelo ficcional - contribuem para os processos de formação identitária no contexto pós-colonial e pós-moderno. Nesse sentido, as reflexões nos levaram, enfim, a reconhecer a escrevivência como possibilidade de preencher lacunas e recontar a história das mulheres e do povo negro, construindo uma perspectiva que permita enxergar um outro modo de suturação e assim de identificação a partir da narrativa literária. REFERÊNCIAS DALCASTAGNÈ, Regina. A personagem do romance brasileiro contemporâneo (1990- 2004). Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 26, p. 13-71, 2005. DUARTE, Eduardo Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira. In: DUARTE, Eduardo Assis; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Orgs.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Belo Horizonte: UFMG, 2011, vol. 4, História, teoria, polêmica. EVARISTO, Conceição. Conceição Evaristo: a questão do negro não é para nós resolvermos, é para a nação. [Entrevista concedida a Pedro França]. Marie Claire, dez, 2019. . EVARISTO, Conceição. Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In: MOREIRA, Nadilza Martins de Barros; SCHNEIDER, Liane (Org.). Mulheres no mundo: etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia; Editora Universitária UFPB, 2005. EVARISTO, Conceição. Da grafia desenho de minha mãe: um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, M. A. (org) Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007, p.16-21. 586
Anais EVARISTO, Conceição. Depoimento da escritora Conceição Evaristo: depoimento proferido no V Colóquio Mulheres em Letras, na Faculdade de Letras da UFMG, em: 20 de abril de 2013. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=heHftI429U4. Acesso em: 15 dez. 2020. EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2011. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11.ed. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2014 HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações Culturais. Liv Sovik (org); Trad. Adelaine La Guardia Resende. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. HALL, Stuart.Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomas Tadeu (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 1992. p. 103-133 - GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988b, p. 69-82. GONÇALVES, Kary Jean Falcão. Oxum, mãe da beleza: o poder da divindade de maior popularidade do panteão afro-brasileiro. Revista Saber Científico, Porto Velho, v. 2, n. 1, p. 1- 14, abr. 2009. ISSN 1982-792X. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2021. 587
LITERATURA CONTEMPORÂNEA MARANHENSE DE AUTORIA FEMININA: DECOLONIZANDO A MATRIZ COLONIAL DE PODER EM QUEM É ESSA MULHER? (2018), DE MILENA CARVALHO Thais Nascimento da SILVA (UFMA/CNPq-IC)1 Cristiane Navarrete TOLOMEI (PGLB/PGCULT/UFMA)2 RESUMO Este artigo é resultado do projeto de pesquisa intitulado “Literatura contemporânea maranhense de autoria feminina: decolonizando a matriz colonial de poder em Quem é essa Mulher? (2018)”, de Milena Carvalho e tem por objetivo analisar como a autora apresenta em seu romance as imposições do sistema moderno/colonial de gênero e como esse sistema contribui para a subalternização da mulher negra na sociedade. A partir de uma leitura decolonial do romance foi possível observar como o processo de colonização contribuiu para a construção de um sistema que oprime e violenta as mulheres de cor. Também foi imprescindível para mostrar a relevância de se trabalhar com a literatura de autoria feminina maranhense, visto que essa se encontra marginalizada no contexto literário. Esta pesquisa possui uma abordagem qualitativa, bibliográfica e conta com as bases teóricas: 1 Graduanda em letras/Português- UFMA. Membro do grupo de pesquisa Marginália Estudos Decoloniais. Bolsista CNPq modalidade Iniciação cientifica. E-mail: [email protected]. 2 Doutora em Letras. Professora Adjunta III do Centro de Ciências Educação e Linguagem da Universidade Federal do Maranhão. Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras de Bacabal. (PGLB/UFMA e do programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (PGCULT/UFMA). E- mail:[email protected] 588
Anais Quijano (2015), Saffioti (2015), Lugones (2020), Correa (2014), Schmidt (1995) e Giddens (1992). O artigo encontra-se dividido em três principais momentos: no primeiro será discutido acerca da colonialidade de poder de Aníbal Quijano e a crítica de Maria Lugones, no segundo momento será debatido acerca da condição subalternizada da literatura de autoria feminina e por fim será feita a análise do romance Quem é essa Mulher? buscando mostrar como a autora apresenta uma personagem que sofre com a colonialidade de gênero. Palavras-chave: Quem é essa mulher?; Colonialidade do poder; Colonialidade de gênero; Patriarcado; Literatura feminina maranhense. ABSTRACT This article is the result of the research project entitled “Contemporary literature from Maranhão by female authors: decolonizing the colonial matrix of power in Who is this woman? (2018)”, by Milena Carvalho and aims to analyze how the author presents in her novel the impositions of the modern/colonial gender system and how this system contributes to the subordination of black women in society. From a decolonial reading of the novel, it was possible to observe how the colonization process contributed to the construction of a system that oppresses and violates women of color. It was also essential to show the relevance of working with literature by women from Maranhão, since it is marginalized in the literary context. This research has a qualitative, bibliographic approach and has the theoretical bases: Quijano (2015), Saffioti (2015), Lugones (2020), Correa (2014), Schmidt (1995) and Giddens (1992). The article is divided into three main moments: in the first, it will be discussed about the coloniality of power of Aníbal Quijano and the criticism of Maria Lugones, in the second moment, it will be discussed about the subordinate condition of literature by female authors and, finally, the analysis of the novel Who is this Woman? seeking to show how the author presents a character who suffers from gender coloniality. Keywords: Who is this Woman?; Coloniality of power; Gender coloniality; patriarchy; Maranhão women's literature. Introdução Este artigo intitulado “Literatura contemporânea maranhense de autoria feminina: decolonizando a matriz colonial de poder em Quem é essa mulher? (2018), de Milena carvalho, permite que haja um estudo acerca da condição da mulher racializada na sociedade brasileira, sobretudo, maranhense. A partir de uma perspectiva decolonial, esta pesquisa busca compreender como o processo de colonização contribuiu para a construção de um sistema que oprime e violenta as mulheres de cor. O romance Quem é essa Mulher? apresenta uma personagem feminina que teve sua vida interrompida por uma violência sexual, a partir desse acontecimento, o silenciamento tomou conta de sua existência. 589
Anais A partir deste artigo será possível demonstrar a relevância de se trabalhar com a literatura de autoria feminina maranhense, visto que essa se encontra marginalizada no contexto literário. Milena carvalho é uma escritora desconhecida do cânone literário, visto que por ser mulher sua escrita é inviabilizada e também porque os temas que a autora traz em sua obra são considerados tabus entre as pessoas. Para a realização desta pesquisa foi realizada uma entrevista com a autora visando coletar informações e contribuir para a fortuna crítica da obra. Os objetivos específicos desse trabalho referem-se a uma análise do romance Quem é essa mulher? (2018) de Milena carvalho buscando verificar como ele revela as barreiras impostas pela colonialidade de poder, que cria hierarquias de classe, gênero e raça, para isso, concentraremos-nos nas duas últimas hierarquias. Será observado a interseccionalidade das categorias de gênero e de raça e como isso contribui para a dominação da mulher de cor. METODOLOGIA Esta pesquisa é de classificação básica, pois não há aplicabilidade prática, para a sua realização seguiu-se as seguintes etapas: (i) pesquisa bibliográfica acerca dos estudos decoloniais, literatura maranhense contemporânea e fortuna crítica da obra da escritora por meio de levantamento bibliográfico e revisão de literatura.; (ii) quanto à abordagem, a pesquisa é qualitativa, pois não se preocupa com representatividade numérica e sim com o aprofundamento da compreensão do objeto, ou seja, a análise do corpus A Colonialidade do poder de Aníbal Quijano A partir das relações intersubjetivas contemporâneas que são baseadas em pressupostos do que é superior/ inferior, leva-nos a ideia de que a colonialidade permanece marcada nos níveis sociais e coletivo da sociedade. O colonialismo permanece vivo a partir da colonialidade, visto que mesmo após a independência da metrópole, as sociedades pós- coloniais, ainda mantém em suas estruturas relações hierárquicas baseadas na questão racial. O sociólogo peruano Aníbal Quijano discute a colonialidade do poder e de acordo com seus estudos afirma que “a chegada dos europeus é construída a partir da diferenciação que estes fizeram acerca da população que aqui se encontrava, eles se consideraram como 590
Anais civilizados em oposição aos considerados povos primitivos”. (2005, p. 117) Isso demonstra os efeitos de uma sociedade ocidental baseada no pensamento dicotômico. Quando a américa foi constituída, os povos colonizados foram classificados de acordo com a raça, com base nas diferenças fenotípicas os grupos foram divididos em superiores e inferiores. Dessa forma, os sujeitos inferiorizados foram destituídos de humanidade e dominados. As relações sociais que estavam se configurando foram baseadas a partir da dominação e exploração desses povos, cada grupo possuía lugares e papéis sociais baseados em sua raça. “Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população”. (QUIJANO, 2005, p.117). A colonialidade de poder se reproduz a partir de três dimensões: colonialidade do poder, do saber e do ser. Na colonialidade do poder, a raça dominante se mantem no comando do controle de trabalho, na colonialidade do ser, os indivíduos colonizados são vistos como irracionais, selvagens, aqueles que não possuem controle de sua sexualidade. E por fim, têm-se a colonialidade do saber, que dita que apenas os conhecimentos baseados na ciência e produzidos pela Europa são válidos. Quijano aponta que “toda sociedade é uma estrutura de poder” (2005, p. 130), e que existe uma relação de imposição de alguns sobre os demais. Ele divide o poder colonial em “controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, controle do sexo, de seus recursos e produtos e controle da autoridade, seus recursos e produtos (QUIJANO, 2005, p. 123). É interessante apontar esse aspecto, pois será comentado logo adiante. Sistema moderno colonial/de gênero de Maria Lugones Maria Lugones realizou um estudo crítico relacionado ao grupo modernidade/colonialidade- M/C, pois notou que Anibal Quijano aceitou o entendimento eurocêntrico de gênero. Ele não considera o gênero como algo construído, mas sim, como algo estritamente biológico. Quijano definiu o gênero baseado na biologia, e não considerou sexualidades outras, dessa forma, ele reduz o gênero a organização do sexo, seus recursos e seus produtos. (QUIJANO, 2005, p. 123). Essa redução que Quijano faz, leva Lugones a pensar que ele concorda com a compreensão de que os homens possuem o controle e as mulheres são os recursos. A colonialidade do poder de Quijano, não separa as categorias de gênero e raça, e invisibiliza a discussão acerca delas “Em vez de produzir um rompimento, ele se acomoda no reducionismo da dominação de gênero.” (LUGONES, 2020, p. 74). 591
Anais Segundo Lugones: “Como o capitalismo eurocêntrico global se constituiu por meio da colonização, diferenças de gênero foram introduzidas onde antes não havia nenhuma” (2020, p. 70) antes da colonização não existia um poder patriarcal nas sociedades pré- colombianas, ou seja, não havia hierarquias e papéis sociais baseados em gênero. As mulheres das comunidades não viviam subordinadas aos seus parceiros, pelo contrário, “muitas comunidades tribais de nativo-americanos eram matriarcais, reconheciam positivamente tanto a homossexualidade como o “terceiro” gênero (LUGONES, 2020, p. 71). Ou seja, a imposição de gênero, não significava apenas a divisão da sociedade baseado em homem/mulher, significava também que as mulheres racializadas estavam em uma posição inferior ao do homem, em um estado de subordinação e sem direitos. A partir desse processo, as mulheres de cor passaram a ser dominadas pelos homens. No que diz respeito da experiência da mulher negra na sociedade, observa-se que a colonialidade ainda permanece viva em suas vidas, visto que elas são violentadas, sofrem diversos tipos de pervenções e agressões sexuais. Em sua crítica a Anibal Quijano, Lugones propõe o sistema moderno/colonial de gênero, onde busca compreender a intersecção das categorias de gênero e de raça, pois segundo ela, o entrelaçamento dessas categorias colabora para a consolidação de um sistema que violenta e mata as mulheres negras. A partir da intersecção é possível enxergar a dupla opressão que as mulheres de cor sofrem, por serem mulheres e por serem negras. A proposta de Maria Lugones torna-se essencial para o estudo das opressões das mulheres racializadas, pois quando juntas, as categorias de gênero e raça mostram-nos as vitimas da dominação, que sofrem duplas opressões. Caso isolássemos a categoria mulher, consequentemente seria selecionada a mulher branca, burguesa, heterossexual e cristã e dessa forma, as mulheres não brancas seriam invisibilizadas. O racismo colonial que está presente em suas vidas não seria considerado, por isso, é importante destacar que as experiências de vida das mulheres são totalmente distintas. A escrita de autoria feminina maranhense A literatura brasileira por muito tempo foi composta pelo público masculino, em especial, pelo homem branco, burguês de classe média. Mesmo existindo muitas mulheres escritoras, existem poucos registros de romances publicados pelo público feminino. As mulheres demoraram adentrar no cenário literário, porque somente os homens podiam 592
Anais escrever e publicar suas obras. As mulheres estavam relegadas ao lar, por isso, acreditava- se que não existia a necessidade de elas terem acesso ao letramento. Acerca das mulheres negras na literatura, nota-se que elas enfrentaram mais adversidades, visto que sofreram discriminação por serem mulheres e por serem negras. O primeiro romance publicado por uma mulher foi em (1859) com a obra “Úrsula” da autora Maria Firmino dos reis, depois dessa publicação, apenas foi publicado outro romance em 1966 com a obra “A parede” de Arlete Nogueira. Isso mostra o vazio de uma publicação para outra, mostrando como as mulheres estavam subalternizadas no meio literário. Schmidt (1995) em sua obra que trata sobre gênero e literatura na américa latina afirma que: A literatura feita por mulheres envolve dupla conquista: a conquista da identidade e a conquista da escritura. Ultrapassados os preconceitos e tabus com relação ao potencial criativo feminino, vencidos os condicionamentos de uma ideologia que a manteve nas margens da cultura, superadas as necessidades de apresentar-se sob o anonimato, de usar pseudônimo masculino e de utilizar-se de estratégias para mascarar seu desejo, a literatura feita por mulheres hoje, se engaja num processo de reconstrução da categoria “mulher (...). (SCHMIDT, 1995, p.188). O acesso das mulheres a escrita foi crucial não apenas para que houvesse uma escrita voltada para temas do imaginário feminino, mas também para transformar a literatura como uma ferramenta de resistência. Porque a mulher sempre carregou estereótipos que a ligavam ao espaço privado, a dona de casa, a esposa, aquela relegada ao lar e nunca como alguém que pudesse produzir conhecimento. Por isso, a escrita feminina é importante para desmistificar esses estereótipos e modificar a representação da mulher na literatura, para que dessa forma ela possa sair de seu papel de subalternidade. O romance de autoria feminina maranhense também encontra dificuldades no contexto literário, ele é representado no século XIX, por Arlete nogueira, Conceição Aboud e Virgínia Rayol. De acordo com Correa (2014): (...)a produção feminina do romance maranhense não se faz tão expressiva em termos de quantidade, se não vejamos: no século XIX, apenas uma representante (Maria Firmina dos Reis), com uma única obra (Úrsula-1859); no século XX, três... cinco autoras, cada uma destas, fazendo-se representar com uma, no máximo duas produções do gênero. (CORREA, 2014, p. 164). 593
Anais Diante do exposto, nota-se que a escrita feminina maranhense por muito tempo foi silenciada, e quando se trata de uma literatura de resistência como é o objeto de estudo desta pesquisa que trata sobre violência sexual, patriarcado, sexismo, tende a ter mais impasses. A autora Milena Carvalho é cineasta formada pela Escuela Profesional de Cine y Artes Audiovisuales de Eliseo Subiela, em Buenos Aires. É também arquiteta urbanista, graduada pela Universidade Estadual do Maranhão. A autora dedica-se a estudos de escrita, produziu projetos com o romance que serve de estudo para esta pesquisa e com isso conseguiu auxiliar muitas mulheres em todo o Brasil. Milena Carvalho traz em seu romance, uma personagem feminina marcada pelas categorias de gênero e raça, a personagem Liane é uma mulher negra que sofreu violação sexual aos 17 anos. Ela também se difere do padrão de mulher ideal, contribuindo ainda mais para a sua marginalização. O romance é uma auto ficção, que relata a violência sofrida pela autora aos 14 anos, ela trabalha com temas sensíveis, como o estupro, o patriarcado e as consequências da violência de gênero na vida da mulher. O livro começou a ser escrito em 2012 como uma espécie de autoajuda para a autora, o texto tinha o formato de uma carta onde ela direcionava para as pessoas que passaram por sua vida. Após ter contato com um curso de escrita criativa, ela decide escrever o livro. Na entrevista cedida pela autora, ela vem falando sobre as dificuldades de se trabalhar com uma literatura de resistência onde trata da condição da mulher em uma sociedade patriarcal, ela afirma que o Maranhão é um estado onde os seus habitantes são muitos conservadores. Até mesmo falar sobre o trauma torna-se uma dificuldade. Como pode ser observado, a escritora feminina encontra obstáculos não somente na publicação de suas obras, mas também em trabalhar com temas que são considerados tabus para a sociedade. A obra O romance Quem é essa mulher? da autora maranhense Milena carvalho narra a experiência traumática de um abuso sexual que a jovem Liane Truga sofreu aos 17 anos de idade. O fato ocorreu no ano de 1991, na chácara de seu avô, quando um homem invade a residência atrás de joias e dinheiro. Porém, ele não encontra e decide descontar sua raiva 594
Anais violando o corpo de Liane. A partir desse acontecimento, Liane Truga teve sua vida mudada drasticamente, ela se distancia da família e de seus amigos, passa a se vestir como uma mulher mais velha e alimenta a ideia de que não merecia ser feliz. É interessante abordar a imagem de Marcinho dentro do romance, ele era o rapaz que ela se relacionava antes da violação, quando ocorreu o fato ela cortou os laços com ele porque acreditava que não merecia mais viver aquela paixão. Na entrevista cedida pela autora, ela fala da importância da criação desse personagem para a construção da narrativa, Marcinho nunca existiu, ele foi criado para representar todas as pessoas que passaram na vida dela e para esse personagem ela fala as coisas que não teve coragem ou oportunidade de dizer na época do ocorrido. Após vinte e cinco anos do acontecido, Liane acorda como em um sonho e passa a se questionar acerca do tempo que viveu sendo uma outra pessoa. Ela se permite passar por um processo de autodescoberta, a partir de uma conversa que ela teve com uma amiga que sofreu a mesma violência que ela, decide retomar a sua cidade natal, onde tudo aconteceu e em uma conversa com seu pai biológico decidem falar sobre o trauma sofrido. A partir disso ela reconheceu que não precisava de uma figura masculina para se sentir segura, ou seja, ela mesma poderia fazer aquilo por ela. A seguir, serão analisados alguns trechos que foram retirados do romance, quem é essa mulher? para que seja possível observar a situação da mulher racializada na sociedade patriarcal e como ela reage a esse sistema. No trecho abaixo a personagem Liane Truga relata o momento em que o violador invade a sua casa e pratica a violação sexual contra o seu corpo: Minha irmã sentou depressa, esbugalhou os olhos e não emitiu ruído sequer. Eu só tive tempo de emergir abrindo os meus e vê-la, quando ele me agarrou pelos cabelos, me arrastou até o poço, perguntou onde estava a porra das joias, a merda do dinheiro e voltou a me arrastar para o arroio, e empurrando a arma com mais força na minha cabeça, disse que ia trepar com alguém, e que eu podia escolher. -É tu, tua mãe ou tua irmã. (CARVALHO, 2018, p. 21). Liane Truga sofreu violência de gênero sexual quando tinha dezessete anos, mas a violação não foi cometida por uma pessoa do seu grupo familiar, e sim, por um indivíduo desconhecido que invadiu a sua casa. O trecho apresentado narra o momento em que o violador agride Liane e indaga-a acerca das joias da família. Percebendo que não teria êxito, ele decide descontar sua raiva sobre as mulheres da casa. É interessante observar que a 595
Anais partir do olhar europeu, as mulheres racializadas tiveram seus corpos objetificados, foram vistas como inferiores e sexualmente imperativas e isso justificava toda a violência e desumanização que elas tiveram que suportar. As mulheres racializadas atraem para si, a dominação sexual por parte dos homens, eles acreditam que por serem homens possuem poder sobre o corpo das mulheres. Como pode ser observado no trecho acima, o violador usa de seu poder sobre o corpo feminino para disciplinar Liane. Maria Lugones apresenta-nos o conceito de hierarquia dicotômica, onde afirma que os povos colonizados foram considerados como machos e femêas, dessa forma as mulheres de cor foram vítimas de estupros e violações. Essa perspectiva leva-nos a pensar acerca do sistema moderno/ colonial de gênero, proposto por Lugones (2020, p. 78), Liane é uma mulher marcada pelas categorias de raça e de gênero, e por isso enfrenta uma sociedade machista e patriarcal que oprime e violenta os corpos das mulheres. Ela como tantas outras estão vulneráveis a dominação masculina. No trecho abaixo, a personagem escreve uma carta endereçada ao seu namorado Marcinho, onde explica o porque de ter tratado-o mal quando este procurou-lhe depois do ocorrido. O menosprezo com que você pensa ter sido tratado foi tudo o que eu senti pelo lixo de mulher que acabava de me tornar. Maldito. Ele semeou, arou, colheu, debulhou e sovou um ódio quase tão medonho quanto o amor que você havia plantado em mim. (CARVALHO, 2018, p. 9). Safiotti traz um conceito de violência, onde afirma que: “Trata-se da violência como ruptura de qualquer forma de integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica, integridade sexual, integridade moral.” (SAFIOTTI, 2015, p 18). A violência não é apenas física, ela deixa traumas e feridas que são muito difíceis de cicatrizar, se é que cicatrizam. Como pode ser observado no trecho acima, a violência sofrida por Liane teve impactos na relação que ela tinha com as pessoas com quem convivia. Ela teve sua vida destruída, não conseguia manter relacionamentos afetivos e vivia uma história onde ela se colocava como coadjuvante. Giddens (1992) afirma que: Uma pessoa codependente é alguém que, para manter uma sensação de segurança ontológica, requer outro indivíduo, ou um conjunto de 596
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