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ANAIS COLINT Definitivo

Published by biblioteca, 2022-11-14 14:14:28

Description: ANAIS COLINT Definitivo

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Anais Pego corisco5 com a mão, Um empurrão do meu dedo, Bota dez morros no chão. O povo aplaudia com palmas e gritos (CORRÊA, 2002, p. 58). Ainda que existam textos orais que são transmitidos ao longo das gerações da forma mais fiel possível, caracterizando uma “tradição”, também há aqueles cujo aspecto mais marcante é a mutabilidade. Os versos lançados pelos cantadores presentes eram improvisados, mas continham várias características também presentes em poemas escritos. De acordo com as palavras da pesquisadora Ruth Finnegan (2016), cujo estudo está voltado para a existência do que ela chama de “literatura oral”: Aqui e em vários lugares, ainda que percebamos que a tradição estabelecida e respeitada é a da escrita, a literatura oral continua sendo uma arte viva e há constante interação entre formas orais e escritas. [...] Até agora, poucos que consideraram este caso e outros similares negariam que tais culturas possuem, no mínimo, algo paralelo àquilo que denominamos literatura. É verdade que suas formas não são escritas, mas em vários outros aspectos elas parecem comparáveis àquilo que conhecemos como literatura. Comunidades não letradas têm, por exemplo, o que tem sido descrito como lírica, panegírico poético, canções de amor, narrativas em prosa ou drama. (FINNEGAN, 2016, p. 64-65). Segundo o raciocínio da autora, é natural as culturas da oralidade e da escrita serem consideradas dois polos opostos, mas não se pode negar que determinadas manifestações orais possuem formas hoje consideradas “literárias”. Nessa perspectiva, mesmo comunidades “não letradas” tinham contato como alguma forma de cultura, que não eram resumidas a produções escritas. Levando em consideração a obra aqui analisada, sabe-se que nem todos do povoado de Pirapemas retratado no livro eram analfabetos, mas fica evidente ao longo da obra que a maioria dos adultos não chegou a aprender a ler pela necessidade de sobreviver. Contudo, não se pode considerá-los pessoas sem cultura. Um exemplo a ser citado é o próprio pai de Cazuza, cuja importância não era julgada pelo nível de escolaridade, mas por sua sabedoria: 5 Corisco: raio Não havia no lugarejo ninguém mais importante do que meu pai. Era tudo: autoridade policial, juiz, conselheiro, até médico. A sua figura inspirava respeito; a sua presença serenava discórdias. Se havia uma desordem, mal ele chegava e a desordem acabava. Bastava que desse razão a uma pessoa, 397

Anais para que todo mundo afirmasse que essa pessoa é que estava com a razão. Os seus conselhos faziam marido e mulher, desunidos, voltarem a viver juntos. Ninguém tomava um remédio, sem lhe perguntar que remédio devia tomar. Era um homem inculto, mas com uma inteligência tão viva, que se acreditava ter ele cursado escolas. (CORRÊA, 2002, p. 16). Assim, mesmo não tendo “cursado escolas” e o menino tendo definido o pai como “inculto”, o trecho deixa claro que o homem possuía conhecimentos que não deixou de adquirir por não ter estudado. Essa afirmação não se trata, contudo, de uma negação da validade da cultura escrita, mas de uma ressalva acerca da importância de não menosprezar saberes adquiridos através da tradição oral, como provavelmente sucedeu ao pai do protagonista. De forma sumária, segundo destaca Hampaté Bâ (2010, p. 183), A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. [...] Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial. (HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 183). Levando em consideração a afirmação do pesquisador, a oralidade não é apenas um campo de estudo a ser valorizado, mas também é amplo e permite diversas abordagens de pesquisa. Acima de tudo, está diretamente ligada à história da humanidade, não podendo ser estudada sem se considerar o fator humano. 4 Considerações Finais Cazuza (1938), de Viriato Corrêa, é uma história aparentemente simplória e pouco valorizada na atualidade por se tratar de um romance de literatura infantojuvenil. O que muitas vezes não é levado em consideração quando se trata da narrativa, é que a forma como foi composta oferece ao leitor um retrato muito próximo de costumes e tradições do Maranhão do século XX, em especial das zonas rurais, localidades pouco lembradas em outras obras maranhenses. É possível perceber, com a leitura da obra, a presença de costumes característicos de sociedades que primam pelo uso da oralidade, não especificamente pela ausência da palavra escrita, mas pela legitimidade da cultura oral. Práticas como a contação de histórias e dos 398

Anais “cantadores” de versos improvisados foram preservados pela tradição oral e perderam força ao longo do tempo, mas continuam a existir nas sociedades atuais por sua validade como manifestações culturais. Dado o exposto, acredita-se que o estudo da oralidade a partir dos exemplos apresentados pelo romance do escritor maranhense, constitui-se como algo deveras importante, tanto para a preservação de elementos culturais do Maranhão, como para maior valorização de manifestações e costumes que continuam a dar primazia aos tesouros provenientes da comunicação oral. Assim, esta pesquisa ainda possui outras possibilidades analíticas nesse campo, sendo este artigo, portanto, apenas um dos olhares possíveis sobre o assunto. REFERÊNCIAS BÂ, Amadou Hampatê. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph. História geral da África I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010. p. 181-218. BRANDÃO, Jacyntho Lins. Oralidade, escrita e literatura: Havelock e os gregos. Literatura e Sociedade, v. 2, n. 2, p. 222-231, 1997. CALDAS, Alberto Lins.Oralidade, texto e história: para ler a história oral. Edições Loyola, 1999. CORRÊA, Viriato. Cazuza. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002. FINNEGAN, Ruth. O significado da cultura em literaturas orais. In: QUEIROZ, Sônia (Org.). A tradição oral. Belo Horizonto: FALE/UFMG, 2016. p. 61-98. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001. ONG, Walter J. Oralidade e Cultura Escrita. Tradução Enid Abreu Dobránsky. São Paulo: Papirus,1998. PIAIA, Victor Rabello. “E brincando se faz república...”: Viriato Corrêa, público infantil e imprensa no início do século XX. Anais do XVI Encontro Regional de História da Anpuh-Rio: saberes e práticas científicas. Rio de Janeiro, 2014. SCHIPPER, Mineke. Literatura oral e oralidade escrita. In: QUEIROZ, Sônia (Org.). A tradição oral. Belo Horizonto: FALE/UFMG, 2016. p. 11-24. VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph. História geral da África I: Metodologia e pré-história da África. Brasília: UNESCO, 2010. p. 157-179. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura medieval”. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 399

Anais ZUMTHOR, Paul. A Permanência da Voz. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1985. 400

CAZUZA: PASSADO, MEMÓRIA E RECONSTRUÇÃO Êmile Raquel Soares de SOUSA (UEMA)1 Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2 RESUMO Cazuza, de Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho, publicado em 1938, é considerado um romance autobiográfico clássico da literatura infantil, que retrata a trajetória de um menino do interior do Maranhão, cujos eventos que vivenciou muito se aproximam de situações da vida do autor. Ao realizar uma espécie de resgate de imagens do passado do protagonista, a obra leva o leitor a mergulhar em memórias relacionadas ao povo maranhense que viveu entre o final do século XIX e início do século XX, seus costumes, tradições e até sua história. Nessa perspectiva, esta pesquisa tem a intenção de estudar a obra Cazuza considerando os aspectos concernentes à reconstrução imagética do passado, que ocorre por meio do relato do personagem principal sobre suas memórias de infância. Parte-se da premissa que o passado é fenômeno histórico (LE GOFF, 2003) não repetível e que sobre ele não há que falar em construção, mas em reconstrução, com todas as implicações que a ideia de reconstrução carrega (HALBWACHS, 1990). A narrativa focaliza- se nos episódios da vida do autor em seus estudos primários que ocorre em Pirapemas, Coroatá e São Luís, no Maranhão. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica cujo aporte teórico conta com autores como Le Goff (2003), Bosi (1994), Ricoeur (2007), e outros. Este trabalho, 1 Graduanda em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa, Língua Inglesa e suas respectivas literaturas, pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, campus Caxias. Bolsista PIBIC/UEMA. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Ciência da Literatura (UFRJ/UEMA); docente na Universidade Estadual do Maranhão na Graduação–UEMA, Campus Caxias e Mestrado de Letras- PPG/Letras-UEMA. Líder do Núcleo de Pesquisa em Literatura Maranhense – NuPLiM/CNPq. Editora da Revista de Letras Juçara-UEMA, campus Caxias. E-mail: [email protected] 401

Anais além disso, faz parte de uma pesquisa de iniciação científica fomentada pela Universidade Estadual do Maranhão (PIBIC/UEMA) e parte do projeto Cenas de meninices: a produção literária infantil do escritor maranhense Viriato Corrêa. PALAVRAS-CHAVE: Cazuza. Memória. Reconstrução Imagética. ABSTRACT Cazuza, by Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho, published in 1938, is considered a classic autobiographical novel of children's literature, which shows the trajectory of a boy from the interior of Maranhão, who lived events that are very close to situations in the author's life. By performing a kind of rescue of images from the protagonist's past, the work leads the reader to dive into memories related to the Maranhense people who lived between the end of the nineteenth century and the beginning of the twentieth century, their customs, traditions, and even their history. In this perspective, this research intends to study the work Cazuza considering the aspects concerning the imagetic reconstruction of the past, which occurs through the main character's account of his childhood memories. We start from the premise that the past is a non-repeatable historical phenomenon (LE GOFF, 2003) and that we should not talk about it in construction, but in reconstruction, with all the implications that the idea of reconstruction carries (HALBWACHS, 1990). The narrative focuses on episodes from the author's life in his primary studies that take place in Pirapemas, Coroatá and São Luís, in Maranhão. This is bibliographical research, whose theoretical basis relies on authors such as Le Goff (2003), Bosi (1994), Ricoeur (2007), and others. Moreover, this is a scientific initiation research supported by Universidade Estadual do Maranhão (PIBIC/UEMA) and part of the project Cenas de meninices: a produção literária infantil do escritor maranhense Viriato Corrêa (Childhood Scenes: the children's literary production of the maranhense writer Viriato Corrêa). KEYWORDS: Cazuza. Memory. Imagetic Reconstruction. INTRODUÇÃO Viriato Corrêa, nascido na cidade de Pirapemas, no Maranhão, viveu entre os anos de 1884 e 1967. E aos dezesseis anos começou a escrever seus primeiros contos; foi, ainda dramaturgo, jornalista, político e escritor de crônicas, tais como, Brasil dos Meus Avós (1927), O País do Pau de Tinta (1939), e autor de livros infantojuvenis como Cazuza, obra mais expoente de sua carreira; a narrativa se destaca por seu caráter eclético e dinâmico oferecendo muitas possibilidades de análise. Trata-se, também, de temas vivenciados na sociedade brasileira, a relação da infância e as vivências no ambiente escolar, a história e a memória do povo maranhense. Talvez por isso a obra tenha feito tanto sucesso, pois ao apresentar eventos da vida de uma criança, também versa a respeito do que estava em pauta naquele momento da 402

Anais história do Brasil, tais como o sentimento patriótico, a educação como forma de ascensão social, e a formação de professores, mas também o problema da pobreza, analfabetismo e outras questões que assolavam o país. Contudo, a obra entrega aos leitores muito mais que críticas às condições vivenciadas pelos personagens; traz à tona, além disso, muitos aspectos que conferem riqueza cultural à região a qual a obra pertence, como por exemplo a valorização de tradições e costumes muito característicos desse povo. E tudo isso, por sinal, é realizado na obra recorrendo-se a um artifício muito utilizado na literatura: a memória. O romance de Corrêa, portanto, é visto como de caráter memorialístico por não se limitar a falar da história de um menino em idade escolar, mas fazê-lo a partir da voz de um narrador que tenta não só contar, como reconstruir muitos eventos da sua época de criança, a partir de sua atual compreensão do mundo que o cerca (BOSI, 1994; HALBWACHS, 1990). Os registros das memórias do protagonista permitem ao leitor a identificação de imagens do passado que foram reconstruídas por ele, uma vez que quando o assunto é passado, não se deve falar em construção, mas em reconstrução, com todas as implicações geradas por essa concepção (HALBWACHS, 1990). Nessa perspectiva, este artigo tem como objetivo demonstrar como ocorre o processo de reconstrução imagética dos acontecimentos e vivências do passado, na obra Cazuza, tendo em vista que não há repetição no presente das relações sociais do passado. Portanto, pretende-se apresentar alguns conceitos relativos à memória e reconstrução, para em seguida verificar como ocorrem esses processos ao longo da narrativa do escritor maranhense. Memória, imagem e Reconstrução O campo da Memória constitui-se como uma das áreas das ciências humanas mais abrangentes no que diz respeito à pesquisa. Contudo, se é possível estabelecer um ponto de partida para este estudo, pode-se dizer que a obra do filósofo e diplomata francês Henri Bergson (1859-1941), Matière et Mémoire (Matéria e Memória), publicada pela primeira vez no ano de 1896, é considerada uma das maiores referências na área. Bergson (1999) preocupava-se especialmente em explicar a relação existente entre corpo e espírito, e nesse processo, apresentava conceitos como de “tempo”, “memória”, “imagem”, “matéria” e outros. 403

Anais No que diz respeito à “imagem”, o autor apresenta a noção de que o ser humano é cercado por imagens já existentes, a saber, o mundo material, e ele próprio constitui-se como uma delas, de modo que pode alterar os elementos que o cercam e ser afetado por eles. Explicando isso de uma maneira mais simples, seria afirmar que a forma como esse indivíduo percebe o mundo material a sua volta serve como um estímulo para que ele responda com uma ação que foi antes imaginada, e só então concretizada ou não. Como conclui o filósofo, “O que isso significa, senão que minha percepção traça precisamente no conjunto das imagens, à maneira de uma sombra ou de um reflexo, as ações virtuais ou possíveis de meu corpo?” (BERGSON, 1999, p. 16). Nessa perspectiva, no que diz respeito aos processos sensoriais da memória, essa virtualidade se faz presente no que o francês nomeia como “lembranças-imagens”, as quais, segundo a sua concepção, não estão prontas e acabadas, mas se atualizam continuamente a partir da percepção de estímulos exteriores ou interiores, realizada pelo sujeito. Assim, nota- se uma relação de interdependência entre lembranças-imagens e a percepção, visto que a percepção completa só se define e se distingue por sua coalescência com uma imagem-lembrança que lançamos ao encontro dela. [...] [E] a própria imagem-lembrança, reduzida ao estado de lembrança pura, permaneceria ineficaz. Virtual, esta lembrança só pode tornar-se atual através da percepção que a atrai. Impotente, ela retira sua vida e sua força da sensação presente na qual se materializa. (BERGSON, 1999, p. 148). No que concerne à primeira afirmação, entende-se toda percepção da realidade circundante realizada por um indivíduo é permeada por uma imagem-lembrança que a torna possível; de forma recíproca, as afirmações seguintes determinam que a força vital das lembranças é justamente esse movimento de atração realizado pela percepção, que lhes permite materializarem-se nas sensações presentes. Ainda segundo o autor, [...] não há percepção que não esteja impregnada de lembranças. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Na maioria das vezes, estas lembranças deslocam nossas percepções reais, das quais não retemos então mais que algumas indicações, simples “signos” destinados a nos trazerem à memória antigas imagens. (BERGSON, 1999, p. 30). Com essa afirmação, segundo observa Bosi (1994), começa-se a atribuir à memória um papel de extrema importância nos processos psicológicos descritos por Bergson (1999), uma vez que “a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo 404

Anais tempo, interfere no processo ‘atual’ das representações” (BOSI, 1994, p. 9). Levando em consideração tal concepção, ainda nas palavras da autora: Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, \"desloca\" estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora. (BOSI, 1994, p. 9). Nessa perspectiva, é nada menos que a memória a grande responsável por mediar esse relacionamento entre as lembranças provenientes do passado, e as percepções do presente, além de incumbir-se de preservá-las. Maurice Halbwachs (1990), sendo um dentre os nomes mais proeminentes nas pesquisas de caráter memorialístico, não se furtou ao dever de tematizar esse processo tão complexo e, talvez por isso, muito estudado, que é a rememoração. Sem deixar de lado sua concepção mais discutida – memória coletiva –, o sociólogo francês parte da premissa de que desde criança qualquer indivíduo está inserido em grupos sociais diversos e que, quando cresce e se torna adulto, tende a participar deles “de maneira mais distinta e refletida da vida e do pensamento desses grupos dos quais fazia parte, inicialmente, sem disso aperceber-se” (HALBWACHS, 1990, p. 71). Partindo disso, o intelectual questiona-se se há como esse sujeito não modificar a ideia que faz do seu passado, nem permitir que as informações reunidas reajam sobre suas lembranças. Assim, conclui: [...] a lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. Certamente, que se através da memória éramos colocados em contato diretamente com alguma de nossas antigas impressões, a lembrança se distinguiria, por definição, dessas idéias mais ou menos precisas que nossa reflexão, ajudada pelos relatos, os depoimentos e as confidências dos outros, permite-nos fazer uma idéia do que foi o nosso passado. Mas, mesmo se é possível evocar de modo tão direto algumas lembranças, não o é em distinguir os casos em que procedemos assim, e aqueles onde imaginamos o que tenha acontecido. (HALBWACHS, 1990, p. 71). Para o autor, portanto, no que diz respeito a lembranças evocadas de um passado, não se fala em construção, mas em reconstrução, visto que ao longo da vida e principalmente quando amadurece, o sujeito passa a enxergar aquilo que lembra, com os olhos do presente, 405

Anais não mais com aquela sensação inicial das experiências vividas. Por outro lado, trazendo a noção de memória coletiva, afirma que essa reconstrução não ocorre com um sujeito isolado, mas no momento em que ele mantém contato direto com os grupos de que participa. Nessa perspectiva, levando em consideração as imagens-lembranças descritas por Bergson (1999) e a própria noção de reconstrução apresentada por Halbwachs (1990), assim como a importância dada aos processos que envolvem o resgate de memórias individuais ou coletivas, descrito por vários autores, este estudo desenvolve uma leitura analítica da obra Cazuza (1938), de Viriato Corrêa. Cazuza: reconstrução imagética do passado Cazuza (1938) não foi só uma das mais importantes obras de literatura infantojuvenil maranhense, como foi o maior sucesso editorial da carreira do autor, considerada sua obra de maior proeminência. Por se tratar de um romance de formação, a narrativa acompanha uma parcela da vida de Cazuza, um menino em idade escolar que vive no interior do Maranhão entre os séculos XIX e XX, e que representa uma grande parcela da população maranhense de sua época. Logo de cara, a obra deixa claro que se trata da narração das memórias de alguém. Em uma espécie de prefácio, descobrimos que “um sujeito alto, quarentão, um tanto calvo” (CORRÊA, 2011, p. 8), foi quem escreveu suas memórias e as deixou com seu vizinho, dizendo: “São minhas memórias dos tempos de menino. O senhor, que escreve, veja se isto presta para alguma coisa” (CORRÊA, 2011, p. 8). Assim, ao refletirmos sobre os eventos que o texto nos apresenta a seguir, nos deparamos com um passado coletivo por meio das lembranças individuais de alguém que viveu e decidiu narrá-las (HALBWACHS, 1990). Segundo Le Goff (1994, p. 477) “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.” Reconstrói-se o passado não para repeti-lo no presente, mas para ter-se a representação de uma época; uma vez que, não há repetição no presente das relações sociais do passado. Através dos registros é possível ter acesso a um dado momento da história. De acordo com Bosi (1979), esse movimento de rememoração não se trata apenas de trazer o passado de volta ao presente, mas de percebê-lo relacionado a experiências e percepções imediatas. Desse modo, não é mais uma “lembrança-pura”, como nomearia Bergson (1999), 406

Anais mas uma “imagem-lembrança”, que só passa a existir quando evocada por um evento presente (BOSI, 1994). Na obra, encontramos vários exemplos de lembranças que Cazuza resgata e reconstrói, e que demonstram a forma como o passado se encontra com o presente, causando ainda, sensações. Uma delas é descrita quando o narrador conta como transcorreu sua chegada a São Luís. Tudo ali, para uma criança que viveu em um povoado e uma vila, era novidade; um relógio de brinquedo ou até mesmo uma farmácia fazia com que ele ficasse encantado pela cidade. Essa memória da simplicidade de sua meninice, e de como as coisas simples fascinavam as crianças, tal como as brincadeiras que marcaram sua época, fazem com que ele conclua, associando o seu passado e o presente, o quanto as coisas mudaram radicalmente: Foi num dia de sol, pela manhã, que chegamos a São Luís. [...]Até hoje não pude fixar, com exatidão, a lembrança daquele dia. Parece que ainda estou atordoado. O mundo, acreditem, mudou inteiramente. O progresso tornou a vida tão veloz, que as crianças da atualidade não têm mais meninice. Aos seis anos já viram e já gozaram tudo, aos dez estão enfastiadas e velhas. No meu tempo, qualquer coisa era novidade. [...] Eu, que vinha da roça, e que quase nada tinha visto, estava com a alma preparada para todas as emoções. (CORRÊA, 2011, p. 158). Percebe-se, a partir do trecho, em especial quando o narrador compara seu passado com o presente, que há um certo tom saudosista, uma vez que ele analisa e critica o que o mundo se tornou, tendo como referência a realidade que fora sua um dia. Nesse sentido, “O passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente”, como afirma Bosi (1994, p. 11). Ainda nessa perspectiva, ao falar do sítio de sua tia Mariquinhas, Cazuza relata que sempre que seus familiares estavam distraídos ele corria até o sítio e que naquele lugar a vida parecia ser mais bela do que em outra parte qualquer (CORRÊA, 2011). Levando em consideração esse e o relato anterior a ele, é muito comum se pensar que o passado é sempre melhor que o presente. Sendo ele bom ou ruim, o que parece, na realidade, é que todos idealizam o passado. De acordo com Virginia Woolf (1925, apud MESQUITA, 2018, p. 238), “O passado é belo porque ninguém se dá conta de uma emoção no momento. Ela cresce depois, e assim não sentimos emoções completas a respeito do presente, apenas do passado.” Dentre tantas outras imagens que o protagonista evoca em sua narração, as memórias relacionadas à escola são assuntos recorrentes na obra. A partir delas, percebe-se que o 407

Anais sentimento que aquelas experiências provocaram no Cazuza criança continuaram a afetá-lo, mesmo adulto. Agora, contudo, conhecedor do caráter absurdo de muitos eventos de sua infância relativos ao ambiente escolar, o narrador analisa tais acontecimentos com olhar atualizado, de quem possui informações adicionais coletadas ao longo dos anos, e os narra com um tom mais crítico do que saudosista. É o que pode ser notado no trecho a seguir, em que os relatos demonstram como funcionavam algumas práticas pedagógicas da época no interior do Maranhão e as denuncia: A sala feia, o ar de tristeza, o ar de prisão, a cara feroz do professor, os castigos pelas menores faltas e pelos menores descuidos tinham-me deixado um grande desgosto na alma. [...] O ‘estudo’ era gritado, berrado. Cantava-se a lição o mais alto que se podia, numa toada enfadonha. [...] Nada, nada que despertasse o gosto pelo estudo. Ao contrário. Tudo era motivo para castigo: uma lição mal sabida, uma escrita mal feita, uma palavra errada, um cochicho, um ar distraído, até um sorriso. (CORRÊA, 2011, p. 38-39). É evidente, segundo o relato, que havia muito descaso com a educação primária da época, a qual comportava um ensino ineficiente para aquelas crianças que precisavam submeter-se a ele. A esse sentimento det desgosto pelas práticas pedagógicas, nota-se uma associação às lembranças sobre o próprio ambiente em que elas eram desenvolvidas. Segundo Cazuza, A escola ficava no fim da rua, num casebre de palha com biqueiras de telha, caiada por fora. Dentro, unicamente um grande salão, com casas de marimbondos no teto, o chão batido, sem tijolo. [...] as paredes nuas, cor de barro, sem coisa alguma que me alegrasse a vista. [...] As paredes furadas, pareciam respiradouros de formigueiro [...] (CORRÊA, 2011, p. 30, 39). Quando analisamos esse fragmento do texto, assim como o anterior a ele, notamos que é muito possível essas imagens-lembrança terem sido evocadas, não por um evento particular do presente, mas pelas próprias mudanças que se operaram no mundo ao longo do tempo, tanto no que tange às condições de vida do personagem, como na completa distinção existente entre os ambientes em que viveu, e os que provavelmente tem como presente. Segundo aponta Bergson (1999, p. 84), às vezes a operação prática e consequentemente ordinária da memória, a utilização da experiência passada para a ação presente, o reconhecimento, enfim, [...] implicará um trabalho do espírito, que irá buscar no passado, para dirigi-las ao presente, as representações mais capazes de se inserirem na situação atual. (BERGSON, 1999, p. 84). 408

Anais O narrador de Cazuza (1938), portanto, parece evocar essas lembranças tendo como estímulo exterior unicamente a sua percepção do quanto o mundo, em seu presente, se distingue do que era na sua infância, exercício de reconstrução imagética do passado realizado por todo ser humano ao menos uma vez na vida. “O momento de recordação, é então o de reconhecimento. Esse momento, por sua vez, pode percorrer todos os graus de rememoração tácita à memória declarativa, mais uma vez pronta para a narração” (RICOEUR, 2007, p. 57). Se considerarmos esse reconhecimento segundo a concepção de Ricoeur (2007), entendemos que um dos principais elementos percebidos pelo protagonista para evocar sua infância foi o ambiente que o cercava, os quais avaliava sempre a partir dos lugares da memória. Assim, as “coisas” lembradas são intrinsecamente associadas a lugares. E não é por acaso que dizemos, sobre uma coisa que aconteceu, que ela teve lugar. É de fato nesse nível primordial que se constitui o fenômeno dos “lugares de memória”, antes que eles se tornem uma referência para o conhecimento histórico. Esses lugares de memória funcionam principalmente à maneira dos reminders, dos indícios de recordação, ao oferecerem alternadamente um apoio à memória que falha, uma luta na luta contra o esquecimento, até mesmo uma suplementação tácita da memória morta. (RICOEUR, 2007, p. 58). De acordo com essa compreensão, os “lugares de memória” muitas vezes são os responsáveis por manter vivas algumas recordações do passado, de certa forma lutando contra o esquecimento, a perda dessas memórias. Portanto, assim como a escola, há na obra outros ambientes que são portadores de momentos e, portanto, de lembranças. O próprio povoado onde o menino passa uma parte de sua infância, é um desses exemplos: “Uma ruazinha apenas, com vinte ou trinta casas, algumas palhoças espalhadas pelos arredores e nada mais. [...] Vila pacata e simples de gente simples e pacata. Parecia que ali as criaturas formavam uma só família.” (CORRÊA, 2011, p. 17). O narrador descreve, ainda, o sítio de sua tia, sobre o qual afirma: Era uma casa pequenininha, caiadinha, muito limpa, num terreiro alvo, bem varrido, com laranjeiras plantadas em derredor. Mas a doidice da meninada era o riacho que ficava atrás da casa. Não vi, no mundo, cantinho mais suave e mais doce e que tanto bem me fizesse a alma. Eu ali ficava horas inteiras, saboreando, sem saber, a poesia simples daquele pedaço amável da natureza. (CORRÊA, 2011, p. 23). 409

Anais Nota-se que esses e outros locais são para Cazuza lugares de pertencimento, por ter partilhado coletivamente episódios vividos e contados por ele com outras pessoas e associá- los a diferentes sensações. É pensando por esse ângulo que, para Halbwachs, a memória geralmente é uma reconstrução a partir de uma interação social: Para nós, ao contrário, não subsistem, em galeria subterrânea de nosso pensamento, imagens completamente prontas, mas na sociedade, onde estão todas as indicações necessárias para reconstruir tais partes de nosso passado, as quais nós representamos de modo incompleto ou indistinto, ou que, até mesmo, cremos que provêm completamente de nossa memória. (HALBWACHS, 1990, p. 77). As lembranças do personagem principal são marcadas por esse traço, mesmo sendo lembranças que pertencem ao Cazuza, ele melhor recorda do seu passado ao recorrer memórias que foram marcadas pelo que foi vivido em comum com os outros, pois de acordo com Halbwachs (1990), a memória individual está estritamente conectada aos contextos sociais em que se está inserido, isto é, “Sem dúvida, reconstruímos, mas essa reconstrução se opera segundo linhas já demarcadas e delineadas por nossas outras lembranças ou pelas lembranças dos outros” (HALBWACHS, 1990, p. 77). Ao visitar o sítio, o que acontecia com Cazuza dava-se também com os outros meninos, seduzidos pelos balanços, frutas e bichinhos daquele local, os quais provavelmente também guardaram com carinho as lembranças associadas ao ambiente. Em dado momento, o narrador praticamente nos pinta uma imagem-lembrança, permeada por uma aura poética, que até estimula a imaginação do leitor e chega a aguçar os sentidos: Gravou-se-me na vista, para toda a vida, o quadro maravilhoso. O riacho, que vinha de longe, torcendo-se pelas profundezas da mata, ali se alargava preguiçosamente, como que para repousar as águas cansadas de rolar entre as pedras. (CORRÊA, 2011, p. 23). Esse trecho demonstra que as lembranças do personagem ocupam um lugar de afeto em sua memória, e indica que alguns eventos vividos por Cazuza na infância, assim como a visão de mundo possuía quando criança, estão sendo resgatados na ocasião em que o autor recorda, fazendo com que o passado seja reconstruído ao passo que a história é narrada. Os atos de rememoração presentes na obra sobre as experiências vividas pelo personagem, são também realizados pelo autor que, segundo depoimentos, narrou eventos de sua própria infância e descreveu ambientes e experiências existentes em sua própria memória que, 410

Anais talvez por isso, geraram reconhecimento em muitos maranhenses do século XX e até dos dias atuais. De acordo com suas palavras, Pensei, então, em fazer um livro que inspirasse amor ao Brasil e fosse lido com agrado pelas crianças. Levei mais de dez anos pensando nisto. Fazia e desafiz planos. Afinal, depois de várias tentativas, resolvi fazer um livro que saísse de dentro de mim, fosse eu mesmo...E assim, surgiu o ‘Cazuza’, que é a minha vida de criança, com meus companheiros, as nossas brigas, as nossas festas...Todas as figuras do livro viveram comigo – arremata o escritor maranhense: o livro fez sucesso porque escrevi com sinceridade.” [...] (CORRÊA, 1960, apud FERNANDES, 2009, p. 85). Viriato decide escrever o livro Cazuza retratando as situações que ele vivenciou na infância e as lembranças que tomam formas de imagens, guardadas em sua memória, vem à tona. Muitas recordações existentes na obra, como quando declara que “No interior do Brasil a hospitalidade é um dever sagrado, que se cumpre religiosamente” (CORRÊA, 2011, p.18), contribuem para a valorização dos hábitos e costumes de uma sociedade, preservando a identidade de um povo, através do sentimento de pertencimento. É parte do que defende Le Goff (2013, p. 435), quando diz que “A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (LE GOFF, 2013, p.435). Em síntese, verifica-se que os textos teóricos que abarcam o tema em questão dão um embasamento essencial a essa pesquisa. No entanto, muito ainda deve ser observado na obra, principalmente no que diz respeito aos relatos memorialísticos que nos pintam um quadro histórico a respeito do Maranhão e do Brasil daquela época. Por outro lado, a partir dos estudos realizados, já foi possível observar a forma como acontecem alguns dos processos de rememoração e reconstrução imagética do passado descritos por Bergson (1999), Halbwachs (1990), Bosi (1994), Ricoeur (2007) e outros, e como eles são importantes para a compreensão do valor social e literário da obra que temos como objeto de estudo. CONSIDERAÇÕES FINAIS A realização de algumas leituras relacionadas ao romance de Viriato Corrêa aponta para o desenrolar do processo de reconstrução, sendo possível observar, por exemplo, que Cazuza reconstrói algumas imagens de sua meninice com um pensamento ideal, como se 411

Anais felicidade só existisse no passado; mas também reconhece algumas delas como inaceitáveis, visto que seu presente fez com que adotasse essa visão com maior convicção, como percebemos na crítica que faz ao sistema educacional de sua época. Cazuza, como todo ser humano, estava sempre envolvido em algum grupo social, a escola, a família, os amigos com quem conviveu na sua infância. As imagens foram sendo construídas pelas experiências de um menino no seu convívio com outros indivíduos; ele conta sobre pessoas que tiveram alguma importância e que ficaram registrados em sua memória apesar do tempo decorrido. As descrições memorialísticas do protagonista são carregadas de afeições com o passado, as pessoas, os lugares, a cultura, além dos ensinamentos recebidos que foram conservados e são transmitidos aos leitores. Ademais, Viriato Corrêa consegue tratar de temas necessários como a educação, compondo a narrativa pela rememoração de muitos fragmentos da sua infância, ainda que não sejam lembranças exatas dos acontecimentos. Trata-se, portanto, de uma história composta por alguém que se dedicou ao ato de recordar, de um narrador que através da memória realizou a façanha de dar aos leitores, acesso ao seu mundo de outrora. REFÊRENCIAS BERGSON, Henri. Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução Paulo Neves. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos – 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. CORRÊA, V. Cazuza. 43. ed. São Paulo: IBEP, 2011. FERNANDES, J. R. O. O Brasil contado às crianças: Viriato Corrêa e a literatura escolar para o ensino de história (1934-1961). Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Educação. Área de concentração: História da Educação e Historiografia) – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. 2009. HALBWACHS, Maurice. A memória Coletiva. Editora Revista dos Tribunais LTDA: São Paulo, 1990. LE GOFF, Jacques. História e memória. 7. ed. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2013. LE GOFF, Jaques. História e Memória. 4. ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994. MESQUITA, A. C. C. O diário de Tavistock: Virginia Woolf e a busca pela literatura. Tese de Doutorado. Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. (DTLLC). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo (USP), 2018. 412

Anais RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François, et al. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007. 413

ESCRITOS URBANOS E LITERATURA: A MEMÓRIA FEMININA RETRATADA EM QUARTO DE DESPEJO Tainá Dias de CASTRO (UFV)1 Hugo Martins GOMES (UFV)2 RESUMO Este trabalho tem como intuito estudar as subjetividades e o contexto sociopolítico urbano na obra Quarto de Despejo de Carolina Maria de Jesus, para expor as fragilidades da escrita feminina em espaços marginais, bem como a realidade sociopolítica urbana da década de 1960. Como objetivos este estudo visa identificar as condições necessárias à autora para que esta pudesse produzir sua obra, além de analisar as violências de gênero e raciais relatadas pela autora em seu diário. Ademais, objetivamos também apontar como a dinâmica da cidade desemboca no contexto retratado pela autora, bem como a forma como as cidades produzem desigualdades e moldam a política e a sociedade de quem a vivencia. Como metodologia para este estudo foi utilizado um arcabouço teórico pautado no estudo da crítica literária feminista, estudos de gênero e relações étnico raciais, além das teorias sobre cidades que conversem diretamente com o contexto retratado por Carolina Maria de Jesus, identificando fenômenos urbanos que se adequem à narrativa da autora. Assim, pretendemos realizar, para além de uma análise sobre o perfil da mulher que narra o livro, uma análise sobre a 1 Mestranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Viçosa, bolsista CAPES, CPF: 344.405.328-29 ([email protected]) 2 Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Viçosa, CPF: 161.972.317-43 ([email protected]) 414

Anais escrita feminina na literatura marginal e o papel dos espaços urbanos no desenvolvimento das subjetividades encontradas na obra. Palavras-chave: Espaços urbanos; escrita feminina; Carolina Maria de Jesus; Quarto de Despejo ABSTRACT This work aimed to study the subjectivities and the urban social political context in the book Quarto de Despejo from Carolina Maria de Jesus, to expose the weaknesses of the women’s writing in marginal spaces, as well as the urban social political reality of the 60’s. As objectives this study aims to identify the necessary conditions for the author so that she could produce her work, in addition to analyzing the gender and racial violences reported by the author in her diary. In addition we aim to show how the dynamics of the leads to the context portrayed by the author, as well as the way the cities produce inequalities and shape the politics and the society of those who experiences it. As a methodology for this study, a theorical framework was used based on the feminist critical, gender studies and ethnic racial relations, beyond the theories of the cities that talk directly with the Carolina’s context, identifying urban phenomenal that fit the author’s narrative. Thus, we intend to carry out, in addition to an analysis of the profile of the woman who narrates the book, an analysis of women's writing in marginal literature and the role of urban spaces in the development of subjectivities found in the work. Keywords: Urban spaces; women’s writing; Carolina Maria de Jesus; Quarto de Despejo. Introdução A literatura por muitos anos tem sido fonte de prazer e crítica a determinados assuntos, contextos e sociedades, refletindo realidades de diversas épocas e grupos sociais. A escrita de Carolina Maria de Jesus em sua obra Quarto de Despejo (2014) nos exemplifica como a realidade da mulher negra, em um espaço urbano tido como despejo da cidade, pode servir como exposição de um regime político que apenas privilegia uma camada social. Por meio de descrições sobre seu dia a dia, a autora demonstra como a sua vontade de se tornar escritora acaba por se tornar cada dia mais difícil em virtude do local onde se encontra e por falta de recursos e meios para escrever, reafirmando o argumento de Virgínia Woolf em Um Quarto Todo Seu (2014), a qual afirma que “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção” (p. 12). Teóricas como Sandra Gilbert e Susan Gubar trilharam caminhos para se repensar classificações que marginalizam obras de escritoras (2000, p. 8). No entanto, na tentativa de construir uma tradição literária feminina, obras foram classificadas sob um mesmo prisma e diversas obras de autoria 415

Anais feminina foram excluídas. O que nos leva a questionar os lugares dos cânones literários dominantes e quais ficam como subalternos (Spivak, 2014), além da própria instabilidade presente nas categorias anlíticas do feminismo (Harding, ) Conforme percebemos pelos relatos de Jesus, além da falta de espaço físico e condições financeiras para escrever, havia também o preconceito racial e de gênero, algo histórico no Brasil, como bem demonstra Lélia Gonzalez (2020) ao nos apresentar dados históricos sobre a trajetória da mulher negra em nosso país, além de sua função no mercado de trabalho. Nos relatos descritos em seu diário, percebemos como o espaço urbano interfere diretamente na escrita e na atuação profissional de Carolina Maria de Jesus, pois a favela, vista como o quarto de despejo da cidade, se encontrava em um contexto de precariedade espacial e social. O espaço urbano aqui aparece como um personagem subjetivo em suas obras, nos demonstrando como a polarização entre centro e periferia demarcam um ponto de importância na carreira de Carolina. Ademais, o presente trabalho tem como objetivo destacar o contexto urbano ao qual Carolina Maria de Jesus está inserida na obra em questão, evidenciando como os seus relatos revelam processos de espoliação urbana (KOWARICK, 1979) e a existência da ideia de Não- Cidade (MARICATO, 2013). Destacaremos também a cidade escassa (REZENDE DE CARVALHO, 1995) nos relatos de Quarto de Despejo quando Carolina Maria de Jesus escreve sobre o cotidiano da favela e a relação com a política (ou falta dela), à luz daquilo que a favela é em seu contexto de formação e a forma como a autora a relata. Assim, objetiva-se, dessa forma, mostrar como a cidade produz a realidade vivenciada por Carolina Maria de Jesus, tanto socialmente quanto politicamente. Com isso, o artigo se divide em 1) crítica literária sob ótica das violências de gênero e raciais e suas relações com a escrita de Carolina Maria de Jesus; 2) a sua escrita vinculada aos processos e dinâmicas da cidade e a produção do contexto urbano vinculada aos relatos da autora e 3) as considerações sobre as análises realizadas por esse trabalho. Carolina e sua escrita de denúncia Quarto de Despejo (2014) é uma obra, escrita em forma de diário, portanto, em primeira pessoa, na qual Carolina Maria de Jesus narra suas vivências durante os anos em que residia na favela do Canindé em São Paulo. Carolina demonstra como ao longo de sua 416

Anais vida o sonho de ser escritora e de, por meio de sua escrita, explanar urgências da realidade das pessoas que vivem em condições marginais. O meu sonho era andar limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possível. eu não estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela. (JESUS, 2014, p. 19). Mediante o exposto pela autora percebemos que as condições sociais e espaciais não são propícias para que ela tenha o mínimo de assistência para cuidar de seus filhos, ou mesmo para manter a higiene básica do dia a dia. Virginia Woolf sempre se posicionou em relação ao lugar das mulheres na literatura, como bem demonstra em seu livro Um Teto Todo Seu (2014). No capítulo introdutório desta obra somos apresentados ao tema principal de uma palestra, ministrada em uma universidade britânica, bem como a alguns dados e devaneios da autora, desta forma, o tema mulheres na ficção acaba por perpassar a diferença nas escritas entre homens e mulheres e o tema torna-se mais amplo do que o título inicial da palestra. Assim, a autora expressa sua opinião, sobre mulheres na ficção, nas seguintes linhas: “uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser escrever ficção; e isso, como vocês verão, deixa sem solução o grande problema da verdadeira natureza da mulher e da verdadeira natureza da ficção.” (WOOLF, p. 12, 2014), no caso de Jesus, as faltas de condições econômicas, o racismo estrutural presente na sociedade, o seu lugar de residência e o fato de ser uma mulher, impossibilitavam que ela seguisse apenas com a carreira literária e proporcionam críticas, por parte dos próprios moradores do Canindé, por Carolina sempre estar lendo e escrevendo. Mediante esta nova abordagem da mulher na literatura, a representação feminina passa a ser analisada por outra ótica, tentando, assim, descrever qual o papel da mulher na sociedade, qual posição e acima de tudo qual seu status e identidade. Assim, começam trabalhos que abordam uma releitura que não simplifique o conceito de identificação e que não apague a construção da mulher enquanto ser humano pertencente a uma sociedade real e não apenas a um universo feminino, assim “uma crítica feminista, deve rejeitar ‘a hipótese de uma leitora mulher’ e promover em seu lugar a ‘leitora feminina real’” (de Lauretis, p. 234, 2019). “Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar muita gente. Tem pessoa que quando me vê passar saem da janela ou fecham as portas. Estes gestos não me ofendem. eu até gosto porque não preciso parar para conversar”. (JESUS, 2014, p. ). Carolina era criticada 417

Anais por escrever livros na favela e sobre a favela, principalmente por parte das mulheres, as quais eram submetidas a violências, na maioria das vezes, e não gostaria de ser expostas. Todavia, uma das maiores críticas que recebia era por querer ser uma escritora sendo mulher, negra e favelada. ... O barraco da Aparecida é o ponto para reunir os pinguços. Beberam e depois brigaram. O Lalau disse que eu ponho várias pessoas no jornal, mas ele eu não ponho. -Se você me pôr no jornal eu te quebro toda, vagabunda! Esta negra precisa sair daqui da favela. (JESUS, 2014, p. 153). Pela passagem acima descrita, percebemos como as denúncias feitas por Carolina, sejam pelas condições sociais ou por violências ocorridas na favela, ela era criticada pelos próprios moradores por expor suas vidas. Além disso, estes sempre mencionavam que Jesus era uma “negra soberba”, pois eles consideravam que a autora se sentia superior por saber ler e escrever. Além dos moradores da favela, o julgamento que recaia em cima de Carolina muitas vezes se dava por sua cor. “Agora o lixo vai falar” (GONZÁLEZ, 2020, P. 70), esta frase exibe bem o que Carolina passava dentro das cidades e por se propor a expor as circunstâncias nas quais se encontrava, além de expor, também, as condições que as mulheres negras possuiam dentro da ordem espacial das favelas. Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondiam- me: - É uma pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo de negro mais bonito que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça que ele já sai do lugar. E indisciplinado. Se é que existe reincarnarções, eu quero voltar sempre preta. (JESUS, 2014, p. 58). A relação que ocorre dentro da cidade de São Paulo, mais precisamente na favela do Canindé, demonstra como se dá a ordem social, ou seja, há uma forma de dominação na qual a cidade, as casas de alvenaria exercem forte influência nas pessoas das comunidades. Como Spivak (2014) menciona: fica exposto que existe na sociedade os dominantes e os subalternos. “...Os visinhos da alvenaria olha os favelados com repugnância. Percebo seus olhares de odio porque eles não quer a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem nojo da pobresa. Esquecem eles que na morte todos ficam pobres”. (JESUS, 2014, p. 49), 418

Anais percebe-se pelo exposto da autora que a relação entre dominação da cidade se dava em diversas instâncias, inclusive nas políticas públicas e desigualdade social, apresentando problemas como a exclusão e a espoliação. Carolina Maria de Jesus e a cidade: exclusão e espoliações A obra de Carolina Maria de Jesus, para além do que foi exposto acima, são relatos “de dentro” de quem vive um modelo de cidade que escancara desigualdades das mais diversas formas, desde a retratação das pessoas da favela até a rotina extenuante em busca de sobrevivência na modalidade da subsistência. A fome, miséria, frustrações, vontade de sair da favela e o cansaço (tanto de sua parte quanto dos moradores da favela) são recorrentes em quase todos os dias em que a autora escreve seu diário. Conforme coloca Jesus (2014) “Hoje vários homens não foram trabalhar. Coisa de segundas-feiras. Parece que eles já estão cançados de trabalhar.” (p. 69) O que é escrito é reflexo de diversos processos, sendo um deles o de espoliação urbana (KOWARICK, 1979) na medida em que a classe trabalhadora é privada do uso dos direitos que a cidade pode oferecer. Esse tipo de expulsão acontece na forma da pouca oferta de transportes coletivos, por especulação imobiliária que faz com que as classes subalternizadas procurem espaços afastados desses pontos e, portanto, são capitaneadas pelo Estado e sua (não) oferta de políticas públicas. A metáfora de Carolina Maria de Jesus sobre como ela observa a favela, sendo o Quarto de Despejo da cidade, é a verbalização dos processos descritos acima. Essa metáfora, ademais, evidencia a existência de uma Não-Cidade (MARICATO, 2013), uma vez que a favela do Canindé é uma antítese do projeto de cidade liberal e democrática que as classes dirigentes tanto reforçaram na época (Governo Juscelino Kubitschek, por exemplo, adotava o lema “50 anos em 5” e ao falar de desenvolvimento da nação). Sendo um terreno esquecido pelo poder público e formado em consequência das desigualdades oriundas do capital especulativo imobiliário, Carolina Maria de Jesus tem essa percepção em suas idas para a cidade: O que deixou-me preocupada foi o predio ter 82 andar. Ainda não li que São Paulo tem predio tão elevado assim. Depois pensei: eu não saio do quarto de despejo, o que posso saber o que se passa na sala de visita?” (JESUS, 2014, p. 71). 419

Anais Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da America do Sul está enferma. Com as suas ulceras. As favelas. (JESUS, 2014, p. 76). A percepção da escritora coloca em xeque a cidade como um conceito político que deveria ser receptiva às diferenças e, do ponto de vista liberal, um lugar onde a igualdade merece um lugar privilegiado ao pensar o caráter público desse espaço. Colocando a favela como as úlceras da cidade, de forma patológica, a dimensão de cidadania se converte em algo residual, e a democracia descrita acima se converte em uma forma de autoritarismo a partir da noção de “cidade escassa” (REZENDE DE CARVALHO, 1995). A escassez dos recursos da cidade é intensificada em espaços já negligenciados. Carolina Maria de Jesus faz menções à escassez dos recursos da cidade em cidadania e acesso à direitos básicos. Segundo Jesus (2014), “A Vera ainda está doente. Ela disse-me que foi a lavagem de alho que eu dei-lhe que lhe fez mal. Mas aqui na favela varias crianças está atacadas com vermes.” (p.59); “O José Carlos não quer ir na escola porque está fazendo frio e ele não tem sapato. Mas hoje é dia de exame e ele foi. Eu fiquei com medo, porque o frio está congelando. Mas o que hei de fazer?” (p. 59); “E eu quando ouvi o vai não vai, já fiquei pensando numa briga, porque aqui na favela tudo inicia bem e termina com brigas.” (p. 68) Esses relatos revelam como os diversos serviços que deveriam ser oferecidos para a cidade de forma democrática e, ao menos na teoria, igualitária, faltam na favela de forma sistemática e incessante. Se existem narrativas de senso comum de que a saúde pública é um descaso geral, que a educação não é um direito acessível para todos/as e que as ruas são sujas, para as pessoas da favela isso se maximiza a níveis desumanos. É, portanto, a partir disso que vemos a escassez da cidade na escrita de Carolina, tanto no seu conceito político que se esvazia perante a realidade da favela quanto a escassez do acesso de políticas públicas que atendam essa camada da sociedade. Além disso, é espaço de violência tanto entre os moradores da favela como por parte do Estado, não só na esfera simbólica no que se refere à exclusão, mas também ao falar da tutela da instituição e do tratamento do mesmo com as pessoas da favela. Segundo a autora, “O que observei na favela e não está certo é isso: Taubaté. É o predileto de algumas mulheres 420

Anais aqui da favela. Ele passa as noites aqui. O soldado é turbulento. Que bom se o tenente retirasse este soldado da favela. Qualquer coisa pra ele, é tiro. Já feriu dois na favela.” (p.68) A escrita de Carolina Maria de Jesus possui um tom de melancolia para com essa cidade que é tão dura e autoritária com trabalhadores/as, mulheres, negros/as e suas intersecções. A escritora em Quarto de Despejo deixa um legado e um registro dos processos urbanos aqui analisados: mostra a espoliação urbana dos/as subalternizados/as para a Não- Cidade, o que desencadeia na escassez da cidade enquanto espaço democrático e direitos. Conclusão A partir do que foi exposto neste trabalho, é notável que as condições retratadas em Quarto de Despejo, tanto a questão identitária quanto a condição material de Carolina Maria de Jesus, contribuíram para a produção da obra da forma como ela se apresenta. Conforme observamos, a escrita de denúncia da autora se dá por diversos atravessamentos. A condição de mulher negra, favelada, mãe solo e catadora de papel lhe expõe a uma realidade extremamente difícil, uma vez que a subalternização de Carolina dificulta o seu acesso a diversos serviços e também a possibilidade da mesma de poder escrever. A violência dos mais diversos tipos e naturezas, sendo aqui relatadas as violências do contexto urbano e as identitárias, evidenciam o quanto a escrita de Carolina Maria de Jesus é importante para refletir sobre a favela do Canindé e as condições políticas da cidade à época, mas também nos convidam a pensar sobre a permanência das desigualdades sociais e espaciais gritantes relatadas em seu livro até os dias atuais. Além disso, a questão da escrita de Carolina Maria de Jesus também demonstrou como as violências de gênero e racial são retomadas em vários momentos por meio de seus relatos. A todo momento a escritora se coloca como mulher negra, mãe solo e catadora de papel e sem dissociar tais condições: ela é tudo isso o tempo todo e não sente vergonha de falar isso. Exatamente por tais condições as violências se manifestam a todo momento, tanto pelo descaso estrutural construído por uma sociedade como a brasileira da década de 50 (e, claro, anterior a tal época) quanto pelas pessoas de dentro da favela. Os diários de Carolina escancaram as condições (des)humanas, às quais sua identidade se vê situada A dinâmica da cidade é também um fator perceptível para a construção do que foi a obra de Carolina. Desde o processo de formação das favelas a partir de um contexto histórico de expulsão das classes subalternizadas para espaços considerados “degradados”, até a 421

Anais perpetuação do mesmo e as suas consequências para a produção (ou a não produção) de uma cidadania extremamente escassa e de uma Não-Cidade que se mostra violenta. Essa dimensão residual, com isso, reforça o que foi analisado na chave analítica da escrita de denúncia, bem como nos convida a pensar a cidade como um conceito político e que tem influência direta na formação da sociedade e dos espaços urbanos. A metáfora com o “Quarto de Despejo”, conforme foi demonstrado acima, mostra ser uma importante chave para se pensar a hierarquização dos territórios e espaços urbanos e das pessoas que lá se encontram. REFERÊNCIAS BARONE, Ana Cláudia Castilho. ST 10 Carolina Maria de Jesus, uma trajetória urbana. Anais ENANPUR, v. 16, n. 1, 2015. DE ABREU PEREIRA, Jaqueline. Caroligrafias – Cidade e moradia nas obras de Carolina Maria de Jesus. 2020 DE LAURETIS, Teresa. A tecnologia de gênero. In: HOLLANDA, Heloísa B. de. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização: Flávia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. JESUS, Carolina Maria. Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10 ed. São Paulo: Ática, 2014. KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. REZENDE DE CARVALHO, Maria Alice. Cidade escassa e violência urbana. Série estudos, n. 91, p. 2, 1995. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Tradução: Bia Nunes de Sousa, Glauco Mattoso. 1. ed. São Paulo: Tordesilhas, 2014. 422

A LITERATURA E OS “NOVOS” MEIOS DE COTEJAR ESTILO: UM ESTUDO ESTILOMÉTRICO COM FANFARRAS (1882), DE TEÓFILO DIAS Ana Paula Nunes de SOUSA (UFSC)1 RESUMO O surgimento do computador eletrônico trouxe para os estudos literários novas possibilidades de pesquisa. Existe, atualmente, um número expressivo de ferramentas computacionais focadas na estatística textual de textos literários, as quais auxiliam os pesquisadores na busca por padrões de repetição, padrões estes que caracterizam a identidade estilística de um escritor, época e/ou escola literária. À vista disso, o estudo em questão, visa apresentar os resultados iniciais de uma pesquisa quantiqualitativa realizada com a obra Fanfarras (1882), do poeta maranhense Teófilo Dias, a qual é viabilizada por meio de uma ferramenta computacional, o Aoidos (https://aoidos.ufsc.br/), que realiza escansão automática de poemas escritos em língua portuguesa. Ademais, a fim de maiores esclarecimentos, objetiva-se, com tal estudo, verificar se os elementos de construção de verso do poeta Teófilo Dias se assemelham às características estilísticas apontadas e levantadas pela crítica literária a respeito da produção literária vigente àquela época, cuja 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura, da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGLIT-UFSC). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística (NuPILL) e do Núcleo de Pesquisa em Literatura, Arte e Mídias (LAMID). Bolsista de Mestrado Fapema. E-mail: [email protected] 423

Anais corrente predominante no período era o Parnasianismo. Quanto ao mais, no que toca à fundamentação teórica deste estudo, o trabalho terá como escopo teórico as ideias de pesquisadores e estudiosos que tratam dos estudos estatísticos textuais (GUIRAUD, 1970; MONTEIRO, 2009) e do movimento Parnasianismo (BANDEIRA, 1951; RAMOS, 1959; BOSI, 2017). Para tanto, interessa dizer que, como possíveis resultados do estudo, observa-se que há uma preferência por parte de Teófilo Dias para com o soneto e os versos do tipo decassílabo heroico e alexandrino, métrica muito usada pelos poetas parnasianos, o caso de Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Raimundo Correia, a chamada tríade do Parnasianismo.. Palavras-chave: Literatura; ferramentas computacionais; Teófilo Dias; Fanfarras. ABSTRACT The emergence of electronical computer brought to literature studies new possibilities of research. There is, currently, one expressive number of computational tools focused in texts’ statistic of literary texts, in which helps the researcher in the search for repetitive patterns, these standards characterize the stylistic identity of an author, time and/or literary school. Having this in sight, the study in question, aims to present the initial results of a quantitative- qualitative research made in the work Fanfarras (1882), of one of Maranhão’s poet Teófilo Dias, which is possible through a computational tool, the Aoidos (https://aoidos.ufsc.br/), that can made automatic scansion of poems written in Portuguese language. In addition, to get more clarification, it’s aimed with such study, to verify if the construction elements of verse of poet Teófilo Dias resembles to the stylistic characters pointed and lift up by the literature critic about the literary production in force by that time, which the predominate literature chain was Parnassian. In addition, about the theorical support of this study, the work will have as theorical scope the ideas of researchers and scholars that treat about textual static studies (GUIRAUD, 1970; MONTEIRO, 2009) and of Parnassian movement (BANDEIRA, 1951; RAMOS, 1959; BOSI, 2017). For that, it’s interested to say that as possible results of the study, it’s observed that there is a preference of Teófilo Dias’ part to the sonnet and verses of heroic and alexandrian decasyllable type, metric very used by Parnassian poets such as Alberto de Oliveira, Olavo Bilac and Raimundo Correia, called the trio of Parnassian. Keywords: Literature; computational tools; Teófilo Dias; Fanfarras. Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma. Peixe não tem honras nem horizontes. Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia. (Manoel de Barros) Considerações iniciais Com a invenção dos computadores e, consequentemente com o aparecimento da internet, os estudos literários de cunho quantiqualitativo (que já eram desenvolvidos lá no século XIX com o cotejo de textos de autoria duvidosa) foram intensificados. Os pesquisadores das Ciências Humanas, precisamente das Letras e/ou Literatura, contam, 424

Anais hoje, graças aos esforços dos pesquisadores da computação, com novas formas de cotejar o objeto literário. Para maiores esclarecimentos, os estudos quantiqualitativos, também chamados de estilometria literária ou estilística estatística (GUIRAUD, 1970; MONTEIRO, 2009), trata-se do estudo do objeto literário viabilizado por meio de ferramentas computacionais que permitem ao pesquisador realizar, de maneira rápida e precisa, levantamento estatístico de elementos estilísticos de escritores, épocas e/ou escolas literárias. Interessa dizer que esse método de pesquisa não tem por fim inviabilizar o método tradicional de análise (leitor/obra/crítica literária), pelo contrário, há uma união entre essas duas estratégias de leitura crítica. Se se fizer uma pesquisa na internet em busca de estudos acadêmicos feitos a partir do método quantiqualitativo de análise, ver-se-á que os pesquisadores brasileiros, mesmo que seja a passos lentos, têm aderido a essa estratégia de leitura crítica, como é o caso dos trabalhos desenvolvidos pela equipe de pesquisadores do Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística (NuPILL) (https://nupill.ufsc.br/), e do Núcleo de Pesquisa em Literatura, Arte e Mídias (LAMID). Além disso, ver-se-á, também, a quantidade de ferramentas e/ou programas computacionais gratuitos dispostos na rede, dentre os quais, citam-se os softwares: Hyperbase, desenvolvido pelo professor Etienne Brunet; e Lexico 3, uma ferramenta de estatística textual feita pela equipe YLED-CLA2T, da Universidade de Sorbonne nouvelle-Paris3. Feitas essas considerações, o objetivo do presente artigo é apresentar os resultados iniciais de uma pesquisa quantiqualitativa que está sendo realizada com a obra Fanfarras (1882), do poeta maranhense Teófilo Odorico Dias de Mesquita. Neste estudo, recorremos a uma ferramenta computacional, o Aoidos (https://aoidos.ufsc.br/), que é capaz de realizar escansão automática de poemas escritos em língua portuguesa, além de fornecer elementos formais de construção de versos, como a quantificação dos metros, dos esquemas rítmicos (acentos principais e secundários) e dos processos de acentuação e pontuação. A ideia geral da pesquisa consiste em verificar se os elementos formais de construção de verso do poeta Teófilo Dias assemelham-se às características estilísticas apontadas e levantadas pela crítica convencional (ASSIS, 1882; MAGALHÃES, 1889; ROMERO, 1905; CARVALHO, 1937; CARPEAUX, 1951; BANDEIRA, 1951; CANDIDO, 1960; BOSI, 2017, etc) a respeito da produção literária vigente na época em que ele viveu, cujas correntes literárias predominantes no período eram o Realismo poético e o Parnasianismo. 425

Anais Para isso, além de realizarmos buscas nos manuais de história literária brasileira (os quais, diga-se de passagem, trazem poucas informações acerca da produção literária do maranhense), verificaremos, em periódicos dos decênios de 70 e 80 do século XIX, como se deu a recepção crítica da obra de Teófilo Dias, precisamente de Fanfarras (1882). Teófilo Dias e sua fortuna crítica Teófilo Odorico Dias de Mesquita, filho do advogado Odorico Antônio de Mesquita e da dona de casa Joana Angélica Dias de Mesquita, atuou como poeta, professor e político brasileiro, foi eleito Deputado Estadual da Província de São Paulo pelo Partido Liberal. Sua produção bibliográfica não é extensa, mas isso deve-se ao fato de ele ter falecido muito jovem, quando tinha apenas 34 anos, vítima de problemas no coração (CANDIDO, 1960). Embora tenha vivido relativamente pouco, Teófilo Dias contribuiu notadamente para a consolidação da literatura brasileira. Ao lado de poetas como Carvalho Júnior, Fontoura Xavier, Valentim Magalhães, Artur Azevedo, Artur de Oliveira, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac, esse literato buscou criar e/ou inovar o modo de produção literária brasileira. Em maio de 1878, no jornal Diário do Rio de Janeiro, surge o que ficou conhecido por a Batalha do Parnaso. Os poetas da geração nova lançam, no formato de versos, duras críticas aos literatos que compunham o Romantismo, precisamente às formas de concepção poética romântica. Alberto de Oliveira (1942), em entrevista concedida a Prudente de Morais Neto, quando perguntado sobre o que pretendia e o que combatia a Guerra do Parnaso, responde: — Foi uma reação inevitável. Os nossos românticos eram modelos de inesgotáveis lacrimeiras. Mal cuidaram da forma e do verso. A reação foi também contra o relaxamento de linguagem que enfeiara a poesia da época cheia de cacofonias, redundâncias, galicismos e solecismos, contra as imperfeições do verso, de que há exemplos mesmo em Gonçalves Dias, o mais correto de todos. (Apud MORAIS NETO, 1942, p. 122). Além de se aterem ao plano formal, o que chamaram desleixo e relaxamento da linguagem, Alberto de Oliveira (1942) informa que eles também eram contrários ao tom lacrimoso e ao pieguismo sentimental comumente visto na poética romântica. Outra mudança percebida, diz respeito à forma como a figura feminina é apresenta na poesia desses poetas – a vigem bela e pálida dos românticos é substituída pela mulher 426

Anais exuberante e sedutora dos realistas, exposta em sua materialidade carnal, igual coloca eu lírico de “A matilha”, de Teófilo Dias: [...] As fibrilas sutis dos lindos braços brancos, Feitos para apertar em nervosos arrancos; A exata correção das azuladas veias, Que palpitam, de fogo entumecidas, cheias, — Tudo a matilha audaz perlustra, corre, aspira, Sonda, esquadrinha, explora, e anelante respira, Até que, finalmente, embriagada, louca, Vai encontrar a presa, — o gozo — em tua boca. (DIAS, 1882, p. 03). A fortuna crítica de Teófilo Dias (ASSIS, 1882; ROMERO, 1905; CANDIDO, 1960) considera o poema “A matilha” como uma das melhores poesias do maranhense. Segundo informam, nota-se, nesse poema, duas faces do poeta nascido em Caxias: o lirismo e o erotismo. O crítico Antonio Candido (1960), em Teófilo Dias: poesias escolhidas, ressalta que o literato caxiense pode ser descrito da seguinte forma: “Romântico pelos começos, aspirando logo a uma renovação, que pensa encontrar, primeiro, na poesia social, depois, também no ‘realismo’ e na correção da forma, situa-se entre os últimos românticos pelos livros iniciais, entre os parnasianos pelo último” (CANDIDO, 1960. p. 14). Com Fanfarras, que fora publicada em 1882, Teófilo Dias teria inaugurado o Parnasianismo no Brasil, conforme apontam Manuel Bandeira (1951), Alfredo Bosi (2017) e o próprio Antonio Candido (1960). No dizer de Candido: Fanfarras serviram efetivamente de modelo, programa, estímulo aos renovadores, que, seja como for, nele encontraram o que andavam procurando; se houvermos de classificá-lo esteticamente, há de ser com base na obra de maturidade, não na inicial. Seria, pois, um tipo primitivo de parnasiano; e o fato de ter vibrações líricas do Romantismo não é, como se sabe, traço que o possa separar da maioria dos outros “cultores da forma”. (CANDIDO, 1960, p. 15, grifo do autor). Outros críticos e historiadores que, semelhante a Antonio Candido (1960), teceram bons comentários a respeito da obra de Teófilo Dias, foram Sílvio Romero (1905), com Evolução do lirismo brasileiro; Ronald de Carvalho (1937), com o livro Pequena história da literatura brasileira; e Otto Maria Carpeaux (1951), em sua Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira. As premissas levantadas por esses homens de letras fazem ver a 427

Anais similaridade de estilo entre Teófilo e os poetas Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac. Para Romero (1905), o literato maranhense seria o quarto integrante desse terceto, o que ele denomina áurea quadriga parnasiana. Vale dizer que mesmo que Teófilo Dias não conste na grande maioria dos manuais de história literária brasileira, ele teve uma boa recepção na imprensa periódica do seu tempo, basta ver o que escreveram os poetas e críticos Machado de Assis (1882) e Aluísio Azevedo (1882) (que assinava sob o pseudônimo Eloy, O Herói), em periódicos como O Mequetrefe (RJ), Gazetinha (RJ) e a Tribuna Liberal (RJ). Igual aos seus companheiros, Valentim Magalhães, em 08 de abril de 1889, publicou, na revista Tribuna Liberal, uma crítica muito pertinente acerca da vida e obra do maranhense, de quem guardava grande e sincera admiração. Conforme escreveu Magalhães (1889), Teófilo Dias foi o responsável pela publicação da primeira obra com traços e características da escola literária parnasiana, em suas palavras: Teófilo Dias foi, incontestavelmente, o precursor, entre nós, dos formistas extremos e extremosos. Foi, de certo, o primeiro que praticou o culto divino da Forma, que Bilac biblificou com entusiasmo devoto e incontestável talento e de são magnos sacerdotes aquele poeta Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, os quais, com o malogrado Banville das Fanfarras, eram os “quatros evangelistas” da nova (Quid sub sole novum) religião da Poesia. (MAGALHÃES, Tribuna Liberal, 1889, p. 01). Magalhães (1889) fala de suas impressões para com as duas partes que compõem Fanfarras (1882) – “Flores funestas” e “Revoltas”. A primeira delas é considerada pelo poeta como sendo de uma perfeição extrema, no seu dizer: “em todas as composições da primeira parte intitulada Flores funestas, reconhece-se a influência poderosa dos poetas franceses então mais modernos – a começar por Baudelaire, de quem até o título imitou” (MAGALHÃES, Tribuna Liberal, 1889, p. 01). Para além do título, essa influência é percebida mais ainda pela quantidade de traduções de poemas de Charles Baudelaire e Lecomte de Lisle. Diferente de “Flores funestas”, “Revoltas”, ao ver de Valentim Magalhães (1889), não possui a mesma qualidade, não tanto do ponto de vista formal, mas pelo conteúdo. Para o poeta e crítico, “na Revolta, embora seja o mesmo apuro artístico, a espontaneidade é menor e muito mais limitada a originalidade” (MAGALHÃES, Tribuna Liberal, 1889, p. 01). 428

Anais Esse juízo crítico acerca de “Revoltas” não se restringe somente a Valentim Magalhães (1889), Machado de Assis (1882) também possui a mesma impressão. Ele informa que “Teófilo Dias nos versos dessa segunda parte, é menos espontâneo, é menos ele mesmo. Sabe compor o verso, e dispõe de um vocabulário viril, apropriado ao tema, mas o tema, que é o de suas convicções políticas, não parece ser o de sua índole poética” (ASSIS, Gazetinha, 1882, p. 03). Resultados iniciais da pesquisa Conforme exposto na introdução, neste estudo serão apresentados os primeiros resultados da pesquisa quantiqualitativa que está sendo realizada com a Fanfarras (1882), do poeta maranhense Teófilo Dias. Nesse estudo, utilizamos também a obra Sonetos e poemas (1885), de Alberto de Oliveira, o qual é considerado como o mais ortodoxo dentre todos os poetas parnasianos – até mais que Raimundo Correia e Olavo Bilac (AZEVEDO, 2006). Interessa dizer que o corpus de estudo já foi criado, igual pode ser verificado na imagem abaixo: Figura 1 - Corpus Fanfarras (1882) Fonte: Aoidos. 429

Anais A partir da imagem acima, conclui-se que Fanfarras (1882) apresenta um número expressivo de poemas cuja forma fixa é o soneto. Para maiores esclarecimentos, o soneto, assim como o triolé, o rondó e a balada, é uma forma fixa de poema que serve, de certo modo, para caracterizar o verso parnasiano (RAMOS, 1959). Com o aparecimento da escola parnasiana, estas formas fixas, antes negligenciadas pelos poetas românticos, voltam com força. Outro elemento formal de construção de verso frequentemente associado aos parnasianos, é o verso alexandrino. O Aoidos não fornece, de maneira exata, a marcação de versos do tipo alexandrino, no entanto, por meio da quantificação dos metros dos poema (função executada pela ferramenta), é possível que tenhamos acesso a essa informação, basta verificarmos os versos de doze sílabas poéticas dispostos no corpus. A imagem que seguinte evidencia essa função desempenhada pela ferramenta digital Aoidos: Figura 2 - Análise automática do poema “O sino”, de Fanfarras Fonte: Aoidos Tanto o poema “O sono” quanto a maioria dos outros que compõem Fanfarras (1882) são poemas formados por versos alexandrinos. O segundo metro mais usado por Teófilo Dias é o verso formado por dez sílabas poéticas, isto é, o decassílabo. Vez por outra ele faz uso da sextilha e redondilha maior (versos formados por sete sílabas poéticas), mas não se compara aos demais metros utilizados no corpus de Fanfarras (1882). Vide a figura 03: 430

Anais Figura 3 - Análise automática do comprimento dos versos de Fanfarras (1882) Fonte: Aoidos Ainda no que toca aos processos de construções de verso dos parnasianos, Manuel Bandeira (1951), em Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana, diz que esses poetas jamais eram infiéis à sinalefa e à sinérese. Segundo ressaltou o poeta e crítico, “foi esse processo que deu à poesia parnasiana aquele caráter escultural, censurado por Lucio de Mendonça nos versos dos Sonetos e Poemas, de Alberto de Oliveira” (BANDEIRA, 1951, p. 19). Logo, tendo isso em vista, observe-se o recorte feito no corpus acerca dos processos de acentuação e pontuação: Figura 4 - Análise dos processos de acentuação e pontuação em Fanfarras (1882) Fonte: Aoidos 431

Anais Conforme é verificado na imagem em destaque, na parte inferior, especificamente em Metaplasmas, a sinalefa é o processo de acomodação silábica de maior proeminência em Fanfarras (1882), basta ver os resultados dos demais: eclipse, aférese, acento, diérese e sístole. Outros processos que também se destacam são a elisão, a crase e sinérese. Esses resultados demonstram, de certo modo, a similaridades de estilo existente entre Teófilo Dias e a chamada tríade parnasiana, sobretudo se considerarmos o que propõe Manuel Bandeira (1951) sobre a sinalefa e a sinérese no verso parnasiano. Considerações finais Tendo em vista as informações e discussões apresentadas neste estudo, conclui-se que, mesmo que o poeta maranhense Teófilo Dias não apareça na grande maioria dos manuais de história literária brasileira, ele conseguiu se destacar entre seus pares, sua produção literária foi muito bem recebida pelos leitores e críticos do período histórico em que viveu, como visto em Assis (1882) e Magalhães (1889). No que toca aos resultados iniciais da pesquisa, embora ainda em andamento, observou-se que há uma preferência por parte do poeta à forma fixa soneto, bem como pelo verso alexandrino e pela sinalefa, elementos formais estes muito característicos do verso parnasiano, como vemos em Alberto de Oliveira, Olavo Bilac e Raimundo Correia. Referências ASSIS, Machado de. Obras completas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. ASSIS, Machado. Bibliografia. Gazetinha (RJ). Rio de Janeiro, 17 Jun. 1882, ed. 136. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=706850&pesq=%22Te%C3%B3fil o%20Dias%22&pagfis=865. Acessado em: 09/07/2022. AZEVEDO, Sânzio de. Roteiro da poesia brasileira: parnasianismo. São Paulo: Global, 2006. BANDEIRA, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana. 3 edição. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1951. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2017. 432

Anais CANDIDO, Antonio. Teófilo Dias: poesias escolhidas. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1960. CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde / Serviço de Documentação, 1951. CARVALHO, Ronald de. Pequena história da literatura brasileira. 6ª ed. Rio de Janeiro: F BRIGUIE T & C , Editores, 1937. DIAS, Teófilo. Fanfarras. São Paulo: Dolivaes Nunes, 1882. ELOY, O HERÓI. Semaninha. Gazetinha (RJ). Rio de Janeiro, ano 1, 23 abr. 1882, ed. 91. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=706850&pesq=%22Te%C3%B3fil o%20Dias%22&pagfis=679. Acessado em: 09/07/2022. GUIRAUD, Pierre. A Estilística. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970. MAGALHÃES, Valentim. Escritores e escritos: Teófilo Dias. Tribuna Liberal (RJ). Rio de Janeiro, 8 abril 1889, ed. 126, p. 01-02. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=709808&pesq=%22Te%C3%B3fil o%20Dias%22&pasta=ano%20188&hf=memoria.bn.br&pagfis=512. Acessado em 19/07/2022. MONTEIRO, José Lemos. A estilística: manual de análise e criação do estilo literário. 2 ed. Petrópoli7s-RJ: Vozes, 2009. MORAIS NETO, Prudente de; OLIVEIRA, Alberto de. A Manhã, [s. l.], v. II, n. 8, p. 122-123, 8 mar. 1942. RAMOS, Péricles Eugênio da. Introdução ao Parnasianismo brasileiro. São Paulo: Revista da Universidade de São Paulo, 1959. ROMERO, Sílvio. Evolução do lirismo brasileiro. Recife: Tipografia de J. B. Edelbrock, 1905. 433

MEMÓRIA E CIDADE: UMA LEITURA DA OBRA O CHAMADO DA NOITE, DE CARLOS RIBEIRO Vanessa Mayara Cavalcante OLIVEIRA (UEMA) 1 Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA/UESPI)2 RESUMO O trabalho objetiva analisar o processo de rememoração na obra O chamado da noite (1997) do poeta baiano contemporâneo Carlos Ribeiro. A obra faz referência a espaços antigos da cidade de Salvador – BA, ressignificados pelo olhar do narrador. O trabalho fundamentou- se na visão de Halhwachs (2006), Bosi (2003) e Asmann (2011), Pesavento (2003), Ascher (1998), Zukin (2018) e Soja (1993). É relevante pensar a obra a partir da figura do flâneur, com suas impressões voltadas aos espaços marcadores de referências (ruas, bairros, praças, dentre outros), de modo que, por meio da sua ótica, é perceptível também os problemas sociais da cidade, além de memórias individuais e coletivas. Diante da realidade fragmentada dos tempos modernos, o enraizamento é problemático e as referências do ser na cidade acabam se dispersando, no entanto, a literatura tem a capacidade de resguardar espaços 1Graduanda em Letras Português pela Universidade Estadual do Maranhão, Campus de Timon. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC FAPEMA. CPF:064.218.623-57. E-mail: [email protected] 2Pós-doutorado em estudos da Memória e suas interfaces com a Literatura (PROCAD - AM/CAPES). Doutorado em Letras, área de concentração em Teoria Literária. Profa. de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Estatual do Maranhão e da Universidade Estadual do Piauí. Profa. dos Programas de Pós Graduação em Letras de ambas universidades. Bolsista de Produtividade do CNPq. CPF: 249.772.923-91. E- mail: [email protected] 434

Anais considerados de valor pela preservação da memória do lugar. O narrador de O chamado da noite (1997) possui uma relação de apego às ruas da cidade e a outros elementos citadinos, o que o faz vê-los com os olhos de ontem e ressignificá-los a partir do seu momento presente, buscando valorizar, por meio de suas impressões e sensações, o patrimônio urbano. Palavras-chave: Memória. Homem. Cidade. O chamado da noite. ABSTRACT The work aims to analyze the process of remembrance in the work O chamado da noite (1997) by contemporary Bahian poet Carlos Ribeiro. The work refers to old spaces in the city of Salvador - BA, resignified by the narrator's gaze. The work was based on the vision of Halhwachs (2006), Bosi (2003) and Asmann (2011), Ferrara (1998), Pesavento (2003), Ascher (1998), Zukin (2018) and Soja (1993). It is relevant to think about the work from the figure of the flâneur, with his impressions focused on the spaces that are markers of references (streets, neighborhoods, squares, among others) so that, through his optics, it is also perceptible the social problems of the city, as well as individual and collective memories. Faced with the fragmented reality of modern times, the entangling is problematic and the references to being in the town end up dispersing, however, literature can protect spaces considered valuable by preserving the memory of the place. The narrator of O chamado da noite (1997) has a relationship of attachment to the city streets and other city elements, which makes him see it with the eyes of yesterday and resignify it from his present moment, seeking to value the urban heritage through his impressions and sensations. Keywords: Memory. Man. City. O chamado da noite. Introdução A memória tem a capacidade de reter informações, algumas coisas são reavivadas pela consciência, outras esquecidas ou não reveladas voluntária ou involuntariamente. Assim, a memória implica uma condição modelador, que subsidia a ligação entre o passado e o presente, evidenciando marcas e transformações do eu, corroborando para a construção da imagem que o indivíduo tem de si, dos outros e das coisas ao seu redor. Nesse sentido, o trabalho tem por objetivo analisar o processo de rememoração na obra O chamado da noite (1997), do escritor baiano contemporâneo Carlos Ribeiro, a partir da relação que o narrador estabelece com a cidade. Para tanto questionamos: de que modo o narrador-personagem dialoga com os espaços marcadores referências? Até que ponto a memória da cidade vai ao encontro da memória do protagonista? Portanto esse estudo tem o interesse de ressignificar o passado do narrador por meio de memórias e sua relação com a cidade. 435

Anais O estudo envolve os resultados parciais da pesquisa desenvolvidas no Programa de Iniciação Científica - PIBIC/FAPEMA (2021-2022), vinculado à Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Nas considerações aqui apresentadas, amparamo-nos na visão de Halhwachs (2006), Bosi (2003) e Asmann (2011), Pesavento (2003), Zukin (2018) e Soja (1993), dentre outros. Carlos Jesus Ribeiro, mais conhecido por Carlos Ribeiro é natural da Bahia, nasceu no dia 19 de agosto de 1958. É escritor, jornalista, mestre e doutorado em literatura pela Universidade Federal da Bahia – UFBA. Também é membro da Academia de Letras da Bahia e professor do curso de jornalismo da Universidade Federal de Recôncavo da Bahia - UFRB. O escritor tem dezesseis livros publicados nos gêneros conto, romance, novela, ensaio, memória e reportagem. Seu primeiro livro foi Já vai longe o tempo das baleias, contos, em 1982, seguido de O homem e o labirinto, em 1995. Seu primeiro romance foi O chamado da noite (1997); o segundo, Abismo (2004), além de outras obras: O visitante noturno (2000), O caçador de ventos de melancolias: um estudo da lírica nas crônicas de Rubem Braga (2001). Tem participação em várias coletâneas e antologias. A relação entre homem e cidade na obra O chamado da noite, de Carlos Ribeiro A obra O chamado da noite, de Carlos Ribeiro é dividido em cinco capítulos em que o narrador-personagem conta suas experiências vividas na cidade de Salvador – Bahia e ressignifica lugares de memórias. Logo no início ele dá visibilidade ao Teatro Castro Alves, um espaço que comporta vivências coletivas. Um patrimônio da cidade, conhecido como maior e mais importante centro artístico de Salvador, inaugurado em 1967, recebendo o nome de Castro Alves em homenagem ao poeta baiano Antônio Frederico de Castro Alves, com isso, o teatro foi reconhecido como patrimônio nacional quando completou 50 anos em 2017. O narrando registra a sensação que tem ao avistar uma mulher em frente ao Teatro Castro Alves. “[...] Eu a vi a primeira vez no Teatro Castro Alves na entrada para o Garcia [...]. Talvez porque tivesse os cabelos curtos e parecesse uma francesinha revolucionária dos anos 60 dos filmes [...]” (RIBEIRO, 1997, p.01). Em meio à referência a lugares de memória, o protagonista diz que algumas de suas lembranças estão se desfazendo, transformando-se num pátio frio e deserto: “e eu lá, mas são essas e outras coisas que desaparecem pouco a pouco da minha vida” (p.13). Com isso, 436

Anais fica claro que muitas lembranças tendem a ceder espaço a novas, em um processo de revezamento entre lembrança e esquecimento. Como afirma Bosi (2004, p. 24): “As coisas aparecem com menos nitidez dada a rapidez e descontinuidade das relações vividas. Desse tempo vazio a atenção foge como ave assustada”. No entanto, as lembranças da infância tendem a resistir na memória e, no caso do narrador, elas surgem revestidas de detalhes vividos na cidade. O protagonista é um homem de meia-idade que se descreve como alguém que vive uma fase em que a sua memória começa a falhar. Esse é o momento em que ele passa próximo ao Teatro Castro Alves e lembra-se dos momentos da infância em que assistia ali os espetáculos. Halbwachs (2003, p. 53) diz que “a condição necessária para voltarmos a pensar em algo aparentemente é uma sequência de percepções pelas quais só podemos passar de novo refazendo o mesmo caminho, de modo a estar outra vez diante das mesmas casas [...]”. É exatamente isso que o narrador faz: como um flanêur, deambula pelas ruas, bairros, esquinas de sua cidade rememorando acontecimentos vividos, por conseguinte, dando visibilidade à memória do lugar. Para Benjamin (1994, p. 35), a rua se torna a moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes BENJAMIN, 1994, p.35). Para o flâneur, a multidão é o seu refúgio, mas para o narrador da obra O chamado da noite as ruas da cidade são moradas apenas se for para apreciar a paisagem com os olhos de ontem, especialmente à noite, que para ele é poesia Na contemporaneidade é quase impossível viver sem mudanças, sem as rupturas que a vida oferece. Sobre isso, no trabalho sobre a poesia de Ferreira Gullar e H. Dobal, Santos (2015, p. 89) assevera: “O sujeito [...] vê-se impotente diante do novo mundo ampliado, tornando-se inviável evitar que algo transborde. (GULLAR, 2015. p.89). O homem moderno vê-se, muitas vezes, impotente diante das transformações e, desacomodado, busca as referências nas imagens de outrora. Assim, no detalhamento do narrador de O chamado da noite percebe-se que o seu vínculo com os espaços da cidade é latente gerando o seu enraizamento nos espaços da urbe. A vila de Itapuã é personificada como uma senhora de muita beleza. Ao rememora-la, imprime sentimentos e lembranças prazerosas que comporta sensações sinestésicas e de liberdade: “Itapuã é um sentimento e uma lembrança; Itapuã é dona Francisquinha, uma senhora muito bonita e bela [...]” (RIBEIRO, 1997, p.82). Que é o bairro mais famosa da capital, ele é uma vila antiga de pescadores, com estilo boêmio desde os anos 60. E muito 437

Anais conhecido por sua beleza por ser próximo ao mar, pelo contato com a natureza e pela sua cultura, sendo um local de patrimônio da cidade. As lembranças prazerosas se misturam com tristeza, ante as transformações pelas quais passam os lugares de memória. Com as rápidas transformações urbanas, o homem passa adotar costumes compatíveis com a realidade do seu tempo, sendo a pressa uma das atitudes incorporadas, mas o narrador da obra, não. Ele não aplaude, não acompanha as mudanças. Vive num estado de crise existencial da modernidade e sofre com os resultados das transformações. Com as mudanças, surge no final do século XIX uma nova figura de homem na cidade: o flâneur, passeador que observa a cidade com entusiasmo e sente-se vivo no meio da multidão. Como descreve Benjamin, sobre o flâneur: Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente. (BENJAMIN, 1994, p.35). O flâneur de O chamado da noite adota postura diferente, não se encanta com as mudanças, mas observa e anda pela cidade. Sente-se triste pelo esfacelamento de elementos urbanos – monumentos, becos, ruelas e outros - que carregam a memória do lugar. Segundo Milena Tanure (2018), para o narrador é como se a Bahia estivesse desfazendo-se, a medida que ela vai se transformando. E assim o narrador diz que está condenado a viver a modernidade que vai devorando, de forma avassaladora, os espaços que guardam a memória do lugar, a ponto de fazer desaparecer o encanto da alma da cidade. Ele percorre, então, os caminhos antigos para reconstruir a memória da sua cidade. A memória citadina é responsável por manter viva a história do lugar. O narrador de O chamado da noite, um homem urbano que vai escavando os espaços de memória, sabe da importância da preservação da mesma. Sobre a expressão memória da cidade, Abreu esclarece: Independentemente do que estaria por trás desse movimento de preservação da herança (histórica ou construída) do passado, uma coisa se nos afigura como essencial: a “memória urbana” é hoje um elemento fundamental da constituição da identidade de um lugar. (ABREU, 1998, p. 10). 438

Anais Ou seja, a memória urbana é a memória da cidade, sendo assim é o passado da cidade, e reflete o que já foi vivido naquele local. E por meio dessa memória urbana é possível identificar a identidade do indivíduo que mora na cidade, e o narrador da obra O chamado da noite, da importância para a preservação dessa memória urbana, pois a medida que a memória se transforma, rompe o eu dele, como de outros moradores. Sobre a identidade de um lugar, Gomes (1994) diz que a cidade, por meio da sua arquitetura, torna-se registro do povo que nela vive, mas que passa a direcionar a importância para o lucro do turismo da cidade. Quanto à memória, Halbwachs (2006, p. 29) diz que a primeira é individual: “o primeiro testemunho que podemos recorrer será sempre o nosso” e que a memória coletiva é aquela compartilhada com os membros da coletividade. Os espaços públicos são considerados patrimônios sociais porque agregam vivências sociais. Em O chamado da noite o narrador se reporta a um desses lugares de memória coletiva da seguinte forma: “Itapuã, pra quem não sabe, é um bairro à beira-mar, inundado de sol e ondas, onde algumas pessoas aproveitam o domingo para beber cerveja e fazer um sambo gosto” (RIBEIRO, 1997, p.38). Itapuã é um espaço de memória coletiva porque acolhe vivências sociais, mas é também um espaço de memória urbana, haja vista que é um lugar que resiste ao tempo e acompanha a dinâmica da cidade. Sobre o espaço urbano, Pensavento (2002, p.16) esclarece: “o espaço sonhado, desejado, batalhado e/ou imposto é, por sua vez, também reformulado, vivido e descaracterizado pelos habitantes da urbe que, ao seu turno, o requalificam e lhe conferem novos sentidos.” O espaço sonhado ao qual Pesavento se refere vai ao encontro do comportamento do narrador de O chamado da noite que os requalifica por meio da rememoração, uma forma de preservar a memória da cidade. Para Ascher (1998, p.16), o espaço não é apenas uma ocupação geográfica modificada pelo homem, mas reflete as vivências do ser como também seus pensamentos. Somos influenciados pela sociedade, e essa influência é refletida nas mudanças. É diante delas que o narrador reage e vai se voltar aos espaços marcadores de referência (ruas, monumentos, becos, ruelas e outros). Na obra ele se reporta a esses espaços com grandes detalhes: “Em nome do meu poder de escritor reconstruo a rua da Itapuã da minha infância que é assim: uma estrada de asfalto, uma linha sinuosa, avenida deserta, cercada por caminhos de barro que se cruzam pontilhados por amendoeiras, coqueiros e cajueiros” (RIBEIRO, 1997, p.56). 439

Anais O flâneur do protagonista é ativado desde a infância, quando pegava sua bicicleta e andava pelas ruas da cidade contemplando os detalhes. O narrador-protagonista conta que desde criança sempre procurou algo para fazer na cidade, especialmente à noite, o que justifica o título da obra: “eu amo também a cidade e a noite. Existe uma poesia estranha nessas avenidas [...] ”. (p.56). É esse sentimento de enraizamento pelo passado da cidade, a qualidade de sua vida. Acerca dos espaços pós-modernos, Soja (1993, p. 81) esclarece que os mesmos acabam direcionando as ações do indivíduo: “[...] É uma estratégia expressamente geopolítica, na qual as questões espaciais são a preocupação organizadora fundamental, pois o poder disciplinador atua primordialmente através da organização, do encerramento e do controle dos indivíduos no espaço [...]”. Com isso, fica claro que a rapidez dos tempos modernos, somado à hiper valorização do novo, acabam invisibilizando os espaços de memória. O narrador de O chamado da noite, atento a essas questões, deposita suas impressões e sentimentos sobre o corpo da cidade, suscitando o olhar a espaços de enraizamento que comportam a memória do lugar. Considerações finais A obra O chamado da noite, de Carlos Ribeiro é marcada pela figura do flâneur e por um processo de rememoração dos espaços marcadores de referências, especialmente os relacionados com as vivências de infância do narrador. A narrativa vai desfiando paisagens e imagens pretéritas da cidade e do eu que se pronuncia, a partir de um presente de rápidas mutabilidades. Dessa maneira, vemos a importância da rememoração para a preservação da memória da cidade, bem como para a memória particular do protagonista na sua relação com a cidade. Sobre a relação do homem com a cidade, percebemos que a obra é marcada pelo comportamento flâneur do narrador, desencadeado pelo processo de modernização urbana. O mesmo deambula pelas ruas e tem a alma apaixonada pelos detalhes da urbe, e procura dar visibilidade à memória citadina. A fisionomia da cidade, sob a ótica do narrador, faz vir à tona não somente as rasuras do passado, mas também os problemas sociais e as lembranças particulares e coletivas do sujeito que se pronuncia. A condição desagregadora do homem contemporâneo, desperta no narrador o desejo de enraizamento nos espaços de pertencimento: Ruas, bairros, 440

Anais construções seculares que concentram andanças no cumprimento de um itinerário, semelhante ao flâneur baudelairiano, mas ao mesmo tempo apresenta um sujeito deslocado a ressentir a cidade, devido à problemática da paisagem que se lhe oferece. A fugacidade do tempo contrapõe-se à retenção da vida possível na memória, assim, a produção poética de Carlos Ribeiro vai desfiando paisagens e imagens pretéritas da cidade e do eu, a partir de um presente de rápidas mutabilidades. Por meio do processo de rememoração o narrador-personagem se entristece pelo soterramento da paisagem da cidade de outrora, no entanto ele diz: “Engraçado, mas esta tristeza que me faz feliz” (RIBEIRO, 1997, p.63). Dando a entender que embora fique triste por a cidade não ser mais a mesma, ele sente alegria por rememorar os caminhos tão traçados por ele e pelos habitantes do lugar. As intervenções do moderno nos espaços da cidade, para o narrador de O chamado da noite, faz perder a poesia e o encanto da cidade. Assim ele vive em uma crise de homem desencantado com a modernidade. “[...] e ela vem se perdendo até hoje, quando nivelamos nossa cidade, cortando seus morros, aplainando suas ruas, mutilando suas árvores, empurrando sua população para periferia, transformando nossas praias em esgoto a céu aberto” (RIBEIRO, 1997, p.83). Ressignificar o vivido conjuga fatores sociais, de tal modo que possibilita pensar sobre anseios e perspectivas de vida, conferindo uma materialidade observável na forma de potencialidades da linguagem, bem como uma visão particular de mundo. Dessa maneira, a cidade faz parte das vivências e acaba influenciando no comportamento e nas relações sociais. O dinamismo da cidade é resultante do processo histórico e do modo como os sujeitos sociais interagem com um conjunto de fatores que a vida impõe. A partir da interação com o passado da cidade e com o presente, o narrador Carlos Ribeiro intui sobre a memória do lugar e seus costumes. No entanto constatamos que o narrador não é avesso ao progresso, mas sente que a hiper valorização do novo, as rápidas transformações urbanísticas e a incessante busca pelo diferente compromete o interesse pelos espaços que comportam a memória do lugar. É como se o narrador temesse ser rompido junto com o que se transforma, e diluído nessa “modernosidade” como ele próprio afirma. REFERÊNCIAS 441

Anais ABREU, Mauricio A. Sobre a memória das cidades. Revista TERRITÓRIO, ano III nº 4, (p.01- 22), jan./jun.1998. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Editora brasiliense, 1994. ECLEA, Bosi. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. Centauro, 2006. PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade: visões literárias do urbano - Paris, Rio de Janeiro, Porto Alegre. 2.ed. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2002. RIBEIRO, Carlos. O chamado da noite. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1997. SANTOS, Silvana Maria Pantoja. Literatura e memória: Entre os labirintos da cidade representações na poética de Ferreira Gullar Dobal. São Luís: Editora UEMA, 2015. TANURE, Milena Guimarães Andrade. Patrimônio cultural e memória literária: memórias urbanas na literatura baiana contemporânea. Palimpseto nº 27 ( p.305-321), setembro, 2018. 442

AUTOFICÇÃO: A ESCRITA DE SI EM DIVÓRCIO, DE RICARDO LÍSIAS Thauana Mara de Carvalho SILVA (UFT)1 Rejane de Souza FERREIRA (UFT)2 RESUMO Neste estudo propõe-se uma discussão acerca da ficção e da não-ficção presentes em “Divórcio” (2013), do escritor brasileiro Ricardo Lísias. O romance, construído como texto ficcional, reúne várias coincidências biográficas entre escritor e personagem. A obra tem como mote o divórcio de um escritor chamado Ricardo Lísias que, ao encontrar o diário de sua esposa, uma famosa jornalista, descobre que foi traído durante a cobertura do festival de Cannes em 2011 com um dos jurados do evento. Divórcio é um romance que sublima algumas das principais tendências da literatura contemporânea que se baseiam na convergência de identidades entre autor e personagem e na reconstrução ficcional de memórias. Assim, a partir de temas polêmicos como o adultério e o questionamento da ética jornalística que a trama traz, investiga-se aqui o caráter autoficcional da obra e a complexidade que há em delimitar as fronteiras entre a ficção e a não-ficção na narrativa. Para a realização deste intento, foram examinados os estudos teóricos de Serge Doubrovsky (1988), criador do termo autoficção; as reflexões sobre autoficção de Ana Faedrich Martins (2014); as considerações sobre o texto de Lísias, de Luciene Azevedo (2013); as postulações sobre autoficção e as escritas de si, de Diana Klinger (2006) dentre outros. 1 Mestranda em Letras pela Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected]. 2 Doutora de Letras e Linguística pela UFG. Docente do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras UFT – Porto Nacional. E-mail: [email protected]. 443

Anais Palavras-chave: Ricardo Lísias; autoficção; narrativa contemporânea. ABSTRACT This work aims to discuss fiction and non-fiction in “Divórcio” (2013), by the Brazilian writer Ricardo Lísias. The novel is reported as a fiction genre and it gathers many biographical coincidences between the writer and the character. The book deals with the divorce of a writer called Ricardo Lísias who, upon finding the diary of his wife, a famous journalist, has found out that she cheated on him with one of the judges of Cannes festival during the coverage of the event in 2011. Divórcio is a novel that shows some of the main tendencies of contemporary literature which are based on convergence of identities among the author and character and the fictional reconstruction of memories. Thus, considering controversial issues such as adultery and questions of Journalism ethics, it is investigated here the autofictional genre of the book and the complexity in delimitating fiction and non-fiction into the text. This work analysed studies of Serge Doubrovsky (1988), who coined the term autofiction; the thoughts on autofiction, by Ana Fraedrich Martins (2014); the considerations by Luciene Azevedo (2013) on Lísias´ book; the postulates on autofiction and writing the self, by Diana Klinger (2006), among others. Keywords: Ricardo Lísias, autofiction; contemporary narrative. Introdução Um dos traços marcantes da natureza humana é o interesse pela intimidade alheia. O avanço tecnológico e as novas mídias do mundo contemporâneo têm aguçado a autopublicização do sujeito nos mais diversos contextos sociais, gerando um processo de espetáculo de si que desperta o interesse do público. Esse desejo pela autoexposição e pela vida do outro tem reflexos no âmbito literário, aumentando o número de publicações autobiográficas, memórias, testemunhos e cartas editadas. A presença do escritor em seu texto é um fenômeno literário crescente, e é nesse contexto que surge a autoficção. O termo autoficcion foi usado pela primeira vez na França pelo professor e escritor Serge Doubrovsk, no ano de 1977. O autor publicou o conceito no prefácio de seu livro Fils para tentar esclarecer aspectos de seu romance. Incorporado ao aumento dos “romances do eu”, a autoficção é um modo de expressão híbrida, que mescla autobiografia e ficção. Há que se registrar, no entanto, que surgiram novos estudos e atualizações do gênero desde as definições iniciais propostas por Doubrovsky. Assim, os formatos de textos autoficcionais encontrados hoje são variados e alguns divergem de seu modelo inicial, de modo que há uma pluralidade de estilos e temáticas na produção atual. No Brasil, Ricardo Lísias é um dos escritores contemporâneos que mais se destacam por escrever obras com tom autoficcional. Com uma vasta produção artística, Lísias é autor 444

Anais de textos ficcionais e não-ficcionais, e já recebeu diversos prêmios significativos no cenário literário. No universo acadêmico, o escritor também tem despertado o interesse de estudiosos e pesquisadores a partir de suas obras, dentre elas a que mais tem suscitado discussões é o livro “Divórcio”. Publicado em 2013, o romance tem como mote o processo de divórcio que ocorre entre o protagonista e sua esposa. Para construir esse personagem, o escritor valeu-se de uma identidade onomástica entre autor-personagem e utilizou biografemas, que auxiliam na construção do jogo entre realidade e ficção. Nessa perspectiva, essa pesquisa centra-se no estudo da transfiguração da matéria vivida em matéria ficcional, além de apresentar reflexões teóricas acerca do gênero autoficional e questionamentos sobre os limites da autotoficção. Autoficção e o romance Divórcio No panorama literário atual, apontado por críticos como pós-moderno, os romances adquiriram novos formatos e sofreram significativas transformações. A subjetivação e a autorreferência passaram a ocupar papel de destaque na literatura, de modo que, como nunca antes, os comportamentos sociais são refletidos nas artes. A inserção de dados autobiográficos nas obras produzidas tem sido uma tendência entre escritores nas últimas décadas. Apesar das atualizações, o romance contemporâneo, parece não fugir de todo modo às origens ao incorporar as experiências do narrador ao texto. Walter Benjamin, em ensaio publicado no ano de 1933, discorre sobre a figura do narrador nos romances e afirma que “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros”. (BENJAMIN, 1985, p. 201). Para o autor, o romancista segrega-se, uma vez que se mantém isolado e só considera suas próprias experiências. Mesmo com diversas discussões e mudanças ao longo dos anos, as características essenciais do romance mencionadas por Benjamim permanecem latentes na atualidade, dentre elas a valorização das experiências pessoais e do texto escrito. Nesse sentido, na ficção brasileira contemporânea, a escrita em primeira pessoa tem sido um formato textual recorrente entre os escritores, enfatizando a figura extratextual do escritor. Em Divórcio, autor, narrador e personagem possuem o mesmo nome: Ricardo Lísias. As assinaturas iguais reforçam as características do romance pós-moderno que tem sido 445

Anais bastante discutida. Trata-se de um jogo entre realidade e ficção em que a ambiguidade se instaura na escrita e na leitura do texto. Na obra, o narrador do romance discorre sobre o término traumático do seu casamento de quatro meses com uma famosa jornalista. Construído como texto de ficção, o livro reúne várias coincidências biográficas entre autor e personagem, o que provoca uma série de questionamentos acerca de seu gênero literário. No romance de Lísias, há diversos pontos que dão margem a uma possível ligação entre a realidade vivida pelo escritor e o que ele diz ser invenção. Além de possuírem a mesma identidade, autor e narrador parecem querer atestar ao leitor ao longo da narrativa a veracidade de seu relato. Com uma estrutura híbrida, o livro traz trechos de diários, fotografias e cartas, conduzindo a pessoa que lê a acreditar nos fatos expostos. Essa mistura de gêneros faz com que os limites existentes entre realidade e ficção sejam propositalmente diluídos e, com isso, provoque confusão no leitor. Tais características existentes na obra fazem com que ela se enquadre nas chamadas escritas autoficcionais, sendo este o resultado da junção entre a autobiografia e o romance de ficção. Para Doubrovsky (1988), a autoficção é “uma variante pós-moderna da autobiografia na medida em que ela não acredita mais numa verdade literal, numa referência indubitável, num discurso histórico coerente e se sabe reconstrução arbitrária e literária de fragmentos esparsos de memória”. (apud MARTINS, 2011, p.191). Assim, na percepção do autor, no processo de escrita do eu, o sujeito é incapaz de ser fiel à verdade, por mais que tente, acaba dizendo outra coisa que não a verdade. Baseada nas reflexões de Doubrovsky, Martins aponta: A proposta doubrovskiana reconhece a ambivalência do sujeito e a mobilidade do vivido, insere o discurso do eu no espaço lúdico e transitório, que entrelaça os gêneros referencial e ficcional; verdade e invenção; realidade e imaginação. A autoficção é também uma escrita do presente, que não acredita mais na recapitulação histórica e fiel dos acontecimentos, mas sim numa atualização do que aconteceu. (MARTINS, 2011, p. 185) Nessa perspectiva, considerando a teoria de Doubrovsky, há que se registrar no romance de Lísias a presença de um discurso do “eu” que entrelaça ora realidade ora ficção. O enredo é construído a partir da reconstrução da memória de um personagem atormentado e confuso. O fim traumático de seu casamento o deixa com o “corpo sem pele”, metáfora da dor e da decepção que ele narra ter sofrido após ter lido o diário de sua ex-esposa em que ela conta tê-lo traído, além dar outros detalhes íntimos. 446


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