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ANAIS COLINT Definitivo

Published by biblioteca, 2022-11-14 14:14:28

Description: ANAIS COLINT Definitivo

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Anais documentar a história nacional) foram empregados para a análise das sociedades africanas, resultando na desqualificação de todas as culturas, tidas como tribais e incivilizadas. Dado esse olhar negligente, mal intencionado e mal balizado em termos de teoria crítica, a África passou a ser tratada como um país uniforme e atrasado ao invés de ser pensado como o continente rico e plural que de fato é. Somente após o século XX, com a ascensão dos discursos pós-coloniais e o surgimento da intelectualidade africana, as mistificações em torno do território africano começam a ruir. As obras dos escritores mencionados aqui são uma amostra dessa tendência, pois revelam esse desejo de livrar as culturas e identidades africanas das imagens, discursos e interpretações colonialistas por meio da reescrita de suas próprias narrativas nacionais pelas mãos dos filhos da terra. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Germano. Estórias contadas. Lisboa: Caminho, 1998. BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. Modernidade/Colonialidade sem “Imperialidade”? O Elo Perdido do Giro Decolonial. Revista Dados, Rio de Janeiro, vol. 60, nº 2, p. 505-540, 2017. COUTO, Mia. Contos do nascer da terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. MARTINS, Amarilis Barbosa. Relações entre Portugal e Cabo Verde antes e depois da independência. 2009. 115 f. Dissertação (Mestrado em Espaço Lusófono: Lusofonia e Relações Internacionais) – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, 2009. PAREDES, Marçal de Menezes. A construção da identidade nacional moçambicana no pós- independência: sua complexidade e alguns problemas de pesquisa. Anos 90, Porto Alegre, vol. 21, nº 40, p. 131-161, dez. 2014. PIMENTA, Susana; RIBEIRO, Orquídea. O sujeito pós-colonial em Castro Soromenho, Luandino Vieira e Mia Couto. In: MOREIRA, Fernando; RIBEIRO, Orquídea (Ed.). Mosaicos Culturais I: Olhares e Perspectivas. Trás-os-Montes e Alto Douro: CEL, 2013. p. 9-21. SILVA, Zoraide Portela. Guerra colonial e independência de Angola: o fim da guerra não é o fim da guerra. Transversos, Rio de Janeiro, vol. 7, nº 7, p. 154-184, set. 2016. VIEIRA, José Luandino. A cidade e a infância. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 47

ENTRE A IDENTIDADE NACIONAL E A CONDIÇÃO FEMININA: BREVE ANÁLISE COMPARATIVA DAS OBRAS DE NOÉMIA DE SOUSA, CONCEIÇÃO LIMA E ANA PAULA TAVARES Samira Pinto ALMEIDA (IFRO) 1 RESUMO A tentativa de circunscrever as características que fundamentam o universo poético e estético de um escritor já é, em si mesma, uma tarefa complexa. Essa dificuldade se amplifica consideravelmente quando o pesquisador tem diante de si uma obra vinculada a uma “vertente” ainda controversa dentro dos Estudos Literários, como é o caso da escrita feminina. Apesar de nascer cercada de pré-julgamentos, a categoria “literatura feminina” tem sido utilizada atualmente de forma positiva (e, muitas vezes, reivindicatória) por autoras conscientes de que a sua condição de mulher atravessa a apreensão da linguagem e, logo, a sua produção. Este é o caso de Noémia de Sousa (moçambicana), Conceição Lima (são- tomense) e Ana Paula Tavares (angolana), poetas que, quando analisadas comparativamente, revelam partilhar de um mesmo território imagético, demarcado pela performance das identidades (nacionais e de gênero). Tal semelhança provém não só da língua oficial compartilhada, mas do sentimento de pertencimento a um continente que, 1 Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. E-mail: [email protected] 48

Anais constituído de nações plurais e ricas em termos de cultura, sofreu quase em sua totalidade com os efeitos perversos do colonialismo perpetrado pelos países europeus desde o período moderno. Na poesia das autoras, subsiste em maior ou menor grau, o grito de liberdade, o desejo de independência (do colonizador e do patriarcado). O presente trabalho tem por objetivo refletir sobre a produção poética das escritoras citadas, visando identificar dois núcleos comuns: um deles, centrado na reelaboração da identidade nacional; enquanto o outro trata da construção da identidade da mulher negra africana. Palavras-chave: Noémia de Sousa, Conceição Lima, Ana Paula Tavares, Literaturas Africanas em Língua Portuguesa, Escrita feminina. ABSTRACT The attempt to circumscribe the characteristics that underlie the poetic and aesthetic universe of a writer is, in itself, a complex task. This difficulty is considerably amplified when the researcher has before him/her a work linked to a “trend” that is still controversial within Literary Studies, as is the case of women’s writing. Despite being born surrounded by pre- judgments, the category “female literature” has currently been used in a positive (and often demanding) way by authors who are aware that their condition as a woman goes through the apprehension of language and, therefore, its production. This is the case of Noémia de Sousa (Mozambican), Conceição Lima (Sao Tome and Principe) and Ana Paula Tavares (Angolan). These poets, when comparatively analyzed, reveal that they share the same imagery territory, demarcated by the performance of gender and national identities. This similarity comes not only from the shared official language, but also from the feeling of belonging to a continent made up of plural and culturally rich nations and that suffered almost entirely from the perverse effects of colonialism perpetrated by European countries since the modern period. In the authors’ poetry, to a greater or lesser degree, the cry for freedom, the desire for independence (from the colonizer and patriarchy) subsists. The present work aims to reflect on the poetic production of the aforementioned writers, aiming to identify two common nuclei: one is focused on the re-elaboration of national identity, while the other deals with the construction of the identity of black African women. KEYWORDS: Noémia de Sousa, Conceição Lima, Ana Paula Tavares, African Literatures in Portuguese Language, Women’s writing. A leitura comparada da obra poética de Noémia de Sousa (moçambicana), Conceição Lima (são-tomense) e Ana Paula Tavares (angolana) revelam um universo comum entre as diferentes escritoras provenientes de países africanos falantes da língua portuguesa. Tal semelhança provém não só da língua oficial compartilhada, mas do sentimento de pertencimento a um continente que, embora constituído de nações plurais e ricas em termos de cultura, sofreu quase em sua totalidade com os efeitos perversos do colonialismo perpetrado pelos países europeus desde o período moderno. Na poesia das autoras, subsiste em maior ou menor grau, o grito de liberdade, o desejo de independência. A diferença de intensidade será definida pelo contexto histórico de produção das obras: Sousa escreve em 49

Anais um momento em que seu país sofria um regime repressor, enquanto Lima e Tavares produzem literatura no período pós-independência, nos tempos de “paz”, razão pela qual as duas últimas poetisas já não precisam reivindicar a identidade nacional, exaltar os heróis da terra e combater o inimigo estrangeiro (AMORIM, 2020). O período pós-colonial é marcado, sobretudo, pela institucionalização do cânone e das estéticas de teor revolucionário. A nova poesia revisita a memória nacional sem precisar levantar bandeiras, além de abrir o campo literário para a experimentação estética e para a reflexão sobre outras temáticas. Assomado a isso, a singularidade do ser mulher, em face às opressões do patriarcado, constitui um outro ponto de contato ao qual, ouso dizer, nenhuma escritora consegue fugir, ainda que negue a classificação de “literatura feminina” devido ao peso negativo de literatura menor (secundária, de gueto) que tal designação recebeu e ainda recebe por parte da crítica especializada. Ao ler a obra das autoras é possível, portanto, identificar dois núcleos comuns: um deles, diz respeito à busca pela reelaboração da identidade nacional; enquanto o outro trata da construção da identidade da mulher negra africana. A seguir, pretendo demonstrar como as poetas supracitadas trabalham de forma inovadora esses aspectos. Noémia de Sousa é considerada a mãe da literatura moçambicana, dado o caráter fundador de sua obra, detentora de certa expressão identitária e de teor combativo. De acordo com Petra Goricki (2018), a autora publicou o seu primeiro poema no jornal Mocidade Portuguesa antes dos vinte anos, passando a colaborar posteriormente com o jornal O Brado Africano, enquanto chefe responsável pela página feminina. Começou timidamente, usando abreviaturas do seu nome e assinando com pseudônimos, sendo Vera Micaia o mais famoso deles. Foi em Portugal, após aproximar-se de figuras centrais da luta pela independência, a exemplo de Amílcar Cabral, que a poeta passou a criar cada vez mais orientada pelo sentimento revolucionário. Nesse sentido, arte e política se apresentam alinhadas no verso sousiano, servindo de combustível estético para o desejo de ver o país livre do colonialismo. Convém lembrar que a autora teve sua única obra publicada em livro apenas um ano antes de seu falecimento, dada a censura pela qual passava Moçambique nos tempos de luta pela independência. Antes disso, os poemas circularam de forma esparsa em jornais e revistas ou clandestinamente por meio de uma versão fotocopiada composta de 40 poemas (OLIVEIRA, 2008). Sangue negro é uma obra organizada, subdividida por temáticas, a saber: Nossa Voz; Biografia; Munhuame, 1951 (nome da cidade moçambicana onde a poeta passou parte da vida); Livro de João (dedicado ao preso político João Mendes, amigo da autora); Sangue 50

Anais Negro e Dispersos. As temáticas exploradas na antologia tratam da solidariedade racial, da representação do povo oprimido, da resistência ao colonialismo, da reivindicação das origens africanas ancestrais, do cansaço diante das dificuldades de luta pela liberdade, da mãe negra. Ainda que o eu-lírico fale na primeira pessoa do singular em alguns dos poemas, os versos de Sousa fazem ecoar a voz coletiva do povo moçambicano (GORICKI, 2018). Em razão dessa especificidade, a crítica especializada associa a obra da poeta ao movimento neorrealista devido à representação da miséria vivida pelas classes mais baixas e pelo tom de denúncia social. Tais elementos são observáveis no poema “Negra”: Gentes estranhas com seus olhos cheios doutros mundos quiseram cantar teus encantos para elas só de mistérios profundos, de delírios e feitiçarias... Teus encantos profundos de África. Mas não puderam. Em seus formais e rendilhados cantos, ausentes de emoção e sinceridade, quedas-te longínqua, inatingível, virgem de contactos mais fundos. E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual, jarra etrusca, exotismo tropical, demência, atracção, crueldade, animalidade, magia... e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias. Em seus formais cantos rendilhados foste tudo, negra... menos tu. E ainda bem. Ainda bem que nos deixaram a nós, do mesmo sangue, mesmos nervos, carne, alma, sofrimento, a glória única e sentida de te cantar com emoção verdadeira e radical, a glória comovida de te cantar, toda amassada, moldada, vazada nesta sílaba imensa e luminosa: MÃE (SOUSA, 2001, [n.p.]) A leitura do poema não deixa dúvidas sobre a centralidade do papel da mulher negra no continente, associando-a também à figura da mãe África. Em especial, a poeta denuncia as falsas imagens (estereotipadas, exóticas) disseminadas sobre esse território pelos povos de outros continentes, ressaltando que somente os da terra são capazes de desvendar e 51

Anais cantar os mistérios da mãe negra. Algo semelhante se verifica no poema “Sangue negro” que se constitui como um louvor ao continente, à mãe, e denuncia as mazelas causadas pelo colonialismo. A poeta canta a beleza de suas raízes metaforizadas no som do batuque, reproduzido por meio de onomatopeia, e no sangue, signo relacionado ao elo familiar (GORICKI, 2018). Os poemas citados são em verso livre, abusam da expressão oral da língua e da mistura linguística, além de recuperar a imagem do tambor para trazer certa ritualização ao ato de narrar as dores de seu povo tal como o faz um mestre Griot. Por sua vez, Conceição Lima também se debruça sobre a construção identitária, buscando revelar as marcas que definem a cultura e o povo de São Tomé e Príncipe, mas sem incorrer nos essencialismos e idealizações. No livro A dolorosa raiz do micondó, o leitor pode encontrar poemas que criticam o colonialismo e reverberam o canto de libertação ao mesmo tempo em que falam das disputas internas pelo poder, a exemplo de “Anti-epopéia”: Aquele que na rotação dos astros e no oráculo dos sábios buscou de sua lei e mandamento a razão, a anuência, o fundamento Aquele que dos vivos a lança e o destino detinha Aquele cujo trono dos mortos provinha Aquele a quem a voz da tribo ungiu chamou rei, de poderes investiu Por panos, por espelhos, por missangas por ganância, avidez, bugigangas as portas da corte abriu de povo seu reino exauriu. (LIMA, 2012, p. 20) Nesse poema, surge aos olhos do leitor a figura do chefe de uma tribo responsável por facilitar a dominação colonial em troca de bugigangas, por ganância. Em Lima, o pertencimento identitário está vinculado a certa nativização, diferenciando-se da vertente que apela aos mitos ancestrais. Mais que isso, conforme Naduska Palmeira (2012), a poética da autora não reduz a identidade aos sentimentos patrióticos, nem o feminino aos lugares convencionais. É antes plural e diversa. Ao tratar da identidade, a poeta considera o novo contexto do mundo globalizado, das grandes migrações, do esfacelamento do eu frente a essa realidade transitória. Esse aspecto pode ser verificado, por exemplo, no poema “Canto obscuro às raízes”: 52

Anais Em Libreville não descobri a aldeia do meu primeiro avô. [...] O meu oral avô não legou aos filhos dos filhos dos seus filhos o nativo nome do seu grande rio perdido. (LIMA, 2012, p. 11-13) Como o próprio título sugere, o eu-lírico se depara com a impossibilidade de rastreio das origens. Tal dificuldade, abordada no poema, faz um paralelo ao fato histórico relativo à forma de ocupação desse território. Segundo relatos históricos, São Tomé e Príncipe era uma ilha deserta até o século XV, sendo povoada pelos portugueses e por negros escravizados de outras regiões da África durante o período das grandes navegações (GONÇALVES; PEREIRA, 2020). Trata-se, portanto, de uma nação crioula, marcada pela mistura cultural de diferentes povos e nações (entre elas, Moçambique, Serra Leoa, Benin, Angola e Cabo Verde) em situação de trânsito (seja ele voluntário ou forçado). Esse aspecto é exemplarmente observável no poema “Kalua”, presente em O útero da casa, no qual o processo de migração e mestiçagem, que promoveu o nascimento do povo santomense, é belamente representado pela figura de uma mulher, cuja aparência, vestimenta e linguagem remontam às terras moçambicanas. Teu nome tão breve e tão outro Sem nenhum adorno Tua voz tão prestes, tão pouca no Budo-Budo Tua saia de riscado, de pano soldado Tua ração de úchua, teu peixe salgado Teu jeito de dizer parana em vez de banana Tuas mãos delgadas, meninas Tão mãos, tão servas, multiplicando as horas Teu canto de além-mar e de ilha Tua estatura anciã na saudade detida E Magaída, tua filha que nunca a Moçambique foi e diz quitxibá. (LIMA, 2004, p. 34) No poema, o eu-lírico assinala que a filha de Kalua, chamada Magaída, embora nascida em São Tomé, usa palavras de origem outra, demonstrando que algo das raízes permanece mesmo quando ocorre a mistura étnica. Tal poema também nos permite observar como o feminino é trabalhado pela poeta sem idealizações, com um olhar quase antropológico. Kalua é uma mulher das classes baixas, cuja vida se resume a servir aos outros em silêncio. A poeta 53

Anais faz, assim, uma crítica à opressão de gênero, humanizando a personagem que é descrita com delicadeza. O corpo feminino, esgotado pelo trabalho, é também o corpo que gera o povo miscigenado de Moçambique. Já a poética de Ana Paula Tavares, quando retoma a tradição cultural, volta os olhos para o mundo agrário da vida coletiva. Esse olhar, contudo, também não será idealizado: a crítica à forma opressora de tratamento às mulheres nas sociedades tribais é abordada em diferentes poemas. Tavares, em sua obra, parte de outro paradigma, diferente do da tradição que ora precisava combater o colonialismo e o Estado opressor, ora refundar os valores nacionais de seu povo, para tanto buscando uma compreensão identitária e cultural unificadora e ancestral. Em Ritos de passagem, a poeta se vale de metáforas de frutos para tratar de uma realidade concreta, cotidiana, campestre: os ciclos da vida, o amor, as crianças, a liberdade, enfim, aspectos que caracterizam as sociedades pastoris. O erotismo e o amor também são abordados a partir dessa realidade local, rural. Ao escolher retratar as vivências das mulheres do meio rural e dar voz aos pastores do sul, Tavares reestabelece a humanidade do corpo social, contestando as representações estereotipadas vinculadas a essa parte da população e valorizando sua cultura. A sensualidade, inerente à escolha das imagens, é a marca do poema “A abóbora menina”: Tão gentil de distante, tão macia aos olhos vacuda, gordinha, de segredos bem escondidos estende-se à distância procurando ser terra quem sabe possa acontecer o milagre: folhinhas verdes flor amarela ventre redondo depois é só esperar nela desaguam todos os rapazes. (TAVARES, 2011, p. 19) Acima, o leitor pode encontrar um exemplo significativo da estética da autora que fala do corpo erotizado feminino a partir de elementos da natureza. O próprio título já sinaliza a fusão: a menina é como a abóbora, guarda segredos em seu ventre jovem e redondo, onde futuramente os rapazes desaguarão. Nesse sentido, Tavares rompe com o imaginário da mulher purificada, impedida de perceber o próprio corpo e seus desejos eróticos. É também comum na poesia de Tavares a referência a signos caracterizados pela cor vermelha (o vinho, 54

Anais o sangue, o fogo) para retratar a fertilidade, aliando ritualização e erotismo visando sacralizar os desejos do corpo (NUNES; LIMA, 2021). Os sentidos sensoriais são constantemente inseridos nos versos para conectar o eu-lírico à natureza. A análise comparativa das estéticas de Sousa, Lima e Tavares demonstram a preocupação dessas poetas em revisitar criticamente tanto a identidade nacional, marcada pelas violências do colonialismo, quanto a identidade feminina, atravessada pelo machismo vigente. Convém assinalar as dificuldades enfrentadas pelos países africanos no pós- independência: Moçambique, São Tomé e Príncipe e Angola mergulharam em guerras civis sangrentas por longo período. Por tal razão, a questão nacional permaneceu na ordem do dia mesmo com a queda do regime colonial, sendo que esta temática assumiu novas vestes. Logo, é preciso considerar as especificidades das produções artísticas a partir dos contextos locais. Em resumo, na poesia de Noémia, poetisa que escreve durante o período colonial, observa-se um desejo mais premente de libertação e um sentimento ufanista ao falar de seu país e continente, sendo que a representação da mulher está intimamente ligada ao projeto de valorização da África, a mãe. Já na obra de Conceição, a identidade nacional é revisitada a partir dos desdobramentos históricos, de modo crítico, sem deixar-se limitar pelos sentimentos patrióticos, posto que a autora escreve após a independência. A tônica crítica também acompanha a representação feminina, abordada a partir dos silenciamentos e opressões sofridas pelas mulheres dentro das sociedades tradicionais africanas. Por fim, na poesia de Ana Tavares, o foco se dá na representação da população do interior rural, valorizando essa identidade tão discriminada na sociedade angolana. Ao se voltar para a figura feminina, a autora aponta para um rumo inovador que reposiciona a mulher dentro da literatura enquanto corpo atravessado pelo desejo erótico. REFERÊNCIAS AMORIM, Bernardo Nascimento. O local e além: as poéticas em trânsito de Paula Tavares e Conceição Lima. Via Atlântica, São Paulo, nº 38, p. 221-250, dez. 2020. GONÇALVES, Elén Rodrigues; PEREIRA, Prisca Augustoni de Almeida. A poética da relação na obra de Conceição Lima. NEPA/UFF, Niterói, vol. 12, nº 25, p. 31-42, jul./dez. 2020. 55

Anais GORICKI, Petra. A poesia de Noémia de Sousa e a Negritude. 2018. 63 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Departamento de Estudos Românicos da Universidade de Zagreb, Zagreb, 2018. LIMA, Conceição. A dolorosa raiz do micondó: poesia. São Paulo: Geração Editorial, 2012. _____. O Útero da Casa. Lisboa: Caminho, 2004. NUNES, Fernanda Cardoso; LIMA, Maria Graciele de. Uma poética dos sentidos na obra de Gilka Machado e de Ana Paula Tavares. Cacto, Petrolina, vol. 1, nº 1, p. 79-91, 2021. OLIVEIRA, Jurema José de. A poética e a prosa de: Alda Lara, Noémia de Sousa, Ana Paula Tavares, Vera Duarte e Paulina Chiziane. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades XXV, Petrolina, vol. 7, nº 25, p. 71-78, 2008. PALMEIRA, Naduska Mário. As ilhas sob a pele da linguagem: a poética de Conceição Lima. In: Colóquio Internacional São Tomé e Príncipe numa perspectiva interdisciplinar, diacrónica e sincrónica, 2012, Lisboa. Anais...Lisboa: IUL, 2012. p. 383-391. SOUSA, Noémia de. Sangue Negro. Associação dos Escritores Moçambicanos, 2001. TAVARES, Ana Paula. Amargos como os frutos. Rio de Janeiro: Pallas, 2011. 56

O ROMANCE NÃO ESTÁ MORTO: A METAFÍSICA NIVOLESCA UNAMUNIANA COMO RESPOSTA À DESUMANIZAÇÃO DA ARTE DE GASSET Walter Pinto de OLIVEIRA NETO (UFMA)1 Márcia Manir Miguel FEITOSA (UFMA)2 RESUMO 1 Graduação em Letras pela UEMA. Mestrando em Letras pela UFMA. Pesquisador do grupo de pesquisa TECER (UEMA) e POLIFONIA (UFMA). Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. 2 Graduação em Letras pela UNICAMP. Mestrado em Letras (Literatura Portuguesa) e Doutorado em Letras (Literatura Portuguesa) pela USP. Atualmente é Professora Titular do departamento de Letras, Bolsista de Produtividade do CNPq - nível 2 e docente do Programa de Mestrado Interdisciplinar em Cultura e Sociedade e PG-Letras da UFMA. E-mail: [email protected]. 57

Anais O seguinte trabalho aborda o embate filosófico e estético entre dois dos pensadores mais importantes da modernidade: Miguel de Unamuno (1864-1936) e José Ortega y Gasset (1883-1955). No começo do século XX, Gasset argumentava que o gênero se encontrava numa crise sem antecedentes, sendo, com isso, iminente sua extinção. Para Unamuno, pelo contrário, o romance ainda podia e devia sofrer mutações benéficas no âmbito estético e metafísico. Nesse sentido, objetivamos confrontar tais perspectivas: uma que sugere a remodelação radical de todas as manifestações artísticas da cultura por meio de uma desumanização em que o sujeito e sua tentativa de transcender à imanência devem ser erradicadas; e a outra, que humaniza a arte, mais concretamente a arte romanesca, a tal ponto de dar-lhe às personagens uma roupagem autosubjetiva sem as interferências próprias de seu autor. A fim de fundamentar nossa pesquisa, valemo-nos de alguns textos desses pensadores em que expõem suas ideias sobre o romance (GASSET, 1982; UNAMUNO, 2009); estética (GASSET, 1986); comentadores (GIMÉNEZ, 2011; SÁENZ, 1994); e romances que ilustram ambas as teorias (UNAMUNO, 2007; CHACEL, 1989). A partir dos suportes supracitados, constatamos que a novela unamuniana, nomeada pelo autor e alguns críticos de nivola, expressa algumas inovações tanto no aspecto estético como filosófico, demostrando que o romance se abre em par a novas possibilidades criativas no século XX. Palavras-chave: Romance. Unamuno. Gasset. Desumanização. ABSTRACT The following paper discusses the philosophical and aesthetic clash between two of the most important thinkers of modernity: Miguel de Unamuno (1864-1936) and José Ortega y Gasset (1883-1955). At the beginning of the 20th century, Gasset argued that the genre was in an unprecedented crisis, and that its extinction was imminent. For Unamuno, on the contrary, the novel could and should still undergo beneficial mutations in the aesthetic and metaphysical spheres. In this sense, we aim to confront these perspectives: one that suggests the radical remodeling of all artistic manifestations of culture through a dehumanization in which the subject and its attempt to transcend immanence should be eradicated; and the other, which humanizes art, more concretely the art of the novel, to the point of giving the characters a self-subjective clothing without the author's own interferences. In order to ground our research, we make use of some texts of these thinkers in which they expose their ideas about the novel (GASSET, 1982; UNAMUNO, 2009); aesthetics (GASSET, 1986); commentators (GIMÉNEZ, 2011; SÁENZ, 1994); and novels that illustrate both theories (UNAMUNO, 2007; CHACEL, 1989). From the supports, we find that the Unamunian novel, named by the author and some critics as nivola, expresses some innovations in both aesthetic and philosophical aspects, demonstrating that the novel opens up on par with new creative possibilities in the twentieth century. KEYWORDS: Novel. Unamuno. Gasset. Dehumanization. A humanização ontológica da nivola 58

Anais A primeira vez que o termo nivola aparece no romance mais conhecido, talvez, do autor: Niebla (1914). Nessa obra, Miguel de Unamuno experimenta processos narrativos inovadores no romance espanhol, como o diálogo entre o autor empírico e sua personagem no fim do enredo, a autonomia da personagem e o nivelamento das vozes do autor e do herói/anti-herói. Dado que o romance modernista ainda se encontrava em período de amadurecimento, Don Miguel achou necessário modificar a nomenclatura concedida ao gênero, anunciando, assim, que o que o leitor estava lendo não é uma novela3, mas algo diferente, ou seja, uma nivola. Mas o que seria a nivola em si? E o que é mais importante: tem alguma implicação prática, estética ou filosófica a nomeação de um novo gênero? A nivola, mais que um conjunto de ideias teóricas e estruturais, representa uma atitude do autor perante o processo de criação do texto literário. O procedimento do escritor se evidencia na liberdade absoluta para a criação de leis próprias, sem se ater aos paradigmas estéticos precedentes ou contemporâneos. Essa liberdade formal e narrativa, contudo, deve orbitar próxima aos dilemas existenciais do homem, sendo, na concepção de Don Miguel, a maior dentre todas, o sentimento trágico da vida: a disputa axiomática entre razão e fé (OLIVEIRA NETO & SOUSA, 2020, p. 9). Nesse trecho, identifica-se um elemento fulcral do romance unamuniano: a interioridade do ser e seus axiomas existenciais. Seus personagens, que considera tão humanos quanto os indivíduos de carne e osso por apresentarem ambos os mesmos dilemas que constituem suas existências, estão carregados e, em certa forma, fadados a uma ontologia própria; esta, por seu lado, desmembra-se e retorna sem sínteses ao autor. Dito de outra forma, as personagens possuem uma subjetividade desarraigada do autor, porque eles, na concepção de Unamuno, são autônomos. Ao mesmo tempo, seus seres ficcionais fazem parte dele, dado que os considera filhos espirituais que, juntos, formam o todo contraditório de sua identidade. Essa concepção egológica da nivola se transforma no seu arquétipo de romance. Unamuno menciona que todas as grandes obras romanescas, ou seja, aquelas que se eternizam, são as autobiográficas, as que estão impregnadas do espírito de seu autor. O leitor, por sua vez, deve confrontar o autor e o texto literário, interrogá-los para interrogar- se a si mesmo; e, em última instância, tornar-se o próprio deus da obra, em detrimento do 3 O equivalente a novela em português é romance. Ou seja, romance [port] = novela [esp]. 59

Anais deus primogênito que a significou primeiro, o autor empírico, a fim de que cada romance que leia lhe sirva para seu aprimoramento humano. Vejamos como essa ideia se funde na nivola. A nivola: La tía Tula Em La tía Tula (1921), acompanhamos a história de Gertrudis, mais conhecida como Tula, a qual vive com sua irmã, Rosa, e seu cunhado, Ramiro. Na primeira parte do romance, Tula serve de conselheira praticamente maternal de sua irmã, algo mais jovem e menos disposta à reflexão. Pouco depois de Rosa dar à luz, falece. Porém, numa última conversa entre as irmãs antes desse incidente, a mais nova pede à mais velha que ajude Ramiro a cuidar de seus filhos. Algum tempo indefinido depois – pois a nivola sucede em tempos vagos, oníricos, como se de um sonho longo se tratasse –, Ramiro se casa com Manuela, a empregada do lar, com quem tem outro filho. Não obstante, a nova esposa de Ramiro morre devido a complicações no segundo parto, deixando novamente o homem viúvo. Na terceira e última parte da narrativa, Ramiro e Tula convivem numa tensão amorosa não saciada por escolha de Tula, a qual consideraria a consolidação desse laço afetivo uma traição a sua irmã e seus sobrinhos, amados por ela como se fossem seus filhos. Nesse conflito sem resolução, Ramiro morre, cedendo de bom grado a guarda de seus descendentes à que considera o grande amor de sua vida. Há uma moral cristã em Tula semelhante à que Unamuno defende em alguns ensaios teológicos, como La agonía del cristianismo (1925). Essa moral, mais que associada à servidão ou ao instinto maternal inerente à mulher – de acordo com os preceitos patriarcais –, em realidade tem caracteres existenciais e metafísicos. Tula, ao abdicar do amor e da maternidade carnal, opondo-se, assim, ao destino determinado socialmente ao seu gênero, faz ato de uma vontade íntima e, por isso, vitalista, no intuito de formar a identidade que sua subjetividade lhe pede. Ainda, essa subjetividade serve como pontapé inicial para a imortalização, ou seja, o desenvolvimento da identidade se considera, na filosofia e literatura unamunianas, um elemento apriorístico para alcançar a eternidade (GIMÉNEZ, 2011). Não obstante, a imortalidade não se cerra na conquista da identidade, mas auxilia-a no propósito de transmitir ao outro essa busca incessante e agônica de si, formando-se, portanto, uma ética sempre no porvir. 60

Anais Tula logra traspassar essa ética agônica aos seus filhos espirituais, com os quais se perpetua uma vez cumprida sua missão terrenal: Mantenía la unidad y la unión de la familia, y si al morir ella afloraron a la vista de todos, haciéndose patentes, divisiones intestinas antes ocultas, alianzas defensivas y ofensivas entre los hermanos, fue porque esas divisiones brotaban de la vida misma familiar que ella creó. Su espíritu provocó tales disensiones y bajo de ellas y sobre ellas la unidad fundamental y culminante de la familia. La tía Tula era el cimiento y la techumbre de aquel hogar (UNAMUNO, 2007, p. 165).4 Como presenciado no trecho acima, Tula consegue o que se propôs com tanto esforço após desafios de várias índoles, até mesmo o de renunciar à carne. Não porque considere a carnalidade maternal e sexual negativa, mas porque, como afirma Giménez (2011), a materialidade espiritual, a metafísica, parece-lhe a única sublime. Todavia, vale a pena determo-nos em outro ponto importante para entender a ideologia do autor: La tía Tula não representa defesa alguma à castidade. Como dissemos, os personagens que fazem parte das narrativas de Unamuno são peças que, unidas, refletem a personalidade do autor. Assim, Tula é apenas uma das faces da identidade de seu criador, sendo Rosa e Ramiro, que vivem mais de acordo com seus impulsos sensitivos, outra delas. Em definitiva, La tía Tula é uma nivola pela psicologização das personagens, pelo espaço único e simplificado – como na tragédia clássica –, pelas antíteses e oxímoros típicos da literatura mística, e pela elipse temporal que dá ao texto a sensação de uma diegese onírica; mas também pelo protagonismo dos personagens e seus dilemas demasiado humanos, como se não fossem reais pela voluptuosidade do drama em que estão envolvidos, e, ao mesmo tempo, como se fossem reais pelos dilemas existenciais que padecem, os quais são passíveis de identificação por parte do leitor de qualquer parte do planeta. A desumanização das vanguardas 4 “Mantinha a unidade e a união da família, e se ao morrer ela aflorou à vista de todos, fazendo-se patente, divisões intestinais antes ocultas, alianças defensivas e ofensivas entre seus irmãos, foi porque essas divisões brotavam da vida familiar em si que ela criou. Seu espírito provocou dissensões e embaixo delas e sobre elas a unidade fundamental e culminante da família. A tia Tula era o cimento e o teto daquele lar” (T.N.). 61

Anais A humanização da nivola encontra sua nêmesis nas vanguardas. No tocante à literatura, estas absorvem dos novos rumos estéticos um esvaziamento ontológico pela radicalização da desconfiança na subjetividade já iniciada nos movimentos artísticos modernistas. O Surrealismo, Dadaísmo, Cubismo, Novo expressionismo, entre outros, influenciam a própria ideia de romance, que nessa nova linguagem encontra uma autonomia que rejeita a realidade extra-romanesca (GASSET, 1982). A Geração de 98, principalmente Unamuno, Antonio Machado (1875-1939) e Pío Baroja (1872-1956), antipatizaram com esses novos rumos literários pela hipotética superficialidade neobarroca de sua proposta. As críticas desses autores se agudizam concomitantemente ao seu envelhecimento, momento da vida em que radicalizam sua rejeição à vanguarda – a qual consideram uma continuação do modernismo – e à geração de vanguarda espanhola, também conhecidos como Geração de 27. No período de auge das vanguardas, escreve Unamuno Cómo se hace uma novela (1924), em que patenteia uma abstrata teoria do romance ou uma antiteoria do romance, dado que ele não dá elementos práticos que ajudem, tecnicamente falando, a escrever uma obra. Em lugar disso, Don Miguel divide seu texto nas seguintes partes: (1) o comentário de um amigo, Jean Cassou, sobre a personalidade de Unamuno; (2) o esboço de um romance; (3) o comentário do autor sobre o esboço do romance; (4) e uma série de reflexões sobre a ficção, os literatos, as escolas geracionais de artistas etc (UNAMUNO, 2009). Nessa última divisão, não economiza em impropérios à estética gongórica e aos discípulos contemporâneos do poeta barroco: [...] Góngora, no tanto se propuso repetir un cuento bello cuanto inventar un bello idioma. Pero, ¿es que hay idioma sin cuento ni belleza de idioma sin belleza de cuento? […] Y toda esa poesía que celebran [referindo-se à Geração de 27] no es más que mentira. ¡Mentira, mentira, mentira! El mismo Góngora era un mentiroso (UNAMUNO, 2009, p. 164).5 Unamuno chama Góngora e aos gongoristas de mentirosos por não falarem a verdade, sendo para o bilbaíno a verdade na literatura tudo aquilo que fala da condição trágica da vida, ou seja, a luta dialética assintética do ser com a razão e a fé. 5 “[…] Góngora não se propôs repetir um belo conto, mas inventar um belo idioma. Porém, é que há idioma sem conto nem beleza de idioma sem beleza de conto? [...] E toda essa poesia que comemoram [referindo-se à Geração de 27] não é mais que mentira. Mentira, mentira, mentira! O próprio Góngora era um mentiroso” (T.N.). 62

Anais Mais otimista foi com o vanguardismo o filósofo Ortega y Gasset. Ele soube ver com um pouco mais de confiança as novidades artísticas provenientes dos outros espaços de Ocidente. Considerou que a irrupção das vanguardas no cenário europeu se deu como sintoma do esgotamento da arte moderna, a qual não tinha como seguir copiando a realidade pela falta de realidades que copiar e pela falta de modos de copiar a realidade. A arte moderna, segundo Gasset (1986), pecava por ancorar-se no mundo externo, isto é, no fenômeno, e no interno, no humanizado. Essas fórmulas vigorantes durante décadas já não satisfaziam o espírito dos jovens artistas, que buscavam revolucionar a linguagem artística por meio de mudanças que atingissem as raízes, procurando a contrariedade do status quo. É a partir dessa nova filosofia da arte que Gasset formula seu famoso ensaio A desumanização da arte (1925). Nesse texto, patenteia algumas noções basilares sobre o novo espírito, tais como: em primeiro lugar (1), o vanguardismo aparece porque as formas tradicionais estão rígidas, mortas, então, em lugar de criticar a novidade seus detratores, deveriam entender o porquê da aparição dessa nova cara da arte e, ato seguido, ver seu aspecto positivo. Em segundo (2), Ortega menciona que a arte desumanizada, mais que uma arte em si, é uma proposta teórica, um programa que se formula no próprio produto artístico. Assim, uma obra vanguardista é a ideia que um determinado autor vanguardista tem da obra de arte. Em terceiro (3), entende que essa escola ainda está em evolução, precisando, por isso, definir seus limites e borrar seus excessos para não se perder na mera intenção em detrimento da busca pela qualidade. Em quarto (4) e último, o espectador dessa arte tem que se adaptar às suas exigências receptivas, vê-las como opostas à realidade e não como consequência desta (GASSET, 1986). Partindo dessas bases, Gasset define os setes traços elementais das tendências vanguardistas: Si se analiza el nuevo estilo se hallan en él ciertas tendencias sumamente conexas entre sí. Tiende: 1., a la deshumanización del arte; 2., a evitar las formas vivas; 3., a hacer que la obra de arte no sea sino obra de arte; 4., a considerar el arte como juego, y nada más; 5., a una esencial ironía; 6., a eludir toda falsedad, y, por tanto, a una escrupulosa realización. En fin, 7., el arte, según los artistas jóvenes, es una cosa sin transcendencia alguna (GASSET, 1986, p. 25-26).6 6 “Ao analisar o novo estilo se acham nele certas tendências sumamente conexas entre si. Tende: 1., à desumanização da arte; 2., a evitar as formas vivas; 3., a fazer que a obra de arte não seja senão obra 63

Anais Esses paradigmas agrupados e conceitualizados pelo filósofo foram importantes para os romancistas da Geração de 27. Não tão importante foi sua teoria para os poetas que faziam parte desse agrupamento, dado que “preferían reivindicarse de la poesía pura más que de la deshumanización, aunque entretuvieran parentescos con la estética de la desrealización y de la metáfora definida por Ortega” (GIUSTINIANI, 2013, p. 298).7 Não obstante, é importante assinalar que na Geração de 27 não houve muitos romancistas, e os que se destacaram, não o fizeram tanto quanto os poetas e os dramaturgos. Isso porque a lírica se comprovou como o terreno fértil para as experimentações formais que tinham em mente; ademais, consideravam a prosa o terreno da burguesia. De qualquer forma, podemos destacar uma figura algo esquecida pela crítica e, não obstante, a mais assumida seguidora da teoria orteguiana: Rosa Chacel (1898-1994). O romance desumanizado: La Sinrazón A autora da cidade de Valladolid não duvida em afirmar que a geração artística da qual fez parte deve a Ortega y Gasset e sua ideia da arte desumanizada alguns pilares que marcariam suas produções, ao menos às de suas primeiras etapas, nas que estão impregnados dos princípios vanguardistas: “los escritores de mi generación empezamos a escribir sabiendo que Ortega estaba allí, ¡ojo avizor!, implacable, irreductible” (CHACEL, 1989, p. 150).8 E, em outro texto, complementa: [...] la juventud de entonces se adhería a la prosa de Ortega, que tenía el poder de centrar su atención en la forma. La forma se nos descubría como imperativo quehacer... quiero decir que la perfección de la forma, el rigor de la palabra nos descubría las formas del mundo, nos hacía detener la mirada en la forma, que es el modo más certero de profundizar. La detención en la de arte; 4., a considerar a arte como jogo, e nada mais; 5., a uma ironia essencial; 6., a eludir toda falsidade e, portanto, a uma escrupulosa realização. Enfim, 7., a arte, segundo os artistas jovens, é uma coisa sem transcendência alguma” (T.N.). 7 “Preferiam reivindicar a poesia pura mais que a desumanização, ainda que tivessem semelhanças com a estética da desrealização e da metáfora definida pro Ortega” (T.N.). 8 “Os escritores de minha geração começaram a escrever sabendo que Ortega estava ali, colocando o olho! Implacável, irredutível” (T.N.). 64

Anais forma culmina en contemplación y ahonda o zambulle o excava en conocimiento (CHACEL, 1993, p. 312).9 De acordo com o comentado pela autora, podemos entender, primeiro, que a preocupação com a forma é absoluta, e, segundo que é na forma que o conteúdo eclode. Essa sua preocupação e a de sua geração encontra distância com os paradigmas da nivola no tocante à hierarquia entre forma e conteúdo. Enquanto Unamuno voga por uma estética que corresponda aos dissabores existenciais do sujeito moderno, Chacel procura distanciar-se do acontecimento e das surpresas do indivíduo perante os fenômenos, a fim de que seja a linguagem a que forneça dados da consciência das personagens; dados, contudo, fragmentados, oníricos, por vezes insignificantes do ponto de vista ontológico, mas ainda dados à espera de que o leitor os decifre e signifique (HIDALGO, 2007). A narrativa dos romances desumanizados de Chacel também perde quase todo peso argumentativo, deixando um vazio preenchido pelas oscilações dos estados subjetivos das personagens. Todavia, essa consciência não se esvai no jogo fechado do psiquismo do monólogo interior ou do fluxo de consciência – técnicas mais comuns à nivola –, pois entende que a obra de arte não é reflexo dos sentimentos próprios, mas a revelação de uma “intimidad expresada, una interpretación que saca a los objetos del mundo real para impregnarlos de la intimidad subjetiva de un hombre y de una cultura” (SÁENZ, 1994, p. 114).10 Essa ideia de expressar a intimidade do eu/personagem através de uma conexão escondida – e ainda assim latente no texto – com o mundo, assemelha-se ao conceito orteguiano da circunstância, em que o eu não pode ser o eu senão por meio da circunstância, entendida esta como o tempo histórico e o espaço geopolítico onde o sujeito está inserido (GASSET, 2014). No romance chaceliano não conseguimos palpar o tempo e o espaço, nem sequer por meio de intuições vagas, mas, ainda assim, entendemos e empatizamos com a aparente 9 “A juventude daquela época aderia à prosa de Ortega, que tinha o poder de centrar sua atenção na forma. A forma aparecia para nós como um imperativo do que fazer...quero dizer que a perfeição da forma, o rigor da palavra nos descobria as formas do mundo, nos fazia deter o olhar na forma, que é o modo mais certeiro de aprofundar. A detenção na forma culmina na contemplação e imerge ou mergulha ou escava em conhecimento” (T.N.). 10 “Intimidade expressada, uma interpretação que tira os objetos do mundo real para impregná-los da intimidade subjetiva de um homem e de uma cultura” (T.N.). 65

Anais impossibilidade das personagens de sair da condição ôntica. Nesse espaço árido do ente é onde Chacel quer deixar a sós o leitor com o texto, buscando o espanto deste para com a intranscendência que forma sua vida. Por esse motivo Sáenz (1994) denomina o texto da autora de romance de investigação existencial. Em La sinrazón (1960), o personagem principal, Santiago Hernández, projeta num caderno longas reflexões a respeito do que lhe acontece. Basta dizer que são poucos os acontecimentos padecidos, colocando mais ênfase nas projeções mentais advindas dos fenômenos corriqueiros, sem se perder no histrionismo ou em resoluções transcendentais típicas da nivola. O que Santiago quer, em definitiva, em palavras dele, é: “llegar al límite de la razón, a la razón de la sinrazón. Porque la mayor sinrazón que a mi razón se hace es que exista ese límite y que queden más allá de las fuentes de todas las cosas por las cuales la razón se desvive” (CHACEL, 1989, p. 562).11 A sinrazón à qual ele se refere tem aproximações com a noção de arte desumanizada, cuja procura pela suspensão do sentido da razão, seja humanizada ou da própria linguagem artística em si, conforme sua pretensão primeira e última. Assim, encontrar a coerência interna às coisas passa por não buscá-la, deixando-a suspensa, sendo o que são sem a inferência de um eu/Deus que as ressignifique: Los puntos más elevados que he llegado a alcanzar en mis explicaciones, han sido a pretensión de poder, la petición, que haría mover las alas de la mariposa. Esto, quiere decir, estrictamente, la respuesta. Esto significa ver a Dios; y es sabido que no es posible verle sin morir. El golpe de audacia del luchador es, a pesar de eso, querer verle (CHACEL, 1989, p. 576).12 Nesses trechos expostos de La sinrazón, vemos a necessidade de tornar em arte uma teoria – ou uma teoria em arte –, como diz Ortega (1986). Os personagens adquirem a roupagem teorética de seus autores e a propagam numa espécie de confissão daquilo que 11 “Chegar ao limite da razão, à razão da ‘semrazão’. Porque a maior ‘semrazão’ que cria a minha razão é fazer que exista esse limite e que fiquem para além das fontes de todas as coisas pelas quais a razão se desvive” (T.N.). 12 “Os pontos mais elevados que cheguei a alcançar em minhas explicações, foram a pretensão de poder, a petição, que faria mexer as asas da mariposa. Isto, quer dizer, estritamente, a resposta. Isto significa ver a Deus; e se sabe que não é possível vê-lo sem morrer. O golpe de audácia do lutador é, apesar disso, querer vê-lo” (T.N.). 66

Anais seus criadores não têm coragem de expressar ou não conseguem colocar em perspectiva senão por meio do canal comunicativo da ficção (HIDALGO, 2007). Esse elemento teórico/filosófico é o elo mais visível entre a nivola e o romance desumanizado, pois em ambas manifestações romanescas há uma intenção, há uma ética em direção ao leitor. Porém, enquanto em Unamuno o autor se desdobra para dar às personagens peças de sua consciência, em Chacel o autor desaparece a priori quando a narrativa desumanizada inicia. Não fica evidente, também, nos romances vanguardistas da Geração de 27 quais as posturas que o personagem – em cuja sombra só podemos intuir abstratamente seu autor – possui. Há, antes de tudo, o deflúvio de uma personalidade possível e ficcional, a qual é lançada sem alicerces semânticos muito específicos, deixando ao leitor, portanto, um peso maior no que tange à sua interação com a realidade intraliterária, o que propicia a exigência de uma “entrega, cohesión o contribución de su propia sustancia a un trasunto de lo contemplado” (CHACEL, 1993, p. 74).13 Esse nível de abertura não é possível na nivola, já que a aproximação de Unamuno com o texto é maior. Isso se dá porque Unamuno considera que sua literatura é ele próprio: “mi obra soy yo mismo que me estoy haciendo día a día y siglo a siglo” (UNAMUNO, 2009, p. 20).14 Eis o ponto decisivo de separação entre a nivola e o romance desumanizado. Considerações finais Como explanamos, nas primeiras décadas do século XX aparece na Espanha duas orientações estéticas diametralmente opostas: a nivolesca e a desumanizada. A nivolesca, patenteada por Miguel de Unamuno, defende um tipo de romance, literatura e arte capaz de explorar os temas íntimos e metafísicos que inquietam o ser moderno. Já a arte desumanizada, teorizada por Gasset e acompanhada pela geração de vanguarda, quer esvaziar o indivíduo para assim introduzi-lo numa realidade intra-artística, isenta de qualquer fator mimético que o lance para fora de sua experiência poética. 13 “Entrega, coesão ou contribuição de sua própria substância a uma transição àquilo contemplado” (T.N.). 14 “Minha obra sou eu mesmo que estou me fazendo dia a dia, século a século” (T.N.). 67

Anais Ambos os autores tiveram uma relevância acentuada no espaço e tempo em que viveram, marcando alguns debates que permanecem até hoje no âmbito estético, tais como: a arte precisa ter uma ética? a arte tem que se propor mudar o mundo? ou ainda: a arte pode mudar o mundo? Qualquer resposta nossa seria ousada em excesso, pelo que, por enquanto, contentamo-nos em mostrar dois autores timidamente conhecidos no Brasil, e que, pelo aqui exposto, podem conduzir o leitor, a partir de métodos estético-filosóficos distintos, a refletir sobre sua existência e a de seus pares. REFERÊNCIAS CHACEL, Rosa. La lectura es secreto. Barcelona: Júcar, 1989. CHACEL, Rosa. La Sinrazón. Madrid: Grupo Libro, 1989 CHACEL, Rosa. Sendas perdidas de la Generación del 27. In: Rosa Chacel. Obra completa (III). Valladolid: Centro de estudios literarios fundación Jorgue Guillén, 1993 GASSET, José Ortega y. Ideas sobre el teatro y la novela. Madrid: Alianza, 1982. GASSET, José Ortega y. La deshumanización del arte y otros ensayos de estética. 8. ed. Madrid: Revista de Occidente: Alianza, 1986. GASSET, José Ortega y. Meditaciones del Quijote. Madrid: Ediciones Cátedra, 2014. GIMÉNEZ, María Dolores García. (IN)Mortalidad y dimensión poiética de la Fe en Miguel de Unamuno. Tese (doutorado) – Universidad de Sevilla, Departamento de Filosofía y Lógica y Filosofía de la Ciencia, 360 f. 2011. GIUSTINIANI, Eve Fourmont. Ortega y las artes. Una estética raciovitalista. Zamora Bonilla, Javier (Dir.), Guía de Ortega, Granada, 2013, p. 293-309. Disponível em: https://hal- amu.archives-ouvertes.fr/hal-01475050. Acesso em: 23 dez. 2020. HIDALGO, Cora Requena. La deshumanización del arte en Rosa Chacel. Artifara, n. 7, 2007, p. 79-86. Disponível em: https://www.ojs.unito.it/index.php/artifara/article/view/6481/5570. Acesso em: 25 abr. 2022. OLIVEIRA NETO, Walter Pinto de; SOUSA, Karla Cristhina Soares. A nivola como precursora do romance metafísico: um diálogo sobre literatura entre Miguel de Unamuno e Simone de Beauvoir. In: Anais do 8º Seminário Nacional e 2º Seminário Internacional de Língua e Literatura: Conversas Remotas. Passo Fundo, 2020, p. 1-14. SÁENZ, María López. La influencia de la estética orteguiana en Rosa Chacel. In: Actas del Congreso en homenaje a Rosa Chacel, Logroño, Ed. Universidad de La Rioja, 1994, p. 107-118. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/555081.pdf. Acesso em: 25 abr. 2022. 68

Anais UNAMUNO, Miguel de. Cómo se hace una novela. 1ª ed. Madrid: Ediciones Cátedra, 2009. UNAMUNO, Miguel de. La tía Tula. 30ª ed. Madrid: Espasa Calpe, 2007. 69

MEDEIA: A ESSÊNCIA DO FEMININO Brenda Lima dos SANTOS (UFC)1 Yls Rabelo CÂMARA (UFC)2 RESUMO Este trabalho é um estudo comparativo entre as duas versões mais famosas da tragédia de Medeia: as peças de Eurípides e de Sêneca, com o objetivo de identificar as características mais marcantes dessa personagem mitológica e elucidar que essas mesmas características estão presentes na essência do feminino. Para além disso, fizemos, a priori, uma pesquisa de natureza interpretativa e de abordagem qualitativa para melhor dissertarmos sobre esta seara. Assim, constatamos que mesmo com as tentativas de marcar a personagem como uma mulher sem escrúpulos, vilã e representante de tudo o que não deve ser seguido, o feminino resiste e permanece, mostrando-se resiliente, ressignificando-se e atualizando possibilidades. Destarte, o presente trabalho, pretende contribuir para que as obras literárias que lidam com o protagonismo feminino revolucionário sejam lidas e analisadas através de novos parâmetros, de lentes mais condizentes com a atual situação da mulher na maioria das sociedades ocidentais, sem perder de vista a fidelidade ao tempo da narrativa, a fim de não incorrermos em anacronismos. Para tanto, com o fito de embasar nossas considerações, nos baseamos teoricamente nos trabalhos de Beauvoir (2019), Sousa (2013) e Kury (2013). Concluímos que a Medeia Euripidiana carrega aspectos e críticas presentes no interior tanto da figura feminina quanto das lutas empreendidas desde a Antiguidade Clássica por todo ser que se identifica com o feminino. Já a Medeia senequiana demonstra tudo o que as sociedades normalmente esperam de uma mulher e tudo aquilo que ela não deve ser. 1 Licencianda em Letras Português na Universidade Estadual do Ceará (Uece). Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET-HUMANIDADES). Membra do Grupo de Estudos Filhas de Avalon (Felesc/Uece). E- mail: [email protected]. 2 Doutora e Mestra em Filologia Inglesa (Universidad de Santiago de Compostela), com Estágio Pós-Doutoral em Educação (Uece). Universidad de Santiago de Compostela (USC). Líder do Grupo de Estudos Filhas de Avalon (Feclesc/Uece). E-mail: [email protected]. 70

Anais Palavras-chave: Tragédia; Medeia; Feminino; Essência Feminina. ABSTRACT This work is a comparative study between the two most famous versions of Medea's tragedy: the plays of Euripides and Seneca, with the objective of identifying the most striking characteristics of this mythological character and elucidating that these same characteristics are present in the essence of the feminine. Furthermore, we carried out, a priori, a research of an interpretive nature and a qualitative approach to better discuss this area. Thus, we found that even with the attempts to mark the character as an unscrupulous woman, villain and representative of everything that should not be followed, the feminine resists and remains, showing itself to be resilient, resignifying itself and updating possibilities. Thus, the present work intends to contribute for the literary works that deal with the revolutionary feminine protagonism to be read and analyzed through new parameters, of lenses more consistent with the current situation of the woman in the majority of the western societies, without losing sight of the fidelity to the time of the narrative, in order not to incur in anachronisms. Therefore, in order to support our considerations, we theoretically base ourselves on the works of Beauvoir (2019), Sousa (2013) and Kury (2013). We conclude that the Euripidean Medea carries aspects and criticisms present within both the female figure and the struggles undertaken since Classical Antiquity by every being that identifies with the feminine. The Senecan Medea, on the other hand, demonstrates everything that societies normally expect from a woman and everything that she should not be. KEYWORDS: Tragedy; Medea; Female; Feminine Essence. INTRODUÇÃO Medeia é uma das personagens trágicas mais antigas e famosas da Literatura ocidental. Filha de Eetes, rei da Cólquida, apaixonou-se pelo grego Jasão quando esse chegou ao seu país com uma missão difícil de cumprir e cujo êxito dependia da participação da princesa. Depois de a cumprirem, os dois fogem e enfrentam diversas outras dificuldades e aventuras. Ao longo dos anos, eles constroem uma vida juntos e têm dois filhos. Contudo, depois de dez anos, Jasão comunica a Medeia que irá se casar com a filha do Rei Creonte. Por isso, a informa que ela deverá ir embora da cidade, mas que os filhos ficarão com ele. Assim, sem família, expulsa da terra onde construiu sua vida, sem marido, filhos, amigos e/ou aliados, Medeia se vê sozinha. Essa situação a conduz para uma decisão extrema: destruir a vida do homem que devastou a sua, matando o que ele diz ser seu bem mais precioso: os filhos. As tragédias de Sêneca e Eurípedes, as duas versões mais famosas que abordam a história da personagem Medeia, conduzem, muitas vezes, os leitores à conclusão de que ela é uma mulher sem escrúpulos, coração ou humanidade, dado o infanticídio praticado pela 71

Anais personagem. Apesar disso, ao olharmos e compararmos as duas versões e os estudos sobre ela realizados ao longo dos anos, podemos concluir que o ato é apenas uma das várias desculpas eleitas pela história da crítica literária para colocá-la como a vilã – nada muito diferente do que acontece com a figura do feminino ao longo da História. Independentemente da situação e da posição que uma mulher ocupa em dada sociedade, se sair da curva da normalidade e da obediência passiva, é um monstro, uma bruxa, um ser que deve ser exilado, excluído e esquecido. Partindo disso, este estudo tem como objetivo analisar a figura de Medeia nas tragédias de Eurípides e Sêneca, destacando os elementos que marcam a essência da personagem, exemplificando que são esses mesmos elementos os que constituem a alma do feminino. Para isso, teremos como base fundamental para a análise, Simone de Beauvoir (2019), com o conceito de feminino como “o Outro”; Ana Alexandra Alves de Sousa (2013), para explorar a figura de Medeia; e Gama Kury (2013), com a análise e comentários sobre as personagens do teatro grego. METODOLOGIA Na busca por compreender como se dá a caracterização de Medeia como a essência do feminino, o berço e lar de toda figura feminina, empreendemos uma pesquisa de caráter qualitativo e de cunho bibliográfico, tendo como base livros, artigos, dissertações e teses que abordam a personagem em questão. Nessa pesquisa, analisamos os textos de acordo com a visão do feminino como o Outro. Para atender aos propósitos da análise, utilizamos Beauvoir (2019), com o conceito de Outro; Sousa (2013), com o estudo da personagem Medeia e a peça de Sêneca; Kury (2013), com o estudo sobre as peças gregas, analisando a figura da personagem na tragédia de Eurípedes. Assim, essa investigação é fruto de um levantamento bibliográfico sobre a personagem em tela em repositórios universitários e buscadores digitais, utilizando-nos de descritores específicos para filtrar trabalhos acadêmicos acerca dela, como as palavras- chave supramencionadas no resumo. Trata-se de um estudo de natureza básica, de abordagem qualitativa e de objetivo exploratório, cujo cerne é analisar como todo feminino pode, em algum momento, retornar ou se encontrar em seu “estado Medeia”. 72

Anais MEDEIAS: as Personagens de Eurípides e Sêneca Eurípedes está longe de ser o primeiro autor a citar Medeia em sua tragédia; as primeiras referências à personagem foram feitas por Hesíodo, na Teogonia (FERREIRA,1997). Segundo Hesíodo (2007), a filha do filho do sol e da virgem do Oceano, Medeia, nasceu subjugada ao amor, graças a Afrodite. A tragédia de Eurípedes, Medeia, é muito mais reflexiva e crítica do que a de Sêneca no sentido de olhar para a figura do feminino, já que ele consegue ressaltar a singularidade da alma feminina. Dessa forma, a personagem do tragediógrafo tem como características a inteligência, o amor, a força, a culpa, a solidão, a resistência de ir contra tudo aquilo que era exigido dela e o sofrimento que é ser mulher desde o nascimento – aspectos que definem o ser feminino desde a gênese da sociedade. Podemos perceber isso em uma longa fala da personagem, na qual ela expõe toda a carga de sofrimento que carrega por causa de seu sexo desde o nascimento, além de falar sobre o dote pago para servir a um marido que não escolheu, correndo o risco ainda de ser repudiada: [...] Das criaturas todas que têm vida e pensam, somos nós, as mulheres, as mais sofredoras. De início, temos de comprar por alto preço o esposo e dar, assim, um dono, a nosso corpo - mal ainda mais doloroso que o primeiro. Mas o maior dilema é se ele será mau ou bom, pois é vergonha para nós, mulheres, deixar o esposo (e não podemos rejeitá-lo). (KURY, 2013, p. 217). Além de discorrer sobre o fato de carregar o fardo do silêncio, a Medeia euripidiana, fala sobre a imagem que a sociedade histórica construiu para o feminino, como seres incapazes de praticar boas ações. Contudo, a protagonista utiliza essa verdade para afirmar que se as mulheres não foram feitas para boas ações, “[...] não há, para a maldade, artífices mais competentes do que nós!”. (KURY, 2013, p. 225). Nessa versão, a maldade supracitada está voltada para o infanticídio, ato praticado por uma mãe, que no lugar de amar incondicionalmente os filhos, ama o marido mais do que a sua própria prole. Por isso, quando se vê sem o esposo, sabendo que os filhos são importantes para ele, decide matar as crianças para destruir a vida do ex-marido. É sobre a mulher abandonada que recai toda a responsabilidade de atos ruins, violentos e crimes que foram realizados pelo casal Medeia e Jasão. Ao abandonar o lar, o marido também abandona a responsabilidade que tinha de cumplicidade para com a esposa. 73

Anais Assim, ela se vê sozinha, sendo acusada de crimes que cometeu em nome do marido, para ajudá-lo, exilada, sem família e com a proibição de partir com os filhos. Dessa forma, uma outra característica do feminino demonstrado por Medeia, no ato do filicídio, é a compaixão. Ela tinha o conhecimento de como funcionava a vida dentro da Corte, sabia como os filhos do primeiro casamento seriam vistos depois que os herdeiros reais nascessem: eles seriam os bastardos, rejeitados, uma ameaça que deveria ser eliminada. Se não por isso, os primeiros filhos seriam acusados dos crimes cometidos pelos pais, uma vez que a mãe não estaria presente para ser julgada, devido ao exílio, e o pai, marido da princesa, não seria acusado de nenhum crime; seriam condenados à morte. Medeia viu que os filhos já estavam mortalmente feridos. Dessa forma, ela viu “[...] a necessidade de permitir que a morte venha aos que estão morrendo.”. (ESTÉS, 2018, p.17). Ela demonstrou a sua compaixão nesse ato, inspirada pelo arquétipo da mulher selvagem3, irmã dos lobos. Ela foi dotada de uma força e grande resistência, demonstrando a profunda intuição na preocupação com seus filhos, sua matilha. Medeia se adaptou às circunstâncias com uma determinação feroz e uma coragem extrema. Em Sêneca, a preocupação em criticar ou refletir sobre a sociedade não está muito presente, até porque seu foco era difundir o Estoicismo, corrente que acreditava que o homem deveria se submeter à razão e buscar sempre seguir um caminho equilibrado em busca da virtude. Então, para ele, o excesso de amor, ódio e desejo de vingança de Medeia fazem dela um exemplo de tudo o que é ruim e que não deve ser imitado: “[...] uma Medeia rejeitada pelo marido e parceiro sobrepõe-se a figura desamparada do ser humano que perdeu a justificação de sua vida.”. (GALDINO, 2008, p. 442). Por isso, segundo Sousa (2013), a personagem principal pode ser caracterizada como intrépida, desafiadora, vingativa, impulsiva e absoluta. Dessa forma, não há críticas em relação à forma como ela foi tratada, mas Sêneca ressalta, mesmo que inconscientemente, o poder da retórica de Medeia, que consegue não só convencer Jasão de que o perdoou e que 3 Segundo Estés (2018), a mulher selvagem é definida como [...] a força da vida-morte-vida; é a incubadora. É a intuição, a vidência, é a que escuta com atenção e tem o coração leal. Ela estimula os humanos a continuarem a ser multilíngues: fluentes no linguajar dos sonhos, da paixão, da poesia. Ela sussurra em sonhos noturnos; ela deixa em seu rastro no terreno da alma da mulher um pelo grosseiro e pegadas lamacentas. Esses sinais enchem as mulheres de vontade de encontrá-la, libertá-la e amá-la. (...) Ela ficou perdida e esquecida por muito, muito tempo. Ela é a fonte, a luz, a noite, a treva e o amanhecer. Os pássaros que nos contam segredos pertencem a ela. Ela é a voz que diz: ‘Por aqui, por aqui’. (p.27) 74

Anais acredita que a decisão dele é correta, como consegue convencer o rei de que precisa de mais um dia antes de partir, dia esse no qual consolida a sua vingança. Esse domínio do discurso que ela possui causa um amedrontamento nos homens, inclusive no rei, que ao perceber a inteligência de Medeia e a forma como ela conduz suas conversas, atribui aspectos negativos à figura do feminino que contesta e pensa. Os comentários de Creonte comprovam o que afirma Beauvoir (2019) sobre a visão que a sociedade machista tem sobre o feminino que se rebela contra o que lhe é imposto: [...] a carne feminina é detestável a partir do momento em que uma consciência a habita. O que convém à mulher é ser puramente carne; A mulher ideal é perfeitamente estúpida e submissa; está sempre preparada para acolher o homem e nunca lhe pede nada.”. (BEAUVOIR, 2019, p.273) A Medeia senequiana não se ocupa nem se preocupa em falar de sua condição como feminino, diferentemente do que encontramos na tragédia de Eurípedes. Nessa peça, o foco é a vingança. Contudo, podemos encontrar muito da essência do feminino nessa Medeia, principalmente em relação ao desejo de mostrar o seu valor, indo contra tudo o que era esperado dela; Medeia não se deixa quebrar, mesmo sendo privada de seu pai, pátria e reino, deixada sozinha numa terra estrangeira (SOUSA, 2013, p. 43). O Feminino Ao longo da História, “[...] a mulher sempre foi, se não a escrava do homem, ao menos sua vassala; os dois sexos nunca partilharam o mundo em igualdade de condições [...]” (BEAUVOIR, 2019, p. 17). Por esse motivo, tudo de ruim que acontece(u), desde os primórdios dos tempos, foi, vem sendo ou é atribuído às mulheres. Elas carregam, desde antes de seus nascimentos, o peso de serem as que desviam, as pecadoras, as que seduzem, as bruxas. Sendo assim, a sociedade planta na consciência feminina que elas devem pagar a sua penitência buscando a aceitação masculina. Logo, elas aprendem, desde o primeiro alento, que devem obedecer sem questionar; se ousarem ir contra essa regra sofrerão as consequências: rejeição, abandono e exílio. Sem embargo, o que essa sociedade esquece é que o feminino nasce sabendo que sua caminhada será solitária independentemente do que fizer. O verdadeiro lar feminino “[...] é a floresta virgem, emaranhada e sem trilhas; um 75

Anais campo nevado onde até as marcas dos pés dos passarinhos sumiram. Aqui nós vamos sozinhas e achamos até melhor.”. (WOOLF, 2014, p. 137). Medeia se vê nessa floresta quando é informada sobre o abandono de Jasão. Ao invés do que era esperado, a aceitação, ela mostra a sua firmeza e força, expondo que o verdadeiro significado de força não é ter músculos bem exercitados, fama de herói e que, definitivamente, a força não é um atributo apenas masculino: Ser forte não significa desenvolver os músculos e exercitá-los. Significa, sim, encontrar nossa própria numinosidade sem fugir, convivendo ativamente com a natureza selvagem ao nosso próprio modo. Significa ser capaz de aprender, e ser capaz de aguentar o que sabemos. Significa manter-se firme e viver. (ÉSTES, 2018, p. 113). Perder o marido, na sociedade grega da época, para uma mulher, era o fim de sua vida social, uma vez que “Somente através do matrimônio a mulher grega conquistava o seu lugar social: primeiro como esposa do cidadão, e em seguida como mãe, ao gerar filhos legítimos para a comunidade em que vivia.”. (Maria Regina CÂNDIDO, 1996, p. 232). Assim, Medeia demonstra, ao resistir, o arquétipo da mulher selvagem que é/está presente no ser feminino, provando que a passividade, esperada como algo biológico da mulher, não passa de um destino que tentam lhe impor (BEAUVOIR, 2019). Consequentemente, olhar para a personagem trágica de Medeia não é ver apenas uma personagem louca, vingativa, assassina ou uma mãe desnaturada. Pelo contrário: olhar para ela é ver o destino de todo ser feminino, arrancada de sua família e pátria, iludida, submissa por amor. Medeia conheceu o sofrimento e amadureceu com ele. Ela prova que a essência feminina é a força, a coragem, o amor, a dor e, principalmente, a resistência. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir da provocação vivida durante as leituras das duas versões da tragédia de Medeia, surgiu o interesse pela pesquisa científica e por essa personagem, uma vez que ela representa, através de suas características principais, a essência do feminino. Algumas questões levantadas durante esse breve estudo ainda permanecem sem resposta porque estamos no início de nossa investigação. Portanto, são questões que apontam para um estudo mais aprofundado no futuro. 76

Anais Em uma análise da figura feminina criada e mantida pela sociedade patriarcal e machista atual, foi possível verificar a relação com Medeia, personagem principal da tragédia homônima, nas versões de Eurípides e Sêneca. Portanto, verificamos que a Medeia Euripidiana carrega aspectos e críticas presentes no interior tanto da figura feminina quanto das lutas empreendidas desde a Antiguidade Clássica por todo ser que se identifica com o feminino. Já a senequiana, demonstra tudo o que a sociedade espera de uma mulher e tudo aquilo que ela não deveria ser. Não obstante, ao mesmo tempo que demonstra todo esse repúdio, nos mostra também a força que nasce do ser feminino ao ser excluída, traída e injustiçada. Vimos que Medeia representa a essência do feminino, pois suas características principais são características presentes em todo ser que se identifica como feminino, que são, dentre outras: solidão, compaixão, força, retórica e poder. O sentimentalismo, muitas vezes tido como uma característica negativa feminina, pode ser visto na tragédia que é o remédio que a sociedade patriarcal e machista tem desejado, mas que não se permite vivenciar, uma vez que para ela, essa peculiaridade do feminino deve ser isolada e permanecer em quarentena até o momento em que seja vacinada com o silêncio e entenda que deve seguir calada. O que se esquece é que o feminino nos invade, que ele nos preenche, provando que mesmo com a tentativa de esquecimento e de apagamento, as mulheres resistem e o feminino segue conquistando espaço. REFERÊNCIAS BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. CÂNDIDO, Maria Regina. Medeia: ritos e magia. Phoinix. v. 2, n. 1, p. 229-234, jan. 1996. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/phoinix/article/view/35533/19639 Acesso em: 05 de jan. 2022. DUTRA, Enio Moraes. O mito de Medeia em Eurípedes. Letras. v.1, n.1, p. 66–75, jan. 1991. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11403 Acesso em: 05 de jan. 2022. ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da Mulher Selvagem. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2018. 77

Anais FERREIRA, Luísa de Nazaré. A fúria de Medeia. Humanitas. v. XLDC, n.49, p. 61-84, 1997. Disponível em: https://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas49/04_Ferreira.pdf Acesso em: 05 de jan. 2022. GALDINO, Marcelino. Medeia. Revista Eutomia. v. 1, n. 02, p. 440-45, dez. 2008. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/EUTOMIA/article/view/1967 Acesso em: 05 de jan. 2022. HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 2007. KURY, Gama. O melhor do teatro grego: edição comentada: Prometeu acorrentado, Édipo rei, Medeia, As nuvens. Rio de Janeiro: Clássicos Zahar, 2013. SOUSA, Ana Alexandra Alves de. Sêneca: Medeia. Coimbra: Annablume, 2012. WOOLF, Virginia. O valor do riso e outros Ensaios. Cosac & Naify: São Paulo, 2014. p. 133-147. 78

O GRITO E A DOR DOS EXCLUÍDOS NAS BATALHAS DE POESIA (SLAM POETRY): UMA ANÁLISE DA PERFORMANCE DA TRAVESTI BIXARTE Rian Lucas da SILVA (IFPB) 1 Hermano de França RODRIGUES (UFPB) 2 RESUMO A Slam Poetry, costumeiramente (re)conhecida apenas como ‘slam’, trata-se de uma manifestação de poesia falada que já não se restringe somente ao espaço acadêmico, mas migra, sobretudo, para as ruas e periferias das cidades, configurando-se, pois, como um ramo da literatura marginal/periférica. Nessa (re)modelagem de poesia, diversos sujeitos – comumente invisibilizados e relegados à obscuridade e ao esquecimento – têm espaço e voz para (trans)formar as suas próprias vivências, dores e existências em arte, ou melhor, em poesia. Nesse sentido, o presente estudo objetiva analisar a poesia falada de Bixarte, nome artístico da paraibana Bianca Manicongo, vencedora do Slam Resistência, na edição de 2021, com o fito de averiguar o modo com o qual a poeta incorpora, em sua fala, um discurso de 1 Graduado em Licenciatura em Letras com habilitação em Língua Portuguesa pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB). [email protected]. 2 Possui Graduação, Mestrado e Doutorado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Professor Adjunto III do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas (UFPB) e do Programa de Pós-Graduação em Letras (UFPB). [email protected]. 79

Anais resistência ao colocar em evidência as relações sociais enfrentadas por uma travesti mediante uma sociedade extremamente arcaica e preconceituosa. Metodologicamente, realizamos, em primeiro lugar, a transcrição de sua poesia, que ocorre de forma falada em vídeo via plataforma YouTube, para o texto escrito; em seguida, iniciamos as análises a partir do texto já transcrito. Para as análises, pautamo-nos em estudos diversos de autores que incluem, por exemplo, Freitas (2020), Ribeiro (2017), Neves (2017) e D’Alva (2014). Por fim, demarcamos a importância das batalhas de poesia enquanto formas de literatura marginal/periférica, tendo em vista a sua capacidade estética e literária de lançar luz tanto sobre temáticas importantes e urgentes quanto sobre indivíduos que ainda permanecem à deriva dos processos políticos e sociais da conjuntura atual. Palavras-chave: Literatura periférica. Batalha de poesia. Poesia falada. Travesti. Bixarte. ABSTRACT Slam Poetry, customarily (re)known only as 'slam', is a manifestation of spoken poetry that is no longer restricted to the academic space, but migrates, above all, to the streets and outskirts of cities, configuring itself , therefore, as a branch of marginal/peripheral literature. In this (re)modeling of poetry, various subjects – commonly invisible and relegated to obscurity and oblivion – have space and voice to (trans)form their own experiences, pains and existences into art, or rather, into poetry. In this sense, the present study aims to analyze the spoken poetry of Bixarte, artistic name of Bianca Manicongo, from Paraíba, winner of the Slam Resistance, in the 2021 edition, with the aim of verifying the way in which the poet incorporates, in her speech, a discourse of resistance by highlighting the social relations faced by a transvestite in an extremely archaic and prejudiced society. Methodologically, we carried out, firstly, the transcription of his poetry, which occurs in a spoken form on video via the YouTube platform, to the written text; then, we started the analysis from the already transcribed text. For the analyses, we rely on several studies by authors that include, for example, Freitas (2020), Ribeiro (2017), Neves (2017) and D’Alva (2014). Finally, we demarcate the importance of poetry battles as forms of marginal/peripheral literature, in view of their aesthetic and literary capacity to shed light both on important and urgent themes and on individuals who still remain adrift of the political and social processes of current juncture. KEYWORDS: Peripheral literature. Poetry battle. Spoken poetry. Transvestite. Bixarte. Considerações iniciais Historicamente, a poesia falada (spoken word) dos slam – fenômeno poético que se abrangeu pela cidade de São Paulo e pelo Brasil – assume ligação – ainda que indireta, por vezes – não somente com os aedos e rapsodos da antiga Grécia, como também com os repentistas e cordelistas do Nordeste brasileiro (NEVES, 2017). Assim, ao aproximar-se da canção popular e das batalhas de rap, as batalhas de poesia se firmam enquanto uma prática coletiva e, por isso, estabelece-se no limite entre o oral, o 80

Anais escrito e o verbal, tornando a performance do slamer – nome que se dá a quem participa das batalhas de poesia – um elemento primordial na apresentação de seus versos. Nas composições, não obstante abarquem uma infinidade de temáticas, é corriqueiro que os conteúdos temáticos, que aqui podem ser entendidos como os enredos, circunscrevam questões ligadas a pautas sociais e políticas da contemporaneidade comprometidas com a diversidade e, sobremaneira, com a inclusão de pessoas ainda (in)visíveis, a fim de expor as problemáticas da sociedade. A partir disso, este estudo objetiva analisar uma poesia falada que foi a vencedora do Slam Resistência, na edição de 2021, da artista Bixarte, nome artístico para Bianca Manicongo. Ao tomar esse ponto de partida, analisaremos a maneira como a poeta incorpora, em sua fala, um discurso pautado sob a resistência, pois coloca, em evidência, relações sociais problemáticas vividas por uma travesti face a uma sociedade ainda transfóbica. De forma metodológica, realizamos, em primeira instância, a transcrição de sua poesia – que se apresenta de forma falada em vídeo postado na plataforma YouTube – para o texto escrito; logo em seguida, iniciamos, assim, a análise em torno do texto escrito. Nesse sentido, partimos, então, de uma pesquisa de caráter qualitativo de vertente bibliográfica- interpretativa, pautada, teoricamente, em estudos de autores diversos, dentre os quais citamos: Freitas (2020), Ribeiro (2017), Neves (2017) e D’Alva (2014). Em último prisma, acreditamos que o presente estudo pode colaborar de forma positiva aos estudos de gênero e, acima de tudo, de literatura tida como marginal/periférica, pois realça e lança luz a respeito de sujeitos travestis que ainda sofrem com as mazelas históricas e que, além disso, são relegados ao silenciamento, à opressão e, por vezes, até mesmo à morte. Slam Poetry: à procura de contextualizações, definições e entendimentos Inicialmente, a Slam Poetry, comumente conhecida como slam, refere-se a uma manifestação específica de poesia falada dentro da cultura do Hip-Hop, que tem se estabelecido como uma cena cultural bastante crescente em todo o país. Criada entre o fim dos anos de 1980 e no decorrer da década de 1990, o slam tem sua gênese nas periferias dos Estados Unidos e, por desenvolver-se, em sua maioria, nos centros urbanos, o slam encontra- se ligado a atividades urbanas cuja interação social é indispensável, o que faz com que seja comumente relacionado ao Hip-Hop (ALVES; SOUZA, 2020). 81

Anais É válido frisar que, de acordo com Neves (2017), o termo “slam” é uma onomatopeia da língua inglesa usada para significar o som de uma batida de porta ou janela. A autora ainda ressalta que esse termo pode ser comparado à nossa “pá”, em língua portuguesa. Ademais, esse termo também pode se referir às etapas finais de torneios de, por exemplo, baseball, tênis, bridge e basquete. De todo modo, o que se sabe é que a onomatopeia foi emprestada, inicialmente, por Marc Kelly Smith – trabalhador de construção civil e poeta – para nomear o Uptown Poetry Slam, evento de cunho poético surgido em Chicago, por volta de 1984 (NEVES, 2017). Já no Brasil, por outro lado, Roberta Estrela D’Alva, atriz, diretora musical, pesquisadora, apresentadora de programa infantil na TV Cultura e slammer3 brasileira, foi a responsável por trazer, de acordo com Neves (2017), o “Poetry Slam”, mais especificamente em dezembro de 2008, ao fundar o ZAP! Slam, em São Paulo. Para ela, pode-se conceituar o Poetry Slam de amplas maneiras, a saber: [...] uma competição de poesia falada, um espaço para livre expressão poética, uma ágora onde questões da atualidade são debatidas ou até mesmo mais uma forma de entretenimento. De fato, é difícil defini-lo de maneira tão simplificada, pois, em seus 25 anos de existência, ele se tornou, além de um acontecimento poético, um movimento social, cultural, artístico que se expande progressivamente e é celebrado em comunidades em todo mundo (D’ALVA, 2014, p. 109). Sob uma nova linha de pensamento, também é plenamente cabível associar o evento dos slams a um mecanismo de “arena”, pois, nesses espaços, discursos poéticos se “digladiam” (NEVES, 2017). Em virtude disso, expressões do slam possuem a capacidade de tensionar práticas que se intercalam, a exemplo das marcas culturais, orais, escritas e visuais e, sendo assim, tais expressões situam-se no limite entre a literatura, a música, a arte e, acima de tudo, o ativismo social (FREITAS, 2020). Outro fator que não pode ser desconsiderado é o de que, para além de cenários acadêmicos e elitistas, o slam chega às praças, às escolas, às escadas de prédios e a marcantes espaços de circulação pública (ALVES; SOUZA, 2020). Freitas (2020) corrobora do mesmo pensamento ao destacar que a poesia, nas batalhas de slam, deixa o ambiente acadêmico e abandona, portanto, os modelos tradicionais de curadoria e de produção de sentido na 3 Na poesia falada, o “slammer” é o responsável por escrever os textos e memorizá-los antes da apresentação. 82

Anais medida em que flerta com a canção popular e, assim, torna-se prática coletiva que se estabelece entre o oral e o visual, tornando a performance um elemento primordial. Nesse diapasão, Alcade (2016) até arrisca dizer que, na contemporaneidade, a capital paulista conta com 25 slams, somando, aproximadamente, 50 slams espalhados em todo o Brasil. Os mais conhecidos, porém, são estes: ZAP! Slam; Slam da Guilhermina; Slam Resistência; Slam das Minas. Entretanto, esses movimentos não podem ser entendidos como construções livres e aleatórias no sentido concreto, pois as batalhas de poesia também possuem regras – mecanismo esse que, por sua vez, pode variar a depender do local. Apesar disso, é comum, conforme Freitas (2020) apregoa, algumas características similares, tais como: a necessidade de que os textos criados sejam sempre inéditos e autorais; a duração, que permanece em torno de três minutos, no máximo; a ausência de adereços e/ou instrumentos musicais; a presença de jurados especialistas ou, em alguns casos, o próprio público ouvinte é convidado a dar notas ao artista que variam entre zero e dez. Por outro lado, há, para D’Alva (2014), três regras básicas que norteiam todo e qualquer slam: “os poemas devem ser de autoria própria do poeta que vai apresentá-lo, deve ter no máximo três minutos e não devem ser utilizados figurinos, adereços, nem acompanhamento musical” (D’ALVA, 2014, p. 113). Por causa dessa última regra, Neves (2017) informa que os slammers precisam se concentrar bastante tanto na voz quanto no corpo, posto que não poderão utilizar-se de subterfúgios cênicos nas suas performances. Alcade (2016) informa que o objetivo final dos slams não é conseguir ganhar sucesso na mídia, tampouco obter dinheiro com seus eventos, mas, acima de tudo, o movimento objetiva se fazer ser ouvido. Para ele, compartilhar a poesia oral, ler, declamar, escrever, promover batalhas e transformar suas vivências em arte e educação por meio da linguagem são os maiores desafios dos slammers no mundo atual. Dessa forma, por se tratar de uma poesia falada, a linguagem oral, nesse sentido, assume total significância. Consoante à socióloga e teórica Djamila Ribeiro (2017), a linguagem pode ser compreendida como uma forma de manutenção do poder de um grupo maioritário sob outro minoritário, uma vez que se pode ouvir e/ou calar grupos sociais, reivindicar o lugar de fala e, também, o direito à voz de cada sujeito, o que permite que indivíduos mesclem, em suas composições, aspectos vividos por eles mesmos. Não à toa, a poesia falada pode ser um excelente meio para que populações, como a negra, falem sobre si, destacando o seu próprio local de fala a fim de mostrar a realidade e a 83

Anais negritude deste grupo específico, pois “quando pessoas negras estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida” (RIBEIRO, 2017, p. 43). Daí, pois, a necessidade de se refletir sobre o lugar de fala, haja vista que fazer isso implica a criação de uma postura ética reivindicada pela prática do slam. É notório, assim sendo, que os slammers produzem narrativas4 poéticas, em primeiro plano, escritas, para depois serem performadas. Estas produções são capazes de reafirmar suas origens, relatar suas próprias vivências, expor seus sentimentos, posições políticas e seus protestos enquanto seres que se inserem como porta-vozes de grupos socialmente marginalizados, conforme postula Barbosa (2020). O slam coloca-se, portanto, enquanto um local em que a pluralidade e a multiplicidade de vozes se mesclam, formando diversas narrativas de vida. Daí, portanto, o fato de que os slams partem sempre do princípio da coletividade, pois ele se constitui mediante contato com o outro (ALVES; SOUZA, 2020), uma vez que na maioria dos poemas, Freitas (2020) destaca que o significado dos textos se constitui não só por meio da narrativa, ecoado em primeira pessoa acerca da experiência individual e subjetiva da pessoa, como também por intermédio da relação existente entre a voz, o corpo e, por fim, as histórias do público que as ouve. A respeito disso, Paul Zumthor (2007) demonstra todo aquele que lê ou declama algo em voz alta consegue tocar o outro pelas orelhas, ao passo que aquele que escuta é, diretamente, capturado não só pela melodia, mas também pelo ritmo impresso durante o ato de declamação. Em suas próprias palavras, “escutar o outro é ouvir, no silêncio de si mesmo, sua voz que vem de outra parte” (ZUMTHOR, 2014, p. 81). Para o estudioso, à medida que nos colocamos à disposição para ouvir o outro, também escutamos a nós mesmos e ao nosso corpo, tendo em vista que, para o pesquisador francês, a voz trata-se de um corpo que se lança ao outro para poder, assim, retornar a si mesmo. Nessa ótica, a performance oral é, para além de linguagem verbal, também gestual, tomada por ritos que exigem a participação do corpo em uma espécie de “teatralidade” ou de “espetacularidade” (ZUMTHOR, 2007). 4 Neste estudo, adotamos a perspectiva de Barbosa (2020) ao dizer que narrar é, antes de tudo, contar histórias, uma forma peculiar de entender não só o mundo, mas a nós mesmos também, processo esse que se inicia desde mesmo a nossa infância, quando aprendemos a ouvir e a fabular. 84

Anais Apesar de tudo, Neves (2017) ressalta que a aceitação dos cânones tradicionais dessa literatura tida como periférica não é pacífica. Dentre algumas justificativas para isso, alguns apontam a “problemática” que reside no fato de essa poesia romper com a linguagem culta e optar por valorizar termos e gírias próprias da periferia. Stella (2015) confirma que essa literatura pode, de fato, provocar desconforto no contexto literário nacional, tendo em vista que os indivíduos periféricos passam, então, a reivindicar seu espaço na medida em que querem ser considerados como escritores. No entanto, a estudiosa reitera a necessidade e a importância da legitimação das múltiplas vozes que eclodem nesses espaços, indicando que é preciso conceber essa manifestação artística não como um elemento exótico e/ou, muito menos, de valor estético inferior. Com isso, percebemos que esse tipo específico de literatura, apesar de, por vezes, diminuída e menosprezada, desempenha o seu papel enquanto arte e, em virtude disso, é digna de ser estudada como qualquer outra. Diante disso, na seção seguinte, apresentaremos uma análise aprofundada acerca da poesia transcrita da artista Bixarte. O grito e a dor da travesti: uma análise da poesia falada de Bixarte Antes mesmo de partir para a análise da poesia, é crucial explicar, ainda que de forma breve, sobre a artista aqui tomada como referência para este estudo. Dessa forma, Bianca Manicongo, artisticamente identificada como ‘Bixarte’, é poetisa, escritora, atriz e uma das maiores expoentes do Rap Paraibano. Em dezembro de 2021, apresentou-se na edição Slam Resistência com seu texto extremamente potente ao destacar, por meio de sua poesia falada, a vivência, existência, resistência e dor de uma travesti face a uma sociedade ainda marcada pela heterossexualidade e enraizada por fortes preconceitos contra aqueles que fogem de normas preestabelecidas pelo convício social moderno. Na ocasião, convém ressaltar também que a poetisa foi a vencedora da batalha de poesia da edição de 2021. A seguir, apresentamos a transcrição da poesia da artista. Antes disso, consideramos relevante frisar que essa transcrição não anula nem exclui a possibilidade de o leitor procurar o vídeo para assisti-lo, uma vez que, ao transcrever o texto, seja ele qual for, sabemos que isso não oferece o pleno entendimento a respeito da forma como o sujeito se expressou, agiu e/ou esboçou reações – marcas típicas da oralidade. Além disso, ressaltamos que tentamos manter, ao máximo, o uso de termos utilizados pela própria artista, ou seja, 85

Anais não adequamos certos termos para a norma-padrão, pois acreditamos que, caso o fizéssemos, desmereceríamos a estrutura linguístico-textual pretendida pela poeta. Quadro 1 - Transcrição5 da poesia falada de Bixarte Juro que em cada esquina e as brancas rica bem casada tenho medo de virar inclusive economicamente sossegada. pois na última que virei E eu me pergunto até onde a pobreza eles tentaram me matar. vai ser a falta de consciência que eles têm cês sabe burguesia safada Disse que não me amava que da hipocrisia cês são tudo refém. não me via na TV que eu era muito trava e só queria me cumê. Eu lembro na noite passada ele chegava perto de mim Levantou a mão bateu ele passava a mão no meu corpo o ferro logo puxou e eu dizia Deus que ele leve o meu celular dois tiro foi disparado e que eu não chegue em casa um corpo morto Pá pá pois eu não quero ser o motivo da minha mãe mais uma trava que ele matou. chorar. Eu não quero chegar em casa A polícia inocenta quem arranca coração com uma vela nos peitos braços cruzados e nunca mais a minha voz ela escutar. travesti não tá segura nem na igreja nem no busão. É por isso que eu falo Mainha, eu te prometo que eu vou ser muito só enxergo a maldade feliz nasça com o seu corpo cis e conheça a liberdade. o meu nome é Bixarte eu não sou prostituta Homem branco colonizador eu sou poeta e atriz. é visto como herói da pátria E mais: vocês não vão encontrar o meu corpo até quando a preta no altar abandonou. preso numa viatura E falo isso porque tô cansada se vocês me queriam fazendo programa 5 SLAM RESISTÊNCIA. Bixarte (vencedora) - Final Slam Resistência - dezembro 2021. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3EehckxB2qU. Acesso em: 15. mai. 2022. 86

Anais de ver mainha sempre sendo as outras prazer: eu sou a própria literatura FONTE: Os autores (2022) Logo na primeira linha do verso, há um prenúncio de uma afirmação que será feita em virtude de um medo do eu-lírico ao dizer: “juro que em cada esquina tenho medo de virar”. Até então, não se sabe quem é esse sujeito que diz sentir medo de algo que, aparentemente, é natural à maioria das pessoas. Em seguida, o medo sentido é justificado, no poema, pela voz que declama quase ter morrido simplesmente pelo fato de ter atravessado uma esquina: “pois na última que virei / eles tentaram me matar”. É pertinente perceber que há lacunas nesse primeiro momento da poesia: primeiro porque o leitor ainda não sabe o porquê determinada pessoa teria medo pelo simples ato de atravessar um lugar e, segundo, pelo uso do “eles” ao apontá-los como responsáveis por tentar matar esse ser. Não se sabe ainda, portanto, a quem o eu-lírico estaria se referindo. Não obstante o leitor possa vir a se sentir perdido nesse primeiro caso, logo adiante tudo lhe é entregue, uma vez que o eu-lírico, ao contar uma história, revelou que alguém lhe disse que ela era muito “trava” e que só servia para “comer”. Ao leitor se revela, pela primeira vez, o sujeito que parece gritar de dor, o tempo inteiro, na poesia. A própria abreviação utilizada, que possui, em seu valor semântico, um valor negativo e transfóbico, foi descrita pelo eu-lírico desse modo porque é justamente a forma como as outras pessoas se referiam a ela. Ao dar prosseguimento à análise, o que se vê em seguida é uma apresentação típica de violência física à travesti. O “levantar a mão” já indica esse ato agressivo e, para realçar o aspecto da agressão, inclui-se a morte desse sujeito: “dois tiros foi disparado”. A respeito disso, de acordo com o relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU), responsável por monitorar dados globalmente levantados por instituições trans e LGBTQIA+, 70% de todos os assassinatos registrados aconteceram na América do Sul e Central, sendo 33% no Brasil (PINHEIRO6, 2022). 6 Informações a respeito disso podem ser buscadas na matéria redigida por Ester Pinheiro, via “Brasil de Fato”, disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2022/01/23/ha-13-anos-no-topo-da- lista-brasil-continua-sendo-o-pais-que-mais-mata-pessoas-trans-no-mundo. Acesso em: 16. jun. 2022. 87

Anais É interessante perceber também que, nos trechos, surge a utilização oculta do “ele” como o autor do assassinato “mais uma trava que ele matou”. Pode-se inferir que, assim como no caso anterior, apesar de haver uma ocultação de quem seria esse ser, trata-se da própria sociedade como um todo e, de modo mais afunilado, de transfóbicos que se consideram no direito de decidir o fim da vida dessas pessoas. Face à menção ao assassinato brutal de travestis, o eu-lírico realiza uma crítica àqueles que, por lei, deveria proteger as pessoas: os policiais. Pode-se notar isso a partir do verso “a polícia inocenta quem arranca coração”, que desmascara e demonstra um lado frio e cruel dos oficiais – estes sendo os indivíduos que deveriam colocar-se à disposição para culpabilizar os que são preconceituosos. Esse viés de crítica do eu-lírico persiste na mesma construção ao mencionar que travestis não se encontram seguras nem na igreja – templo este que poderia ser acolhida – nem no ônibus, local público e, apenas aparentemente, livre a todos. Além disso, surge ainda a ideia apontada de que nascer em um corpo cis implica conhecer a liberdade. A cisgeneridade, grosso modo, pode ser compreendida como a condição de qualquer pessoa em que sua identidade de gênero corresponda, necessariamente, ao gênero que lhe foi dado no nascimento. A travesti, neste contexto, não conhece a liberdade justamente por não apresentar essa correspondência com a condição que lhe foi imposta desde a sua gênese. Para além disso, o eu-lírico contina a tecer críticas ferrenhas a outras estruturas sociais, como a do homem branco, aqui apresentado como o “colonizador”, que consegue ser visto como herói apesar de todo o sofrimento que causou aos colonizados. Para isso, o eu- lírico compara essa relação colonizadora com a de uma mulher preta quando é abandonada no altar, pois, como se sabe, mulheres pretas, ao longo da história, foram preteridas, mas não preferidas, ao passo que mulheres brancas, por outro lado, casam-se e vivem uma vida econômica estável. Há, nessa ótica, uma disparidade de cor bastante notória. Encaminhando-se ao final da poesia, o eu-lírico, desta vez em primeira pessoa e abandonando o uso do “ele(s)”, conta uma história a partir de um relato: em uma noite, determinado sujeito – que não foi nomeado – passava a mão pelo corpo dessa mulher sem o seu consentimento, haja vista o medo forte que sentia a ponto de clamar “que ele leve o meu celular / e que eu não chegue um corpo morto”. Nesse encontro, o sujeito sente-se aflito e perturbado em virtude da expectativa de que poderia morrer naquele lugar pelas mãos dessa pessoa que passava por seu corpo. Nota-se, nesse viés, o conhecimento que as travestis já têm acerca das estatísticas alarmantes sobre a morte de seu grupo. 88

Anais Encerra-se a poesia, então, com uma promessa carregada de um tom lírico e extremamente emotivo: a promessa à mãe de que essa travesti seria muito feliz – que vai contra a ideia de que travestis são infelizes e morrem antes de alcançar determinado patamar de felicidade. Com isso, ela conclui ao mostrar-se como sujeito autônomo e dona de si na medida em que se apresenta como “Bixarte”, mas não sendo prostituta, mas poeta e atriz. Aqui, o eu-lírico demarca, com nitidez, que não é prostituta porque é comum que as pessoas associam as travestis diretamente ao ramo da prostituição, conforme ressalta Benedetti (2013). Para intensificar essa relação, o eu-lírico afirma que não morrerá, que não será mais um número diante dos casos de assassinato contra travestis, pois a sociedade não irá encontrar o corpo dessa pessoa em uma viatura – remetendo à prisão – nem no ócio da prostituição, mas, acima de tudo, irá encontrar na literatura. Compreende-se, nesse sentido, que o próprio eu-lírico vê-se como poeta pertencente às artes e, de modo mais específico, à literatura, pois há um entendimento de que, nesse espaço, poderá ter mais liberdade para falar sobre si mesma e sobre suas vivências e experiências enquanto sujeito digno de amar, de viver e, acima de tudo, de existir. Considerações finais Nesta pesquisa, pudemos compreender as contextualizações históricas a respeito do surgimento das batalhas de poesia, de modo a refletir sobre a sua gênese, primeiros movimentos e, sobretudo, as características que norteiam esse movimento poético que tem se espalhado pelo Brasil ao longo dos últimos anos. Ressaltamos, também, o fato de que essa literatura tida como marginal e/ou periférica ainda não é, amplamente, aceita pelos cânones literários atuais. Apesar disso, conforme foi destacado, os slamers não buscam nenhuma aceitação, tampouco fama com seus textos, uma vez que o objetivo principal vai bastante além desse ideal: que é o de poder contar, por si mesmo, vivências e experiências de luta, dor e resistência do grupo social a que pertencem/convivem. Em virtude disso, notamos a importância desse movimento na medida em que surge como um espaço de voz e de visibilidade para todos aqueles que, por séculos, tiveram de permanecer relegados a processos de silenciamento e, também, de invisibilidade. Nas batalhas, portanto, abraça-se a ideia da coletividade, pois uns precisam dos outros e vice- versa. 89

Anais O objetivo geral desta pesquisa foi alcançado a partir do momento em que se realizou a análise em torno da poesia da poeta Bixarte. Com essa análise, tornou-se visível que a linguagem empregada pela artista, conforme vimos, é carregada de uma potência artística capaz de transformar dor e tristeza em arte. Reiteramos, por fim, a necessidade de que outros trabalhos, como este aqui proposto, possam surgir cada vez mais, com o propósito de que as batalhas de poesias tenham seu lugar de privilégio no terreno da literatura brasileira e, ademais, artistas diversos espalhados pelo mundo à fora consigam encontrar, na literatura, um caminho para a (sobre)vivência, debate e reflexão tanto sobre si quanto sobre o outro. REFERÊNCIAS ALCALDE, Emerson. Slam na Educação: a poesia escrita com giz e dita com o coração. In: ALCALDE, Emerson; ASSUNÇÃO, Cristina; MOTTA, Rodrigo; CHAPÉU, Uilian (Orgs.). Slam da Guilhermina: três ponto zero. 1.ed., São Paulo: 2016. ALVES, Izandra; SOUZA, Bruna. O Slam como representação de literatura marginal e manifestação cultural na escola. Travessias, v. 14, n. 2, p. 233-250, 2020. BARBOSA, Liége Freitas. Entre Peleia e Chamego: Um estudo de práticas, performances e ambivalências em batalhas de poesia do SLAM no RS. 234 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, Programa de Pós- Graduação em Educação, Porto Alegre, BR-RS, 2020. BENEDETTI, Marcos. A batalha e o corpo: Breves reflexões sobre travestis e prostituição. Sexualidad, ciudadania y Derechos Humanos en América Latina, p. 51, 2013. D’ALVA, Roberta Estrela. Teatro hip-hop: a performance poética do ator-MC. São Paulo: Perspectiva, 2014. FREITAS, Daniela Silva de. Slam Resistência: poesia, cidadania e insurgência. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, DF, n. 59, p. 1-15, 2020. MANICONGO, Bianca. Quando comecei recitar poesia, sempre sonhei em pisar nesse lugar. 4. jan. 2021. Instagram: @bixarte. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CYUl43ejHJh/. Acesso em: 15. mai. 2022. NEVES, Cynthia Agra de Brito. Slams – letramentos literários de reexistência ao/no mundo contemporâneo. Linha D'Água (Online), São Paulo, v. 30, n. 2, p. 92-112, out. 2017. RIBEIRO, Djamila. Feminismos Plurais: O que é lugar de fala. Belo Horizonte: Letramento, 2017. 90

Anais SLAM RESISTÊNCIA. Bixarte (vencedora) - Final Slam Resistência - dezembro 2021. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3EehckxB2qU. Acesso em: 15. mai. 2022. STELLA, Marcello Giovanni Pocai. A batalha da poesia: o slam da Guilhermina e os campeonatos de poesia falada em São Paulo. In: Ponto Urbe – Revista do núcleo de antropologia urbana da USP. São Paulo, 2015. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 91

AS AVENTURAS DE BAMBOLINA: LITERATURA INFANTIL E LEITURA DE IMAGENS EM CONTEXTO DE ESCOLA PÚBLICA Júlio César Lima FERNANDES (UNICAP)1 André Luiz de ARAÚJO (UNICAP)2 RESUMO Desde o mês de maio do ano 2017, a Escola Municipal Lúcia Giovanna Duarte de Melo, em João Pessoa - PB, desenvolve junto às crianças matriculadas, um projeto de leitura, efetivado pela parceria com a Universidade Federal da Paraíba. Esta ação pedagógica permanente têm sido um suporte que abarca momentos de formação aos professores, como também a aplicação de estratégias de leitura literária. A proposta presente é apresentar aos leitores o sub-projeto de leitura que foi aplicado nas turmas do infantil 5 durante o ano de 2019. Palavras-chave: Leitura, Literatura, escola. ABSTRACT Since May 2017, the Lúcia Giovanna Duarte de Melo Municipal School has developed a reading project with the enrolled children, carried out in partnership with the Federal University of Paraíba. This permanent pedagogical action has been a support that encompasses moments of teacher training, as well as the application of literary reading 1 Doutorando em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. 2 Professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. 92

Anais strategies. The present proposal is to present to readers the reading sub-project that was applied in the children's 5 classes during the year 2019. KEYWORDS: Reading, Literature, school. 1 Introdução Dentro do grande projeto de letramento literário “Lúcia Giovanna no mundo da Literatura Infantil”, há quatro subprojetos diferentes, sendo cada um deles focado em um ano (Período) específico dos anos iniciais da Educação Básica. Todos esses subprojetos convergem na ideia de propiciar experiências literárias significativas para os leitores em formação. O presente subprojeto, visa a descrever e refletir sobre as ações desenvolvidas junto às crianças das turmas do Pré-II, com idade entre 5 e 6 anos. Ao todo, há três turmas, com mais ou menos vinte e seis alunos em cada uma delas. O que se sabe sobre os pequenos, em relação à experiência literária, é que nem todos possuem familiaridade com a leitura, embora seja notável o gosto de folhear livros na biblioteca e na sala de aula e de apreciar os momentos de contação que acontecem durante as aulas. Por essa razão, as atividades de contação de histórias contribuem significantemente para a formação leitora desses alunos que, salvo exceções, não teriam acesso à literatura por outros meios. Falando especificamente sobre o livro que subsidia o subprojeto em pauta, foi adotada a obra As Aventuras de Bambolina, escrita e ilustrada por Michele Iacocca, publicado no Brasil em 2006 pela Editora Ática. A supramencionada obra é um livro de imagem (sem palavras escritas, narrado exclusivamente por ilustrações) que aborda questões sensíveis como abandono, sentimento de solidão, descarte de bens materiais e o problema de crianças em situação de vulnerabilidade. O livro faz isso retratando várias situações vividas pela personagem principal, Bambolina, uma boneca de pano que, de início, pertence a um menino. A história começa quando o garoto dono de Bambolina ganha de presente uma nova boneca, mais moderna, dessa vez de corda, e joga a antiga fora. A partir daí, se inicia, de fato, \"as aventuras de Bambolina\": ela, a boneca, passa por muitos donos e lugares (artista de rua, crianças sem teto, policiais, delegacia) e acaba sendo abandonada por todos, até ser encontrada por um lixeiro e levada por ele a um restaurador/colecionador, que cuida dela e a transforma em estrela de um show. 93

Anais A escolha da história de Bambolina não foi feita ao acaso. A literatura infantil possibilita a sensibilização da criança frente às questões cruciais de seu desenvolvimento psíquico e emocional. Nesse contexto, As Aventuras de Bambolina permite que os alunos reflitam sobre os temas abordados no enredo e também consigam projetar suas próprias vivências e experiências. Nas palavras de Heloíse Martins Machado: Quando ouvimos histórias, podemos sentir as emoções das personagens como a alegria, a tristeza, a raiva, o pavor, a segurança, o desconforto, a tranquilidade, entre outras. Dessa forma, ler e contar histórias é suscitar o imaginário, ter curiosidade para ser respondida em meio a tantas perguntas, encontro de deias para resolver os conflitos das personagens, possibilitar a vivência de impasses de nossa sociedade e conhecer possibilidades de soluções; é se identificar com algumas características das personagens e, assim, iniciar um processo de criação de sua própria identidade. (p. 7638- 7639, MACHADO, 2015). E é pensando justamente nessa intersecção entre literatura e a vida cotidiana da criança que o subprojeto se inscreve: permitindo que, depois da contação da história, o aluno leve para a sua casa o livro e uma boneca-réplica da personagem principal, prolonga-se a experiência literária de um jeito lúdico e são envolvidos outros agentes, como pais e familiares, uma vez que as crianças poderão contar a eles suas próprias versões da história. Todos os detalhes da ação serão descritos no tópico destinado à Metodologia. Por ora, é importante salientar o papel crucial que as professoras desempenham ao longo da execução das atividades. Reconhecendo que cabe ao professor a tarefa de mediar o processo de aprendizagem e letramento, ele deve instigar a curiosidade dos alunos e tomar para si a responsabilidade de prover um contato agradável com a leitura, intelectualmente ativo e desafiador. Ainda segundo Machado, [...] o papel do educador é propiciar experiências positivas com os livros e suas histórias de forma lúdica e divertida, a fim de despertar a curiosidade das crianças para o mundo letrado, instigando-os assim a se tornarem leitores críticos e encantados pelo mundo da leitura. É preciso, então, olhar para a literatura infantil, principalmente nessa faixa etária de 6 anos, compreendendo-a como um recurso essencial para o processo de alfabetização e letramento, bem como para o desenvolvimento social e psicológico infantil, uma vez que amplia sua criatividade, leitura de mundo, linguagem e imaginação. (p. 7650, MACHADO, 2015) 94

Anais Assim, o subprojeto As Aventuras de Bambolina se mostra mais do que necessário, uma vez que ele se integra aos objetivos escolares de alfabetização, além de cumprir a função de apresentar o universo da literatura para as crianças e também de torná-las sujeitos de suas próprias histórias, visto que elas poderão viver, na prática, suas próprias aventuras com a personagem Bambolina. 2 Objetivos a. Experienciar o texto literário; b. Identificar e descrever personagens; c. Compreender as relações de sentido entre as imagens; d. Exercitar a linguagem oral e escrita; e. Aumentar o vocabulário a partir das discussões feitas em sala; f. Envolver a família em processos de leitura; g. Aguçar a imaginação e a criatividade. 3 Recursos a. Livro As Aventuras de Bambolina, de Michele Iacocca; b. Sacola de tecido estampado; c. Boneca de pano, de cerca de um metro, representando a personagem Bambolina; d. Ficha de leitura. 4 Metodologia A execução do subprojeto As Aventuras de Bambolina se divide em três momentos diferentes: o antes, que funciona como uma etapa motivadora, que tem como objetivo fazer com que os alunos “entrem no clima” da proposta; o durante, que consiste na própria contação da história e de tudo que envolve essa contação; e o depois, que mostra como a literatura se faz presente depois da história ter sido contada, como os alunos prolongam essa experiência. 4.1 Antes 95

Anais Antes da leitura da história e de qualquer ação serem realizadas, é preciso envolver a família dos alunos para que entendam como funcionarão as ações e atividades. Assim, faz-se necessário realizar uma reunião com os pais dos alunos para explicar os objetivos deste subprojeto e também para apresentar o livro norteador (As Aventuras de Bambolina) e a boneca-personagem da Bambolina. Em linhas gerais, deve-se dizer que a boneca é a personagem principal do livro trabalhado em aula e que a ideia do subprojeto é propiciar uma experiência literária significativa a partir da leitura e da possibilidade de levar a boneca- personagem junto do livro para a casa, para que as crianças recontem a história e criem suas próprias aventuras. Uma vez que este passo seja feito, coloca-se em prática, finalmente, a ação junto as crianças. Deve-se mostrar o livro buscando o encantamento. É necessário guiar os olhos das crianças para que elas se interessem pela história contida dentro do livro. Assim, deve-se ressaltar os aspectos visuais da capa, fazendo com que os alunos se atentem às cores, aos elementos da capa, aos elementos pré-textuais presentes no livro e também às personagens principais, além de, claro, fazer com que eles percebam que ler um texto sem palavras também é uma forma de leitura. Recomenda-se que essa primeira aproximação entre os alunos e o livro aconteça na sala de aula. As crianças e as professoras mediadoras podem se sentar em círculo e, nessa formação, trazer à baila a discussão de alguns dos temas do livro e perguntar o que enxergam na imagem (quem elas acham que é “Bambolina”; o que elas veem na capa, se sabem onde está escrito o nome do autor e do ilustrador da obra, etc). 4.2 Durante O primeiro contato das crianças com o livro As Aventuras de Bambolina deve ser mediado pela professora. Ele pode ser apresentado aos alunos junto da réplica da personagem. É indicado que a professora-mediadora faça perguntas que agucem a curiosidade dos pequenos, direcionando seus olhares para detalhes de caracterização e composição da personagem. Algumas das perguntas sugeridas são: a. Do que vocês acham que se trata essa história? 96


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