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ANAIS COLINT Definitivo

Published by biblioteca, 2022-11-14 14:14:28

Description: ANAIS COLINT Definitivo

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Anais querer pôr um pouco de ordem nas hipocrisias” (FARIA, 1997, p. 129). Francisco era fruto da libertação daquele corpo de Camilla que, desde muito cedo, fora privado de conhecer a concretização de seus verdadeiros desejos, de viver conforme lhe era conveniente. Por fim, Camilla se casa com Alexandre Silveira, que faz com que Camilla perceba a felicidade de uma forma mais leve e serena. Alexandre mostrava-se menos ligado a questões corpóreas, preocupando-se mais como a dimensão de sentimentos de bem-estar, o que que a faz refletir sobre os seus casamentos anteriores e quais marcas foram lhe impostas mediante o desenrolar de cada um. Considerando o período que a mesma se envolveu com outros homens com os quais não veio a se casar: Pensa-se que uma mulher se deita com um homem sempre pelo mesmo motivo, mas não é assim. Há mil razões para uma mulher receber um homem no seu corpo. Ao longo da minha aventurosa vida deitei-me por obrigação, por paixão, por medo, por necessidade, por amor ou por prazer, mas nunca, como com o Alexandre, por ternura infinita, por repouso secreto, por procura da paz. (FARIA, 1997, p. 132). Perante esse pensamento e sentimento expresso pela protagonista sobre as suas vivências no trecho anterior, é possível perceber a transição de um corpo disciplinado para um corpo liberado. Conforme salienta Xavier (2007, p. 181), “ao associar liberdade e solidão, assinala um preço que o corpo liberado deve pagar”. Essa transição do corpo da protagonista a leva a situações difíceis que só uma mulher com coragem de transgredir consegue superar para alcançar sua liberdade. Essa liberdade tem um preço que marcou as características do corpo da protagonista, ao romper com o tradicionalismo para tornar-se uma nova mulher dona do seu próprio caminho. Considerações finais Considerando o objetivo desse trabalho, pode-se observar a importância da exposição de obras da autoria feminina, há muito silenciadas por uma classe dominante, no intuito de tê-las descobertas em sua temática e relacionando-as ao estudo de gênero. O tema abordado nesse trabalho, além de apresentar questões em voga na contemporaneidade, ainda deixa margem para questões da crítica literária, por se tratar de um romance de autoria feminina que não está dentro das obras da conjuntura canônica, de modo que faz parte de uma escrita que imprime uma representação de minorias, enfatizando questões relativas à mulher. 347

Anais As mulheres, ao longo da história, sempre sofreram consequências em decorrência das imposições do patriarcado. Diante da luta por direitos e deveres em uma sociedade que ainda reverbera uma cultura patriarcal que cria ditaduras corporais, psicológicas ou sociais, o estudo de obras escritas por mulheres e que trazem questões da condição da mulher pode ser considerado uma forma de romper com o tradicional, que, na atualidade, ainda traz consequências para com o sexo feminino, colocando-o em condição subalterna. Nessa perspectiva, por meio do texto literário, é possível relacionar as multifaces da vida da protagonista com as características de seu corpo, que passa por uma transição. Inicialmente, foi observado elementos de um corpo disciplinado e, após um processo de construção da identidade, percebe-se traços de um corpo liberado, emancipado, o qual é resultado de muitos processos e rompimentos com a tradição. REFERÊNCIAS DUARTE, Constância Lima. Feminismo: uma história a ser contada. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. FARIA, Rosa Lobato de. Os três Casamentos de Camilla S. Dom Quixote – Ed. Grupo Leya, Portugal, 1997. GROSZ, Elizabeth. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu (14). Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2000, p. 45-86. SCHMIDT, Rita Terezinha. Na literatura, mulheres que reescrevem a nação. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. PINTO, C. Feminismo, história e poder. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 18, n. 36, p. 15-23, jun. 2010. XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2007. 208 p. ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Literatura e Gênero: a construção da identidade feminina. 2. Ed. Caixas do Sul, RS: Educs, 2003. 348

A VISÃO DO FEMININO NAS POESIAS CONTEMPORÂNEAS DE ANGÉLICA FREITAS Bianca Socorro Salomão SANTIAGO (UEPA/PPGELL)1 Raphael Bessa FERREIRA (UEPA/PPGELL)2 RESUMO O presente estudo tem o intuito de centrar-se na manifestação poética contemporânea de autoria feminina, tendo como foco principal as poesias de Angélica Freitas. Buscou-se analisar alguns dos poemas presentes no livro Um útero é do tamanho de um punho, publicado no ano de 2012, o qual apresenta características da estética modernista que serão analisados com base no aporte teórico do livro Introdução à estilística, de Martins (2000). A relevância deste estudo evidencia-se em buscar a imagem da visão feminina nos textos poéticos contemporâneos de Angélica Freitas, os quais tem um estilo modernista que utiliza como pontos de partida elementos cotidianos e clichês, provocando no leitor reflexões 1 Mestranda do programa de pós-graduação em Língua Portuguesa e suas respectivas literaturas (UEPA/PPGELL). Especialista em Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa e Literatura pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (2021). Graduada em Letras, Habilitação em Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Pará (2020). E-mail: [email protected] 2 Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Mestre em Literatura Brasileira pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (2010). Graduado em Letras, Habilitação em Língua Portuguesa, pela Universidade da Amazônia (2008). Professor Adjunto I (TIDE) da área de Literatura do Departamento de Língua e Literatura da Universidade do Estado do Pará, atuando na Graduação em Letras - Língua Portuguesa - e no Programa de Pós-graduação em Letras - Mestrado Profissional em Ensino de Língua Portuguesa e suas respectivas Literaturas (PPGELL). E-mail: [email protected] 349

Anais acerca dos paradigmas impostos ao universo feminino. Desse modo, o interesse desse estudo parte do pressuposto da visão feminista e do estudo estilístico, para entender como a poesia de Angélica Freitas pretende desmistificar certos “padrões sociais” que circundam o universo feminino e a construção do que é ser mulher nos dias de hoje, tendo as referências que sinalizam o sujeito feminino, permitindo assim, direcionar um novo olhar para possibilidades de ressignificação do modo de existir e entender de que forma Angélica Freitas impacta o interlocutor e o faz refletir acerca da questão do feminino na sociedade atual. Palavras-chave: Angélica Freitas. Um útero é do tamanho de um punho. Autoria feminina. Visão feminina. Contexto social. ABSTRACT The present study aims to focus on the contemporary poetic manifestation of female authorship, having as main focus the poetry of Angélica Freitas. We sought to analyze some of the poems present in the book A uterus is the size of a fist, published in 2012, which presents characteristics of modernist aesthetics that will be analyzed based on the theoretical contribution of the book Introduction to Stylistics, by Martins (2000). ). The relevance of this study is evidenced in seeking the image of the feminine vision in the contemporary poetic texts of Angélica Freitas, which has a modernist style that uses everyday elements and clichés as starting points, provoking reflections in the reader about the paradigms imposed on the feminine universe. . In this way, the interest of this study starts from the assumption of the feminist vision and the stylistic study, to understand how the poetry of Angélica Freitas intends to demystify certain \"social patterns\" that surround the feminine universe and the construction of what it is to be a woman nowadays. , having references that signal the female subject, thus allowing to direct a new look at possibilities of re-signification of the way of existing and understand how Angélica Freitas impacts the interlocutor and makes him reflect on the issue of the feminine in today's society. Keywords: Angelica Freitas. A uterus is the size of a fist. Female authorship. Feminine vision. Social context. Considerações iniciais Este trabalho fora desenvolvido a partir do desafio que é ser e tornar-se mulher no século XXI, pois é preciso pensar o ser mulher a partir do contexto social, uma vez que os pensamentos falocêntricos, machistas e patriarcais agem na criação de representações, expectativas, determinações, imposições e silenciamentos sobre o que é ser mulher na sociedade. Com o intuito de pensar como agem as mulheres que problematizam tais representações, a literatura apresenta-se como um dos grandes espaços de contestação dos discursos historicamente combatidos na luta das mulheres. 350

Anais A figura histórica do feminino presente na literatura dos séculos passados, por exemplo, expõe um cenário literário sem representatividade feminina em suas obras. A composição da narrativa sobre a mulher estava a cargo de escritores homens, que insuficientemente versavam acerca das mulheres, mas que revelavam a exclusão e repressão feminina nos meios acadêmicos e sociais. Envolta em uma sociedade excludente, há fomento a uma construção social que desprivilegia a mulher como agente das escritas literárias, inviabilizando a sua emancipação intelectual ao longo da história. Assim sendo, foi elencada como representante dessa nova cena de contribuições literárias femininas a poeta gaúcha Angélica Freitas, com a obra Um útero é do tamanho de um punho, esperando, desse modo, que o diálogo entre literatura e performance contribua para as possibilidades de não só apresentar produções feitas por mulheres, mas como tais objetos podem confluir em um diálogo entre si. Mais do que uma apresentação, depreendermos de que modo essas mulheres representam imposições que foram historicamente construídas. Logo, este trabalho se propõe a analisar alguns poemas do livro Um útero é do tamanho de um punho, além de considerações estéticas e estilísticas com base em Martins (2000). Outrossim, este trabalho centrar-se-á na investigação de fundo discursivo empreendida pela autora, quanto a aspectos de gênero e do feminino na sociedade contemporânea. Angélica e o ser mulher em seus livros Angélica Freitas é um grande nome na escrita literária, e seu primeiro conjunto de poemas é intitulado Rilke Shake (2007), a autora analisava com tom irônico e divertido a tradição poética e a cultura dita popular (daí advém o título do livro, uma alusão ao poema alemão Rainer Maria Rilke e o “shake” que se cria a partir dessa mistura). Seu segundo livro é o estudo deste artigo, intitulado “Um útero é do tamanho de um punho”, lançado primeiro pela Cosac Naify em 2012, e depois reeditado em 2017 pela Companhia das Letras. Angélica escreve os versos do segundo livro a partir de uma inquietação: o modo como as mulheres são tratadas na sociedade, os estereótipos associados ao sexo feminino e às violências submetidas ao corpo feminino. Do início ao fim é uma obra sobre o que é ser mulher, escrita por uma mulher, mas que não é “coisa de mulher” em seu sentido menor. O livro é dividido em 7 subtítulos ou partes que agrupam poemas afins ou nomeiam poemas 351

Anais longos: Uma mulher limpa, Mulher de, A mulher é uma construção, Um útero é do tamanho de um punho, 3 poemas com o auxílio do Google, Argentina e O livro rosa do coração dos trouxas. Destas, a maioria traz o vocábulo “mulher” em destaque, seja no título das mesmas – como se percebe nas três primeiras – ou nos títulos dos poemas que as compõem, como ocorre em “3 poemas com o auxílio do Google”, que se divide em “A mulher vai”, “A mulher pensa” e “A mulher quer”. Em “Um útero é do tamanho de um punho”, se o vocábulo não surge expressamente, em compensação, a mulher se faz metonimicamente representada pelo seu órgão genital. Nas duas seções finais, “Argentina” pode comparecer como adjetivo feminino substantivado – [a mulher] argentina –, além da referência ao país sul-americano, e a cor rosa em “O livro rosa do coração dos trouxas”, que pode fazer referência irônica aos estereótipos impostos à figura feminina na sociedade contemporânea. Desse modo, tal padrão cromático se associa quase automaticamente ao feminino em sua versão mais “comportada” – “trouxa”, portanto, segundo uma visão transgressora e revolucionária da realidade. Conforme Freitas (2012), as mulheres, quase sempre, recebem rótulos categóricos como “uma mulher gorda”, “uma mulher limpa”, “mulher de vermelho”, “uma mulher sóbria”, e, por vezes, subvertem-nos, como a Amélia que “fugiu com a mulher barbada”. Sendo assim, Angélica busca representar um novo cenário de poesia contemporânea, trazendo em seus versos discussões do dia a dia que passam despercebidos pela naturalização de falas machistas. Um útero é do tamanho de um punho demonstra então o cenário de concentração de acidez em Angélica Freitas, não podendo definir que a poeta se torna monotemática ou limitada, pois consegue abordar as questões do feminino, como expusemos de início, sob diversos aspectos e de modos sempre inovadores e contundentes – às vezes um pouco sem “modos”, em desacordo com a educação formal da família/burguesia tradicional. A estilística presente nos poemas Em suas obras, Angélica tem uma poética caracterizada pela retomada da estética modernista, que pode ser observada nos versos livres, no experimentalismo linguístico, na linguagem coloquial, na paródia de referências eruditas e populares, na irreverência, no 352

Anais poema-piada e iconoclastia. Outra qualidade é a temática feminista e de gênero, levando aos poemas ironia e uma comicidade agridoce. Esta última é muito presente no livro analisado, pois os poemas abordam as representações do feminino a partir do exame dos discursos e de seus mecanismos de valoração e distinção entre gêneros. Sendo a Estilística a parte dos estudos da linguagem que se preocupa com o estilo, podemos utilizá-la para fins estéticos, conferindo à palavra dados emotivos. A linguagem afetiva, por exemplo, é representada por esse recurso, no qual pode-se observar os processos de manipulação da linguagem utilizados para extrapolar a mera função de informar. Na Estilística, há um significativo contraste entre o emocional e o intelectivo, constituindo uma relação de complementaridade entre o seu estudo e o estudo da Gramática, que se refere à linguagem de uma maneira mais normativa e sistematizada. Muito associa-se o estilo a uma ideia de deformação da norma linguística, o que não é necessariamente uma verdade, visto que existe uma grande diferença entre traço estilístico e erro gramatical. O traço estilístico dá-se quando há uma intenção estético-expressiva que justifique o desvio da norma gramatical. O erro gramatical, por sua vez, não apresenta uma intenção estética, pois configura-se apenas como um desconhecimento das regras. Assim sendo, Martins acredita que [...] explicar os usos da linguagem que ultrapassam a função puramente denotativa, com maior exatidão e sem o propósito normativo que caracterizou a retorica. Contudo, não se logrou ainda um método rigoroso que assegure sua condição de ciência e o seu objeto não está satisfatoriamente delimitado. (MARTINS, 2000, p.22). Sendo assim, os poemas aqui analisados irão além do escrito, do gramatical e dos efeitos sonoros, eles irão ser analisados com base em suas conotações, no dito pelo não dito e em seu processo, pois O estilo é compreendido como uma ênfase (expressiva, afetiva ou estética) acrescentada à informação vinculada pela estrutura linguística sem alterações de sentido. O que quer dizer que a língua exprime e o estilo realça. (RIFFATERRE apud MARTINS, 2000, p. 2). Dessa forma, as análises serão iniciadas com o poema “mulher de vermelho”, e nele será possível perceber os traços estilísticos nas escolhas lexicais: mulher de vermelho O que será que ela quer 353

Anais essa mulher de vermelho alguma coisa ela quer pra ter posto esse vestido não pode ser apenas uma escolha casual podia ser um amarelo verde ou talvez azul mas ela escolheu vermelho ela sabe o que ela quer e ela escolheu vestido e ela é uma mulher então com base nesses fatos eu já posso afirmar que conheço o seu desejo caro watson, elementar: o que ela quer sou euzinho sou euzinho o que ela quer só pode ser euzinho o que mais podia ser. (FREITAS, 2017, p. 31). No âmbito formal, o poema inicia com o título “mulher”, grafado com “m” minúsculo, sendo ele tomado como substantivo comum, designando uma atribuição a que toda mulher, enquanto coletivo e sem distinção, irá ser submetida caso porte um traje vermelho, por isso o “mulher de vermelho”. Há no poema um tom de indagação, construído por versos livres, chegando a uma “conclusão” para as escolhas do sexo feminino ao portar determinada roupa, assim como a repetição do pronome pessoal “ela”, fazendo referência ao fato de que é “dela” que se fala e não “ela” quem fala. Assim sendo, em: “o que será que ela quer/ alguma coisa ela quer/mas ela escolheu vermelho/ela sabe o que ela quer/o que ela quer sou euzinho”, há um trajeto investigativo em relação a essa mulher a partir do momento da escolha de sua vestimenta. Como resposta, tem-se os versos “essa mulher de vermelho/mas ela escolheu vermelho/ela escolheu vestido/ela é uma mulher”, em que inferências são realizadas como percurso a uma determinada conclusão do eu poético, criando uma cadeia de intencionalidade e sentido, no ato dessa mulher, que justifique o porquê de se escolher um vestido e que esse seja da cor vermelha. A fim de chegar em uma conclusão, o tom investigativo citado anteriormente é retomado nos versos finais, em que há inclusive um jogo intertextual, por meio da referência ao personagem Dr. Watson, parceiro de investigação do detetive Sherlock Holmes. A situação criada pelo eu lírico masculino é o da certeza de ser um objeto de sedução pela mulher de vermelho, afinal a cor vermelha, comumente associada ao desejo, foi a escolha para o vestido 354

Anais “podia ser um amarelo/ verde ou talvez azul”, fazendo com que se crie uma determinada ideia de entrega ao outro, sem cogitar a ideia do prazer próprio, da mulher vestida para ela mesmo, para ser feliz ou qualquer outra situação. É desse modo, perceptível a objetificação e idealização do corpo feminino, julgando intencionalidades não existentes. Outro poema analisado será o de mesmo título do livro, este sendo “um útero é do tamanho de um punho”, porém este sendo um poema extenso, tem-se um excerto: Um útero é do tamanho de um punho num útero cabem cadeiras todos os médicos couberam num útero o que não é pouco uma pessoa já coube num útero não cabe num punho quero dizer, cabe se a mão estiver aberta o que não implica gênero degeneração ou curiosidade ter alguém na palma da mão conhecer como a palma da mão conhecer os dois, um sobre a outra quem pode dizer que conhece alguém quem pode dizer que conhece a degeneração quem pode dizer que conhece a generosidade só alguém que sentiu tudo isso no osso, o que é uma maneira de dizer a não ser que seja reumático ou o osso esteja exposto im itiri i di timinhi di im pinhi im itiri i di timinhi di im pinhi quem pode dizer tenho um útero (o médico) quem pode dizer que funciona (o médico) i midici o medo de que não funcione para que serve um útero quando não se fazem filhos. (FREITAS, 2012, p. 59). O título do livro veio a partir de um verso do longo poema de 42 estrofes e 173 versos que trata do útero feminino e dos discursos privados e públicos que o cerceiam. O tema central do poema são as repressões exercidas sobre o órgão reprodutor e, por extensão, sobre a mulher, que tem sua autonomia interditada no que diz respeito ao exercício da sexualidade e à interrupção de uma gravidez indesejada, por exemplo. Note-se que a palavra “mulher” não é mencionada uma única vez em toda a extensão do excerto, e por consequência do texto integral, o que reforça a condição de passividade do sujeito feminino, submetido à voz e ao poder dos “outros”. De acordo com o Dicionário Houaiss (2012), a palavra útero, além de “órgão muscular oco do aparelho genital feminino 355

Anais que acolhe o ovo fecundado durante seu desenvolvimento e o expulsa, finda a gestação”, também tem o sentido de “madre, mãe do corpo, matriz”. Já a palavra punho refere-se à “mão fechada”, à “força da mão bem fechada” ou mesmo “parte de arma branca em que se segura; cabo, empunhadura”. Na relação semântica entre as duas palavras, o útero é semelhante ao punho não só em tamanho, mas na sua função de acolher ou segurar um feto como uma “mão fechada”. Essa associação é feita por meio das inferências externas sobre o útero e sua capacidade reprodutora, principalmente na obrigatoriedade da gravidez e na proibição da prática de aborto, quando diversas instituições e agentes externos à mulher e a sua esfera íntima – o legislativo, a igreja, a escola, a mídia, os religiosos, os cientistas, os médicos – determinam sobre seu corpo e sua decisão de gerar ou não uma criança. Essas circunstâncias se estendem à mulher, esse ser possuidor do útero que é representada por meio do seu útero e, portanto, a sua capacidade reprodutora e ao papel social de mãe. O poema então personaliza a capacidade geradora do útero ao afirmar que nele couberam indivíduos formados, dotados de razão e discernimento. Por fim do excerto, há uma experimentação da “língua do i”, prestando-se a esse tipo de humor, já que a substituição das vogais das palavras dá ensejo a uma fala ridícula e infantilizada. Afinal, a convenção social diz que se torna mulher, ou popularmente “mocinha” a partir da primeira menstruação, o que biologicamente entende-se como a possibilidade de gerar um feto em seu útero, e fica a reflexão de BEAUVOUIR (1970): A mulher? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defi ni-la. [...] O termo “fêmea” é pejorativo, não porque enraíze a mulher na Natureza, mas porque a confina no seu sexo.” (BEAUVOIR, 1970, p. 25) Considerações finais Neste artigo, vislumbrou-se demonstrar por meio da literatura que os espaços ocupados por mulheres revelam não só um local a ser preenchido, haja vista a exclusão histórica desses lugares como situados somente para o homem, mas um território de tomada de decisões e questionamentos. Com a palavra em mãos, o que querem essas mulheres? Que narrativas desejam contar? No caso de Angélica Freitas os poemas tornam o próprio ato da escrita, o corpo a ser representado. Afirmando que a categoria “mulher” é de difícil definição, 356

Anais do mesmo modo pensamos como problemática a tentativa de resposta para uma possível indagação do que vem a ser uma produção feminina. Por fim, o intuito da pesquisa é a reflexões acerca das produções voltadas para os inúmeros questionamentos a serem levantados pela sociedade, tornando assim o processo do ser e tornar-se mulher algo que pode sim ser escolhido e realizado pela figura feminina. Não mais necessitando do parâmetro e olhar masculino sobre seus comportamentos e escolhas do dia a dia. REFERÊNCIAS BAKHTIH, M. M. Questões de estilística no ensino da língua. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2013. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Fatos e mitos. 4. ed. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Europeia do livro, 1970. CORTÊZ, Natacha. “Um útero é do tamanho de um punho” [entrevista]. Revista TRIP, 2012. Disponível em: < https://revistatrip.uol.com.br/tpm/um-utero-e-do-tamanho-de-um- punho>. Acesso em: 04 jul. 2022. DICIONÁRIO HOUAISS. Disponível em: http.:// houaiss.uol.com.br. Acesso em: 03 jul. 2022. FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Cosac Naify, 2012. MARTINS, Nilce Santana. Introdução a estilística. SP: TA-QUEIROS, 2000. 357

CONSCIÊNCIA E CORPO DESALINHADO: O FANTÁSTICO E O INSÓLITO NO CONTO SONO, DE HARUKI MURAKAMI Vitor Yukio Ivasse ALVES (PUC Goiás)1 Elizete Albina FERREIRA (PUC Goiás)2 RESUMO A escuridão da noite revela a enseada oculta de possibilidades que nos espera durante o sono. Para alguns, o sono fornece a distração e o reabastecimento necessários para realizar nossas rotinas diárias. Enquanto nos aconchegamos sob a segurança de nosso cobertor favorito e, lentamente, começamos a fechar os olhos, sucumbimos à beleza que é o sono. Sem hesitação, aceitamos e acolhemos nosso sono noturno. Não questionamos nosso estado vulnerável e nem os rituais que nos preparam para um estado de coma de oito horas. Em Sono (2015), Haruki Murakami escreve a partir da perspectiva de uma dona de casa de 30 anos com insônia. A história começa em seu 17º dia sem dormir e volta ao início de como começou. A total ausência de sono neste conto encantador pode ser tomada pelo seu valor 1 Graduando do curso de Letras-Português na Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás, professora do Programa de Pós- Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: [email protected] 358

Anais nominal (como uma história fantástica), ou pode ser interpretada como símbolo do incomum (insólito). Para o teórico literário Tzvetan Todorov, nós, leitores, somos transportados para o centro da fantasia para pisar em solo desconhecido e vivenciar eventos que não podem ser explicados pelas leis deste mundo. Em sua obra Introdução à literatura fantástica (2010), Todorov relata que tais acontecimentos são frutos da nossa imaginação e que o fantástico está ligado, intrinsecamente, à função da incerteza, designando o conceito de hesitação. Para apontar as peculiaridades desse gênero, será realizada uma análise dos elementos do fantástico e do insólito na obra de Haruki Murakami, traçando as características da narrativa com as observações e concepções de Tzvetan Todorov. Palavras-chave: Literatura Fantástica; Insólito; Haruki Murakami; Sono. ABSTRACT The darkness of the night unveils the cove of possibilities that awaits us during sleep. To some, sleep provides the distraction and the replenishment needed to fulfill our daily routines. While we are cozy under the security of our favorite blanket and, slowly, start to close eyes, we succumb to the beauty that sleep is. Without hesitation, we accept and welcome our nocturnal sleep. We don't question our vulnerable state nor the rituals that prepare us to a coma state of eight hours. In Sleep (2015) Haruki Murakami writes by the perspective of a thirty-year-old housewife with insomnia. The story begins on her 17th day without sleep, then it goes it’s way back to how it started. The complete lackness of sleep on this charming tale may be interpreted by it's nominal value as a fantastic story or as a token of the unusual. To the literary theorist Tzvetan Todorov we, as readers, are transported to the center of this fantasy, to step on unknown ground and to live events that can't be explained by the laws of this world. On his work Introduction to Fantastic Literature (2010), Todorov reports that such events are a figment of your imagination and that the fantastic are connected intrinsically to the function of uncertainty, designating the concept of hesitation. To point to the peculiarities of this genre, an analysis will be made of all the elements of the fantastic and of the unusual on the work of Haruki Murakami, tracing the characteristics of the narrative with the observations and conceptions of Tzvetan Todorov. Keywords: Fantastic Literature; Unusual; Haruki Murakami; Sleep. Considerações Iniciais O sono sempre foi um processo curioso para os humanos e a interpretação mítica de sua ocorrência sempre foi utilizada, principalmente pela existência de sonhos. Embora existam muitas fórmulas científicas para a inconsciência de longo prazo dos animais, o sono humano é um processo muito complexo que ainda é pouco compreendido. E da mesma forma, a falta de sono constrói um fenômeno atípico com compreensão biológica do funcionamento do consciente humano. A insônia é um distúrbio que prejudica a capacidade de uma pessoa conseguir adormecer. Como resultado, ocorre uma alteração drástica na qualidade de vida. As pessoas 359

Anais com esse distúrbio começam o dia sentindo-se cansadas e sem energia, tendo um desempenho ruim nas atividades diárias. Muitos adultos experimentam insônia em algum momento de suas vidas, mas algumas pessoas sofrem de insônia crônica, que pode durar muito mais do que o normal. A insônia também pode ser secundária a outras causas, como doenças ou abuso de substâncias. Entretanto, no conto Sono, do autor japonês Haruki Murakami, a narrativa introduz uma personagem feminina, com nome desconhecido, vivenciando seu drama particular que parece uma espécie de insônia, mas não se encaixa com os sintomas desse distúrbio do sono. No começo do conto, a protagonista relata sua situação atual: “É o décimo sétimo dia em que não consigo dormir. Não se trata de insônia. Pois dela eu entendo um pouco” (MURAKAMI, 2015, p. 5). Fazendo alusão ao seu passado, a protagonista informa que passou por algo parecido durante o período de faculdade: “Na época da faculdade tive uma coisa parecida. Digo “parecida” pois não posso afirmar categoricamente que aqueles sintomas estavam relacionados ao que as pessoas costumam chamar de insônia” (MURAKAMI, 2015, p. 5). Ela situa sua condição colocando em dúvida a origem do seu problema, uma vez que não se trata de uma insônia autodiagnosticada. Sendo assim, busca-se investigar de qual maneira o distúrbio vivenciado pela protagonista pode ser identificado e caracterizado como uma manifestação do insólito/fantástico. A contextualização do conto e a manifestação do insólito e do fantástico O conto Sono é um relato em primeira pessoa de uma protagonista sem nome identificado sem nenhum único fato diferente da sua vida comum. Sua rotina envolve coisas simples de uma dona de casa: servir o café da manhã para seu marido e filho, ir ao mercado, cozinhar, fazer natação, degustar brevemente de momentos de leitura e dormir. O seu pequeno núcleo familiar envolve seu marido dentista com quem é casada há mais de uma década e seu filho pequeno, que começou a ir à escola. Esse cotidiano comum pode ser notado pela fala da própria protagonista: “Meu dia a dia continua o mesmo de sempre: muito tranquilo e bem organizado. De manhã, após meu marido e meu filho saírem de casa, eu pego o carro para fazer compras” (MURAKAMI, 2015, p. 13). Posteriormente, ela salienta como essa rotina metódica afeta sua vida: 360

Anais Eu costumo ir com o City fazer compras no supermercado. Ao voltar, limpo a casa e lavo as roupas. Preparo o almoço. Procuro, na medida do possível movimentar o corpo durante o período da manhã. Inclusive, quando dá tempo, deixo o jantar pronto. Isso me permite ter a tarde toda para mim. (MURAKAMI, 2015, p. 21). Essa rotina sistematizada é pertencente a uma sociedade japonesa moderna que ainda mantém o costume de colocar a matriarca exclusivamente no papel de mãe e esposa: Até hoje é a mulher quem simbolicamente \"mantém vivo o fogo doméstico\". Mesmo com os avanços tecnológicos ligados às tarefas domésticas - refrigeradores (no final da década de 1950), máquinas de lavar roupas, aquecedores elétricos, aspiradores de pó, panelas elétricas, tornos de micro- ondas etc. -, diversas atividades atribuídas às mulheres no lar se assemelham às de outras épocas: alimentar a família, limpar a casa, cuidar do marido, fazer compras cotidianas, cuidar das roupas, bater e arejar os acolchoados, ser a cuidadora preferencial das crianças pequenas e dos idosos da família. Apesar das mudanças ocorridas na acomodação entre o novo e o tradicional, o ideal da mulher japonesa como \"boa esposa e mãe sábia pouco mudou e, em certos aspectos, foi acentuado. (SAKURAI, 2021, p. 311-312). Essa era sua vida com pequenos e singelos momentos de prazer, uma repetição. A escrita em um diário esboçado no final do capítulo 1 expõe um sentimento de vazio da mulher de trinta anos que se sente assustada por não conseguir segregar dias e horários. E essa era sua vida antes de não conseguir dormir. A protagonista relata, no capítulo 2, que em uma fatídica noite, teve um sonho extremamente repulsivo, um pesadelo sombrio ao qual deu origem a sua falta de sono. Nesse sonho, ela estava acordada e uma sombra negra materializa-se perto dos seus pés. A sombra aparenta uma espécie medonha de homem que começa a jogar água nos seus pés e, após ambos se olharem fixamente durante algum tempo, o processo é interrompido com o susto e toda a névoa onírica se esvai. A protagonista, ao acordar, percebe-se com uma sensação estranha, algo dentro dela se entregou totalmente ao vazio. Forcei os olhos para tentar enxergar aquela sombra. Ao fitá-la atentamente, ela começou a tomar forma, como se aguardasse aquele meu olhar. Os contornos se tornaram nítidos, na forma de um corpo, e revelaram seus detalhes: era um velho magro de agasalho preto. Seus cabelos eram grisalhos, curtos, e as bochechas, fundas. O velho estava em pé, parado, na beira da cama. Fitava-me em silêncio com um olhar penetrante. Seus olhos eram grandes e com os vasos sanguíneos vermelhos e dilatados. Seu rosto, 361

Anais porém, era desprovido de expressão. Ele não se dignava a falar comigo. Era vazio como um buraco. (MURAKAMI, 2015, p. 33-34). A água presente no sonho pode ser vinculada às tristezas cotidianas que acometem a mulher insone. A água suspende e materializa o corpo adormecido, libera a mente para flutuar e torna a materialidade da matéria remota e indescritível. [...] o sono não deixa de ser um momento em que o peso da existência se encontra em suspensão. Na obra O mundo como vontade e representação Schopenhauer desenvolve a tese de que a existência é extremamente dolorosa e nós estamos condenados a essa dor e ao fardo de sermos nós mesmos até o fim das nossas vidas. (KANEFUKU, 2015, p. 20). Esse vazio reflete o momento em que a protagonista é incluída em um ambiente fantástico, experimentando a duplicidade entre o realístico e o onírico. Como é dito por Todorov “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2010, p. 30- 31). Ela indaga: “O que era aquele velho vestido de preto?”, pensei. Nunca o tinha visto antes. Sua roupa preta também era muito estranha. [...] Quem era aquele homem? Por que que ele jogava água nos meus pés? [...] Não encontrava nada que fizesse sentido. (MURAKAMI, 2015, p. 42). Nesse mesmo episódio, o leitor começa a embarcar no fabulário geral de um delírio cotidiano. Na mesma noite, inebriada pelo medo, a narradora decidi que precisa tomar um banho devido ao suor excessivo e que precisa de uma bebida alcoólica para poder se recompor. Ainda atônita, decide ler um livro para pegar no sono e escolhe o romance russo Anna Karenina de Liev Tolstói. A primeira manifestação do insólito/fantástico ocorre quando o leitor é colocado em uma situação duvidosa perante os elementos narrativos da obra. Ao se aprofundar junto com a protagonista no despertar de sua insônia ainda injustificada, cria-se um evento isolado de dúvida sobre a autenticidade do fato. Dessa forma, como constata Tzvetan Todorov em sua obra Introdução à Literatura Fantástica, a ambiguidade se mantém entre a realidade ou ilusão, pois Somos assim transportados ao âmago do fantástico. Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas 362

Anais leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário; ou então existe realmente, exatamente como os outros seres vivos: com a ressalva de que raramente o encontramos. O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. (TODOROV, 2010, pg. 30-31). A rotina da protagonista é totalmente alterada após o episódio sobrenatural. No capítulo 3, enquanto os outros moradores da casa saem para cumprir suas tarefas, ela constata que sua rotina não precisa ser repetida igual aos dias anteriores (efetuar tarefas domésticas e compromissos fora de casa), entregando-se totalmente à leitura de Anna Karenina. Ao perceber um pedaço ressecado de chocolate em uma das páginas, sua mente aflora em uma súbita e devastadora vontade de ingerir a guloseima. Nossa protagonista questiona novamente sobre sua falta de sono: “Por que será que eu não tinha sono? [...] deveria estar com tanto sono, mas tanto sono, que mal conseguiria ficar em pé. O fato é que agora eu não estava com sono, e minha consciência estava lúcida” (MURAKAMI, 2015, p. 65). Nessa natureza dos fatos esboçados, Todorov cita que na manifestação do fantástico, sempre fica em aberto a possibilidade de uma explicação racional e simples para os fenômenos, porém essa possibilidade torna-se frustrada, pois sua natureza é de origem sobrenatural (TODOROV, 2010). A insônia ou coisa parecida com a insônia coloca nossa protagonista em uma situação de consciência e corpo desalinhado. O corpo desalinhado está integrado em fatores que não podem ser explicados de uma forma racional e biológica. Quando a narradora descreve que, apesar da rotina intensa, ela não se sente cansada ou com sono, ela entra em uma natureza humana não-natural. Sua consciência não consegue mais se unificar ao seu corpo, como é descrito no seguinte trecho: O hábito torna as tarefas simples de serem realizadas. Pode-se dizer que elas se tornam fáceis. Basta desconectar a mente do corpo. Enquanto meu corpo se movimentava à vontade, minha mente pairava em seu próprio espaço exclusivo. [...] Depois que deixei de dormir passei a considerar fácil administrar a realidade. De fato, cuidar da realidade é uma atividade muito simples. Era tão somente a realidade. Consistia apenas em tarefas domésticas. (MURAKAMI, 2015, p. 71-72). 363

Anais A insone relata que, apesar de não dormir por dias, não foi notada nenhuma alteração da sua fisionomia pelos seus familiares. Sua inquietação é notada na sua segunda semana sem dormir, pois, ela começa a notar que esse tempo sem dormir pode levar uma pessoa à loucura. [...] da dimensão da realidade para a [da falta] do sono [...] ou da loucura. O personagem protagonista se encontra repentinamente como se estivesse dentro de duas dimensões diversas, com códigos diversos à sua disposição para orientar-se e compreender. (CESERANI, 2006, p. 73). Aos poucos, a protagonista vai percebendo as oportunidades oriundas desses episódios de insônia, por exemplo, como esse fator auxilia sua fuga da realidade e um mergulho no seu mundo particular em busca da sua liberdade. É nítida essa mudança quando vê seu reflexo no espelho: “Não havia me enganado. Eu realmente estava bonita” (MURAKAMI, 2015, p. 77). A personagem não sofre alterações físicas, mesmo sendo privada do sono. A insônia permite uma caminhada de redescobertas e horas gastas com prazeres: leitura, bebidas alcoólicas e chocolates. A narrativa do décimo sétimo dia sem dormir traz uma situação peculiar da mulher insone. Percebemos o estilo kafkaniano em Murakami nesse momento, pois, no decorrer da leitura, há um tom de angústia e melancolia, uma desesperança que aproxima a narradora da morte. Ela fecha seus olhos buscando vivenciar a sensação do sono e evidencia: Até então, eu achava que o sono era um tipo de morte. Ou seja, a morte seria uma extensão do sono. Em outras palavras, a morte era como dormir. Comprada ao sono, a morte era um sono bem mais profundo, sem consciência. Um descanso eterno, um blecaute. (MURAKAMI, 2015, p. 100). O último capítulo do conto se inicia com a protagonista vestindo uma roupa simples e adotando um visual masculino. Dirige-se até um parque, estaciona e ajeita o boné de uma forma que não possa ser identificada, uma medida que se entende como uma forma de não ser vulnerável a agressões e violência por ser uma mulher vagando sozinha pela noite. Reflete sobre seus dias e mudanças, concluindo que mudou. Fecha os olhos e observa a escuridão e analisa se o seu desejo seria a morte. Contudo, sua divagação é interrompida quando nota a presença de duas sombras negras, que são os elementos primordiais para o desfecho ao conto. 364

Anais Há duas sombras negras, uma de cada lado do carro. Um do lado direito e outra do esquerdo. Eu não consigo ver seus rostos. Nem as roupas que vestem. São sombras negras em pé. [...] Eles balançam o carro, alguém bate insistentemente no vidro direito com a mão em punho. [...] Alguma coisa está errada. Mas não sei o que é. Minha mente está repleta de uma densa escuridão. Uma escuridão que não vai me levar a lugar nenhum. (MURAKAMI, 2015, p. 108-110). Desisto de pegar a chave, encosto no banco e cubro o rosto com as mãos. E choro. A única coisa que resta a fazer é chorar. As lágrimas não param de cair. Estou presa nesta caixinha e não tenho para onde ir. É a hora mais escura da noite e os homens continuam a sacudir o carro. O que eles querem é virar o meu carro. (MURAKAMI, 2015, p.110). Não se sabe se as sombras relatadas eram homens ou seres sobrenaturais. A ambiguidade de interpretação está ligada ao consciente da protagonista que, auxiliado pela falta de sono por tanto tempo, pode estar dando uma intepretação diferente que se assemelha ao delírio. Apesar de evidenciar elementos sobrenaturais durante toda a narrativa, o final do conto poderia trazer uma explicação lógica de uma mulher vulnerável sendo atacada por homens em um ambiente noturno. Esse efeito fantástico-estranho é relatado por Todorov: Acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de toda a história, no fim recebem uma explicação racional. Se esses acontecimentos por muito tempo levaram a personagem e o leitor a acreditar na intervenção do sobrenatural, é porque tinham um caráter insólito. (TODOROV, 2010, p. 51). Se admitirmos que as sombras relatadas são seres sobrenaturais, entramos em outra categoria de Todorov: No fantástico-maravilhoso, ou em outros termos, na classe das narrativas que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma aceitação do sobrenatural. Estas são as narrativas mais próximas do fantástico puro, pois este, pelo próprio fato de permanecer sem explicação, não-racionalizado, sugere-nos realmente a existência do sobrenatural. O limite entre os dois será então incerto; entretanto, a presença ou a ausência de certos detalhes permitirá sempre decidir. (TODOROV, 2010, p. 58). Essa variação de interpretações é definida por Umberto Eco em sua coletânea de ensaios Obra aberta (1991). O conceito de obra aberta remete à noção de abertura e infinitude de um texto literário, o que permite uma indagação mais ampla sobre a própria obra. Uma obra é a criação de um autor que pretende evocar um conjunto de efeitos em seu receptor (ou espectador), fazendo-o compreender a intenção original de quem a fez. 365

Anais No entanto, Eco (1986) argumenta que os processos de leitura e interpretação não podem pressupor uma análise predefinida e estruturada do texto. Em vez disso, eles implicam uma liberdade notável para o leitor, que também é o receptor e, portanto, encarregado de extrair do texto uma análise pessoal. De acordo com esse conceito, a origem do termo trabalho aberto vem da necessidade cada vez mais aparente de compreender e valorizar a criatividade e as habilidades interpretativas que, quando necessário, levam à reorganização das ideias. Apesar do desfecho apresentado pelo autor, caberá ao leitor elaborar a sua interpretação baseado nas suas crenças e experiências, pois é necessária alguma forma de orientação para a imersão no labirinto de interpretações. O olhar mais cético na leitura levará a uma interpretação pela perspectiva do fantástico-estranho, em que as sombras são homens que desejam roubar e/ou praticar um crime contra nossa protagonista. Por outro lado, a possibilidade de interpretar as sombras como seres sobrenaturais atormentando a narradora, ensejará na aceitação do insólito na narrativa. Portanto, na teoria de Eco (1986), o receptor ocupa uma posição privilegiada, pois para cada resultado, o leitor produzirá uma interpretação, porque em cada resultado o trabalho é revivido dentro de uma perspectiva original. A utilização de estratégias de construção narrativa que promovam o estabelecimento do insólito significará que a composição do espaço, do tempo ou da personagem é inconsistente com sua estabilidade no mundo objetivo. Como resultado, as imagens formadas durante a leitura do conto apresentam graus variados de elementos reais e fantásticos, buscando referências na realidade extratextual. Considerações Finais Haruki Murakami utiliza o sono (ou a falta dele) como um artificio simbólico para alavancar reflexões da protagonista sobre o desconhecido, a rotina, o cotidiano e o sentido – sendo esse o processo fisiológico de reconhecer estímulos da audição, visão e tato. O final do conto, apesar de deixar brechas para diversas interpretações, revela à protagonista que estar sempre acordada era o mesmo que estar morta., e que sua insônia não era libertação da vida cotidiana. Cada afirmação no final é uma metáfora para algo. A narrativa é toda permeada com pequenas e singelas características que fazem alusão ao insólito e o fantástico, mas acabam mesclando a vida da protagonista com padrões 366

Anais de uma vida cotidiana qualquer. A genialidade de Murakami intensifica os principais aspectos do gênero, pois esse conto pode ter uma interpretação lógica e racional, mas acaba tendo acontecimentos que se assemelham às inquietudes do fantástico. Dentro da construção da narrativa são utilizados elementos que contribuem para uma história fantástica: narração em primeira pessoa, envolvimento do leitor, o estranho e irreconhecível, a loucura e, principalmente, a hesitação. As múltiplas faces que a narradora descreve durante todo seu cotidiano contribuem para a criação de uma personagem frágil que, como o leitor, desconhece seu problema e, por desconhecer, acaba traçando percepções absurdas sobre suas fragilidades e medos. A estranheza do relato da protagonista ganha vida fora das páginas e leva o leitor para um mundo invertido, onde sua percepção de realidade é distorcida. A criação de um ambiente sobrenatural revela o mais frágil da alma e esta serve como alimento para aquilo que habita na escuridão. A leitura do conto, para os amantes do sobrenatural, traz característica dos filmes do vilão Freddy Krueger, um assassino que ataca as pessoas durante os sonhos. Em um paralelo ao conto de Murakami, temos uma personagem que, diferente dos filmes, enfrenta seus pesadelos por não conseguir dormir. Diante dos fatos expostos, surge a pergunta: Dormir ou não dormir? Por mais que se trate de ficção, a incerteza e hesitação ao escolher um ou outro insere a nossa alma no âmago do fantástico. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CESERANI, R. Procedimentos formais e sistemas temáticos do fantástico. Curitiba: Editora 2006 ECO, Umberto. Obra Aberta. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986 KANEFUKU, Louise Shizue. A água, o sonho e a insônia: possibilidades poéticas no desenho. 2015. 47 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Artes Visuais) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2015. MURAKAMI, Haruki. Sono. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. SAKURAI, Célia. Os japoneses. 2. ed. São Paulo: Editora Contexto, 2021. TODOROV, Todorov. Introdução à literatura fantástica. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. 367

ESCRITA DE SI, ESCRITA DO OUTRO: A TENSÃO ENTRE AUTOFICÇÃO E ESCREVIVÊNCIA NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO Caroline da Conceição Barbosa da PURIFICAÇÃO (UFBA)1 Luciene Almeida de AZEVEDO (UFBA)2 RESUMO Este artigo busca pensar a relação da autoficção e da escrevivência com o autobiográfico. A autoficção (termo que surge na França, em 1977, a partir do romance Fils de Serge Doubrovsky) prevê o pacto ambíguo (ALBERCA, 2008) entre a ficção e a autobiografia. A mesma tensão está presente no termo escrevivência (criado em 1995 pela escritora brasileira Conceição Evaristo). De acordo com Diana Klinger (2007), a autoficção é um tipo de escrita de si sujeita ao narcisismo e à espetacularização. Em relação à escrevivência, fica claro o caráter político das narrativas em primeira pessoa (que aproximam narradores e autores), pois o termo é utilizado como uma maneira de resgatar, através dos artifícios literários, a história da população afro-brasileira. Sua principal característica é o pacto identitário com o leitor, uma vez que a experiência individual também diz sobre o coletivo. 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E- mail: [email protected] 2 Doutora em Literatura Comparada e professora do Departamento de Fundamentos para o Estudo das Letras e do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected] 368

Anais A partir dessas considerações, o trabalho quer investigar a tensão entre os dois termos, avaliando se o entrelaçamento entre o ficcional e o autobiográfico e a convivência no presente dos dois termos, autoficção e escrevivência, promovem um jogo desestabilizador que envolve não apenas o autor e a instância narrativa, mas as esferas do pessoal e do político e se como isso se reflete no valor teórico de cada um dos termos, a partir do comentário de O avesso da pele (2020), de Jeferson Tenório, e A chave de casa (2007), de Tatiana Salem Levy. Palavras-chave: Literatura contemporânea, Autoficção, Escrevivência. ABSTRACT This article seeks to think about the problematic relationship between autofiction and escrevivência with the autobiographical. Autofiction (a term that appears in France in 1977, from the novel Fils by Serge Doubrovsky) predicts the ambiguous pact(ALBERCA, 2008) between fiction and autobiography. The same tension is present in the term escrevivência (created in 1995 by the Brazilian writer Conceição Evaristo). According to Diana Klinger (2007), autofiction is a type of self-writing, subject to narcissism and spectacle. In relation to escrevivência, the political character of first-person narratives is clear (which brings narrators and authors together), as the term is used as a way of rescuing, through literary devices, the history of the Afro-Brazilian population. Your main characteristic is the identity pact with the reader, since the individual experience also says about the collective. From these considerations, the work wants to investigate the tension between the two terms, evaluating whether the intertwining between the fictional and the autobiographical and the coexistence in the present of the two terms, autofiction and escrevivência, promote a game destabilizing that involves not only the author and the narrative instance, but the spheres of personal and political and if this is reflected in the theoretical value of each of the terms, from the commentary of O Averso da Pele (2020), by Jeferson Tenório, and A chave de casa (2007), by Tatiana Salem Levy. Keywords: Contemporary Literature, Autofiction, Escrevivência. No presente trabalho3, serão tecidas algumas considerações sobre dois termos que possuem incidência biográfica, mas que parecem ocupar lugares distintos dentro da cena literária contemporânea: a autoficção e a escrevivência. A tensão entre eles, através de obras que realizam seus empreendimentos, pode elucidar como o campo literário está lidando com produções que possuem subjetividades, objetivos, temas e origens diferentes, mas que fazem parte do mesmo cenário literário contemporâneo. Para refletir sobre seus desdobramentos e os locais que eles ocupam dentro da literatura contemporânea será realizada uma análise das obras A chave de casa (2007), de Tatiana Salem Levy, e O avesso da pele (2020,) de Jeferson Tenório 3 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. 369

Anais Mas antes vamos a uma breve apresentação teórica sobre a autoficção. O termo surge em 1977, na França, com o romance Fils, de Serge Doubrovsky. O escritor se sente impelido a escrever a obra após ter acesso a um quadro elaborado por Philippe Lejeune em 1973 que explicitava a noção de pacto autobiográfico ao prever um contrato de leitura entre autor e leitor. Nesse quadro, Lejeune apontou que não havia exemplos conhecidos de romances que mantinham a relação onomástica entre autor, narrador e personagem. O próprio Serge Doubrovsky afirma, então, que o termo autoficção quer contrariar a conclusão de Lejeune e por isso ele escreve uma ficção na qual o autor tem o mesmo nome do personagem. Doubrovsky estabeleceu as seguintes características para o termo: a ausência de linearidade, a relação onomástica entre autor, narrador e personagem, o uso da metalinguagem, do tempo presente e da fragmentação e a exploração do caráter psicanalítico do que é narrado. Em um primeiro momento, o autor assumiu ser o criador da prática autoficcional que ele definiu como “ficção de fatos e acontecimentos estritamente reais” (NORONHA, 2014, p. 120). Entretanto, com o crescimento da especulação sobre a autoficção reconheceu que a prática já existia em autores como Louis-Ferdinand Céline e Sidonie Gabrielle Colette, por exemplo. No século XXI, o termo parece ter se expandido e incrementado pelo interesse na vida privada do autor, pela valorização do biográfico e pela intensa visibilidade que o autor assume hoje publicamente. Esse cenário propiciou que o termo se tornasse popular dentro da academia. Dessa forma, diversas obras autoficcionais começaram a surgir, assim como pesquisas que buscavam refletir sobre a prática. Essa popularização incidiu na perda de alguns pontos de definição fazendo com que ele ficasse em uma zona de nebulosidade. Nesse cenário, outros termos que buscavam definir certo grau de relação entre autor, narrador e personagem ganharam força como a alterbiografia de Ana Maria Bulhões-Carvalho (2011), a autonarração de Dorrit Cohn (1978) e a alterficção de Evando Nascimento (2008). Muitas vezes, esses termos parecem ser vistos como variantes da autoficção, pois estariam ligados por fazerem parte de uma ‘’constelação biográfica’’(KLINGER, 2007, p. 39) em que a linha entre factual e ficcional é tênue. A partir dessa perspectiva, autoficção e escrevivência estariam inseridos no mesmo rol, pois ambos tensionam verdade e ficção. Contudo, Conceição Evaristo (2020) pontua que as obras de escrevivência fazem parte de uma “escrita de nós”, pois as obras não estão centradas em uma vivência individual e sua preocupação maior é estabelecer com o leitor um pacto escrevivencial (OLIVEIRA, 2018) em que ele reconheça suas experiências enquanto 370

Anais sujeito afrodescendente a partir da narrativa literária e possa desarticular estereótipos estabelecidos sobre sua subjetividade: Como pensar a Escrevivência em sua autonomia e em sua relação com os modelos de escrita do eu, autoficção, escrita memorialística... ouso crer e propor que, apesar de semelhanças com os tipos de escritas citadas, a Escrevivência extrapola os campos de uma escrita que gira em torno de um sujeito individualizado. Creio mesmo que o lugar nascedouro da Escrevivência já demande outra leitura. Escrevivência surge de uma prática literária cuja autoria é negra, feminina e pobre. Em que o agente, o sujeito da ação, assume o seu fazer, o seu pensamento, a sua reflexão, não somente como um exercício isolado, mas atravessado por grupos, por uma coletividade. (EVARISTO, 2020, p. 38). A escrevivência é um termo criado pela própria Conceição Evaristo e foi mencionado pela primeira vez em 1995 no Seminário de Mulher e Literatura, no Brasil. Ele é baseado na imagem da Mãe Preta, mulher que vivia como escrava dentro da casa-grande cuidando dos filhos dos poderosos. Nesse sentido, o projeto literário de Conceição Evaristo busca transgredir os mecanismos de subalternização e exclusão da população afrodescendente, com foco especial nas vivências das mulheres negras. Lívia Natália (2020) aponta que a escrevivência nasce do corpo, através da vida vivida. Ela não relaciona essa imbricação de vida e ficção do sujeito negro como algo narcísico, mas como uma forma de forjar sua voz própria voz e atravessar as experiências do coletivo. Para ela, as obras escreviventes não surgem de um lugar autocentrado porque para este sujeito a construção da sua própria imagem é mediada pela opressão e o racismo, ou seja, a escrita elaborada por ele é uma forma de se reconstruir e no processo apresentar um outro imaginário da população negra. De acordo com Assunção de Maria Sousa e Silva (2020), as características da escrevivência são a ausência de heróis aos modos da tradição literária europeia, o protagonismo feminino, a cultura afro-brasileira eminente, a relação entre experiência individual e coletiva, a construção semiótica da palavra, a circularidade temporal, a polifonia de vozes, o narrador que não apenas conta, como também escuta os personagens, e o movimento de distanciamento e aproximação da perspectiva autobiográfica. A partir dessas considerações, podemos perceber que autoficção e escrevivência são termos fundamentais para compreender algumas obras que estão sendo construídas nas últimas décadas. Entretanto, apesar de ambos transitarem pelo campo das escritas autobiográficas, parecem partir de lugares distintos e estarem posicionados de forma 371

Anais diferente dentro do campo literário. Esses tensionamentos nos deixam algumas questões, pois como podemos relacionar a autoficção que nasce do ambíguo, do não-saber, do jogo com o leitor com a escrevivência que busca construir uma narrativa literária que une o sujeito de enunciação individual com o coletivo, que busca construir uma estética que dialoga com sua temática centrada em revelar memórias que foram negadas pela sociedade? Será que podemos dizer que a autoficção, classificada como escrita de si, também abriga a escrevivência, que é uma “escrita de nós”? Como essas estratégias são realizadas dentro das obras literárias que buscam nublar a linha entre ficcional e real? Vamos à análise de romances que realizam estes empreendimentos e observar como as estratégias podem se assemelhar e/ou distanciar. A chave de casa (2007) Tatiana Salem Levy conta a história de uma mulher que recebe a chave de uma casa na cidade de Esmirna, na Turquia. O avô que saiu do país jovem para tentar construir a vida no Brasil, deseja que a neta conheça suas raízes e também é uma maneira de atribuir-lhe uma tarefa, retirando-a da paralisia depois da perda da mãe e em virtude dos traumas vividos em um relacionamento abusivo. A obra pode ser analisada a partir da autoficção, pois a autora estabelece um pacto ambíguo com o leitor ao tornar tênue a linha entre ficção e o factual. Apesar de não utilizar a relação onomástica, ela constrói uma narradora em primeira pessoa que não é nomeada e passeia por muitas características biográficas da autora como a mesma origem, a idade e profissão. Além disso, temos a escrita fragmentada, a escrita do presente que busca reconstruir o passado, a reflexão metalinguística e o caráter \"psicanalítico\", pois a personagem aborda suas dores e traumas: Nasci no exílio: em Portugal, de onde séculos antes a minha família havia sido expulsa por ser judia. Em Portugal, que acolheu meus pais, expulsos do Brasil por serem comunistas. Demos a volta, fechamos o ciclo: de Portugal para a Turquia, da Turquia para o Brasil, do Brasil novamente para Portugal. (LEVY, 2007, p. 25). Se podemos encontrar uma semelhança entre a personagem e a autora, também é possível perceber que a autora constrói um pacto ambíguo (ALBERCA, 2007) com o leitor, que não pode confirmar se os fatos ali narrados aconteceram ou não. Para nublar as certezas de quem narra, a autora utiliza colchetes em que a mãe rebate as memórias da filha, desmembrando a noção de que a memória é construída de forma fiel: 372

Anais Nasci fora do meu país, no inverno, num dia frio e cinzento. Duas horas de contração sem poder parar, porque eu não tinha virado e a anestesista não estava lá. Penou, a minha mãe, para me ter. E, quando vim ao mundo, ela nem pôde me segurar nos braços, tinham-lhe dado anestesia geral. Pior: quando acordou, percebeu que lhe tinham feito um corte na vertical. [Lá vem você narrando sob o prisma da dor. O exílio não é necessariamente sofrido. No nosso caso, não foi. (…) Quando você nasceu, não estava frio nem cinzento. Não penei para parir. Não tomei anestesia geral nem tenho cicatriz, você nasceu de parto normal.] (LEVY, 2007, p. 24-25). Conhecemos as dores, os medos, as esperanças dessa jovem sem nome em busca de uma história de família e de sua própria identidade e, ao lamentar a morte da mãe, a narrativa se aproxima de um ritual de despedida, uma forma de viver um luto doloroso. Nesse contexto, a narrativa busca emular um diálogo com essa mãe que não está mais presente através do pronome pessoal ''você'': Você escondeu o quanto pôde, evitou a palavra até onde foi possível. Você assegurou-me de que não morreria doente. De que não morreria. Você assegurou-se disso, agarrou-se a essa certeza que criara para si, mas também para mim. Eu acreditei, você não morreria. [...] Não importa aonde for, faremos outro pacto e, se mais tarde for preciso, outro, e depois outro e outro e outro. Faremos quantos pactos forem necessários, mudaremos de mundo quantas vezes nos exigirem, mas uma coisa é certa: minhas mãos estarão sempre coladas às suas. (LEVY, 2010, p.- 14-15). Tatiana Salem Levy, que apresentou o romance como parte de sua tese de doutorado, não nega que quis escrever uma autoficção. Mas será que o termo pode ser empregado também para nomear outra obra atual, que possui incidência biográfica, escrita por Jeferson Tenório? O avesso da pele (2020) pode ser considerado uma autoficção? No Brasil, em narrativas de autoria negra, que exploram a proximidade das experiências do autor ou autora com suas ficções, é mais comum utilizarmos o termo escrevivência. Na obra O avesso da pele(2020), de Jeferson Tenório, o autor também transita entre o factual e o ficcional. No romance, acompanhamos a história de Pedro, um jovem negro que perdeu o pai para a violência policial e tenta passar pelo luto reconstruindo a história do progenitor. Apesar de um dos elementos tradicionais da definição de escrevivência ser o protagonismo feminino, Evaristo (2020) aponta alguns autores que também escreveram obras que realizam essa prática, como Lima Barreto e Cruz e Sousa. Em O avesso da pele (2020) podemos observar algumas dessas características, pois a narrativa possui um tempo circular, já que Pedro precisa refazer os passos do pai, da mãe e de outros familiares para 373

Anais compreender a sua perda e há o esforço de reconstrução da subjetividade negra a partir do processo de consciência do que o pai de Pedro, Henrique, passou como um sujeito negro: Você tinha dezenove anos, mas ainda não sabia muita coisa sobre autoestima, nem sobre se valorizar e essas coisas necessárias para manter a sanidade, por isso você não conseguiu olhar por muito tempo nos olhos dele. Bruno percebeu isso. Você era tudo que ele precisava. Você era uma presa fácil. Assim, com total domínio da situação, Bruno disse, com muita naturalidade, que não gostava de negros. Talvez ele esperasse alguma reação sua. Mas nada aconteceu. Você permaneceu imóvel. (TENÓRIO, 2020, p. 20). Além disso, a linguagem é utilizada de forma a tensionar os aspectos individuais e coletivos, pois nos capítulos direcionados para as memórias do pai, o narrador alterna o foco narrativo e utiliza o pronome “Você” que tanto pode ser o pai que sofreu com o racismo, quanto o próprio leitor afro-descendente que passou pelas mesmas experiências: Você apenas pensou que havia um problema com você, mas talvez nunca tenha percebido que toda aquela vontade de ficar calado, que toda aquela vontade de permanecer quieto, pudesse ter a ver com a cor da sua pele. Que o seu receio de falar, seu receio de se expor, pudesse ter a ver com as orientações que você recebeu desde a infância: não chame a atenção dos brancos [...] (TENÓRIO, 2020, p. 88). Diferente do que ocorre com Levy, aqui não temos nenhum dado explícito que remeta a Tenório a não ser o fato dele e Henrique serem professores. Contudo, de acordo com Luis Henrique Oliveira, a escrevivência constrói um pacto escrevivencial (OLIVEIRA, 2018) com o leitor através da utilização de aspectos da vivência dos autores enquanto sujeitos negros que passaram por situações de racismo, assim como os personagens, sendo que algumas obras, como as da própria Evaristo, realizam essa aproximação de forma mais marcada desde a capa do livro, como no romance Becos da memória (2017) em que a fotografia na capa do livro parece apontar para o universo narrativo dos personagens que vamos conhecer. Escrevivência ou autoficção? Ainda que cada um dos termos tenha um lugar de enunciação distinto e seja visível uma disputa teórica, que também é política, os termos apontam para um mesmo diagnóstico: uma tensão cada vez maior entre os limites que chamamos de realidade e ficção, dentro e fora do que chamamos literatura. 374

Anais REFERÊNCIAS ALBERCA, Manuel. De la autoficción a la antificción. Una reflexión sobre la autobiografia española actual. In: El yo fabulado : nuevas aproximaciones críticas a la autoficción. CASAS, Ana (org.). ,Madrid; Iberoamericana Editorial Vervuert; 2014; p.149- 166. BULHÕES-CARVALHO, Ana Maria. Jogos, máscaras e olhares. A constituição do narrador em Silviano Santiago. O caso de Em liberdade. In: CHAVES, Vania Pinheiro (Org.). Literatura Brasileira sem fronteiras. Publicação comemorativa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Lisboa: CLEPUL, 2011. COHN, Dorrit. Transparent Minds. Narrative modes for presenting consciousness in fiction. Princeton: Princeton University Press, 1978. EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Scripta, v. 13, n. 25, 2009, p. 17-31. KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escrita do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. LEVY, Tatiana Salem. A chave de casa. Rio de Janeiro: Record, 2007. NORONHA, Jovita Maria Gerheim. Ensaios sobre a autoficção. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. NASCIMENTO, Evando. Retrato desnatural: (diários – 2004 a 2007). Rio de Janeiro: Record, 2008. NORONHA, Jovita Maria Gerheim (org). LEJEUNE, Phillippe. O pacto autobiográfico: De Rousseau à internet. Belo Horizonte: UFMG, 2014. OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. O romance afro-brasileiro de corte autoficcional: “Escrevivências”em Becos da memória. In: DUARTE, Constância Lima; CÔRTES, Cristiane; PEREIRA, Maria do Rosário (Org.). Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo. 2. ed. Belo Horizonte: Idea, 2018. p. 71-80. SOUZA, Lívia Maria Natália de. Intelectuais escreviventes : enegrecendo os estudos literários . In: DUARTE, Constância Lima; NUNES, Isabella Rosado (orgs.). Escrevivência: a escrita de nós: Reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 206-224. TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 375

PELOS BECOS DA MEMÓRIA: CONTRAPONTOS ENTRE A MORTE DO AUTOR E A ESCREVIVÊNCIA Caroline SERGEL (Unioeste)1 Mariana Elizabeth Ceris Burtett GUDINO (Unioeste)2 Valdeci Batista de Melo OLIVEIRA (Unioeste)3 RESUMO Em ensaio intitulado “A morte do autor” (1988) Roland Barthes discorre sobre o prestígio dado ao autor a partir do momento em que a visão positivista se impôs culturalmente. Segundo Barthes, o relevo dado à figura do autor impõe um travão ao texto literário, pois levou a crítica à pretensão de decifrar o texto, buscando no autor a explicação e sentido nele contidos, isto é, limitar o texto a um significado último, visto que personificar o autor conduziria a buscar em sua biografia a maior relevância da obra. Entretanto há diversas (os) críticas (os) e escritoras (es) que possuem uma visão contrária dessa desvalorização da figura do autor, para elas (es) a análise da autoria pode ser vista como espaço de resistência e representatividade, de escrita e reescrita de si, de seus semelhantes e de sua história, das vozes oriundas das maiorias sociais minimizadas. O enfoque aqui será a autoria feminina e o 1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: [email protected]. 2 Mestranda no programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: [email protected]. 3 Doutora em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (2007). Docente do Curso de Letras da Unioeste/Cascavel. Docente do Mestrado Profissional em Letras (Profletras/Unioeste/Cascavel) e do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL/Unioeste/Cascavel), nível Mestrado e Doutorado. E-mail: [email protected]. 376

Anais processo de escrevivência. Para fundamentar a análise utilizaremos autoras que pesquisam e discutem sobre as temáticas da autoria feminina (ZOLIN, 2012), a escrita de si (KLINGER, 2012), a escrevivência (EVARISTO, 2007, 2008, 2017), a mulher no campo literário brasileiro (DALCASTAGNÈ, 2012). Entre outras vozes que possam contribuir para a análise sobre a questão da autoria e o reconhecimento destas mulheres que escrevem para além da mirada crítica e de esgotamento de significado das obras, numa tentativa de romper com a neutralidade e ressignificar o tratamento dado à mulher e a figura do autor, no caso específico, autora. Palavras-Chave: Escrevivência; Autoria feminina; Escrita de si; Morte do autor. ABSTRACT In the essay entitled \"The Death of the Author\" (1988), Roland Barthes discusses the prestige given to the author from the moment the positivist view was culturally imposed. According to Barthes, the relief designated to the author's figure imposes a barrier on the literary text, for it led the critic to the pretension of deciphering the text, seeking in the author's figure the explanation and meaning, that is, limiting the text to an ultimate meaning, since personifying the author would lead to seeking in his biography the greatest relevance of the work. However, there are several critics and writers who have a contrary view to this devaluation of the author's figure, for them the analysis of authorship can be seen as a space of resistance and representativeness, of writing and rewriting of themselves, of their fellows and their history, of the voices coming from the social minorities . The focus here will be on female authorship and the writing process. To ground the analysis we will use authors who research and discuss the themes of female authorship (ZOLIN, 2012), the writing of the self (KLINGER, 2012), the escrevivência (EVARISTO, 2007, 2008, 2017), the woman in the Brazilian literary field (DALCASTAGNÈ, 2012). Among other voices that may contribute to the analysis on the issue of authorship and the recognition of these women's writers, whose work seek to transcend the critical view, in an attempt to break with neutrality and resignify the treatment given to women and the author's figure, in this specific case, the female author. Keywords: Escrevivência; Female authorship; Writing of self; Death of the author. Introdução A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. Conceição Evaristo Em seu ensaio intitulado “A morte do autor”, Roland Barthes tece considerações sobre a supervalorização dada ao autor pela episteme positivista que permeia o ideário modernista, ao ponto de levar parte da crítica a centralizar sua análise e considerações sobre as obras na pessoa do autor e em sua biografia buscar atribuir sentidos ao que está escrito em seus textos, ou seja, a explicação de sua obra resultaria da história de vida do autor. Dito 377

Anais isso, Barthes aponta a necessidade da morte do autor no sentido de desatrelar a interpretação da obra de quem a compôs, acreditando ser limitante esse viés interpretativo. Para Barthes, o autor deve ser expulso de sua condição de sujeito condutor da linguagem, sendo irrelevante a existência de sua pessoa para a análise e interpretação de sua obra literária. Nesse sentido ele está a contestar a noção de autor como está associada aos valores da Modernidade em seu ideário individualista que via na figura do autor o exemplar maior do sujeito soberano do discurso. Ele ressalta que é a partir da morte do autor que a escritura se inicia [...] desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é, finalmente, fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde a sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa. (BARTHES, 1988, p. 66). Ao partir da premissa de que a identidade e a pessoa ‘Autor’ são fatores irrelevantes para análise e crítica da obra, Barthes (1988) trata a escritura como um campo neutro, que ao ser efetivado resultaria na destruição de toda voz e origem independente e desprendida do corpo de quem escreve. Considerações relevantes para um dado momento da crítica literária e análise importante sobre a supervalorização do sujeito que se torna indivíduo na sociedade moderna, centralizando, como exposto anteriormente, na pessoa do autor a busca pelo sentido final da obra, num movimento cuja consequência seria limitar as possibilidades interpretativas, evidenciando sobremaneira o autor em detrimento de sua obra. Tendo exposto as considerações e críticas de Barthes sobre a morte do autor, voltamos o olhar analítico para nosso outro conceito teórico de análise: a escrevivência, termo cunhado pela professora e escritora brasileira Conceição Evaristo e resultado de uma junção que ela faz entre as palavras “escrever” e “viver”. Por meio dessa palavra, ela busca significar uma escritura, e, no seu caso a escrita literária, tendo por base a vivência daquela que escreve, e, nas formas como esse sujeito foi sendo constituído ao longo da trajetória da sua vida social, incluindo nela seus valores, seus amores, suas dores e as marcas decorrentes dessa vida vivida em seu corpo, forma física e concreta e nos refolhos de sua psique e afetos. Seu ser e estar materializados na transição entre a esfera subjetiva e o mundo externo. No prefácio de seu romance intitulado Becos da memória, Conceição Evaristo faz algumas reflexões sobre seu processo de escrita e a escrevivência que o permeia 378

Anais Tenho dito que Becos da memória é uma criação que pode ser lida como ficções da memória. E, como a memória esquece, surge a necessidade da invenção. Também já afirmei que invento sim e sem o menor pudor. As histórias são inventadas, mesmo as reais, quando são contadas. Entre o acontecimento e a narração do fato, há um espaço em profundidade, é ali que explode a invenção. Nesse sentido venho afirmando: nada que está narrado em Becos da memória é verdade, nada que está narrado em Becos da memória é mentira. Ali busquei escrever ficção como se estivesse escrevendo a realidade vivida, a verdade. Na base, no fundamento da narrativa de Becos está uma vivência, que foi minha e dos meus. Escrever Becos foi perseguir uma escrevivência. (2017, n. p.). A autora aqui se apresenta como sujeito que constrói e é construído pela narrativa, aproximando as vivências das personagens das suas próprias e reais vivências e dos seus semelhantes, permeando os becos e os vazios da memória com a imaginação, movimento que suscita, em quem a lê, a curiosidade interpretativa de quanto daquilo é a personagem e de quanto é a autora projetando na primeira as suas vivências. A morte de autor e escrevivência são os dois conceitos teóricos selecionados neste ensaio para analisar de maneira mais específica a obra Becos da memória de Conceição Evaristo, assim como analisar seus contrapontos e a impossibilidade da morte do autor quando nos referimos a movimentos de conquista do espaço autoral pelas minorias sociais e aqui, mais especificamente, a autoria feminina. Autoria feminina, escrevivência e a morte do autor Barthes, em seu ensaio “A morte do autor”, realiza uma crítica e análise sobre a supervalorização da pessoa do autor observada na crítica literária após a Idade Média, num período em que a sociedade passa a dar maior prestígio ao indivíduo, a “pessoa humana” (BARTHES, 1988). Isto posto, a autoria passou a ser um objeto integrante da análise feita pela crítica da época, na busca pelo sentido último e “verdadeiro” do texto e da obra. Uma perspectiva limitadora da amplitude de significações possíveis do processo de interpretação. O ensaísta também discorre sobre como as obras modernas buscam superar esse movimento de associação entre o texto, a vida e história da pessoa do autor, citando autores e suas obras como exemplos. Isso nos leva à conclusão de que Barthes considerava a valorização do autor em detrimento da obra um equívoco que resultava na desqualificação do texto como obra de 379

Anais arte, pois encerrava na pessoa do autor sua explicação tornando-a utilitária, meramente informativa. Uma vez afastado o Autor, a pretensão de “decifrar” um texto se torna totalmente inútil. Dar ao texto um Autor é impor-lhe um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura. Essa concepção convém muito à crítica, que quer dar-se então como tarefa importante descobrir o Autor (ou as suas hipóteses: a sociedade, a história, a psique, a liberdade) sob a obra: encontrado o Autor, o texto está “explicado”, o crítico venceu. (BARTHES, 1988, p. 70). Expostas as considerações de Barthes sobre a morte do autor e o porquê ele considera esta morte necessária para o nascimento da escritura e da obra, indagamos quais são os efeitos e consequências do conceito de morte do autor quando o analisamos sob a perspectiva social, no sentido de: quem são as pessoas que têm acesso ao meio autoral? As reverberações da total desconsideração dos sujeitos que escrevem seriam as mesmas para todos? Teriam as minorias sociais a possibilidade de acesso ao meio editorial e autoral não fossem suas lutas por se firmarem e ocuparem espaços que historicamente lhes foram negados? Não seria importante localizar e situar a pessoa do autor para a análise da obra? Importantes reflexões sobre essas e outras questões são trabalhadas no conceito escrita de si, ramificação consequente do movimento “o retorno do autor”. Para apresentar a escrita de si, Diana Klinger questiona: \"Será que a destruição ‘da identidade do corpo que escreve’ não é menos um produto da ‘escritura’ do que de uma concepção modernista da escritura?”. Segundo a autora “na atualidade já não é possível reduzir a categoria de autor a uma função” uma vez que cada vez mais o autor é percebido “como produto da lógica da cultura de massas e atua como sujeito midiático” (KLINGER, 2007, p. 33) principalmente nesse momento de evidência da imagem na cultura cibernética voltada para as mídias, e, tendo em vista que os autores se valem dessa exposição para autopromoção. Diana Klinger (2007) relembra que mesmo autores que no auge do estruturalismo criticaram a noção do autor, como Barthes e Foucault, nos seus trabalhos seguintes buscaram aproximar autor e obra, sem cair em reducionismos, mas buscando formas de lidar com o pessoal na escrita. De acordo com ela, \"desde os anos setenta, os debates pós- estruturalistas, feministas e pós-coloniais, devedores do pensamento de Foucault, não cessaram de retornar à pergunta pelo lugar da fala” (p. 34). 380

Anais Ana Cláudia Viegas (2010) em seu artigo intitulado “COM A PALAVRA, O AUTOR – exercícios de crítica biográfica na contemporaneidade” também defende o retorno do autor como personagem midiática ao invés do modelo reducionista onde o estudo do e sobre o autor era usado para explicar a obra. Segundo Viegas “O próprio Barthes, ao mesmo tempo que assinala a “morte do autor”, reconhece sua permanência “nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos, e na própria consciência dos literatos ciosos por juntar, graças ao seu diário íntimo, a pessoa e a obra.” (VIEGAS, 2010, p. 9). Klinger percebe que “tanto na antropologia, na filosofia, como na teoria literária, há um movimento de retorno à problemática do sujeito, uma busca de um meio termo entre desconstrução e hipóstase do sujeito que caracteriza muitas investigações filosóficas contemporâneas” (2007, p. 35). Nos romances trabalhados no corpus de sua tese de doutorado, Diana Klinger aponta que eles fazem parte de um terceiro momento da escrita de si no contexto latino-americano que “não se apresenta sob a marca da memória da classe, do grupo ou do clã, mas aparece como indagação de um eu que, a princípio, parece ligado ao narcisismo midiático contemporâneo.” (p. 21). Todavia, na sequência a autora salienta que toda contemplação de si possui elos com as relações sociais e que um relato de experiência sempre possui, em certa medida, os traços de uma época, de uma geração e um classe. (p. 21- 22). Em sua tese, a autora sustenta a hipótese de enquadrar a escrita de si na categoria auto- ficção que se insere no núcleo do paradoxo filosófico do século XX “entre o desejo narcisista de falar de si e o reconhecimento da impossibilidade de exprimir uma “verdade” na escrita”. (p. 22). Para Klinger \"auto-ficção é um conceito capaz de dar conta do retorno do autor depois da crítica filosófica da noção de sujeito.” (p. 23). Como expoentes do “retorno do autor” temos a autobiografia, a auto-ficção e a escrita de si. Nosso foco neste trabalho é a escrita de autoria feminina, a qual, conforme aponta Lúcia Osana Zolin (2019), contou com o feminismo crítico que se dedicou ao trabalho de resgate e reavaliação de obras de autoria feminina, trabalho este fundamentado no pensamento pós-estruturalista que busca desconstruir a neutralidade que supostamente marcaria a construção do saber, revisita as categorias instituídas da crítica literária a fim de ampliar as perspectivas de análise, submetê-las a um outro olhar, um olhar capaz de detectar e de desnudar particularidades a que a convenção masculina nunca esteve atenta. (ZOLIN, 2019, p. 320). 381

Anais Pensando nisso, evidenciamos aqui a escrevivência de Conceição Evaristo, que, se aproxima dos expoentes do “retorno do autor” ao salientar a autoria em sua constituição, ao mesmo tempo que se distancia ao se utilizar de temáticas do cotidiano vivenciado por sujeitos específicos na sociedade, vivência similar à da escritora, suscitando a necessidade de localizar e questionar o porquê de tais vivências serem usadas para a constituição de tais narrativas e os atravessamentos de gênero, classe e raça que experienciam em sua constituição como sujeitos e autoras. Oliveira em seu artigo sobre a escrevivência em Becos da memória identifica três elementos que são formadores da escrevivência, sendo eles: corpo, condição e experiência. O primeiro elemento reporta à dimensão subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na luta constante por afirmação e reversão de estereótipos. A representação do corpo funciona como ato sintomático de resistência e arquivo de impressões que a vida confere. O segundo elemento, a condição, aponta para um processo enunciativo fraterno e compreensivo com as várias personagens que povoam a obra. A experiência, por sua vez, funciona tanto como recurso estético quanto de construção retórica, a fim de atribuir credibilidade e poder de persuasão à narrativa. (OLIVEIRA, 2009, p. 622). Com os elementos identificados por Oliveira a escrevivência em Becos da memória, bem como em outras obras de Conceição Evaristo, se torna mais compreensível para análise, pois nos conduz a outras camadas de percepções quando entendemos o valor e importância de cada elemento em sua composição. Para além do retorno do autor, as teorias pós-estruturalistas e os estudos culturais subverteram as análises ao evidenciarem os atravessamentos pelos quais a produção literária é acometida. Um exemplo é a desigualdade de acesso ao meio editorial no caso brasileiro que pode ser verificada a partir dos dados de pesquisa apresentados por Regina Dalcastagnè que resultou no livro Literatura brasileira contemporânea: Um território contestado: [...] de todos os romances publicados pelas principais editoras brasileiras, em um período de 15 anos (de 1990 a 2004), 120 em 165 autores eram homens, ou seja, 72,7%. Mais gritante ainda é a homogeneidade racial: 93,9% dos autores são brancos. Mais de 60% deles vivem no Rio de Janeiro e em São Paulo. Quase todos estão em profissões que abarcam espaços já privilegiados de produção de discurso: os meios jornalístico e acadêmico. (2012, p. 7). 382

Anais Ao localizar geográfica e socialmente a autoria de romances publicados no Brasil no supracitado período de 15 anos, a pesquisadora deixa evidente a desigualdade de acesso ao meio editorial por parte das mulheres e de grande parcela da sociedade que não se encaixa no fenótipo homem branco morador dos grandes centros brasileiros. Se considerarmos as intersecções pelas quais alguns sujeitos são atravessados como, por exemplo, a mulher negra/advinda da periferia, enfrenta duas, três vezes mais dificuldade de conseguir acesso ao meio editorial e até mesmo de ter sua escritura aceita e reconhecida como tal. No ano de 1988, O rumor da língua, obra que contém o ensaio A morte do autor, recebe uma edição traduzida lançada no Brasil. No mesmo ano, Conceição Evaristo finaliza a escrita do romance Becos da memória que havia iniciado no ano anterior. Enquanto Barthes recebia destaque no meio editorial brasileiro com sua crítica à demasiada valorização dada ao autor e defendia a neutralidade da escritura e a perda da identidade a começar pela do corpo que escreve, mulheres como Conceição Evaristo escreviam e não tinham acesso a tal meio sequer para ter seus textos lidos quanto mais publicados, ou quando chegavam a ter acesso à publicação, seus textos levavam anos para serem reconhecidos e acolhidos pelo campo literário, quando não, taxados como literatura inferior. Corroborando o exposto, no prefácio de Becos da memória, Conceição Evaristo cita o fato de seu romance ter ficado engavetado durante vinte anos até ser aceito para publicação. De acordo com Lívia Maria Natália de Souza (2018) muitas autoras negras exigem dos críticos literários a utilização de novos conceitos para analisar suas obras e escrituras e que em um movimento de legitimação de suas escrita, de suas vozes e das dos seus, bem como de rejeição dos conceitos (im)postos criados sob uma ótica colonialista e eurocentrada, essas autoras subvertem as estruturas da crítica ao inserirem na própria estrutura e narrativa de seus textos tais conceitos para analisá-los, como é o caso da escrevivência de Conceição Evaristo. Segundo Souza (2018) “a escrevivência não se contém nos limites etnocêntricos da autobiografia, da biografia, da escrita de si nem da autoficção” (p. 39-40). Evaristo adentra o “agenciamento do coletivo ao colocar-se no lugar de enunciação, ela articula a sua voz com as vozes de um sem número de mulheres que são sistematicamente caladas, minoradas ou estereotipadas” (p. 37). Em Becos da memória, a escrevivência de Conceição Evaristo é transmitida à personagem de Maria-Nova, menina moradora da favela que adorava colecionar duas coisas: selos e as histórias que ouvia. 383

Anais As tardes na favela costumavam ser amenas. Da janela de seu quarto caiado de branco, Maria-Nova contemplava o pôr do sol. Era muito bonito. Tudo tomava um tom avermelhado. A montanha lá longe, o mundo, a favela, os barracos. Um sentimento estranho agitava o peito de Maria-Nova. Um dia, não se sabia como, ela haveria de contar tudo aquilo ali. Contar histórias dela e dos outros. Por isso ela ouvia tudo tão atentamente. Não perdia nada. (EVARISTO, 2017, p. 31). Menina negra que vive em uma favela, assim como a autora viveu quando menina, Maria-Nova quer um dia contar as histórias que ali viveu e ouviu, assim como faz Conceição ao criá-la, bem como suas outras personagens. A ânsia por um dia poder contar as histórias é diversas vezes lembrada durante a história do romance. Maria-Nova queria sempre histórias e mais histórias para sua coleção. Um sentimento, às vezes, lhe vinha. Ela haveria de recontá-las um dia, ainda não sabia como. Era muita coisa para se guardar dentro de um só peito. – Maria- Nova quer história alegre ou triste? Ela quase sempre estava mais para a amargura. Achava os barracos, as pessoas, a vida de todos, tudo sem motivo algum para muita alegria. Ela pediu a história triste, a mais verdadeira. (EVARISTO, 2017, p. 37). Os moradores da favela, amigos, vizinhos e parentes de Maria-Nova estavam sempre lhe contando histórias, quando ela mesma não lhes pedia que o fizessem. Eram histórias de suas lutas por um lugar onde viver, por ter o que comer, por serem vistos pela sociedade que os marginaliza. Histórias tristes, de perdas de sonhos, esperança e daqueles que lhes eram importantes. São histórias que aos poucos Maria-Nova vai relacionando com a História e em como ela foi sendo repetida, como as lutas parecem as mesmas apesar do período decorrido dentre elas: ‘senzala-favela’. Por meio das histórias que lhes foram contadas oralmente, histórias da memória ancestral de seu povo e acrescidas às suas, Maria-Nova aprende muito mais sobre a História do que aquela legitimada e reproduzida nos livros didáticos da escola. Consegue reconhecer que a História apresentada não foi narrada pela perspectiva dos seus, que não representam as histórias que ela ouve das pessoas que descendem dos escravos. A personagem, ao sonhar um dia contar as histórias que vai colecionando e Conceição criando a personagem e narrando as histórias que lhes foram contadas e outras as quais vivenciou, ocupam um lugar que lhes foi por muito tempo negado e inacessível devido à falta de condições materiais, sociais e econômica. 384

Anais Quase sempre, expropriado na vida econômica e social, ao integrante do grupo marginalizado lhe é roubada, ainda, a possibilidade de falar de si e do mundo ao seu redor. E a literatura, amparada em seus códigos, sua tradição e seus guardiões, querendo ou não, pode servir para referendar essa prática, excluindo e marginalizando. Perdendo, com isso, uma pluralidade de perspectivas que a enriqueceria. (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 27). Ao escrever com base em sua vivência como mulher negra de periferia, Conceição Evaristo (re)escreve e ressignifica não somente suas vivências, mas também a de seus pares. Com essa dicção coletiva (SOUZA, 2018) materializada no processo de escrevivência, insere no campo literário a fala do sujeito subalternizado, dando-lhe nome, cor e gênero. Conclusão Barthes, ao analisar a questão do autor, o fez com um foco centrado na questão da interpretação do texto e de como a supervalorização do autor resultava, por vezes, num entrave nas possibilidades de sentidos da obra. Contudo, ao desconsiderar o sujeito do autor e sua identidade, acaba por desconsiderar também as desigualdades de acesso e legitimidade ao meio autoral. Ademais, menosprezar a figura do autor na obra, seria subestimar a influência de sua identidade e corpo (raça, gênero) na criação da escritura. Conforme observa Dalcastagnè: “O silêncio dos marginalizados é coberto por vozes que se sobrepõem a eles, vozes que buscam falar em nome deles” (2012, p. 26). Essas vozes se tornam representações que “não são representativas do conjunto das perspectivas sociais” (DALCASTAGNÈ, 2012, n. p.). Neste sentido, a escrevivência se apresenta como um ato de representatividade que se baseia na vivência daquele que escreve, nas histórias de seu povo, de seus ancestrais. Histórias que deixaram marcas que atravessam gerações. Maria-Nova ouvia a história que Bondade contava e, por mais que quisesse conter a emoção, não conseguia. Hora houve em que ele percebeu e se calou um pouco. Calou-se também com um nó na garganta, pois sabido é que Bondade vivia intensamente cada história que narrava, e Maria-Nova, cada história que escutava. Ambos estão com o peito sangrando. Ele sente remorsos de já ter contado tantas tristezas para Maria-Nova. Mas a menina é do tipo que gosta de pôr o dedo na ferida, não na ferida alheia, mas naquela que ela traz no peito. Na ferida que ela herdou da Mãe Joana, de Maria-Velha, de Tio Totó, do louco Luisão da Serra, da avó mansa, que tinha todo o lado direito do corpo esquecido, do bisavô que tinha visto os sinhôs venderem Ayaba, a rainha. Maria-Nova, talvez, tivesse o banzo no peito. Saudades de 385

Anais um tempo, de um lugar, de uma vida que ela nunca vivera. Entretanto o que doía mesmo em Maria-Nova era ver que tudo se repetia, um pouco diferente, mas, no fundo, a miséria era a mesma. O seu povo, os oprimidos, os miseráveis; em todas as histórias, quase nunca eram os vencedores, e sim, quase sempre, os vencidos. A ferida dos do lado de cá sempre ardia, doía e sangrava muito. (EVARISTO, 2017, p. 62-63). Ao escrever suas histórias a autora fala por si mesma, pela sua própria experiência e perspectiva como mulher negra da periferia. Das histórias, experiências e perspectivas e existências da (o) negra (o) na vida social em um país que carrega mais de 350 anos de escravização dos negros em sua história, regime que deixou cicatrizes profundas e feridas ainda abertas na memória e na percepção de si de grande parcela da sociedade descendente dos escravizados. Assim, suas narrativas são concebidas a partir do corpo, um corpo presente que traz a tona as memórias do passado e as lançam para o futuro em forma de reescrita, a promessa/o por vir aqui é a reescrita da história do negro que outrora fora escrita numa perspectiva ocidentalista e excludente que ironicamente rechaçara o corpo negro de sua própria história. (LEITE; NOLASCO, 2019, p. 3). Desse modo, a escrevivência se apresenta além de um exemplo em que se pode afirmar o “retorno do autor”, como um movimento que ressignifica e reconta as histórias de um povo e a História de um país ao dar voz aos sujeitos subalternizados e descaracterizar estereótipos e representações advindas da perspectiva colonizadora, permitindo a formação de novas narrativas, subvertendo as concepções até então estabelecidas. Nesse sentido, a literatura é um espaço de resistência para as minorias sociais conquistado há pouco, este espaço para o qual Conceição Evaristo (2007) foge para sonhar e se insere para modificar. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. A morte do autor. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução Mário Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p. 66-70. DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: Um território contestado. 1 ed. Vinhedo: Editora Horizonte / Rio de Janeiro: Editora da Uerj, 2012. EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. 200 p. EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações performáticas 386

Anais brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 16- 21. KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na narrativa latino-americana contemporânea. 2006. 205 f. Tese (Doutorado em Literaturas de Língua Inglesa; Literatura Brasileira; Literatura Portuguesa; Língua Portuguesa; Ling.) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/handle/1/6168. Acesso em: 27 out. 2021. LEITE, Viviani Cavalcante de Oliveira; NOLASCO, Edgar Cézar. Conceição Evaristo: escrevivências do corpo. RELACult: Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade, Foz do Iguaçu, v. 05, n. Especial, mai. 2019 e-ISSN: 2525-7870. Disponível em: https://periodicos.claec.org/index.php/relacult/issue/view/19. Acesso em: 30 jan. 2022. LIMA, Bruno Oliveira. II Simpósio Internacional de Letras e Linguística / XII Simpósio Nacional de Letras e Linguística. O retorno do autor na literatura contemporânea. 2009. (Simpósio). OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva. \"Escrevivência\" em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Revista Estudos Feministas. v. 17, n. 2. p. 621-62, mai./ago. 2009, 3. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2009000200019. Acesso em: 15 jun. 2022. SOUZA, L. N. Uma reflexão sobre os discursos menores ou a escrevivência como narrativa subalterna. Revista Crioula, [S. l.], n. 21, p. 25-43, 2018. DOI: 10.11606/issn.1981- 7169.crioula.2018.146551. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/crioula/article/view/146551. Acesso em: 8 jun. 2022. VIEGAS, Ana Cláudia. COM A PALAVRA, O AUTOR: exercícios de crítica biográfica na contemporaneidade. Cadernos de Estudos Culturais, Campo Grande, MS, v. 2, n. 4, p. 9-24, jul./dez. 2010. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/cadec/article/view/4484. Acesso em: 25 maio 2022. ZOLIN, Lúcia Osana. Literatura de autoria feminina. In: BONNICI, Thomas; ZOLIN, Lúcia Osana (org.). Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 4. ed. ampl. e rev. Maringá: Eduem, 2019. p. 319-330. 387

ORALIDADE EM CAZUZA: MEMÓRIA CULTURAL MARANHENSE Valéria de Carvalho SANTOS (UEMA)1 Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2 RESUMO A oralidade é uma das formas mais legítimas de transmissão de conhecimento e, por muito tempo, foi a única forma existente para muitas civilizações. Em sociedades em que a escrita não tem a primazia, é comum que a comunicação oral seja vista por seu caráter de preservação de saberes ancestrais (VANSINA, 2010). Tendo isso em mente, mesmo obras originalmente escritas, se falam sobre um determinado povo, podem carregar traços da oralidade, em especial no que tange a suas tradições. É o que acontece com Cazuza (1938), romance de Literatura Infantil do escritor Viriato Corrêa, natural de Pirapemas/MA, obra que preserva tesouros da tradição oral existente no Maranhão rural do início do século XX, ajudando a manter viva a memória de uma coletividade. Nessa perspectiva, esta pesquisa investiga as marcas orais presentes na obra, em especial aspectos relevantes para a cultura regional e, consequentemente, brasileira. Dado o exposto, este estudo considera como aporte teórico pesquisas de autores voltados para o campo da oralidade, como Finnegan (2016), Zumthor (1985), Hampaté Bâ (2010) e outros; além de estudiosos dedicados à questão da memória, seja ela individual ou coletiva, como Le Goff (1990) e Halbwachs (1990). Além disso, trata-se de uma pesquisa de iniciação científica fomentada pelo Conselho Nacional de 1 Graduanda em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa, Língua Inglesa e suas respectivas literaturas, pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, campus Caxias. Bolsista PIBIC/CNPq. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Ciência da Literatura (UFRJ/UEMA); docente na Graduação da Universidade Estadual do Maranhão –UEMA, campus Caxias e no Mestrado em Letras-PPGL-UEMA. Líder do Núcleo de Pesquisa em Literatura Maranhense – NuPLiM/CNPq. Editora da Revista de Letras Juçara-UEMA, campus Caxias. E-mail: [email protected] 388

Anais Desenvolvimento Científico e Tecnológico (PIBIC/CNPq) e parte do projeto Cenas de meninices: a produção literária infantil do escritor maranhense Viriato Corrêa. PALAVRAS-CHAVE: Cazuza. Memória. Oralidade. Cultura. ABSTRACT Oral communication is one of the most legitimate forms of knowledge transmission and, for a long time, it was the only existing form for many civilizations. In societies where writing does not have primacy, it is common that oral communication is seen for its character of preservation of ancestral knowledge (VANSINA, 2010). Bearing this in mind, even originally written works, if they talk about a certain people, can carry traces of orality, especially regarding their traditions. This is what happens with Cazuza (1938), a Children's Literature novel by the writer Viriato Corrêa, born in Pirapemas/MA, a work that preserves treasures of the oral tradition existing in rural Maranhão at the beginning of the 20th century, helping to keep alive the memory of a collectivity. From this perspective, this research investigates the oral marks present in the work, especially aspects relevant to regional and, consequently, Brazilian culture. Given the above, this study considers as theoretical contribution researches of authors focused on the field of orality, such as Finnegan (2016), Zumthor (1985), Hampaté Bâ (2010) and others; besides scholars dedicated to the issue of memory, whether individual or collective, such as Le Goff (1990) and Halbwachs (1990). Moreover, this is a scientific initiation research supported by the The National Council for Scientific and Technological Development (PIBIC/CNPq) and part of the project Cenas de meninices: a produção literária infantil do escritor maranhense Viriato Corrêa (Childhood Scenes: the children's literary production of the maranhense writer Viriato Corrêa). KEYWORDS: Cazuza. Memory. Orality. Culture. Introdução A obra infantil mais conhecida do escritor maranhense Viriato Corrêa, Cazuza (1938), marcou época pelo caráter educativo e formador, e por alcançar com sucesso as crianças, público até então pouco valorizado no Brasil no que diz respeito à produção de obras literárias a ele destinadas. Acontece que o escritor, já um intelectual muito prolífico em sua época, era conhecedor do grupo a quem se dirigia, uma vez que tinha contato frequente com ele por meio da coluna que dirigia chamada Gazeta das Crianças, no jornal Gazeta de Notícias, a qual fazia bastante sucesso entre os receptores mirins (PIAIA, 2014). Por retratar a vida no interior do Maranhão sob a perspectiva do infante, o autor foi capaz de discutir, no cerne de sua obra, temas cotidianos, mas de muita importância para que as crianças fossem capazes de se perceber no mundo como agentes transformadores da própria realidade. Cazuza (1938) apresenta ao leitor os problemas de um modelo Tradicional de ensino e a lenta evolução desse sistema; critica a pobreza, a má distribuição 389

Anais de renda e outros problemas socioeconômicos do Brasil; mas também resgata e preserva parte da riqueza cultural do estado e do país através de seus relatos memorialísticos. A obra, portanto, dispõe de variados recursos para pesquisas que não se limitam a apenas uma área do conhecimento, podendo tematizar aspectos históricos, políticos, sociais, culturais e outros. Dessa forma, uma dessas áreas possíveis, que está intrinsecamente ligada à história cultural da região de onde provém a obra, bem como do seu país e da maioria das sociedades antigas e modernas: a oralidade. Esta, por sua vez, é considerada por alguns intelectuais como elemento que dá origem ao conhecimento, ou “o ovo gerador dos saberes” (CALDAS, 1999, p. 8). Isso implica dizer que mesmo a escrita tem sua gênese na comunicação oral e que, portanto, não deve ser rejeitada em função do privilégio dado à cultura grafocêntrica. Ciente disso, esta pesquisa tem a intenção de discutir a oralidade no que diz respeito à tradição, observando as concepções de alguns autores da área. Além disso, objetiva verificar como esse elemento é apresentado em Cazuza, de modo que seja possível identificar a importância de sua presença para a composição do enredo, que é tão abrangente. Sendo uma narrativa criada a partir das vivências de um menino cuja primeira infância ocorreu em regiões rurais do Maranhão, e em uma época em que grande parte dos brasileiros ainda não era alfabetizada, tem-se uma valorização maior daquilo que provém da tradição oral, o que será melhor elucidado ao longo deste texto. 2 Algumas considerações acerca da Oralidade A oralidade é uma das faculdades mais básicas do ser humano e, portanto, anterior à escrita. Mesmo existindo outras formas de expressão humana, é na oralidade que reside o cerne da comunicação. Segundo afirma Walter Ong (1998, p. 15), Ver a linguagem como um fenômeno oral parece ser inevitável e óbvio. Num sentido profundo, a linguagem, o som articulado, tem importância capital. Não apenas a comunicação, mas o próprio pensamento está relacionado de forma absolutamente especial ao som. Todos nós ouvimos dizer que uma imagem vale mil palavras. No entanto, se essa afirmação é verdadeira, por que ela é feita com palavras? Porque uma imagem vale mil palavras apenas em certas condições especiais que comumente incluem um contexto de palavras em que está situada a imagem. Onde quer que existam seres humanos, eles têm uma linguagem, e sempre uma linguagem que existe basicamente por ser falada e ouvida, no mundo sonoro. 390

Anais Nessa perspectiva, a palavra falada tem importância primordial na história das civilizações, apesar do advento da escrita, uma vez que esta é considerada um “sistema modelar secundário” (ONG, 1998, p. 16), isto é, depende de um sistema primário, a linguagem oral. De forma sumária, “A expressão oral pode existir – e na maioria das vezes existiu – sem qualquer escrita; mas nunca a escrita sem a oralidade” (ONG, 1998, p. 16). Contudo, mesmo sendo a responsável por preservar saberes ancestrais antes que estes pudessem ser registrados de forma escrita, não é tão valorizada quanto deveria, uma vez que costuma ser enxergada apenas como a ausência da habilidade de ler e escrever, mas como observa Jan Vansina (1982, p. 157), “A oralidade é uma atitude diante da realidade, não a ausência de uma habilidade”. Para civilizações orais como algumas da África, por exemplo, a oralidade continua sendo de suma importância para a cultura local e até para a escrita. Nas palavras de Schipper (2016, p. 12), “A cultura oral da África Ocidental [...] é o solo fértil no qual os trabalhos de muitos escritores africanos contemporâneos estão firmemente enraizados”, o que também implica dizer que a composição da produção literária desses escritores, ao ter como base as narrativas orais de seus ancestrais, ajuda a valorizar a memória do seu povo, em vez de negá- la. Apesar disso, nem todas as civilizações continuaram a dar importância aos saberes ou qualquer outro produto proveniente da tradição oral, pelo contrário, “Devido a um preconceito há vários séculos arraigado nas mentalidades e no gosto do Ocidente, só admitimos os produtos da arte e da língua sob forma escrita [...]” (ZUMTHOR, 1985, p.4). Nesse sentido, ao pesquisar a influência da oralidade na literatura medieval, Paul Zumthor (1993) afirma não ter a intenção de provar a “existência de uma oralidade medieval, mas valorizar o fato de que a voz foi então um fator constitutivo de toda obra que, por força de nosso uso corrente, foi denominada ‘literária’ (ZUMTHOR, 1993, p. 9). Levando isso em consideração, é possível que diversas obras ditas “literárias” ao longo do tempo – como no caso de textos medievais – possuam marcas de uma cultura oral em sua composição. A oralidade, enquanto objeto de estudo, é um campo muito abrangente por não se tratar de uma prática recente das civilizações. Em A letra e a voz: a “literatura medieval”, Zumthor (1993) distingue três tipos de oralidade que se destacam por estarem relacionados a situações culturais específicas. A primeira definição apontada pelo autor é a de oralidade primária que, segundo suas palavras, “não comporta nenhum contato com a escritura. De 391

Anais fato, ela se encontra apenas nas sociedades desprovidas de todo sistema de simbolização gráfica, ou nos grupos sociais isolados e analfabetos” (ZUMTHOR, 1993, p. 18). Esse tipo de oralidade, na perspectiva do autor, é característica de grupos sociais que não fazem qualquer uso da escrita. Com o avanço da escrita, contudo, se tornou cada vez mais rara a existência de tais agrupamentos de pessoas, uma vez que atualmente, mesmo em locais em que predomina o analfabetismo, a escrita se faz cada vez mais presente em seu entorno. Os outros dois tipos de oralidade mencionados por Zumthor (1993) seguem esse raciocínio, pois têm como ponto em comum o fato de não serem isentas de escritura, mas “coexistirem [com ela] no seio de um grupo social” (ZUMTHOR, 1993, p. 18). Segundo afirma o autor: Denominei-os respectivamente oralidade mista, quando a influência do escrito permanece externa, parcial e atrasada; e a oralidade segunda, quando se recompõe com base na escritura num meio onde esta tende a esgotar os valores da voz, no uso e no imaginário. Invertendo o ponto de vista dir-se-ia que a oralidade mista procede da existência de uma cultura “escrita” (no sentido de “possuidora de uma escritura”); e a oralidade segunda, de uma cultura “letrada” (na qual toda expressão é marcada mais ou menos pela presença da escrita. (ZUMTHOR, 1993, p. 18). Assim, no que diz respeito à existência das oralidades mista e segunda, percebe-se que apesar de ambas estarem em contato com a escritura, distinguem-se uma da outra na medida em que a primeira apenas pode fazer uso da escrita para determinado fim, enquanto a segunda é influenciada pela supremacia da chamada “cultura letrada”. Nesse sentido, a oralidade segunda seria a mais presente nas sociedades contemporâneas, que tendo como base um sistema criado para registro da língua oral (BRANDÃO, 1997), tende a impor sua presença em diferentes contextos de comunicação oral, “chegando a simbolizar educação, desenvolvimento e poder” (MARCUSCHI, 2001, p. 17). É fato que essa visão vem sofrendo alterações ao longo do tempo, mas segundo observa A. Hampaté Bâ (2010, p. 181), “Entre as nações modernas, onde a escrita tem precedência sobre a oralidade, onde o livro constitui o principal veículo da herança cultural, durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita eram povos sem cultura”. Nessa mesma perspectiva, Ruth Finnegan (2016) problematiza discursos que, enquanto enaltecem a palavra escrita, tendem a associar a existência de sociedades orais a um certo primitivismo ou falta de qualquer sabedoria ou conhecimento. Nas palavras da autora: 392

Anais [...] todos incorremos facilmente em um hábito mental que postula que aqueles aparentemente muito diferentes de nós necessariamente têm menos sabedoria, menos sensibilidade para as belezas ou tragédias da vida – e por isso devem, forçosamente, ser considerados, no mínimo, como se pensassem de forma diferente. Esse tipo de percepção também nos torna aptos a abraçar uma visão que coloca as sociedades não letradas e seus habitantes no outro extremo de um grande abismo, separando-as de culturas mais familiares que se baseiam na palavra escrita. (FINNEGAN, 2016, p. 62). Dado o exposto, percebe-se que a falta de compreensão acerca dos grupos orais, gera nas sociedades a tendência de menosprezar ou mesmo rejeitar suas manifestações culturais, consideradas por Hampaté Bâ (2010) como os “tesouros do conhecimento transmitidos pela tradição oral, tesouros que pertencem ao patrimônio cultural de toda a humanidade” (HAMPATÉ BÂ, 2010, p. 181). Reconhecer a legitimidade desses tesouros trata-se de um avanço considerável para os estudos no campo da oralidade. 3 Oralidade em Cazuza A obra considerada como a mais importante da carreira do escritor maranhense Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho, como já foi elucidado, trata-se do romance infantojuvenil Cazuza (1938). O livro contém um relato das memórias de infância do personagem principal que, já adulto, as registra por escrito. Apesar de ser uma obra ficcional, muitas das experiências que são apresentadas ao leitor podem ser associadas a vivências reais da biografia do autor. A narrativa tem como principais cenários três localidades pertencentes ao estado do Maranhão. São elas o povoado de Pirapemas, a vila de Coroatá e a cidade de São Luís, locais em que o menino Cazuza reside durante sua formação escolar. Assim, além de narrar suas vivências no ambiente das escolas que frequentou quando criança, Cazuza também fala da vida em comunidade, que inclui a descrição de costumes e tradições da região, os quais podem ser consideradas bens culturais do povo maranhense e brasileiro. Nessa perspectiva, não só a escrita foi responsável por preservar aspectos importantes da cultura regional, mas também a oralidade. Apesar de a obra retratar a vida de Cazuza e sua relação com o ambiente escolar, não são só essas experiências que contribuíram para sua formação, mas também aquelas que o menino colecionou estando em 393

Anais contato com toda a sua comunidade, a qual possuía diferentes saberes e costumes provenientes da tradição oral. Não é porque se trata de uma narração escrita, que todas as marcas orais tenham desaparecido, uma vez que, segundo defende Brandão (1997), Antes de tudo porque o texto literário, qualquer que seja, se presta a usos diversos, na qualidade de um bem cultural que circula livremente entre os usuários como qualquer outro. Assim, é natural que o texto literário – escrito ou oral – fale daquilo que é importante para a cultura em que se inscreve e à qual se destina. (BRANDÃO, 1997, p. 228). Nessa perspectiva, mesmo optando por narrar de forma escrita, não é surpresa que um escritor adote características da cultura em que está inserido, podendo até mesmo colocá-la em destaque em suas obras; nesse processo, se torna natural que seus escritos preservem marcas da linguagem e da tradição oral valorizada por um povo. Uma das personagens identificadas na obra, que preserva o costume da “contação de histórias” é chamada pelo protagonista de Vovó Candinha, não por ser avó legítima, mas por representar o estereótipo de uma avó da roça. Segundo a descrição presente no romance, “Devia ter seus setenta anos: rija, gorda, preta, bem preta e a cabeça branca como algodão em pasta” (CORRÊA, 2002, p. 24). A chegada dessa figura no povoado de Pirapemas sempre gerava alvoroço entre as crianças que, ansiosas, não viam a hora de sentarem-se ao seu redor para ouvi-la narrar as belas histórias: Não havia, realmente, mulher que tivesse maior prestígio para as crianças da minha idade. Para nós, era um ser à parte, quase sobrenatural, que se não confundia com as outras criaturas. É que ninguém no mundo contava melhor histórias de fadas do que ela [...] – Quantas histórias vovó traz? Perguntávamos. – Um bandão delas, respondia a velha. De dia não conseguíamos que ela nos contasse história nenhuma. – Quem conta histórias de dia, dizia, negando-se, cria rabo como macaco. Mal a noite começava a cair, a meninada caminhava para a casa de Luzia, como se se dirigisse para um teatro. Após o jantar, vovó Candinha vinha então sentar-se ao batente da porta que dava para o terreiro. [...] Sentávamo- nos em derredor, caladinhos, de ouvido atento, como não fora tão atento o nosso ouvido na escola. (CORRÊA, 2002, p. 24-25). O trecho deixa evidente que a habilidade da vovó Candinha em contar histórias, provavelmente transmitidas e ela por seus ancestrais, causava admiração nas crianças, que a procuravam para ouvi-la sempre que possível. O momento acontecia como um ritual: 394

Anais precisava ser à noite, todos sentados em círculo em torno da mulher, que se posicionava no “batente da porta que dava para o terreiro”. Mesmo Cazuza e seus amigos frequentando a escola, nenhuma história que fossem capazes de ler substituiria as sensações causadas pelas narrações da velha senhora. Cazuza expressa tal experiência da seguinte maneira: Ela começava: – Era uma vez [...] Acendiam-se os nossos olhos, batiam emocionados os nossos corações... Não sei se é impressão de meninice, mas a verdade é que até hoje, não encontrei ninguém que tivesse mais jeito para contar histórias infantis. Na sua boca, as coisas simples e as coisas insignificantes tomavam um tom de grandeza que nos arrebatava; tudo era surpresa e maravilha que nos entrava de um jato na compreensão e no entusiasmo. O que sucede às crianças, no que diz respeito à forma como as narrativas são contadas e como a “contadeira de histórias” (CORRÊA, 2002, p. 24) é enxergada por elas, se assemelha muito ao fenômeno descrito por Zumthor (1993), que consiste no fato de que [...] quando o poeta ou seu intérprete canta ou recita (seja o texto improvisado, seja memorizado), sua voz, por si só, lhe confere autoridade. O prestígio da tradição, certamente, contribui para valorizá-lo; mas o que o integra nessa tradição é a ação da voz. (ZUMTHOR, 1993, p. 19). A ação da voz é, portanto, de suma importância para que a tradição oral receba o reconhecimento devido. O efeito exercido por ela sobre as crianças que amavam ouvir as histórias de vovó Candinha foi tão importante que foi uma das principais memórias a fazerem parte do relato de Cazuza, criadas na infância e guardadas até a vida adulta. Essa, contudo, não é a única memória do menino que aponta para a tradição oral. Muito se aproximando da fala de Zumthor (1993) acerca da autoridade dada àqueles que cantam ou recitam textos memorizados ou improvisados, Cazuza apresenta ao leitor um costume muito característico do Nordeste brasileiro. Trata-se do “desafio”, um duelo de versos improvisados de que participavam os cantadores de viola. Segundo a narração de Cazuza, por ocasião da colheita de algodão de um lavrador da região chamado João Raimundo, ocorria uma festa anual caracterizada por muita música e dança, mas principalmente pela participação dos “cantadores” convidados para realizarem o desafio. Para o menino Cazuza e as pessoas daquela localidade, o duelo de versos era o momento mais almejado da festa: 395

Anais Devia ser meia noite e eu já cochilava no regaço de minha mãe, quando o Manduca me veio prevenir que o “desafio” não tardaria a começar. [...] Para a gente matuta, não há nada mais importante numa festa do que o “desafio” entre dois famosos cantadores de viola. Suspendem-se as danças para que todo mundo os ouça em silêncio. (CORRÊA, 2002, p. 57). Fica claro, com o trecho, que além de ser uma prática admirada, era também muito respeitada pelas pessoas da região, que faziam questão de interromper todas as outras atividades para assistir a que se iniciaria. Nessa perspectiva, Cazuza descreve o ritual do duelo da seguinte maneira: Os dois cantadores sentaram-se frente a frente. Versos de cá, versos de lá, a cruzarem-se. Um improvisaria uma quadra ou uma sextilha ou uma oitava e o outro imediatamente respondia com uma oitava ou uma quadra ou uma sextilha. No começo, cada um deles disse em versos, quem era, como nascera, de onde tinha vindo. Cinco minutos depois, começaram a gabar-se dos feitos maravilhosos. Apesar de se tratar de um costume que agradava aos “matutos” e realizado de forma exclusivamente oral – os versos eram improvisados na hora –, é evidente a organização com que os versos eram compostos, uma vez que as estrofes até podiam ser classificadas como “quadra”, “sextilha” ou “oitava”. O Pedro Jeju, dedilhando assanhadamente as cordas da viola, soltou a primeira gabolice3: – José Firmino acredite, Não gosto de me gabar, Mas quando pego a viola, Quando começo a cantar, Saem da cova os defuntos, Os peixes saem do mar, Os anjos descem do céu, E tudo vem me escutar. O José Firmino quase não deixou que o companheiro acabasse o último verso e cantou de viola estendida no peito: – Eu não tenho inveja disso, Sou valente, valentão, Canguçu4 é meu cavalo, Cascavel meu cinturão, Eu engulo brasa viva, 3 Gabolice: ato de elogiar-se. 4 Canguçu: espécie de onça brasileira. 396


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