Anais de passagem pode ser vista no trecho “Abre essa porta/Que direito você tem/ De me privar”, no sentido de que a privação da qual trata o eu-poético o limita a uma circustância desconhecida de inabilidade, inadvertido sobre a transferência de seus poderes para quem o quer fora do recinto, separado pela porta fechada. Em outras palavras, ao questionar sobre os direitos de quem o afasta, esses dois mundos se distanciam pelo portal trancado, criando uma nova passagem, ou seja, uma nova fase para esse casal. Enquanto isso, em “Atrás da Porta”, há a ideia desses opostos simbólicos entre dois mundos, o tesouro e a pobreza extrema, quando, no trecho “Sem carinho, sem coberta/No tapete atrás da porta/Reclamei baixinho/ Dei pra maldizer o nosso lar/ Sujar teu nome/ Te humilhar”, essas desventuras amorosas também se apresentam como ponto de separação de quem antes viveu juntos. Aliás, essa tensão tipifica algo que ocorreu recentemente na vida dos amantes, percebida pela expressão “dei pra maldizer”, a partir da qual entende-se um sentido de que esse comportamento não era assumido pelo eu-lírico antes, mas passou a ser conveniente após o infeliz evento que o casal sofreu em seu relacionamento. Assim, atravessada por maledicências, o que outrora era o recinto e ninho de amor, supostamente harmonioso desse casal, passou a ser um lar tenebroso, frio e solitário. Com referência ao abandono, intrincado pelos vocábulos que explicitam alguém exposto e descoberto, é possível ver uma maneira de expressar a situação de pobreza afetiva em que se encontra essa mulher, como nas palavras que se referem a um sentimento de mágoa e também de superioridade, ratificado nos trechos “sujar teu nome” e “te humilhar”. Apenas nesses dois excertos, são múltiplas as possibilidades de interpretação do símbolo porta, pelo seu valor dinâmico e psicológico. A Chevalier e Gheerbrant, isso se deve ao fato de tal objeto “não somente indica[r] uma passagem, mas convida[r] a atravessá-la. É um convite à viagem rumo ao além....” (CHEVALIER E GHEERBRANT, 2009, p. 734-735). Além disso, com essa moradia desfeita, o papel da porta ganha outros significados. No trecho “Desse castelo que eu construí/Pra te guardar de todo mal/Desse universo que eu desenhei/ Pra nós, pra nós”, pôde-se encontrar uma referência à nova funcionalidade da porta fechada pelo lado de dentro: há uma necessidade dessa mulher de se proteger daquilo que está do lado de fora. Portais chineses, por exemplo, são guarnecidos de símbolos que posicionam bem e mal sobre aquilo que está dentro e fora, respectivamente. Para a poética do espaço, “é justamente porque as lembranças das antigas moradias são revividas como devaneios que as moradias do passado são em nós imperecíveis.” (BACHELARD, 2009, p. 201). 247
Anais Essa moradia do passado é alegoricamente construída no edifício castelo, tanto no sentido histórico que esse tipo de lar remonta – com suas grandes aldravas, fossos, guarnecidos de medidas protetivas medievais -, quanto no seu sentido metafórico. Nesse trecho da música de Marcelo Camelo, a construção do castelo para guardar alguém de todo mal, somado ao que se trata de um universo desenhado, pela voz masculina, para “nós”, remonta ao passado amoroso do casal em crise, que, atados e enodados, são protegidos por essa moradia antiga. No entanto, ao guardar dentro desse universo já desenhado o outro sujeito da relação, tem-se, de um lado, a imagem cristalizada desse lar idealizado em contos de fadas e romances de cavalaria, para não somente proteger a donzela dos perigos externos, mas cercar, encarcerar, prender, aprisioná-la dentro dele. Porém, na canção, há, por outro lado, alguém que viveu nesse universo engendrado para sua estada, ou melhor, em sua prisão, até que dela tomou posse como sua: expulsando seu parceiro do universo antes arquitetado por ele mesmo. Assim, desenham-se dois opostos no poema, bem e mal, traída e traidor. Este último, visto como persona non grata ao recinto em que se protege a mulher traída, pode ser comparado simbolicamente ao mal que essa porta proíbe de entrar: quem está dentro se difere do vilão e é mais digno de proteção do que quem está na área externa. Analogamente, a simbologia retoma essa concepção quando postula sobre os portais em templos chineses, os quais, ao serem construídos com altura menor que a média da população visitante, fazem com que os fiéis ao templo se curvem para entrarem no recinto: “trata-se, ao mesmo tempo de proibir a entrada no recinto sagrado de forças impuras, maléficas, e de proteger o acesso são deles dignos.” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p. 735). Dito isso, sendo este recinto um castelo, no qual uma mulher se protege atrás da porta e obriga seu amante a se curvar a ela, implorando-lhe por favor que entre. Pôde-se inclusive perceber que essa dominação feminina da situação diverge de alguns conceitos arcaicos sobre a figura da mulher, muitas vezes relegada à figura de Maria, que na iconografia medieval se desenhava como uma porta fechada. Tal assertiva torna-se ainda mais provocativa quando, ao tratar da mãe de Jesus, vê-se a idealização de uma mulher distante das provocações carnais, sob os princípios de virgindade, pureza, maternidade, abnegação e devoção. Mas nem tudo é oposto em relação à mãe de Jesus e à voz feminina da canção de Marcelo Camelo: as percepções sensíveis promovidas, por exemplo, pelas relações sexuais, 248
Anais tornam-se menos visíveis entre o casal que discute na canção, já que a porta não permite contato físico entre os interlocutores do poema – o que é reforçado, por Chevalier e Gheerbrant (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2009, p.735), no fechamento das portas, movimento de “retenção do sopro e aniquilação das percepções sensíveis”. Outro aspecto relacionado à Bíblia pode ir, além de Maria, a como a porta é também demonstrada na passagem da vida para a morte. Nós vocábulos “Abre essa porta/ Não se faz de morta”, na canção de Camelo, há uma relação com a porta da morte (Isaías, 38, 10), também conhecida como porta dos in dermos ou da morada dos mortos (Mateus, 16, 18). Em ambas as histórias, o detentor desse poder de quem pode ou não acessar e sair da morte, é Jesus, soberano filho de Maria. Em Apocalipses (3,7), quem detém a porta dos mortos também é Cristo. No poema musicado, porém, o eu-lírico não tem mais esse poder, pois clama por sua parceira, calada como morta, pela oportunidade de entrar junto a ela no recinto. Agora, de posse do poder sobre a aldrava da porta de seu castelo, há o rompimento da dependência dessa interlocutora, quando em seu discurso abre mão de tudo o que não quer “guardar” – em oposição à finalidade de ser guardada nesse edifício, imposta pelo seu parceiro –, bem como quando reconhece a prisão em que esteve dentro do castelo, do qual quer se esquecer de “uma só vez”. Nesse momento, há intertextualidade de sua atitude com o significado escatológico da porta, que não apenas significa passagem, mas “iminência do acesso e da possibilidade do acesso a uma realidade superior”, ou seja, uma mulher que encontra vias de recomeçar sua vida sem necessariamente recorrer ao aprisionamento na relação em que esteve. Em contrapartida, na canção de Buarque de Holanda e Hime, a dependência emocional e sexual ainda se exprime, como em “Pra mostrar que ainda sou tua/Até provar que ainda sou tua”, assim como a devoção e a inaceitabilidade do fim do relacionamento, em “Eu te estranhei, me debrucei/ Sobre teu corpo e duvidei/ E me arrastei e te arranhei”, tal qual um ser humano essencialmente instintivo e afoito, mas indefeso; faminto, sem o que comer; saudoso de seu dono, mas magoado por ter ficado sozinho. Enquanto há um “crescendo” quanto ao papel feminino na primeira música, de uma mulher livre dos nós e dona do castelo que antes a prendia, em “Atrás da porta” há uma sombra de alguém que só se faz carne completa com a presença de seu amante no quarto. O desespero por essa pessoa que se vai é nítido em “E me agarrei nos teus cabelos/No teu peito, teu pijama/ Nos teus pés, ao pé da cama”, pois há um lugar de submissão assumido por essa mulher, em desespero, por ver a possibilidade de perder o lar que ambos construíram. Nota- 249
Anais se, enfim, o que Bachlelard postulou sobre a casa ser muitas vezes não um refúgio – no poema de Camelo –, mas um local que pode aprisionar e esmagar a personagem – na canção de Chico Buarque e Hime. Nesta, a figura feminina, de tão absorta na tentativa de não estar só, encontra-se sozinha e indefesa nesse exteriormente mais forte, que passa a ser seu “reduto” (BACHELARD, 2009, p. 227). E Freud explica?! Tomamos como referência para análise psicanalítica das duas composições musicais, o conhecido trabalho de Freud Dostoiévski e o parricídio (2014), a partir da articulação sobre a ideia de culpa, partindo das orientações do consciente e inconsciente do ser. É possível perceber no texto freudiano, que a culpa aparentemente inconsciente, pelo desejo de morte dirigido ao elemento paterno, é considerada como a mola mestra que provavelmente impulsiona os acessos histeroepiléticos de Dostoiévski, sendo esses interpretados como uma espécie de auto castigo alimentado a si mesmo através de sua identificação ao pai morto. No entanto, sucede-se, ainda, é que essa mesma identificação, demonstrava a oportunidade de atuação de seu desejo ilegítimo e consanguíneo, ou seja, o incesto. Desse modo é prudente que haja, conforme a citada obra que analisa o escritor russo, a afirmação e o reconhecimento de uma dupla função: de autocastigo e de realização do próprio desejo. Sabe-se que em seu trabalho, Sigmund Freud busca depreender, a partir da personalidade de Dostoiévski, em destaque, aos considerados ataques de morte, que tais manifestações são, na verdade, ataques epilépticos graves, que talvez pudessem ser classificados, segundo o psicanalista, um tom mais afetivo do que de fato orgânico para as crises: “Dostoiévski se definiu e era tido como epiléptico, com base em sérios ataques que envolviam perda da consciência, convulsões musculares e subsequente mau humor. É bastante provável que o que chamamos de epilepsia fosse apenas um sintoma de sua neurose” (FREUD, 2014, p. 341). A necessidade de castigo implícito, dentro do olhar punitivo de Dostoiévski formula as percepções de Freud, a partir de uma corrente psicológica moderna, a abordagem psicanalítica, a qual “inclina-se a ver nesse acontecimento o mais sério trauma, e na reação Dostoiévski o ponto central de sua neurose” (FREUD, 2014, p. 345), como resultante da incerteza voltada à afetividade desse indivíduo que alimenta traços sádicos contra si mesmo. 250
Anais Consequentemente, ratificando com isso, a proposição do “Eu e do Supereu”, proposta pelo psiquiatra, em que a primeira corresponde à modificação da parte do Id - aspecto instintivo do indivíduo - pela influência direta do mundo externo, em outras palavras, é a consciência, o “eu de cada um”, característica da personalidade. Enquanto que a segunda, diz respeito à conversão da parte do Id pelo aspecto moral da personalidade do indivíduo, quer dizer, é responsável por “conter” o Id, ou seja, reprimir os instintos primitivos com base nos valores morais e culturais. O adentrar no estado tensivo feminino pela porta: uma análise psicanalítica Se Freud sempre singrou mares em busca de um estatuto científico para a psicanálise, há de se convir que nunca tenha deixado de embebedar-se no porto seguro de suas fontes primárias, a arte. (MORAIS, 2006, p. 4). Partindo desse preceito, voltemos nossos olhares ao caráter psicanalítico das músicas: “Do lado de dentro” e “Atrás da porta”, possibilitando o encontro entre a psiquê humana, algo relativamente amplo, e a concretude da função poética da linguagem pelo ato da produção, na busca de aproximarmos o fazer psicanalítico e o poético, numa capacidade criadora de instaurar novas realidades, como o consequente adentrar pela “porta” no estado tensivo do eu-lírico feminino nas duas canções, através das seleções vocabulares dos autores que nos levam à observação das camadas sensíveis da estruturação. Percebe-se nas duas obras aqui analisadas, a presença de um eu-lírico explicitado como um sujeito que está em disjunção com o objeto – o amor. Ou seja, a não correspondência desse sentimento, através do negar a retribuição do afeto ao outro, delimitado pela existência do ego, do egoísmo, o que causa estranhamento na figura feminina, em função dessa mudança, além de propiciar o aspecto tensivo do eu-poético. De modo geral, esse ser apresenta um tom de desespero pelo descrédito à paisagem metafórica da separação, contradizendo a imagem principiada, o surgir do sentimento, o qual permitiu o adentrar no castelo ou no lar, conforme apresentado nas duas músicas, respectivamente. Porém, em decorrência do momento da partida, pelo transpor do elemento simbólico porta, traz o adeus como a ruptura sentimental. A representação do clima de tensão pode ser observada na estruturação dos versos condicionados à porta. A canção de Camelo, mostra-se como uma espécie de réplica de uma voz masculina que a princípio, apoiada por verbos conjugados no modo imperativo “Abre 251
Anais essa porta/ Diz o que é que foi”, tenta impor uma certa ordem à figura feminina, reafirmada na elocução a partir da posição sádica do Eu masculino junto à proposta de dominação “Desse castelo que eu construí/Desse universo que eu desenhei”. Em contrapartida, num segundo momento, o uso desse imperativo está subjugado a uma espécie de pedido a essa mulher, apresentado como o indício de reflexão desse homem ao reconhecer a provável culpa – Supereu. A atitude pode ser entendida como a sequela e a resistência da então companheira, limitada e protegida, conscientemente, pela presença e decisão de manter a porta fechada. No entanto, essa mesma sequência de conjugação verbal é observada a partir da figura feminina, durante o surgimento do diálogo formado pelo casal, porém há uma espécie de determinação desse modo imperativo que se sobrepõe ao anterior, proferido pelo sexo oposto: “Cala essa boca”, aqui é enaltecida a ordem pelo lado de dentro da porta, ou seja, pela companheira, todavia isso acontece como consequência do rompimento da ideia de dominação defendida pelo ex-companheiro. O exposto acima concede salientar a independência afetiva dessa mulher, conquistada e ratificada, simbolicamente, pela não abertura do elemento porta, pois se feita a ação, apenas contemplaria o caráter permanente de submissão, além de permitir a posição sádica do eu na relação desgastada. Ao mesmo tempo, percebe-se que ela, num processo de autocastigo, rememora, como numa posição masoquista, ações consideradas, naquele momento, destrutivas, em função de um sentimento: “Eu que lavei/ Os teus lençóis/Sujos de tantas/outras paixões/Que ignorei/As outras muitas, muitas”. A ideia da culpa é visivelmente apontada não por quem feriu, mas por quem foi ferido, pois aponta a cumplicidade daquela mulher aos atos ilícitos do companheiro que condicionada pelo sentimento amoroso, concorda em ocultar algo, as traições, o que justifica o momento de angústia da vítima. Em seguida, na demonstração desse empoderamento emocional, essa mulher minimiza essa tensão, apoiando-se numa verbalização imperativa num tom de pedido: “Vai, depois liga/Diz pra sua irmã passar”, mas que reafirma sua dominação frente àquele homem, assim como alimenta a liberdade conquistada: “Mas o universo hoje se expandiu”, apesar da não abertura da porta física, paradoxalmente, houve o querer abrir da porta psicológica “E aqui de dentro a porta se abriu”. Na canção de Chico Buarque e Hime, a tensão feminina é provocada pela ação oposta àquilo que era considerado habitual entre o casal, no atrás da porta. A cumplicidade erótica 252
Anais fortemente estabelecida, vinculada ao ato sexual, mas implicitamente exposta devido ao aspecto eufemístico da linguagem com a relação do que é permitido ocorrer após o transitar da porta como pode ser confirmado nos seguintes versos “Quando olhaste bem nos olhos meus/E o teu olhar era de adeus/Juro que não acreditei”. Nesse momento, os compositores apresentam a cena aflita do eu-feminino que se encontra em um intenso episódio de dilaceramento diante da interrupção da continuidade da relação amorosa. O que traz como resultado a brusca ruptura entre os amantes e a barreira que se instala pela porta que agora se fecha para não mais ser aberta para eles. À vista disso, decorre a relação psicanalítica demasiadamente forte, dentro de um viés sádico-masoquista “E me arrastei/E me agarrei”, em que ela se objetifica como algo que deve ser usado e gastado, assim como uma moeda de troca. Dessa maneira, a perda do amor próprio e do equilíbrio, num rebaixamento do ser ao nível da humilhação avalia o subjugar-se da emissora do texto. Algumas atitudes impulsivas, provenientes do desespero causado pelo contexto da separação: “Nos teus pêlos/Teu pijama/Nos teus pés/Ao pé da cama”, configuram-se como um ato de castigo provocado e aplicado a si própria. Notoriamente, é concedida na canção “Atrás da porta” a possibilidade de identificar uma teia intertextual com o repertório artístico e cultural do período Medieval, a partir do diálogo com a Cantiga Lírica Trovadoresca, especificamente a de Amigo, devido à condição de sofrimento amoroso feminino vivenciado, contudo dentro de uma nova roupagem. O alimentar do clima tensivo da figura feminina também pode ser favorecido pela estratégia de construção do poema musicado. O recurso estilístico cavalgamento, como em “Eu te estranhei, me debrucei/Sobre o teu corpo e duvidei” que decorre da suspensão de um verso que se completará no verso seguinte, realça a desconsolação da amante, trazendo uma ideia de soluçar durante o processo narrativo. Para mais, a posição do sujeito (Eu), logo após um pronome de 2ª pessoa (te) e em seguida o verbo, traz a percepção que apesar da ação ser forte e acentuada, mais forte, ainda, será o objeto (sobre o teu corpo). Além disso, Chico Buarque e Hime, ressaltaram o tom de reflexão sádica para essa mulher por meio da conjugação verbal, pretérita, apresentada. Verifica-se que o tempo passado é usado para rememorar algo que não acontece no presente e que possivelmente não ocorrerá no futuro. Consequentemente, os autores facilitam a chegada de uma atitude de reação por parte do eu-lírico, o qual caracteriza-se pelo teor inusitado dos versos \"Dei pra maldizer o nosso 253
Anais lar/Pra sujar teu nome, te humilhar/E me vingar a qualquer preço\", caracterizando a proposta de mudança sentimental do “Eu” sádico para fora. No entanto, o eu-feminino, transfigurado nos dois últimos versos, \"Pra mostrar que ainda sou tua/ Até provar que ainda sou tua...\", reassume a posição sádica para dentro, num modelo de punição a si mesma, ratificando a postura de uma mulher frágil, subjugada e dependente, emocionalmente, de um homem ingrato e egocêntrico. Considerações finais Neste trabalho foi exibida uma análise sobre a simbologia da porta e sua relação expressiva a uma relação amorosa, presente em duas canções: Do lado de Dentro e Atrás da Porta, composições nacionais dos autores Marcelo Camelo de Souza, da primeira obra; e Buarque de Hollanda e Hime, da segunda obra. Para tanto, utilizou-se Os estudos simbólicos desse objeto, por Chevalier e Gheerbrant (2007), e A poética do espaço, por Bachelard (2009). Em análise, o ritmo da relação amorosa presente nas duas composições foi vislumbrado, nas quais a tensão vivida dentro de uma relação sensualizada eroticamente e a conduta feminina marcada pelo sofrimento decorrente da partida de seu amor são opostas: de um lado, a liberdade de um eu-poético que transita para um momento sem as amarras medievais impostas pelo seu amante; do outro, a dependência de um eu-poético feminino que não consegue e não quer atravessar a porta, mas se esconde atrás desse objeto com as lembranças e mágoas de uma relação outrora existente. Tais constatações trouxeram à tona o caráter psicanalítico do estudo, com as contribuições de Sigmund Freud, por meio de suas Obras completas (2014); em verificação, notam-se as tensões provocadas pelas escolhas lexicais de ambas as composições, as quais se relacionam à simbologia da porta pela presença de verbos no pretérito, indicando a ruptura do relacionamento; do imperativo, reforçando o empoderamento feminino, bem como outras impressões e analogias de libertação e prisão antitéticas, quando defrontadas as duas canções. Por fim, os subtópicos em que se relacionam os versos de ambas as composições demonstram que a perspectiva de análise do elemento simbólico “porta” dialoga com a interpretação psicanalítica do estado tensivo do eu-lírico. Isso ocorre, enfim, pela observação dos universos criados nas canções, em que se apresentam momentos nos quais se reconhecem uma figura feminina, um sentimentalismo e certa ambiguidade. 254
Anais Tal ambiguidade revela uma ideia de oposição entre a liberdade, em “Do Lado de Dentro”, e o aprisionamento, em “Atrás da porta”. Sendo assim, mesmo que essa ideia de cerceamento próprio, revelada na segunda canção, pareça minimamente consensual na visão do eu lírico feminino, a primeira música já rompe com esse ideário de dependência afetiva da figura da mulher e aponta para um novo comportamento, o de empoderamento. Referências BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1958. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos símbolos: mitos, sonho, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. FREUD, Sigmund. Obras completas: inibição, sintoma e angústia, o futuro de uma ilusão e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. MORAES, Marília Brandão Lemos. Poesia, psicanálise e ato criativo: uma travessia poética. Estudos de Psicanálise, Rio de Janeiro. n. 29. 2006. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372006000100008. 255
ESPAÇO NARRATIVO: O INSÓLITO E A VISIBILIDADE NOS CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E EDGAR ALLAN POE Mariluz Marçolla Ferreira AVRECHACK (PUC-SP)1 RESUMO Ao se tratar da literatura insólita, a paulistana Lygia Fagundes Telles (1918-2022) e o norte- americano Edgar Allan Poe (1809-1849) são dois nomes de destaque no cenário nacional e internacional, respectivamente. No que concerne à produção de contos desconcertantes, as obras “Venha ver o pôr do sol” (1988) e “O barril de amontillado” (1846) representam composições em que a criação do espaço narrativo atua enquanto estratégia fundamental para alimentar o imaginário do leitor. Dessarte, o trabalho busca investigar de que maneira se assemelham as construções estéticas do espaço insólito em ambas as narrativas mencionadas, além de buscar compreender como a linguagem textual construída pelos escritores opera enquanto mecanismo desencadeador da visibilidade dos espaços narrados nas obras. Os referenciais teóricos da investigação se constituirão por Mikhail Bakhtin, em Teorias do romance II: As formas do tempo e do cronotopo (2018 [1975]), Italo Calvino, no ensaio “Visibilidade”, presente na obra Seis propostas para o próximo milênio (1990 [1985]) e Remo Ceserani em seu livro O fantástico (2006 [1996]). O desenvolvimento do trabalho pode contribuir para o alargamento de estudos voltados à categoria do espaço narrativo – a qual possui sua poética ainda tão pouco explorada. A pesquisa é qualitativa, de caráter descritivo, seguindo o método analítico, hipotético-dedutivo. 1 Especialista (PUC-PR) com mestrado em Literatura e Crítica literária (PUC-SP) em andamento; Órgão financiador da pesquisa: CAPES; CPF: 171.585.857-35; E-mail: [email protected] 256
Anais Palavras-Chave: Literatura comparada; Fantástico; Espaço narrativo; Lygia Fagundes Telles; Edgar Allan Poe.ABSTRACT In fantastic literature the Brazilian Lygia Fagundes Telles (1918-2022) and North American Edgar Allan Poe (1809-1849) are important names on the national and international scene. Concerning the production of disconcerting short stories, the works \"Come and see the sunset\" (1988) and \"The cask of amontillado\" (1846) are compositions in which the creation of narrative space acts as a fundamental strategy to feed the reader’s imaginary. Thus, the work seeks to investigate how the aesthetic constructions of the space are similar in both narratives mentioned, and also seeks to understand how the textual language constructed by the writers operates as a mechanism for the visibility of the spaces narrated in these short stories. The theoretical references of the investigation will be constituted by Mikhail Bakhtin, in Theories of the novel II: The forms of time and the chronotope (2018 [1975]), Italo Calvino, in the essay \"Visibility\", presented in the work Six memos for the next millennium (1990 [1985]) and Remo Ceserani in his book The Fantastic (2006 [1996]). The development of this research can contribute to the expansion of studies focused on the category of narrative space - which its poetic still almost unexplored. The research is qualitative, descriptive, following the analytical, hypothetical-deductive method. Keywords: Comparative literature; Fantastic; Narrative space; Lygia Fagundes Telles; Edgar Allan Poe O conto e o espaço visível: uma introdução “O homem possui a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de pensar por imagens.” (Italo Calvino) O gênero narrativo conto possui a qualidade de arrebatar o leitor em poucas páginas. É um gênero literário que se difere de outros por uma particularidade em sua elaboração: o alcance de efeitos expressivos com o mínimo de meios. Vários foram os escritores que se dedicaram à produção desse gênero narrativo, mas um deles possui grande destaque: o norte-americano já avalizado pela crítica universal, Edgar Allan Poe, nascido em Boston, em 1809. O escritor e crítico literário argentino Julio Cortázar (2008, p. 121) revela, em sua obra Valise de Cronópio, que “Poe escreverá seus contos para dominar, para submeter o leitor no plano imaginativo e espiritual”. Não só a extensão define uma obra como pertencente ao gênero conto, mas a capacidade de cativar a atenção, como percebe-se no conceito de conto, elaborado por Cortázar (2008, p. 122): “Um conto é uma verdadeira máquina literária de criar interesse”. Toda máquina é um dispositivo que se utiliza de energia e trabalho para atingir a um objetivo predeterminado, sendo assim, uma máquina literária seria um modelo 257
Anais de escrita ficcional idealizado e escrito de modo a gerar um efeito já planejado: o interesse do leitor. Essa máquina literária de criar interesse era tão clara para Edgar Allan Poe que o crítico chegou a elaborar, em 1846, o ensaio A filosofia da composição. Nesse trabalho, afirma ser imprescindível que a leitura ocorra “de uma só assentada”, de modo a se atingir certa “unidade de efeito” que é causada por um estado de excitação ou de exaltação da alma. Esse estado que a obra pode provocar no leitor só é conseguido por meio de uma leitura atenta, a qual não se pode alcançar em um gênero extenso (POE, 2011). Ao se abordar o conto como gênero literário, Poe é sempre evidenciado por ter sido responsável por importantes inovações relacionadas a esse gênero: Os comentários críticos de Poe em meados do século XIX são responsáveis pelo nascimento do conto como um gênero único. Como o primeiro teórico do conto, ele trouxe à discussão questões de forma, estilo, duração, design, objetivos autorais e efeito no leitor, desenvolvendo a estrutura dentro da qual o conto é discutido até hoje. Avaliando o status do conto como gênero, ele o classificou como muito alto no panteão das artes, perdendo apenas para a forma lírica. Sua maior contribuição foi o conto com tensão e, assim, o impregnou com os atributos definidores da poesia.2 (PATEA, 2012, p. 3, tradução nossa). Poe inovou e tornou-se um pilar na produção de contos. Depois dele, vários autores também enriqueceram a literatura desse gênero, dentre eles, uma especificamente chama atenção pelos pontos que se assemelham entre as suas produções e as produções do norte- americano: a brasileira Lygia Fagundes Telles. Nascida em São Paulo, em 1918, Telles foi considerada uma das maiores contistas do país, além de ter sido premiada internacionalmente. Mesmo com a diferença temporal existente entre esses escritores, observa-se que ambos empregam uma linguagem textual específica, da qual se revela o ambiente insólito das narrativas. De modo a avançar as teorias já amplamente conhecidas desenvolvidas pelo teórico búlgaro Tzvetan Todorov, o italiano Remo Ceserani (2006) é trazido à discussão. Para este crítico ainda pouco explorado, o fantástico seria um “modo” literário utilizado em obras 2Poe’s critical comments towards the middle of the nineteenth century are responsible for the birth of the short story as a unique genre. As the first short story theorist, he brought into discussion issues of form, style, length, design, authorial goals, and reader affect, developing the framework within which the short story is discussed even today. Evaluating the status of the short story as a genre, he ranked it very high in the pantheon of arts, second only to the lyric form. His major contribution was to invest the short story with tension and thus to impregnate it with the defining attributes of poetry. 258
Anais pertencentes a gêneros diversos. Vários teóricos conceituaram o fantástico como um gênero em si, mas aqui será compreendido enquanto modo, ou seja, enquanto uma estratégia narrativa para causar determinados efeitos no leitor, seguindo as postulações que se evidenciam no trecho: O fantástico envolve fortemente o leitor, leva-o para dentro de um mundo familiar, aceitável, pacífico, para depois fazer disparar os mecanismos de surpresa, de desorientação, do medo: possivelmente um medo percebido fisicamente, como ocorre em textos pertencentes a outros gêneros e modalidades, que são exclusivamente programados para suscitar no leitor, longos arrepios na espinha, contrações, suores. (CESERANI, 2006, p. 71). Ceserani (2006) afirma ainda que a partir da primeira metade do século XIX, surgiu uma clara prática textual que perdurou até o século seguinte, na qual o modo fantástico foi empregado como elemento fundamental em diversas obras literárias nas quais o autor tinha como principal intenção causar experiências intensas e inquietantes. Edgar Allan Poe escreveu por volta da metade do século XIX e Lygia Fagundes Telles, no século seguinte. Ao aliar essa premissa temporal juntamente com a unidade de efeito que suas obras geram à mente do leitor, observa-se que, segundo as postulações de Ceserani, Poe e Telles utilizaram em várias de suas produções o modo fantástico enquanto recurso narrativo, produzindo então, contos fantásticos. Dentro do conjunto de contos fantásticos elaborados por Lygia Fagundes Telles e Edgar Allan Poe, há duas obras que chamam atenção devido a suas construções narrativas, sendo “Venha ver o pôr do sol”, publicado por Telles em 1988 e “O barril de amontillado”, publicado por Poe em 1846. De modo a expor mais claramente o elemento que mais nos chama atenção nessas obras, apresentaremos brevemente o enredo de cada uma delas. Em “Venha ver o pôr do sol”, o personagem Ricardo convida sua ex-namorada, Raquel, para um último encontro. Raquel vai até o endereço indicado e percebe que esse encontro se dá em um cemitério abandonado, com o portão consumido pela ferrugem, o mato cobrindo até as sepulturas e as folhas secas espalhadas sobre os pedregulhos enegrecidos. A personagem continua a ser guiada por Ricardo até que caminham suficientemente longe de qualquer testemunha e, assim, Ricardo realiza sua vingança. Nessa narrativa, o espaço também é responsável pela construção do horror presente no conto. Em “O barril de amontillado”, o personagem-narrador Montresor manifesta o quanto já havia suportado as diversas ofensas do vaidoso Fortunato. Em um dia de carnaval, no qual 259
Anais Fortunato encontra-se alcoolizado, Montresor o atrai ao afirmar que possui, em seu castelo, um barril de amontillado e que precisaria de alguém que comprovasse a veracidade daquele raro vinho. Fortunato é guiado até a adega de Montresor, nas profundezas escuras de seu castelo. Ao chegarem fundo suficiente naquele ambiente, Montresor executa sua maligna vingança. Por meio desta breve explanação do enredo é possível perceber que a construção do espaço desse conto contribui para a criação do horror na diegese. Percebe-se um ponto especificamente inquietante: a construção do espaço narrativo. E, mais precisamente, a maneira como as construções tornam-se visíveis na imaginação do leitor durante o desenvolvimento da narrativa. A partir da leitura de obras literárias, a imaginação produz imagens, e, diante dessa produção imagética urge questionar: de que forma é possível aproximar a construção dos espaços narrativos nos contos “Venha ver o pôr do sol” e “O barril de amontillado”? Parte-se das hipóteses de que o espaço atua como mecanismo responsável pela construção da visibilidade (CALVINO, 1990) nos contos, pois este operador se projeta na mente do leitor e torna-se visível e o espaço narrativo é visível a partir da enunciação dos narradores, por meio da linguagem investida em ambas as narrativas breves. Para embasar a análise, o ensaio “Visibilidade”, de Italo Calvino, presente na obra Seis propostas para o próximo milênio (1985) se faz essencial pois nele Calvino aborda a questão da imagem visiva criada até o alcance da expressão verbal, com exercícios imaginativos. E, sobre o espaço narrativo, serão abordados os estudos de Mikhail Bakhtin presentes na compilação de ensaios intitulada Teorias do romance II: As formas do tempo e do cronotopo concebida ao longo da década de 30 e publicada apenas em 1975. Nessa produção, Bakhtin faz conceituações que embasam as relações entre tempo e espaço em narrativas em prosa, sendo um estudo basilar contemporaneamente. Por meio de uma análise crítica a respeito da visibilidade do espaço narrativo presente na construção dos contos fantásticos de Telles e Poe pretende-se discutir o conceito de Calvino a partir da construção de um elemento da macroestrutura narrativa – o espaço –, e assim, contribuir para a compreensão do lugar da imagem na literatura, a qual, segundo Octávio Paz (2015) possui o poder de dizer o indizível. A visibilidade O ensaio de Italo Calvino, intitulado “Visibilidade” é iniciado por uma citação da obra de Dante, O Purgatório, que revela: “Chove dentro da alta fantasia”. Calvino (1990, p. 97) 260
Anais complementa a citação, afirmando que “a fantasia, o sonho, a imaginação é um lugar dentro do qual chove.” É sabido que a chuva traz prosperidade aos terrenos de plantio, então, se a literatura é um terreno no qual se planta muitas obras potentes, chove nos contos “Venha ver o pôr do sol” e “O barril de amontillado”, tendo em vista seu caráter narrativo produtor de imagens pela imaginação. Para Calvino (1990, p. 99), a imaginação é crucial para a narrativa. O crítico conceitua que há dois tipos de processos imaginativos, “o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal”. Interessa-nos aqui o primeiro processo, o qual ocorre comumente na literatura, pois, ao ler qualquer texto, diante dos olhos do leitor se desdobra a cena lida, tal como uma projeção cinematográfica, como um “cinema mental” exibido em nossa tela interior. A imaginação visiva é, portanto, uma fantasia individual que compõe os lugares físicos, as personagens e as cenas que se passam aos olhos do leitor. A imagem visual surge primeiramente na cabeça do escritor, e esse deve deixar que a imagem guie sua imaginação, e, a partir do momento que é iniciada a escrita, a palavra passa a guiar a narrativa. Assim, a imaginação visual que havia se iniciado na mente do escritor, passa a perseguir a palavra escrita. A palavra pode ser passada a mais pessoas, e dessa forma uma narrativa é disseminada, e cada leitor imaginará visualmente o que está narrado por palavras, e que foi incialmente imaginado pelo escritor. Tal como um ciclo visual de imaginação-imagem literária. Enxergar a visibilidade de uma narrativa é viável mesmo que de olhos fechados. A imaginação projeta as imagens a partir do que está narrado em palavras escritas em uma folha de papel. Entende-se então que a partir da visibilidade é possível pensar por imagens. A formação da parte visual da imaginação pode ocorrer de algumas formas, como se observa no trecho: Digamos que diversos elementos concorrem para formar a parte visual da imaginação literária: a observação direta do mundo real, a transfiguração fantasmática e onírica, o mundo figurativo transmitido pela cultura em seus vários níveis, e um processo de abstração, condensação e interiorização da experiência sensível, de importância decisiva tanto na visualização quanto na verbalização do pensamento. (CALVINO, 1990, p. 110). Para o crítico, épocas especialmente ricas para a imaginação visual foram o Renascimento, o Barroco e o Romantismo, e alguns autores são considerados modelos para 261
Anais suscitar a imaginação visual em suas obras, em especial contistas do século XIX como Hoffmann, Nerval e Poe – um dos autores alvo de nossa análise. Em seu ensaio, Calvino já se demonstrava preocupado com a formação do imaginário em um período no qual as pessoas não precisam mais pensar por imagens. E realmente, na contemporaneidade, grande parte das imagens chegam ao leitor sem que o mesmo faça esforço algum para imaginá-la. As mídias digitais entregam um número incessante de imagens em períodos de tempo curtos demais, logo, o leitor de posts instantâneos em redes sociais de internet não desenvolve a parte visual de sua imaginação no mesmo grau que um leitor de narrativas o faz. Como ficariam as narrativas fantásticas em meio a isso? Nos contos fantásticos o leitor é mergulhado em inquietação do imaginário e aos arrepios na espinha. Mesmo o leitor despreparado, acostumado com imagens prontas aos seus olhos, rende-se a esse lançamento que a modalização fantástica e insólita construída de forma habilidosa lhe impõe. Acredita-se que o efeito da visibilidade da imagem nas narrativas fantásticas não se perde mesmo com as mudanças frenéticas no olhar do novo milênio. Tal posicionamento justifica-se pois, como define Gottfried Boehm (2015, p. 26), a partir da imaginação pictórica, “as imagens nos colocam em um estado de infância, e nos lembram como nós, crianças, aprendemos simultaneamente a ver e a fabricar imagens.” Ou seja, por mais que o homem contemporâneo receba, na maioria das vezes, a visualidade já pronta diante de seus olhos, na sua infância esse indivíduo exerceu sua imaginação por meio de leituras imaginativas de livros quando ainda nem era alfabetizado – assim como Calvino relata que era sua prática costumeira. Com isso, objetiva-se demonstrar que o exercício da imaginação visual ocorre desde a infância do indivíduo, e, quanto mais exercitada por meio de leituras literárias, mais aguçada e clara torna-se a visualidade dos acontecimentos narrados. A visibilidade da imagem, portanto, sempre poderá ocorrer, porém, a nitidez dessa visibilidade dependerá de treinamento, do exercício de leitura narrativa. A partir desta breve explanação sobre o conceito e expressão da visibilidade na narrativa, em especial da visibilidade insólita-ficcional, espera-se ser possível compreender como a imaginação torna uma imagem visível aos olhos do leitor, o qual passa a ler uma narrativa como se desenrolasse uma projeção cinematográfica diante de seus olhos. Assim sendo, um dos operadores narrativos em que melhor se pode ver projetada a imagem é o espaço da narrativa. À vista disso, cabe compreender um pouco sobre o espaço e o quanto 262
Anais sua construção estética pode atuar como elemento imagético de narrativas, em especial, de narrativas breves. O espaço narrativo imagético O espaço é um importante elemento da macroestrutura narrativa que, de uma maneira geral, pesquisadores não se debruçam com tanta expressividade, muito provavelmente pela relação que este operador possui com o tempo narrativo, sendo esse último a espinha dorsal do mecanismo tempo-espaço, e, portanto, o tempo acaba por ser o objeto de maior análise no âmbito dos estudos literários. Considera-se que o estudo do espaço narrativo requer maiores contribuições, assim será feita uma concisa elucidação a respeito deste recurso que pode ser compreendido como conjunto de referências de caráter geográfico e/ou arquitetônico que identificam o(s) lugar(es) onde se desenvolve a história. Ele se caracteriza, portanto, como uma referência material marcada pela tridimensionalidade que situa o lugar onde personagens, situações e ações são realizados. (FRANCO JUNIOR, 2019, p. 48). Dessa forma, observa-se que o espaço exerce a função de situar o leitor de uma narrativa em relação às situações que se desenrolam na diegese. É importante ressaltar que não se pretende fazer aqui um estudo meramente geográfico-linguístico do espaço narrativo construído nos contos fantásticos “Venha ver o pôr do sol” e “O barril de amontillado”. Nossa intenção é perceber como o espaço construído pelos narradores elaborados por Telles e Poe revela a imagem fantástica nesses contos. Para evidenciar a questão imagética que se manifesta a partir do espaço evidencia-se o teórico Bakhtin (2018) e seu conceito de cronotopo – entendido como as relações de tempo e de espaço que são assimiladas na literatura –, sendo então o “tempo-espaço” literário. Bakhtin (2018, p. 227) afirma que no cronotopo os acontecimentos do enredo se concretizam, ganhando forma e corpo e “o próprio cronotopo fornece um terreno importante para a exibição-representação dos acontecimentos” narrados. Bakhtin (2018) revela que há um significado figurativo do cronotopo que se manifesta por uma condensação espacial que concretiza o tempo em narrativas em prosa – podendo esse tempo ser histórico, o tempo da vida humana etc. – e, a partir disso, é criada a 263
Anais possibilidade de construir no cronotopo as imagens dos acontecimentos. Dessa forma, entende-se que toda imagem literário-ficcional é essencialmente cronotópica. Com tal característica, o espaço narrativo pode ser compreendido como um dos meios responsáveis pela exibição da visualidade da imagem narrada, tendo em vista o caráter determinante que esse elemento possui, a partir das conceituações de Bakhtin. E, sendo a construção do espaço um elemento tão marcante nas obras alvo de nossa análise, é evidente que a visibilidade desse espaço se projeta nos olhos conforme a leitura é feita. É razoável abrir ainda mais a reflexão a respeito da visualidade dos espaços nos contos de Telles e Poe e indagar se esse recurso seria o responsável pela aplicação do modo fantástico nas obras. O crítico de arte Alberto Tassinari, em seu livro O espaço moderno, postula sobre a obra de arte moderna e contemporânea, direcionando seus apontamentos mais especificamente às gravuras e pinturas. Tassinari (2001) aborda a questão da espacialidade de uma obra, definindo que há diferentes esquemas espaciais que correspondem a diferentes estruturas do espectador. Se transpusermos o olhar do filósofo para o escopo da literatura, percebe-se que camadas de sensibilidade podem ser despertadas no leitor a partir de uma obra literária, podendo essa obra avançar as diferentes estruturas subjetivas do ledor de uma narrativa. O espaço literário pode ser lido da mesma maneira por todos os leitores, no que se refere à linguagem textual apresentada, porém, a imagem visual construída por cada leitor através de sua visualidade do espaço narrativo se dá a partir da sua sensibilidade subjetiva, das diferentes estruturas do leitor que passa a ser um espectador da obra literária, de maneira particular e única. Entende-se as estruturas do espectador a que Tassinari se refere em relação às pinturas como as estruturas do leitor do espaço narrativo, as quais – por meio da leitura do texto escrito, passam a ser o espectador dos espaços apresentados na obra literária. Ao pensar no espaço de uma narrativa, essas estruturas são visualizadas de maneira subjetiva, a depender da sensibilidade e exercício imaginativo de cada leitor. A partir dessa reflexão, correlaciona-se a assimilação visual do espaço narrativo às reflexões de Calvino a respeito da visibilidade literária, e percebemos que a imaginação visual do espaço ocorre à medida que a enunciação do narrador representa o espaço e o leitor pode passar a perceber a espacialidade projetada em seus olhos. O sujeito da enunciação, por meio da linguagem empregada nos contos contribui para a descrição minuciosa do espaço, de modo que esse operador seja exibido visualmente a 264
Anais partir da escrita, transformando-se então no principal elemento construtor da imagem nas narrativas. A partir do que se apresentou até o momento, percebe-se que a reflexão sobre a visualidade percebida através da construção do espaço narrativo é relevante, principalmente para a contemporaneidade tão orientada pela imagem. Cabe agora analisar mais cuidadosamente como os espaços construídos por Lygia Fagundes Telles em “Venha ver o pôr do sol” e Edgar Allan Poe no conto “O barril de amontillado” revelam imagens na mente leitor, a partir da visibilidade. A visibilidade do espaço narrativo em Poe e Telles Neste tópico do estudo será demonstrado brevemente, a partir de trechos retirados das narrativas, como os autores alvo da análise elaboraram os espaços a partir da enunciação dos narradores de tal modo que se pode suscitar a visibilidade da imagem desses espaços na mente do leitor. A sequência de investigação se dará com base nas datas de publicação dos contos, sendo a obra de autoria do norte-americano o primeiro a ser destrinchado. O conto “O barril de amontillado”, Poe apresenta as personagens da narrativa e o plano de vingança de Montresor, que conduz Fortunato para sua adega que se localiza no palácio do personagem rancoroso. Montresor anuncia no diálogo que a adega está extremamente úmida, com as paredes cobertas de salitre. O leitor visualiza, através da leitura, o espaço profundo e insólito no qual Montresor leva seu amigo: Peguei dois archotes, um dos quais entreguei a Fortunato, e conduzi-o através de várias salas até a passagem da abóboda que levava a adega. Descia à frente dele uma longa e tortuosa escada, aconselhando-o a ter cuidado. Chegamos por fim ao sopé e ficamos juntos no chão úmido das catacumbas dos Montresors. (POE, 2017, p. 218-9). O diálogo revela que a adega é também uma catacumba e que há fileiras de garrafas de variados vinhos empilhadas no chão. Se observa mais detalhes no trecho: “Havíamos passado diante de paredes de ossos empilhados, entre barris e pipotes, até os recessos extremos das catacumbas.” (POE, 2017, p. 220). O clima de horror passa a dominar a narrativa a partir da descrição do espaço do conto, o leitor pode ver esse espaço ser exibido em seus olhos: “Passamos por uma série de baixas arcadas, demos voltas, seguimos para frente, descemos de novo e chegamos a uma profunda cripta, onde a impureza do ar reduzia a chama de nossos archotes a brasas avermelhadas.” (POE, 2017, p. 220-1). 265
Anais O leitor se vê guiado na cena pelo detalhamento com que o espaço sombrio lhe é apresentado. O personagem vingativo leva sua vítima até o recanto mais remoto da cripta e lá, há paredes já preparadas para a execução de sua desforra: Nas suas paredes alinhavam-se restos humanos empilhados até o alto da abóbada, à maneira das grandes catacumbas de Paris. Três lados dessa cripta interior estavam assim ornamentados. Do quarto, haviam sido afastados os ossos que jaziam misturados no chão, formando em certo ponto um montículo de avultado tamanho. Na parede assim desguarnecida dos ossos, percebemos um outro nicho, com cerca de um metro e vinte de profundidade, noventa centímetros de largura e um metro e oitenta ou dois metros e dez de altura. Não parecia ter sido escavado para um uso especial, mas formado simplesmente pelo intervalo entre dois dos colossais pilares do teto das catacumbas e tinha como fundo uma das paredes de sólido granito. (POE, 2017, p. 221). Através de sua imaginação visual, o leitor pode ver o personagem Montresor prender Fortunado por correntes na catacumba, e em seguida, emparedá-lo aos poucos com argamassa. Tudo já estava previamente preparado para o fim trágico de Fortunado. A estória arrepia, pois o leitor é capaz de visualizar toda a cena sombria se desenrolar pela visibilidade do local descrito na narrativa: “Empurrei a última pedra em sua posição. Argamassei-a. Contra a nova parede reergui a vermelha muralha de ossos. Já faz meio século que mortal algum os remexeu. In pace requiescat.” (POE, 2017, p. 223). A cena final do conto fantástico revela claramente que Montresor emparedou vivo o personagem Fortunado, e que ninguém jamais tocou nos ossos que ele depositou acima da parede na qual deixou Fortunato. A linguagem textual construiu espaço e, a partir daí, a visibilidade da imagem foi produzida nos olhos do leitor, causando-lhe efeitos. O conto “Venha ver o pôr do sol” possui a descrição dos espaços muito detalhada, o que facilita ainda mais a imaginação visual dessa narrativa. Telles abre o conto com o narrador, que está fora da estória, descrevendo que as personagens estão em um local quase deserto: “Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios.” (TELLES, 1999, p. 123). Não demora para que a personagem Raquel perceba que o encontro é em um cemitério abandonado, pois já à primeira vista há muros arruinados e o portão de ferro carcomido pela ferrugem. No conto de Poe, o leitor consegue visualizar a catacumba profunda, sombria e úmida do palácio, a partir da descrição narrativa do espaço narrativo, transformando esse espaço 266
Anais em imagem à sua mente. Telles alcança o mesmo efeito, pois é possível ao leitor imaginar visual e claramente a partir da linguagem que representa o espaço, como no trecho: O mato rasteiro dominava tudo. E não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrara-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira as alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. [...] às vezes mostrava certa curiosidade por uma outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados. (TELLES, 1999, p. 125-6). A construção do espaço em “Venha ver o pôr do sol” é muito cuidadosa, cada elemento inserido agrega tensão e inquietação à narrativa, como se observa no momento em que são descritas as sepulturas, com ervas daninhas brotando insólitas de dentro de fendas, os musgos cobrindo os nomes das lápides, as folhas secas no chão, nas quais os personagens vão pisando enquanto dialogam, revelando o silêncio daquele local inóspito. A imaginação visual do leitor acompanha a apresentação de cada detalhe, o clima insólito percorre a narrativa: Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia não furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidos, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira acordou tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba. (TELLES, 1999, p. 128). A partir das breves passagens dos enredos transpostas, é evidente o quanto o espaço se manifesta como recurso instaurador do modo fantástico nos narradores elaborados por ambos os escritores. O espaço pode ser enxergado claramente a partir da imaginação visual do leitor, que passa a ser conduzido pela adega e pelo cemitério como se estivesse ao lado das personagens na estória, no desenrolar da cena. É importante ressaltar que o leitor precisa estar aberto à essa visibilidade espacial, e assim, a narrativa penetra em várias de suas estruturas enquanto espectador, ou seja, o conto 267
Anais penetra em suas camadas subjetivas de visibilidade. Para atuar como espectador de uma narrativa, é necessário atenção aos detalhes apresentados pelos narradores – os quais são criações de Telles e Poe, caso contrário, pode haver lacunas visuais na projeção da cena imaginada por meio da leitura. Sobretudo, é importante lembrar que o processo de visibilidade gerado por meio da literatura não pode ser predefinido ou controlado, ele se desenvolve natural e organicamente à medida que o contato com diversas narrativas ocorre e se intensifica. Considerações finais Os espaços construídos nos contos analisados são insólitos, sombrios e assustadores. Portanto, a descrição minuciosa desses espaços, feita através da enunciação e linguagem textual, é responsável pela delimitação desses contos como fantásticos, tendo em vista que este operador narrativo cooperou para a aplicação da modalização fantástica nas obras. A partir da análise sobre o que é visibilidade literária e de como o espaço narrativo pode projetar a visibilidade nos olhos do leitor, é possível responder ao nosso questionamento inicial confirmando as hipóteses de que o espaço se constitui enquanto importante mecanismo gerador da visibilidade narrada, projetando-se na mente de quem lê os caracteres pretos em uma folha branca, a partir da enunciação dos narradores, ou seja, por meio da linguagem investida em ambas as narrativas breves. A visibilidade é construída através do trabalho de elaboração e escrita detalhada do espaço, através da linguagem textual dos contos, aliada à entrega do leitor ao texto. Essa entrega se dá no ato de se deixar levar pela imaginação visual que é exibida à mente desse leitor no decorrer da leitura literária. Dessa forma, quanto mais o leitor estiver em contato com obras ficcionais, mais facilmente o processo imaginativo visual ocorre. Do contrário, o contato em excesso com imagens prontas pode não fortificar tanto a imaginação visual do indivíduo. Diante do que foi exposto neste estudo, observa-se que há autores que estimulam de maneira mais clara a abertura à visibilidade em suas produções, por meio da manipulação da linguagem. Lygia Fagundes Telles e como Edgar Allan Poe buscaram nestas produções concretizar este trabalho. Após o que foi aqui apresentado, espera-se que nosso leitor busque realizar a leitura destes contos e libere a imaginação visual que os espaços fantásticos e insólitos podem suscitar, e dessa forma, experimente a visibilidade literária. 268
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UM ENTRE-LUGAR DE ENUNCIAÇÃO NA NARRATIVA CONTEMPORÂNEA: SORRIA, VOCÊ ESTÁ NA ROCINHA Josivânia da Cruz VILELA (UEPB)1 Wanderlan ALVES (Orientador – UEPB)2 RESUMO A virada dos anos 1990 para os anos 2000 marca o início de certa efervescência nos debates acerca da literatura, motivados em grande medida pelas supostas transformações no seu estatuto, na sua forma, e nos procedimentos estéticos e linguísticos colocados em prática no texto literário. O que ocorre é que a literatura, enquanto materialidade, e a própria concepção do que seja literatura, se transformam ou se atualizam, de modo a problematizar (novamente) os limites que haviam definido o literário com relativa comodidade até meados do ano de 1960, em prol da mescla, do jogo, da hibridação com os signos literários (linguísticos, culturais, sociais). Tendo isso em mente, no presente trabalho objetivamos analisar o romance Sorria, você está na Rocinha (2004), de autoria do escritor brasileiro Julio Ludemir. Composto por três partes que se fragmentam entre si, o romance se estrutura por meio de um processo escritural que articula a escrita jornalística, traços autobiográficos, diário pessoal e relato antropológico, compondo uma espécie de “objeto verbal não identificado”, no sentido em que o termo é utilizado por Flora Süssekind (2013) para discorrer acerca de práticas artísticas e literárias que não podem ser classificados tranquilamente, porque fogem às configurações tradicionais de enquadramento em gênero, por exemplo. 1 Licenciada em Letras – com habilitação em Língua Espanhola – pela Universidade Estadual da Paraíba. Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade da UEPB. Bolsista da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba. E-mail: [email protected] 2 Doutor em Letras e professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). 270
Anais Palavras-chave: Narrativa Contemporânea; Realidade-Ficção; Julio Ludemir. ABSTRACT The turn from the 1990s to the 2000s marks the beginning of a certain effervescence in the debates about literature, motivated largely by the supposed changes in its status, in its form, and in the aesthetic and linguistic procedures put into practice in the literary text. . What happens is that literature, as materiality, and the very conception of what literature is, are transformed or updated, in order to problematize (again) the limits that had defined the literary with relative comfort until the mid-1960s, in favor of the mixture, the game, the hybridization with the literary signs (linguistic, cultural, social). With this in mind, in the present work we aim to analyze the novel Sorria, você está na Rocinha (2004), by the Brazilian writer Julio Ludemir. Composed of three parts that are fragmented among themselves, the novel is structured through a scriptural process that articulates journalistic writing, autobiographical traces, personal diary and anthropological report, composing a kind of “unidentified verbal object”, in the sense that the term is used by Flora Süssekind (2013) to discuss artistic and literary practices that cannot be classified calmly, because they escape the traditional settings of framing in genre, for example. Keywords: Contemporary Narrative; Reality-Fiction; Julio Ludemir. Dentro-fora da favela: uma posição (possível) para narrar a periferia Fica parecendo um sonho, um delírio, uma visão, uma loucura: vista de longe, com seus milhares de luzes faiscantes, a Favela da Rocinha se assemelha a um gigantesco disco voador recém-pousado numa encosta de morro na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro (Geneton Moraes Neto, orelha do livro Sorria, você está na Rocinha, 2004) O trecho supracitado, de autoria de Geneton Neto, que se encontra logo na orelha do livro Sorria, você está na Rocinha remete à favela da Rocinha, no entanto, bem poderia ser direcionado ao romance (enquanto materialidade escritural) de Julio Ludemir, já que a narrativa do escritor brasileiro também comparte dessas indefinições próprias dos OVNIs. Composto por três partes que se fragmentam entre si, o romance se estrutura por meio de um processo escritural que articula a escrita jornalística, traços autobiográficos, diário pessoal e relato antropológico, compondo uma espécie de “objeto verbal não identificado”, no sentido em que o termo é utilizado por Flora Süssekind (2013) para discorrer acerca de práticas artísticas e literárias que não podem ser classificados tranquilamente, porque fogem às configurações tradicionais de enquadramento em gênero, por exemplo. Em Sorria, você está na Rocinha, Julio Ludemir narra a história de Luciano Madureira, jornalista que passa seis meses inserido na favela da Rocinha, com o objetivo de pesquisar 271
Anais sobre o lugar e seus habitantes para posteriormente escrever um livro. Esse personagem poderia ser pensado como uma espécie de alterego de Ludemir, em razão da convergência de elementos biográficos do escritor com aspectos da história narrada. Assim como o personagem do seu livro, Julio Ludemir passou seis meses na Rocinha para realizar pesquisas com o objetivo de escrever um livro, mas nesse período foi acusado de ser um X-9 (termo utilizado na gíria da favela para se referir a delator), o que o levou a ser julgado pelo tribunal do tráfico, e posteriormente absolvido. Só para citar mais um exemplo, outro fator que aproxima escritor e personagem é o fato de que em diversos trechos do livro Sorria, você está na Rocinha há menções acerca do romance No coração do Comando, que aparece como tendo sido escrito por Luciano Madureira. O livro realmente existe, foi o primeiro romance escrito por Ludemir, e publicado em 2002. É a partir desse entre-lugar de enunciação, dentro-fora da favela por ele pesquisada, que Ludemir escreve Sorria, você está na Rocinha, dando visibilidade a espaços e sujeitos marginalizados. E é também a partir desse lugar, “no meio” (para utilizar uma concepção de Reinaldo Laddaga, 2010), que Ludemir pinta o mosaico coral de uma sociedade perpassada por conflitos e diferenças sociais re/criando a “realidade” de indivíduos periféricos e experimentais, que figuram à margem de nossos sistemas de representação social e normalmente reaparecem na literatura também como representação ou figuração das margens ou à margem. Nessa edificação de mundos na linguagem, o pobre, o periférico e o marginal emergem sob aspectos e configurações fugidios. Ao construir sua narrativa mesclando certo efeito que é realista no estilo, mas livre quanto aos modos de criação e, mesmo, de fantasia do real, o escritor consegue distanciar-se das tradicionais dicotomias representacionais que relacionam a favela à delinquência, à barbárie. O que resta de inacessível à favela, no romance escrito por Ludmeir, é uma espécie de fantasma (LACAN, 2005) cuja lógica, instável ao olhar exterior, não se deixa circunscrever nem reduzir às representações midiáticas estereotipadas difundidas acerca da periferia, da favela, de sua população, de suas práticas cotidianas, sociais, culturais, etc. A primeira parte do romance, intitulada “Livro I – um dia com 36 horas e 120 mil habitantes”, é narrada por Paulete, produtor de moda que mora na favela e que desde a chegada do jornalista passa a ajudá-lo em sua empreitada. Mais do que isso, Paulete acaba apegando-se sentimentalmente ao pesquisador, o que o leva a tentar salvá-lo do tribunal do tráfico após este ter publicado um texto-bomba comentando aspectos da violência da vida na favela, assim como da economia do lugar. 272
Anais Nessa primeira parte da narrativa, dá-se ênfase à importância do estabelecimento de alianças e redes de solidariedade entre os sujeitos em um território como a Rocinha. São esses laços, estabelecidos seja com amigos, seja com inimigos, que garantem a sobrevivência dos moradores nessa ilha urbana, como vemos no relato: “em uma favela a gente só sobrevive se for capaz de fazer alianças estratégicas até mesmo com os nossos inimigos, não importando que eles sejam bem intencionados líderes comunitários, policiais corrompidos ou mesmo traficantes” (LUDEMIR, 2004, p. 18). Esses vínculos entre os sujeitos afetam diretamente a (e são afetados pela) constituição da favela, uma vez que boa parte das construções e reformas feitas na periferia só são possíveis graças à ajuda comunitária. Em via de mão dupla, se por um lado os sujeitos se unem em prol da favela, por outro lado, a favela se constitui e permanece existindo devido à união desses sujeitos. Inclusive, foi devido a essa união dos moradores que a favela conseguiu resistir às políticas de aniquilamento durante o período da ditadura, quando as ações de remoção foram intensificadas, como podemos perceber no seguinte trecho: [...] a bicha preta não esquecera as lições de solidariedade que aprendera na infância, quando acompanhei fascinado os trabalhos de mutirão para limpar as valas ou para transformar os vulneráveis barracos de madeira da favela nas sólidas casas de alvenaria de hoje. Foi graças a essa união que primeiro a Rocinha resistiu à política de remoção da ditadura militar, e depois conquistou o status de bairro que atraiu os investimentos públicos e privados que mudaram a sua paisagem urbana e social na última década (LUDEMIR, 2004, p. 33). Quisera chamar a atenção para o fato de que a solidariedade não é somente ensinada desde a mais tenra idade na Rocinha, mas vivida na prática, no relato. Há disputas e conflitos na Rocinha ficcionalizada por Ludemir, mas quando se trata de proteger a favela de ameaças que vêm de fora, sua população se une em prol do bem comum. Essa união também é colocada em prática quando a comunidade apresenta alguma necessidade (de certo modo, tudo, ou quase, parte de/ou é motivada por uma necessidade, no romance escrito por Ludemir). Foi por necessidade que emergiu a primeira escola da favela, assim como o bar gay. No primeiro caso, a motivação para a construção da escola se deveu a necessidade de “proporcionar [para as crianças] a matéria de que precisam para sonhar com dias melhores tanto para si como para a comunidade em que vivemos” (LUDEMIR, 2004, p. 20). Já no segundo caso, com a abertura de um bar gay na Rocinha, “a vida de todos os homossexuais do morro se tornou muito mais fácil” (LUDEMIR, 2004, p. 19); não necessariamente porque 273
Anais os preconceitos tenham acabado a partir desse dia, mas porque a abertura desse ponto de encontro potencializou a afirmação de tais sujeitos, o que os tornou mais fortes para continuarem resistindo. Ainda na primeira parte da narrativa, cabe ressaltar um trecho que corrobora a premissa de que a favela é sedimentada e constituída de relações de afecção negociáveis não somente no que concerne aos sujeitos, mas também no que diz respeito à própria realidade: “a vida na favela é uma eterna negociação com a realidade e os seus estreitos limites” (LUDEMIR, 2004, p. 56). De certo modo, negociar com a realidade também se configura como uma alternativa (talvez a única possível) para continuar sobrevivendo em um contexto de opressão; ou seja, negociar equivale a resistir (mas, por vias laterais) para continuar existindo. A segunda parte da narrativa é denominada “Livro II – os salvados”, possivelmente em referência aos dezesseis cadernos (salvos por Paulete) que a compõem, nos quais Luciano teria feito as anotações durante o tempo em que permanecera na Rocinha. Tendo resguardado essa pesquisa, Paulete começa a ler os registros, o que serve de informação ao leitor não somente sobre o local e a população pesquisada, mas também sobre a visão do jornalista acerca do espaço da periferia e dos sujeitos que lá residem. No entanto, é paradoxal a relação que se estabelece entre pesquisador e pesquisados, posto que ainda que as anotações sejam de Luciano, tais linhas não saem propriamente de sua boca ou, ao menos, não chegam aos leitores a partir do jornalista, mas, sim, através de Paulete, que é quem lê os cadernos contendo os mínimos detalhes sobre o funcionamento da favela. Dessa forma, o “livro opera um deslocamento do individual para o coletivo no qual nem experiência nem eu pertencem a um indivíduo em particular, conseguindo desta maneira singularizar a experiência” (GARRAMUÑO, 2014, p. 73) dos sujeitos, os quais aparecem numa rede de relações com os outros. Além disso, no romance a intenção etnográfica fica eclipsada, já que o leitor se torna presa daquilo que Paulete lhe revela das anotações de Luciano. Nesses cadernos salvos por Paulete, nota-se que, à medida que Luciano conhece a Rocinha, assim como os sujeitos que ali moram, vai anotando suas impressões, ou mesmo frases supostamente pronunciadas pelos moradores, mas não sabemos o que é deixado de lado ou mesmo acrescentado pelo produtor de moda durante o ato da sua leitura. É assim, por exemplo, que temos acesso ao que o jornalista chama (de acordo com Paulete) de uma pérola semântica, e que dita em referência à Rocinha potencializa uma gama de interpretações, qual seja: “como-unidade”. Soletrada rapidamente, poderíamos ler essa 274
Anais palavra como “comunidade”3, o que pode nos levar a pensar em um grupo de sujeitos que compartilham algo com outros, como uma história comum, um objetivo comum, uma determinada área geográfica, ou práticas comuns, algo que não destoa do que é a Rocinha na narrativa. Por outro lado, se optarmos por ler a palavra pausadamente, de modo a separar o termo “como” de “unidade”, pode-se pensar em algo que é uno, que não se divide. A problemática que se coloca para essa segunda interpretação é que a favela em questão apresenta diversas divisões, de ordem econômica, de classe social, assim como várias (des)articulações no próprio terreno da periferia. No romance, por exemplo, se afirma que há pelo menos “duas Rocinhas – uma que tem e a outra que não tem. A que tem é a da Estrada da Gávea e suas imediações” (LUDEMIR, 2004, p. 174). O território que compõe a Rocinha é diretamente associado aos moradores e seu poder aquisitivo, por isso, o tipo de “divisão” do espaço parece ser indissociável dos sujeitos que ali residem, o que torna os moradores parte e extensão da Rocinha ficcionalizada por Ludemir. No romance, mesmo em uma favela considera a mais globalizada do Brasil como é a Rocinha, há áreas nas quais não chega luz elétrica, sendo resolvido tal problema por meio de 3No livro Communitas: origen y destino de la comunidad (2003), Roberto Esposito tece importantes considerações acerca do sentido da palavra comunidade, assim como de sua possível vitalidade nas últimas décadas. O filosofo italiano parte do pressuposto de que não há nada mais imprescindível do que pensar a comunidade em uma época em que se anunciam as perdas do comunismo e a assunção do individualismo, e chega a afirmar que a concepção de comunidade não pode ser traduzida ao léxico político, social e cultural atual sem que se leve em conta as torções próprias da nossa época. Diante dos seus argumentos, a palavra “comunidade” aparece como um termo deslocado no tempo e no espaço, como se participasse de um processo diacrônico, mas, em todo caso, potente para a compreensão de certos grupos sociais. Nas palavras de Esposito (2003, p. 30-31), nos últimos anos o termo comunidade, que deriva do latim “communitas, [puede ser pensado como] el conjunto de personas a las que une, no una ‘propiedad’, sino justamente undeber o una deuda. Conjunto de personas unidas no por un ‘más’, sino por un ‘menos’, una falta, un límite que se configura como un gravamen, o incluso una modalidad carencial, para quien está ‘afectado’. Como indica la etimología compleja, pero a la vez unívoca, a la que hemos apelado, el munus que la communitas comparte no es una propiedad o pertenencia. No es una posesión, sino, por el contrario, una deuda, una prenda, un don-a-dar. Y es por ende lo que va a determinar, lo que está por convertirse, lo que virtualmente ya es no es lo propio, sino lo impropio —o, más drásticamente, lo otro— lo que caracteriza a lo común. Un vaciamiento, parcial o integral, de la propiedad en su contrario. Una desapropiación que inviste y descentra al sujeto propietario, y lo fuerza a salir de sí mismo. A alterarse”. Por essa perspectiva, e vale ressaltar que essa é a concepção de comunidade que nos interessa para pensar o romance de Ludemir, o que une os sujeitos da favela, formando uma comunidade, é uma urgência ou emergência, não necessariamente algo que lhe seja próprio, mas sim impróprio. É na (ou da) falta que emerge o comum; e é, também, devido a essa falta que tais sujeitos experimentam a vida em grupo. 275
Anais ligações elétricas clandestinas (também chamada de “gatos”, na gíria popular) feitas pelos próprios moradores. Tal situação, se, por um lado, aponta para a potência de (re)inventar condições (possíveis, ainda que clandestinas) de vida, por outro lado, também sugere a negligência do governo que parece se omitir de sua responsabilidade. A parte da Rocinha em que a luz não chega a não ser por vias clandestinas, também é a parte mais pobre da favela, e onde as ONGs também não aparecem, nem a mídia televisiva, a não ser quando o objetivo é fazer matérias sobre a pobreza, mostrar a vulnerabilidade alheia. Quando o objetivo é falar sobre os supostos investimentos que os órgãos públicos fazem no âmbito da favela, os holofotes são direcionados para a parte da Rocinha que compreende a Estrada da Gávea e o seu entorno, a “parte que tem”.Enquanto isso, os moradores da “parte que não tem” driblam por vias indiretas o poder público, suprindo suas próprias necessidades. Situam-se dentro fora da instância legalista. Não é à toa que, no romance, um dos conceitos tido como fundamental dentro da favela é o de beira (LUDEMIR, 2004), que aponta para uma posição dentro fora (da lei, da cidade, etc.) ocupada pelos moradores da Rocinha. Outra característica da favela criada por Ludemir, e que remete aos postulados de Ludmer acerca das ilhas urbanas (2010), é que “a Rocinha inverte o público com o privado” (LUDEMIR, 2004, p. 205). Tida como uma das chaves para entender o funcionamento da favela, assim como as relações entre os sujeitos, essa assertiva sugere certo limiar contaminante no qual se situam os moradores da periferia. É a partir desse entrelugar que tais sujeitos agem borrando qualquer noção de limite; ou melhor, talvez seja devido a essa ausência de limites (ou da noção de limite), interligada à necessidade dos sujeitos que residem na favela, que se coloca em prática “o modo invasivo como [tais sujeitos] usam o espaço, ocupando todas as áreas possíveis, inclusive as que já pertencem a outras pessoas, os vizinhos e amigos” (LUDEMIR, 2004, p. 234). Aqui, mais uma vez o que seria privado se fusiona ao que seria público, em um processo de contaminação das fronteiras. É desse modo, pela contaminação de fronteiras e ocupação de territórios controlados, que o da Rocinha parece ir se expandindo pelo restante da cidade, como vemos neste trecho: “vendo a Rocinha de onde a conheci, observando-a da Lagoa enquanto corria em torno dela, tinha a impressão de que ela continuava se espalhando pela encosta” (LUDEMIR, 2004, p. 133). Não é somente impressão, esse processo de expansão ocorre dia-a-dia, seja por meio de uma casa que é construída nas margens da Rocinha (no espaço que era fora, mas se torna dentro, ou dentrofora), seja por intermédio da aquisição de novos terrenos pelo tráfico. “Com base nessa informação, temos pelo menos duas observações a fazer: uma, a onipresente na 276
Anais favela, da apropriação do espaço público tanto por meio do gato puxado do poste como do uso da calçada sem o pagamento de impostos; dois, desse incessante diálogo com o asfalto” (LUDEMIR, 2004, p.261). É por meio desses diálogos com o restante da cidade, assim como também devido às apropriações do espaço público, que começam a aparecer na Rocinha símbolos considerados do “asfalto”, como as inúmeras propagandas. Aqui, há que chamar a atenção para uma inscrição em um painel em particular, que fica sugerido na narrativa, posto que ela (a inscrição) é importante por mais de um aspecto; tanto porque ajuda a compreender a favela e os moradores, como também porque acaba potencializando interpretações sobre o romance enquanto materialidade escritural, qual seja: “Sorria, você está na Rocinha”. Como vemos no romance, essa frase sofre um triplo processo de apropriação até se tornar um painel: 1) Possivelmente tenha sido vista em algum lugar e escrita em um painel na Rocinha pelo Serginho da Pizzaria Lit, morador; 2) foi assinado posteriormente pelo Bob’s; 3) logo após, tomada como título do livro de Ludemir, como podemos perceber no trecho abaixo: Gosto em particular do painel, assinado pelo Bob’s, bem no fim da estrada da Gávea, a dois passos de São Conrado, quase em frente à casa de shows Rocinha’s Show: “Sorria, você está na Rocinha”. Esse painel na verdade foi concebido pelo Serginho da Pizzaria Lit, mas o único registro que tenho disso é a sua fala, na qual acredito. Hoje, o anúncio é assinado pelo Bob’s. Ele chegou a ser elogiado pela iniciativa, mas não acredita que as pessoas que o procuraram tenham entendido o subtexto daquela mensagem. Com o seu “sorria, você está na Rocinha”, não estava apenas reforçando a auto-estima da comunidade, em uma esperta mensagem de marketing [...] Com o seu painel, estava querendo dizer que ali começava uma outra cidade [...] Eu na verdade acho que seja mais do que uma cidade – acho que estejamos falando de uma civilização, de uma concepção de mundo altamente particular, onde o certo e o errado, o bem e o mal, o pecado e a virtude, onde as diferenças fundamentais que dão forma e conteúdo a um povo apresentam diferenças igualmente fundamentais em relação à civilização do asfalto [...] E o cria da Rocinha tem muitas razões para sorrir ao entrar em seu mundo, na sua civilização, nesse universo que, apesar da proximidade, apesar das inúmeras interfaces que criamos, apesar dos diversos pontos nos quais nos encontramos, é uma cidade à parte. Lá, os que imaginamos bandidos muitas vezes são seus heróis. Lá, os que imaginamos heróis muitas vezes são seus bandidos. (LUDEMIR, 2004, p. 283-284). Este painel que indica onde começa a Rocinha está (ele mesmo) dentro e fora do território da favela; dentro, mas interligado ao exterior. Note-se, também, que a Rocinha figura como uma civilização à parte, mas ao mesmo tempo não está desvinculada do restante da cidade. Poderíamos, pois, afirmar que a favela em questão faz rizoma com o território que 277
Anais a rodeia a partir de um processo de desdiferenciação, o que permite que a favela possa ser considerada como parte e extensão da cidade, mesmo possuindo regras e leis próprias. Como na própria palavra “desdiferenciação”, que traz em si o prefixo polissêmico que conjuga certo significado de negação e de reversão do elemento lexical ao qual acompanha, a Rocinha, no romance, (con)funde-se na diferença com a cidade. Tomada como título do livro de Ludemir, a frase “Sorria, você está na Rocinha” pode ser pensada, ainda, como um operador de leitura que permite pensar a favela e até mesmo o romance em suas múltiplas metamorfoses. Parafraseando Deleuze e Guattari (se lessem o romance Sorria, você está na Rocinha vendo dentro dele o título como produto ficcionalizado): “ali figura a vespa, mesmo sendo orquídea”. Não se trata de um processo de mimetização da favela, mas de complementação, e assim cria-se uma realidade que supostamente o romance referência. Já a terceira e última parte da narrativa está intitulada “Livro III – o legado de Bin Laden”, possivelmente fazendo referência ao legado deixado por Luciano, assim como aos seus cadernos que são entregues a ele por Paulete. Nessa parte também vemos a decepção de Paulete por se sentir usado e enganado quanto aos objetivos de Luciano ao pesquisar a Rocinha: Voltei a ter a sensação de uso. De abuso da bicha favelada de que a cidade só se lembra quando algum pesquisador precisa tirar uma casquinha de nossa pobreza, nossos bandidos bárbaros, nossas domésticas cearenses, nossos birosqueiros inescrupulosos, nossos evangélicos engabelados por astutos pastores. (LUDEMIR, 2004, p. 128). Como se pode notar pela fala de Paulete, por vezes as escrituras que se propõem representar a periferia apresentam/representam uma visão negativizada da favela (é esse maniqueísmo que a personagem questiona no fragmento acima), o que termina por marginalizar de forma mais contundente os indivíduos que a constituem. Tratando do desafio relacionado à distância daquilo que o artista observa enquanto etnógrafo, Hal Foster argumenta que, assim como a superindentificação pode conduzir a uma visão excessivamente reduzida por parte do artista, no âmbito da representação, a desidentificação assassina o outro, colaborando para “construir uma solidariedade política por meio do medo e da aversão imaginários” (FOSTER, 2017, p. 186), que geralmente é explorada politicamente. Por outro lado, não se pode deixar de enfatizar que se é Paulete que faz tal afirmação, este personagem e sua fala são construídos por Ludemir. Ou seja, paradigmaticamente o 278
Anais escritor mostra saber que certas imagens que são vendidas em artefatos artísticos caricaturizam os moradores de espaços marginalizados socialmente. Tal jogo já está inscrito desde o título de seu romance. Nesse sentido, a ambiguidade do “papel quasi-antropológico atribuído ao artista pode promover uma presunção tanto quanto um questionamento da autoridade etnográfica, uma evasão tanto quanto uma extensão da crítica institucional” (FOSTER, 2017, p. 180). Diante disso, não seria absurdo conjeturar que ao “revelar os mecanismos da sua potência ficcional, ao exibir seu próprio processo e idealizando sua própria materialidade, [a narrativa] coloca em evidência a brecha entre o real e sua representação, canalizando e expressando sua realidade” (SCHØLLHAMMER, 2012, p.130). Ao construir a partir da linguagem literária uma favela e sujeitos que destoam de representações caricaturescas, Ludemir acaba por denunciar certa vertente literária que estigmatiza e comercializa a pobreza. Como se pode notar no romance, não é por acaso que “os gringos fizeram da Rocinha o terceiro ponto turístico mais visitado no Rio de Janeiro, superado apenas pelo Corcovado e pelo Pão de Açúcar” (LUDEMIR, 2004, p. 182), pessoas “que chegam na favela querendo conhecer os encantos da miséria brasileira” (LUDEMIR, 2004, p. 90). Esse fluxo alimenta o que o escritor chama de “indústria da miséria”, que é fomentada pela mídia, que costuma reforçar concepções e imagens dicotômicas acerca das periferias brasileiras, assim como pelos tours que ocorrem no território da favela. No primeiro caso, é emblemático um trecho do romance em que Paulete fala sobre o tipo de reportagem corrente quando se trata de entrevistar moradores da Rocinha: Conheço bem este tipo de reportagem, uma chatice. As perguntas são sempre as mesmas e igualmente óbvias. E a violência? E os bandidos? E as drogas? Como se fosse um milagre social uma jovem da Rocinha ser bonita, cuidar da pele, malhar. Como se o fato de termos nascido no morro nos colocasse a revolta como única alternativa de vida, ou formamos na boca ou então saímos atirando nas madames de São Conrado, descarregando nelas todo nosso ódio, toda nossa inveja, toda nossa incapacidade de lutar por uma vida melhor, digna, sadia (LUDEMIR, 2004, p. 105). Emerge no fragmento uma crítica ao olhar sobre o indivíduo da periferia tomado como o outro (aquele de quem se fala), que também é refratária de uma crítica da perspectiva etnográfica que se constituiu num dos grandes filões da narrativa latino-americana das últimas décadas, como demonstrou Klinger (2006), assim como dos discursos sobre a periferia. A recusa das impressões do etnógrafo pelo etnografado problematiza a base 279
Anais binária da relação estabelecida por este olhar, sugerindo que suas premissas articuladas em torno das noções de centro e periferia, de cidade e favela e de riqueza e pobreza não são neutras nem simétricas e colaboram para uma identificação ideológica entre favela, periferia e pobreza a partir de uma base moral. Enquanto as oposições estão constituídas por polos que se oporiam na perspectiva do etnógrafo, a conclusão a que levam constitui um sintagma complexo em que favela, pobreza e periferia aparecem coordenadas numa relação de reciprocidade e suplementaridade que, no entanto, a personagem trata com ironia no fragmento citado. Já no segundo caso (quando se trata dos tours), território, pobreza e cultura vinculam- se ao espetáculo, e “enquanto espetáculo a Rocinha dos Favela Tours não pressupõe a simulação de uma realidade escondida, mas uma superposição de camadas de realidade que são experimentadas na moldura espaço-temporal do passeio pela favela” (JAGUARIBE, 2007, p. 149). No pacote que garante acesso ao “parque temático da pobreza” (para utilizarmos uma expressão de Beatriz Jaguaribe, 2007), são selecionadas as imagens da favela que podem ser vendidas para os visitantes. Centros culturais, as sedes de ONGs, as casas dos moradores mais antigos da favela, estão na rota do passeio, mas os locais onde se comercializam drogas, por exemplo, devem permanecer invisibilizados. Nesse sentido, no romance de Ludemir, o glamour da favela que se comercializa nesses passeios tem a ver também com um tipo de performance dos guias turísticos (que são sempre moradores do local), e o que garante o espetáculo estético é o próprio espaço heterogêneo da favela, a parte que se pode ver. O paradoxo que se instaura nesse tipo de “turismo [diz respeito] a busca pelo autêntico quando os próprios turistas já desconfiam das encenações dos ‘nativos’ antenados com a vendagem de sua cor local”, conforme Jaguaribe (2007, p. 147-148). Como vimos sugerindo nas linhas anteriores, ao escrever Sorria, você está na Rocinha, Julio Ludemir aposta na construção de uma cartografia do espaço periférico e nos modos de afecção território/sujeito, de modo a levar os leitores a “entrarem” na periferia ao passo que estão lendo. Essa estratégia de aproximação dos leitores ao universo da favela a partir da explicitação da geografia do lugar, se bem pode pintar a narrativa com certa tonalidade realista, acaba por torcer o próprio paradigma da realidade representada, por meio de um processo escritural que atravessa fronteiras e (con)funde realidade e ficção. Considerações finais 280
Anais Diante de tudo isso, poderíamos pressupor que Ludemir trabalha com referências (espaciais) verificáveis, o que reforça o efeito de realidade criado no romance, mas joga, também, para a concretização desse efeito, com o desconhecimento da periferia pelo leitor médio (e de classe média), que tem de se pautar pelos discursos e imagens sobre a favela que lhe chegam pelos meios de comunicação. Desse modo, para além da referência topográfica codificada, não há clareza sobre o que mais na representação é expressivo da realidade que o texto supostamente toma como referente. Nesse sentido, o efeito realista porta nessa narrativa, também, o inevitável sentido de efeito da escritura, do real da (ou enquanto) escritura e, portanto, do não representativo. Por meio desse processo que beira o arquitetônico, tem-se, então, uma construção narrativa que desponta quase como uma performance da escritura. Nesse caso, os efeitos dessa performance problematizam a representação, criando uma realidade que o próprio texto fabrica. Em outras palavras, encontramos nesse romance efeito de realidade que se dão por meio de performances da escrita. Por sua vez, ao problematizar a relação imediata entre representação e realidade, tal produção acaba reinvestindo a linguagem de certo potencial crítico, o que produz como efeito o estranhamento do signo e aponta, com certo ceticismo, para suas limitações, no que se refere à relação entre palavra e verdade. Por um lado, ele procura abandonar abertamente toda noção de centro, sujeito ou referência privilegiados, mas, por outro, não escapa ao dilema da interpretação como busca de verdade e representatividade. REFERÊNCIAS: DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix.Mil platôs: capitalismo c esquizofrenia. (Tradução de Aurélio Guerra Neto et al). Vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34. 1996. ESPOSITO, Roberto. Communitas: origen y destino de la comunidad. (Trad. Cario Rodolfo Molinari Marotto). Buenos Aires: Amorrortu, 2003. FOSTER, Hall. O retorno do real. (Trad. Célia Euvaldo). São Paulo: Cosac Naif. 2017. GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos: sobre a inespecificidade na estética contemporânea. (Trad. Carlos Nogué). Rio de Janeiro, Rocco, 2014. JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. 281
Anais KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na narrativa latino-americana contemporânea. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 2006. LACAN, Jacques. La lógica del fantasma. Buenos Aires: Paidós, 2005. LADDAGA, Reinaldo. Estética de Laboratorio: estrategias de las artes del presente. Buenos Aires: Adriana Hidalgo. 2010. LUDEMIR, Julio. Sorria, você está na Rocinha. Rio de Janeiro: Editora Record,.2004. LUDMER, Josefina. Aquí América Latina: una especulación. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2010. SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Realismo afetivo: evocar realismo além da representação. Estudos de literatura brasileira contemporânea. n.39, 2012, p. 129-148. SUSSEKIND, F. Objetos verbais não identificados. O Globo, 21 set. 2013, p. 01-06. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/09/21/objetos- verbaisnaoidentificados-um-ensaio-de-flora-sussekind-510390.asp >. Acessoem: 29 jun. 2018. 282
A MEMÓRIA COMO MEDIADORA PARA A RESISTÊNCIA CONTRA O RACISMO ESTRUTURAL: UMA EVOCAÇÃO SUBJETIVA EM “PONCIÁ VICÊNCIO’’, DE CONCEIÇÃO EVARISTO Adrielly da Silva GOMES (UNICAP)1 André Luís de ARAÚJO (UNICAP)2 RESUMO Ponciá Vicêncio vive sua vida relembrando a vida, talvez como uma forma de se sentir viva diante de uma sociedade que aniquila sua existência todos os dias através das desigualdades social e racial. A personagem do romance evaristiano vive uma realidade que pode transpassar a ficção e nos fazer repensar sobre o corpo social escravagista em que estamos inseridos, visto que em Ponciá Vicêncio há uma negação da vida para continuar existindo em memória. Por esse motivo, o objetivo central deste trabalho é analisar, na obra Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, como a memória pode ter sido importante para uma possível mediação para a resistência da personagem principal contra o racismo estrutural, visando compreender como pode ter contribuído para um possível fortalecimento subjetivo. Nesse sentido, as marcas da memória nessa obra podem contribuir para a observação de um 1 Mestranda em Ciências da Linguagem, bolsista CAPES. E-mail: [email protected] 2 Prof. Doutor da Pós-Graduação em Ciências da Linguagem e da graduação, na Universidade Católica de Pernambuco. E-mail: [email protected] 283
Anais possível fortalecimento da personagem para continuar existindo, ainda que em uma sociedade estruturada pelo racismo, por meio da rememoração. Dessa maneira, a ficcionalidade da narrativa fala sobre a realidade das pessoas pretas, que insurge, então, contra uma sociedade que aniquila essas subjetividades diariamente, por meio da falta de equidade, da negação de direitos básicos e da marginalização da existência e da história desse povo preto. Palavras-chave: Racismo estrutural; Memória e literatura; Ponciá Vicêncio. ABSTRACT Ponciá Vicêncio lives her life remembering the life, maybe as a way to feel alive facing a society that annihilates her existence everyday through social and racial inequalities. The character of the evaristiano novel lives in a reality that can run through the fiction and make us rethink about a slaver social body that we are inserted into, whereas in Ponciá Vicêncio there is a denial of life to continue to exist in memory. For this reason, the central objective of this work is to analyze in the book Ponciá Vicêncio, by Conceição Evaristo, how the memory may have been a possible mediation for the resistance of the central character against the structural racism. In that regard, the marks of memory in this novel can contribute to the observation about a possible fortification of the memory to continue existing, even in a society structured by racism, through her remembrance. Besides that, the fictionality of the narrative talks about the reality of black people that rises, then, against a society that annihilates these subjectivities daily, through lack of equity, denial of basic rights and the forced marginalization from existence and from the history of these black people. Keywords: Structural racismo; Memory and literature; Ponciá Vicêncio. Introdução Falar sobre racismo estrutural e memória é, também, falar sobre Conceição Evaristo, visto que a autora, ao ser entrevistada pelo Itaú Cultural, em 2019, se colocou como canônica das margens, ao ser questionada sobre a sua obra ser, possivelmente, um cânone. Ao se colocar como uma pessoa que estaria, possivelmente, às margens, Evaristo evoca não apenas o fato de ela ser uma mulher negra, mas o fato de ela escrever sobre quem está sendo, historicamente, jogado para as margens da sociedade. O romance evaristiano, que aqui será estudado, evocará a vivência do povo negro no pós-abolição e a desigualdade racial vigente, essa que fez com que muitos indivíduos pretos permanecessem nas fazendas dos senhores. Segundo Abdias Nascimento (2019), na obra O quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista, o negro se tornou indesejado após o processo da Lei Áurea. Para o autor, não foi a escravização que foi abolida, mas a culpa daqueles que cometeram o crime hediondo de sequestrar, de escravizar e de desumanizar indivíduos. 284
Anais Desumanizar pessoas pretas, também, se refere a tirá-los de um possível lugar de cidadãos para coloca-los forçadamente nas margens da sociedade, tirando toda e qualquer possibilidade de vivência digna. Além disso, o papel desumanizador atribuído a pessoas pretas para jogá-las às margens da sociedade infere no processo de estereotipificação que essa parte da população recebe historicamente. Assim, Clóvis Moura (2019), na obra Sociologia do negro brasileiro, ressaltará que esses indivíduos receberão características como “segmentos atípicos, exóticos, filhos de uma raça inferior, atavicamente criminosos, preguiçosos, ociosos e trapaceiros” (MOURA, 2019, p. 31) Nascimento (2019) enfatizará que separar, solapar a força física e espiritual do povo preto tem sido uma estratégia continuada para evitar uma unidade de resistência entre os afro-brasileiros. Dessa maneira, quando Evaristo decide evidenciar as problemáticas sofridas por essa parte da população, diante de uma sociedade que aniquila pessoas pretas de maneira estratégica diariamente, vê-se uma possível forma de evidenciar o problema para discuti-lo e entender formas de resistir. A concepção estrutural do racismo, pensada por Silvio de Almeida (2019), na obra Racismo estrutural, pontuará que, em uma sociedade estruturada pelo racismo, esse problema não se dá apenas de um indivíduo sobre o outro, mas de um grupo sobre outro. Diante disso, a escolhida obra de Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio, é uma importante fonte para debater e levantar possibilidades de enxergar a problemática, visando que o racismo atua em diversas facetas. Para além disso, as formas que o povo preto encontra para resistir ao meio nefasto também se dá de diversas formas. No caso de Ponciá, a memória foi a maneira que ela encontrou para se resguardar e (sobre)viver. Ainda, levando em consideração a obra de Almeida (2019), é possível averiguar na obra evaristiana que Ponciá e sua família vivem em uma sociedade estruturada pelo racismo, visto que as desigualdades racial e social vivenciadas pela protagonista se dá a partir do processo de colonização. Esse que força pessoas pretas a viverem em condições subumanas e, quase sempre, em papel de subserviência às pessoas brancas. A exemplo, Ponciá Vicêncio, ao chegar na cidade, precisou trabalhar na cozinha de uma mulher branca para conseguir sobreviver. Outro exemplo, foi o pai da protagonista que, mesmo após a “abolição’’, continuou trabalhando na fazenda dos senhores de engenho, pois não havia outra possibilidade de (sobre)vivência. Ademais, a memória é um fator importante para a protagonista do romance, pois ela passa a negar a sua realidade dolorida para viver em memória. Joël Candau (2021), na obra 285
Anais Memória e Identidade, explica que a memória é um objetivo alcançável, portanto, um conjunto de estratégias, sendo mais um enquadramento do que um conteúdo. No caso de Ponciá, a memória foi um caminho estratégico para que ela pudesse continuar viva em uma sociedade que aniquilava a sua sanidade e a sua existência, vítima de um corpo social racista, ela não conseguia viver, nem produzir vida; tudo a sua volta parecia morto. Outrossim, é importante salientar que este estudo é interdisciplinar, visto que, segundo Félix Guattari (1992), na obra Fundamentos ético-políticos da interdisciplinaridade, a literatura, quando estudada desta forma, sai do âmbito cognitivo para os âmbitos social, político, dentre outros. Este artigo, então, busca estudar a literatura de maneira interdisciplinar por meio dos estudos da memória e os estudos sociológicos, como citados. Além disso, Guattari (1992), alerta que a população minorizada precisa de pesquisas que a leve em consideração, por esse motivo, faz-se necessário estudar o racismo estrutural e enfatizar as problemáticas vividas pelas pessoas pretas numa sociedade como a brasileira. É importante pontuar, por fim, que o objetivo central desta pesquisa é identificar, na obra Ponciá Vicêncio, como a memória mediou uma possível resistência da personagem principal contra o racismo estrutural. Para isso, serão levantados aspectos da cultura vigente, mas também serão identificados elementos da memória da personagem e como isso também contribuiu para uma formação subjetiva. Este artigo, portanto, será dividido em duas sessões para levantar discussões sobre os aspectos citados. As memórias de Ponciá: uma alternativa de (sobre)vivência Na obra evaristiana, percebe-se que a protagonista, diante do processo de massacre vivenciado por Ponciá Vicêncio, a personagem passou a tentar revisitar o seu passado numa tentativa de continuar viva, ainda que parecesse morta internamente. No texto, é pontuado que “ela gastava todo o tempo com o pensar, com o recordar’’ (EVARISTO, 2008, p. 18), possivelmente, mais do que perdendo seu tempo, Ponciá estava vivendo de uma maneira alternativa. Assim, enquanto a sociedade transformava a vida fora das memórias da protagonista em um mar de incertezas e misérias, ela tentava encontrar, no fundo de si, uma pessoa que, talvez, estivesse perdida. Joël Candau (2021) assinala a presença do que ele chama de mnemotropismo, nas sociedades modernas, o autor explica que esse fenômeno é a crise do presentismo, sendo assim, o “desaparecimento de referências e a diluição das identidades” (CANDAU, 2021, p. 286
Anais 10). Quando Ponciá Vicêncio passeia pelas suas memórias, ela observa pessoas que ela não mais encontrou e uma criança que se tornara mulher, mas agora numa situação que a aprisionava enquanto indivíduo cujos direitos de dignidade lhes eram negados. Candau (2021) ressalta, também, que a busca pela memória é considerada uma resposta às comunidades que sofrem e vivem diante da fragilidade, por isso, há um apoio de um futuro incerto em um passado que confere um certo reconhecimento. Dessa maneira, é possível averiguar que a percepção de Ponciá sobre a sociedade que nada lhe prometia, a fez, também, voltar a um lugar que lhe era reconhecível, onde a sua humanidade não era retirada constantemente. Ademais, na obra de Conceição Evaristo, vê-se durante a narração que a protagonista não sabia mais quem era, o que havia se tornado, por isso, segundo o texto, “uma noite ela passou toda no espelho chamando o próprio nome” (EVARISTO, 2008, p. 18). A personagem chamava a si mesma no espelho, numa tentativa de tentativa de reanimar alguém que a sociedade racista aniquilou aos poucos, ela tentava reanimar as sobras daquilo que, um dia, existiu. Ponciá tentava encontrar algo além do que a estrutura social fez dela, tal questão é enfatizada por Fanon (2008), na obra Pele Negra, Máscaras Brancas, quando o autor exemplifica que pessoas negras acabam “adquirindo’’, na sociedade escravocrata, características que não pertencem a elas, isso tem forte influência sobre a subjetividade desses indivíduos. Joël Candau (2021) explica que somos condenados ao tempo e nenhuma existência pode escapar de tal condição, o tempo que Ponciá havia passado na cidade, desde que tomou a decisão de deixar sua aldeia, estava fazendo-a se perder de si mesma a cada momento. Candau (2021) diz que a memória pode causar a ilusão de que se está parando o tempo presente, pois o que foi vivido no passado não é inacessível, por isso, “pela retrospecção o homem aprende a suportar a duração: juntando os pedaços do que foi uma nova imagem que poderá, talvez, ajuda-lo a encarar a vida presente” (CANDAU, 2021, p. 15). Dessa forma, a rememoração de Ponciá, em busca de seu reconhecimento e da volta à sua comunidade, foi uma estratégia para suportar o seu tempo presente, juntar os pedaços da sua existência foi a alternativa que o racismo estrutural, implementado por uma sociedade escravagista, a deixou. Ela buscava se reconhecer, visto que a sua identidade não havia sido perdida, embora frágil diante dos sofrimentos os quais ela era submetida, pois ela possuía memória e, segundo Candau (2021), se há memória, ainda há identidade, pois é 287
Anais admitido que ambas estão imbricadas, sendo “a memória, a faculdade primeira, que modela identidade” (CANDAU, 2021, p.16). Assim sendo, apesar da dor inerente à existência de Ponciá, ela vivia em uma “dialética da memória e da identidade” (CANDAU, 2021, p.16), as suas lembranças a modelavam, mas ela também modelava as suas memórias a cada vez que sentava em sua janela para viver por meio delas. Portanto, conforme Candau (2021), a memória e a identidade nutrindo-se mutuamente caminham para que a trajetória de vida seja produzida, uma está sempre apoiada na outra, para produzir seu mito, sua história. No caso de Ponciá, ela é a persona formada pelas vivências anteriores, enquanto ela também vive, ainda, no presente, por conta delas, são as memórias que alimentam a sua narrativa, enquanto ela chama por si própria lutando pela identidade, que acredita ter perdido. Entre o racismo e a desigualdade: a dor da vida fora da memória O racismo e a desigualdade são causadores de desesperança da desesperança de Ponciá Vicêncio, e essa trajetória é muito bem narrada durante o romance. Quando Ponciá decidiu sair da aldeia onde vivia com a sua mãe e seu irmão, logo após a morte de seu pai, nenhum bem material ela havia carregado, “a crença era a única esperança que ela havia trazido” (EVARISTO, 2008, p. 21). Foi, então, que, com sua crença, ela segurou o seu terço nas mãos, sentou na igreja, mas logo percebeu que pessoas como ela eram jogadas de maneira forçada às margens da sociedade. Se enquanto estava na aldeia, Ponciá via o seu pai e seu irmão trabalharem nas terras do patrão para levar o mínimo de sustento para casa, na cidade ela enxergou uma extensão do sofrimento, entretanto, as pessoas pretas não estavam nas senzalas, mas nas vielas e calçadas. Dessa forma, “a primeira noite de Ponciá na cidade, acabou sendo na porta da igreja’’ (EVARISTO, 2008, p. 33), fazendo valer a evidenciação que Abdias Nascimento (2019) faz ao dizer que abolição é, na verdade, um simulacro de libertação. O autor assinala que “de vítima acorrentada pelo regime racista de trabalho forçado, o escravizado passou para o estado de verdadeiro pária social, submetido pelas correntes invisíveis forjadas por aquela mesma sociedade racista e escravocrata” (NASCIMENTO, 2019, p. 89). Dessa forma, Ponciá Vicêncio se depara com pessoas pretas que, assim como seu pai e seu irmão, não obtiveram escolha de vivência e esbarra com a fraude da libertação, que nada de liberdade concedia, mas negava o mínimo de emancipação. 288
Anais Os homens da família da protagonista estiveram na senzala, agora, ela reproduziria um trabalho equivalente ao que muitas mulheres pretas foram obrigadas a realizar; Ponciá começou a trabalhar na cozinha de uma mulher branca (EVARISTO, 2008, p. 39). A condição de trabalho que a personagem passou a ter na cidade é, na verdade, parte do projeto de fortalecimento da estruturação do racismo estrutural. Clóvis Moura (2019) ressalta que o negro urbano brasileiro possui uma trajetória de vida que tornam evidentes os mecanismos de desigualdade racial estabelecida historicamente pela sociedade branca. O sociólogo estabelece que há mecanismos que negam ao negro a possibilidade de ascensão social por meio de um trabalho de qualidade, um salário, e isso ocorre, segundo o autor, para que não haja mudança no status quo e a população branca permaneça ocupando esses espaços. Os argumentos fundamentos por Moura (2019) exemplificam as vivências de Ponciá Vicêncio, que trabalhou como empregada doméstica para juntar dinheiro e comprar um barraco na periferia. Conseguir um pequeno lugar para morar se tornou o sonho de Ponciá, porque mais não lhe era permitido, por isso Clóvis Moura (2019) também vai enfatizar que diante desses das vivências sociais do pós-abolição, mas que se estende desde antes e chega até o nosso hoje, “a comunidade negra e não branca de um modo geral tem dificuldades em afirmar-se no seu cotidiano como sendo composta de cidadãos e não como é apresentada através de estereótipos” (MOURA, 2019, p. 31). Ponciá não desistiu da sua vida para viver em memória de repente, o acontecimento foi se estruturando como um muro é levantado aos poucos. Cansada das desgraças que observava os seus semelhantes viverem todos os dias, percebia que, até mesmo o companheiro que arranjara na cidade, mesmo diante de seu tratamento rude para com ela “percebia nele um vislumbre de tristeza” (EVARISTO, 2008, p. 38). O esposo de Ponciá, junto a ela, fazia parte do grande grupo de pessoas negras empurradas para as margens para sobreviver e trabalhar de forma precária, sendo, diante da sociedade que fortaleceu seu capital por meio da escravização, rejeitadas e estigmatizadas. Diante disso, essa população é “barrada socialmente de forma sistemática, através de inúmeros mecanismos e subterfúgios estratégicos, colocada como o rescaldo de uma sociedade que já tem grandes franjas marginalizadas em consequência do capitalismo dependente” (MOURA, 2019, p. 31). Aos poucos, Ponciá passou a sentar-se em sua janela, rememorar o passado, porque o presente apenas lhe conferia dor, se antes “ela trazia a esperança como bilhete de passagem” (EVARISTO, 2008, p. 31), o que lhe restara era apenas memórias do que já não mais existia. A sociedade racista confere ao negro características que não são deles, gerando, muitas 289
Anais vezes, desesperança e sentimento de inferioridade diante da vida e das pessoas brancas, a quem historicamente são obrigados a servir. Acerca disso, Fanon (2008) evidencia que “o problema é saber se é possível ao negro superar seu sentimento de inferioridade (...), no negro existe uma exacerbação afetiva, uma raiva em se sentir pequeno (...)” (FANON, 2008, p. 59). Ponciá se sentia pequena diante da vida de miséria, fome e infelicidade que era obrigada a levar. Viver fora da memória para Ponciá se tornou impossível, porque fora de seus pensamentos, ela não vivia, mas sobrevivia, até mesmo com a lembrança “dos sete filhos que tivera, todos mortos” (EVARISTO, 2008, p. 44). A personagem, mulher preta em subjugação social e racial, não conseguia produzir vida, a existência inexistente de Ponciá não a conferia direito de viver, portanto, uma pessoa que já está morta, não pode gerar vida. A sociedade escravocrata e desigual matou Ponciá, assim como mata, constantemente, psicológica e fisicamente pessoas pretas historicamente. Ponciá Vicêncio percebia que as dores do passado e as do presente tinham algo em comum, a dor do homem e da mulher preta, esses sendo enganados pelos donos de terras que ofertavam lugar para moradia em troca de trabalho. Ponciá entendeu que “quando os negros ganharam aquelas terras, pensaram que estavam ganhando a verdadeira alforria. Engano. Em muita pouca coisa a condição de antes diferia do momento” (EVARISTO, 2008, p. 40). A situação percebida por Ponciá Vicêncio é comum a descrição histórico-sociológica levantada por Abdias Nascimento (2019), no seguinte trecho: Antes de 1888, os chamados africanos “livres”, isto é, doentes, aleijados idosos, os esgotados do trabalho intensivo, eram compulsoriamente “libertados”. Na prática, significava que os senhores se autolibertavam de qualquer responsabilidade de fornecer- lhes alimentos, roupas, moradia e se exoneravam de qualquer tipo de ajuda aos “livres”, abandonando-os de qualquer impiedosamente à morte lenta pela fome e pelas enfermidades, tanto nos campos quanto nas cidades. Seguindo a idêntica lógica, “abolição” significou o mesmo tratamento, só que agora aplicado em massa (...). Muitos africanos “emancipados” e cidadãos foram obrigados pelas circunstâncias a permanecer com seus antigos senhores trabalhando sob condições idênticas às anteriores, sem nenhuma alternativa ou opção (NASCIMENTO, 2019, p. 89). Ponciá estava cansada, massacrada, esgotada diante das agruras sofridas em uma sociedade que aniquilava a sua existência e a dos seus, um corpo social historicamente escravagista. Dessa maneira, Ponciá desistiu de viver em vida para existir em memória, como 290
Anais uma forma de resistir a dor do seu presente; psicologicamente a personagem estava debilitada, sendo esse um reflexo do que o racismo estrutural pode causar a pessoas pretas. A protagonista resistiu por meio da memória e apenas se entregou a ausência de força psíquica da qual ela estava diante, quando conseguiu reencontrar a sua família. O encontro de Ponciá, no seu presente dolorido, com os que ela rememorava todos os dias, foi a sua deixa, o seu momento de não mais ter de ser forte o tempo todo para não se entregar às desumanidades que foi obrigada a viver por ser uma pessoa preta em uma sociedade historicamente racista. Considerações finais Diante da vivência de Ponciá Vicêncio, a memória foi importante em seu contexto para que ela continuasse vivendo e não esquecesse de sua identidade, na dialética que a personagem estava imersa, as lembranças eram a sua única forma de resistir. O romance evaristiano reativa, também, a maneira dos leitores de ver o mudo de maneira crítica e, sobretudo, a sociedade brasileira. Abdias Nascimento (2019) pontua nos seus estudos que, graças a alguns estudiosos “as diversas estratégias e expedientes que se utilizam contra a memória do negro afro-brasileiro têm sofrido, ultimamente, profunda erosão e irreparável descrédito” (NASCIMENTO, 2019, p. 274). Isso significa que o trabalho de pessoas pretas como Conceição Evaristo são importantes para reativar a memória do povo preto brasileira acerca da sua identidade, história e cultura. Dessa maneira, quando Ponciá relembra a sua história em busca da resistência da sua identidade, pode significar também, que o povo afro-brasileiro, mesmo diante da estrutura escravista e capitalista que solapa a sua existência, precisa reativar a sua memória para continuar resistindo e existindo. A literatura de Evaristo é um levante contra a hegemonia, pois levanta a discussão acerca das problemáticas vigentes no país. Tal posicionamento se faz importante diante da colocação de Antonie Compagnon (2010), na obra O demônio da teoria, “a literatura confirma um consenso, mas produz também a dissensão, o novo, a ruptura” (COMPAGNON, 2010, p. 36). A literatura evaristiana, portanto, é uma ruptura à ideologia dominante, se há literaturas que servem como aparelhos ideológicos do Estado, o texto de Conceição Evaristo tem seu caráter subversivo diante de uma sociedade estruturalmente racista. Por isso, o texto Ponciá Vicêncio é um convite à criticidade e à resistência. 291
Anais Referências ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. CANDAU, Joël. Literatura e identidade. Tradução: Maria Letícia Ferreira. 1ª ed., 7ª reimpressão. – São Paulo: Contexto, 2021. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. 2. ed. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. – 4. ed. – Rio de Janeiro: Pallas, 2008. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução: Renato da Silveira. – Salvador: EDUFBA, 2008. GUATTARI, Félix. Fundamentos ético-políticos da interdisciplinaridade. Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v.1, 108, p. 19-26, jan-mar, 1992. MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019. NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: documentos de uma Militância Pan-Africanista. 3. ed. rev. São Paulo: Perspectiva; Rio de Janeiro: Ipeafro, 2019. 292
PELOS CAMINHOS DA MEMÓRIA E DA HISTÓRIA NO POEMA CANTO À CIDADE DE SÃO LUÍS DE ARLETE NOGUEIRA DA CRUZ Luis Claudio dos Santos FERREIRA FILHO (UEMA)1 Luzilene Nunes de SOUSA (UEMA)2 Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA)3 RESUMO Este trabalho analisa os caminhos percorridos pelo eu-lírico na memória urbana da cidade de São Luís no poema Canto à cidade de São Luís, de Arlete Nogueira da Cruz (2017). Nele a autora faz a interpretação da cidade a partir do espaço urbano maranhense, que serve como gatilho para o despertar de lembranças antes adormecidas na memória. O espaço físico exerce papel essencial na preservação da memória individual e coletiva, pois ele registra a marca do indivíduo e do outro, sendo esse espaço marcado pelo grupo que o ocupa e vice- versa. Ressalta-se que a preservação da história é feita de forma eficiente, instigando conhecer a cidade, para exaltar a contribuição econômica, bem como o turismo e a cultura da região. Sendo assim, é através da literatura que o ser humano satisfaz as necessidades 1 Mestrando em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Bolsista CAPES do Programa de desenvolvimento da pós-graduação (PDPG). CPF: 609504993-82. E-mail: [email protected] 2 Mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Bolsista CAPES do Programa de desenvolvimento da pós-graduação (PDPG). CPF: 573131992-87 e-mail: [email protected] 3 Professora Pós-doutoranda em Literatura e Memória pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. Atualmente professora do Mestrado em Letras da Universidade Estadual do Maranhão. E-mail: [email protected] 293
Anais subjetivas, sendo-lhe permitido assumir uma atitude crítica em relação ao mundo a partir das possibilidades polissêmicas e metafóricas da linguagem, a partir das indagações que ela oferece. Dessa forma, objetiva-se analisar as repercussões que o retorno ao local onde viveu sua infância causa no eu-lírico, não somente no estrato psicológico, mas também físico. Como fundamento teórico, utilizou-se as reflexões de Bourdieu (2004) sobre a literatura, sobre a memória formulados por Ricceur (2007) e sobre a perspectiva da sua coletividade cunhada por Halbwachs (2006), dentre outros que contribuíram para identificamos as formas marcadas pela metamorfose do desgaste do tempo e do espaço, em que historicamente, a memória está representada na diversidade cultural da cidade de São Luís/MA. Palavras-chave: Literatura Maranhense. Memória. Cidade de São Luís. ABSTRACT This work analyzes the paths crossed by the lyrical voice in the urban memory of São Luís city in the poem Canto à cidade de São Luís, by Arlete Nogueira da Cruz (2017). In it the author makes the interpretation of the city from the Maranhense urban space, which serves as a trigger for the awakening of memories previously asleep in memory. The physical space plays an essencial role in the preservation of individual and collective memory, because it records the mark of each person, and this space is marked by the group that occupies it and vice versa. It emphasizes that the preservation of history is done efficiently, instigating to know the city, to exalt the economic contribution, the tourism and regional cultural as well. Therefore, it is through literature that the human being satisfies subjective needs, being allowed to assume a critical attitude towards the world from the polysemic and metaphorical possibilities of language, from the questions it offers. Thus, the objective is to analyze the repercussions that the return to the place where the lyrical voice lived her childhood causes, not only in the psychological stratum, but also physical. As theoretical foundation, Bourdieu’s (2004) reflections on literature, on the memory formulated by Ricceur (2007) and on the collective perspective of it coined by Halbwachs (2006), among others that contributed to identify the forms marked by the metamorphosis of the wear of the time and space, in wich historically, memory is represented in the cultural diversity of São Luís city. Keywords: Maranhense literature. Memory. São Luís City. INTRODUÇÃO A poesia consegue fazer a descrição de um objeto ou momento, o poeta é unicamente individualizado nas suas escolhas e constrói seus versos com composições imagéticas profundas, na qual registra os movimentos da alma e dos sentimentos, fazendo a representação de momentos reais, individualizando suas escolhas, o que difere apenas é a disposição em realizar composições imagéticas, que focalizam instantes inundados pela subjetividade. Nesse sentido, a literatura é uma arte que consegue descrever épocas, locais e tradições. A escrita maranhense possui essa grande importância, por saber da existência de 294
Anais grandes nomes da literatura e de grande valia para que a história seja preservada, e dessa maneira, não seja estagnada em apenas uma geração. Para tanto, este trabalho analisa os caminhos percorridos na memória urbana da cidade de São Luís a partir da leitura do poema Canto à cidade de São Luís, na obra Colheita (2017) de Arlete Nogueira da Cruz. Neste poema a autora faz uma interpretação da cidade a partir das lógicas cruzadas de atuação no espaço intelectual maranhense. Utilizam-se conceitos formulados por Ricceur (2007), Bourdieu (2004), dentre outros teóricos que contribuíram para identificamos as formas marcadas pela metamorfose do desgaste do tempo e do espaço, em que a história e a memória estão representadas na cultura e na diversidade da cidade de São Luís/MA. Para o linguista russo Roman Jakobson, “a literatura é explicada com uma função da linguagem, a função poética: que dá ênfase à própria mensagem” (SAMUEL, 2002, p.79). Já bem dizia Mallarmé: “a poesia remunera as falhas da língua” (ibidem). Nessa perspectiva, o texto poético traz consigo a possibilidade única de encontro particular com o autor, pois através da relação leitor-texto-autor a literatura alcança possibilidades que somente a linguagem pode oferecer. Assim, a arte literária está para além dos aspectos pragmáticos e reais da vida Dessa maneira, a preservação da história é feita de forma eficiente, por consequência, instiga a curiosidade em conhecer o estado, contribuindo com a economia, o turismo e a cultura da região. Sendo assim, é através da literatura que o ser humano satisfaz as necessidades subjetivas, sendo-lhe permitido assumir uma atitude crítica em relação ao mundo a partir das possibilidades metafóricas e polissêmicas da linguagem, como também a partir das indagações que ela oferece. Este artigo está divido em três partes que possibilitam a ruptura com a tradição, os traços da modernidade, relacionando a imagem e o ritmo na poesia maranhense contemporânea. No primeiro momento trata-se da leitura crítico-literária da cidade e memória na produção poética maranhense, do ponto de vista histórico e cronológico, do poema Canto à cidade de São Luís. 295
Anais No segundo momento, verifica-se as lógicas cruzadas de atuação no espaço intelectual maranhense, ou seja, a análise do eu-lírico4 na referida obra de Arlete Nogueira da Cruz. Já na terceira e última parte, o desfecho desse panorama cultural e literário, em que a poesia em sua trajetória evolutiva traz caracteres temáticos, estilísticos e com a identidade cultural maranhense, que do ponto de vista analítico empregado neste estudo, a análise da produção literária da referida autora, pressupõe a investigação do qual ela se situa no espaço da obra contemporânea. Do ponto de vista histórico e cronológico A leitura crítico-literária analisada do poema Canto à cidade de São Luís, um texto com sua primeira publicação em 1973, na obra Canção das horas úmidas, que evoca a sublime e nostálgica cidade de São Luís, está inserida na antologia poética Colheita (2017), é a última obra organizada pela autora Arlete Nogueira da Cruz, na qual ela ressalta sua fortuna crítica, situando no tempo e no espaço cada detalhe com apreensão estrutural do respectivo poema que se apreende a partir das relações objetivas que definem e determinam sua posição no espaço da produção. Como forma privilegiada da modernidade literária, a poesia produz um objeto de linguagem (o poema), objeto este que passa a existir de forma privilegiada no mundo da cultura humana – como, aliás, outros objetos artísticos. A arte, se imita a natureza, imita-a no sentido de ser capaz de produzir novas formas orgânicas e autônomas em si mesmas, mas diferentes das encontradas no mundo natural. Outrossim, essa nova forma orgânica, autônoma, fechada em si mesma, terá sempre seu significado profundo, aberto, presentificado no ato da leitura. Nesse enredo, vale salientar que, a poesia, segundo o Houaiss (2001, p. 2246), é uma “composição em versos (livres e/ou providos de rimas) cujo conteúdo apresenta uma visão emocional e/ou conceitual na abordagem de ideias, estados de alma, sentimentos, impressões subjetivas etc., quase sempre expressos por associações imagéticas” e por si só evidencia as multifaces da experimentação pessoal. 4 Nomenclatura utilizada para indicar a voz que enuncia o poema. O gênero lírico é aquele destinado a expressar emoções, sensações, disposições psíquicas, ou seja, a vivência de um eu em seu encontro com o mundo. (HOUAISS, 2001, p. 2245) 296
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