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ANAIS COLINT Definitivo

Published by biblioteca, 2022-11-14 14:14:28

Description: ANAIS COLINT Definitivo

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Anais doméstico e familiar como aparecem na maioria dos escritos contemporâneos, que de acordo com Dalcastagnè que (2012, p. 172) : “apontou a ausência da mulher na representação do espaço urbano na narrativa brasileira recente. A personagem que caminha pela cidade é, via de regra, o homem. Às mulheres, cabe a esfera doméstica, o mundo que a ficção lhes destina. Ponciá: Mulher - Negra A protagonista feminina delineada por Conceição Evaristo nos faz refletir sobre a presença da mulher em sociedade, em especial, da mulher negra, a qual no decorrer das Eras surge como um sujeito subalterno, mesmo participando das constantes mudanças no âmbito social caracterizado pelas “novas identidades”, (Hall, 2015, p.9). Evaristo em seu texto, mostra-nos uma tentativa da mulher negra de sair da posição de oprimida por meio da mudança de território, embora não obtenha êxito. A partir desse momento, nós, leitores, nos deparamos com uma situação inquietante ao ver na personagem um indivíduo com poucas possibilidades de ascensão devido sua falta de conhecimento científico ao chegar nos grandes centros, cabendo a ela habitar em espaços domésticos e não em espaços abertos, nas ruas em cargos que necessitam de outros saberes. Vemos na personagem (conforme o pensamento de Hall (2015)), uma “identidade fragmentada, em processo de mudança” que “está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social.” (Hall, 2015, p.9). No que diz respeito a este deslocamento e a este “abalo nos quadros de referência”, temos a própria escritora que atua sob essa nova perspectiva feminina, de mulher negra letrada, ao contrário de sua personagem, criação literária que representa um outro grupo de mulheres de sua mesma classe. Na contemporaneidade, as discussões sobre as classes minoritárias estão a cada dia tendo mais visibilidade, pois devido ao rompimento dos estereótipos impostos as mulheres e seu local de existência, muitas foram as mudanças e as situações em que elas se (re)inseriram através das reivindicações do movimento feminista3 que incluía não apenas as 3 O movimento feminista (ou feminismo) “[...] ressurge num momento histórico em que outros movimentos de libertação denunciam a existência de formas de opressão que não se limitam ao econômico. Saindo de seu isolamento, rompendo seu silêncio, movimentos negros, de minorias étnicas, ecologistas, homossexuais, se organizam em torno de sua especificidade e completam na busca da superação das desigualdades sociais.” (Alves;Pitanguy, 1991, p.7) 497

Anais mulheres, mas todos aqueles que eram excluídos pela sociedade por algum aspecto que estava em “desconformidade” com a tradição e, consequentemente, com os ideias machistas. Pois, segundo o pensamento patriarcal machista, “Mais vale deixar as mulheres isoladas e mantê-las ocupadas em casa do que as reunir aos montes, pois as pessoas dessa categoria são como as plantas que fermentam quando se amontoam”, (Perrot, 2007, p.26). A partir desse pensamento exposto por Perrot (2007), confirmamos que os fatos expostos na produção literária de Evaristo (2017) são passíveis de serem discutidos e problematizados, visto que as mulheres antes de se dedicarem as lutas por direitos igualitários para uma boa convivência em sociedade, eram tratadas como sendo menores, cabendo e estes últimos o zelo com o ambiente doméstico, conforme é exposto quando o pai de Ponciá sai com seu irmão para o trabalho, enquanto que as mulheres cuidavam da casa. Semelhante ao período da revolução industrial, Ponciá e as demais mulheres “[...] se sentiam culpadas se não estivessem constantemente ocupadas, tendo interiorizado o emprego em tempo integral de dona de casa.” (Perrot, 2007, p.132). As mulheres enfrentaram muitas situações de julgo desigual, fato que está disposto na literatura de Evaristo, a fim de problematizar as situações inquietantes que envolvem as mulheres, em especial, as negras, que aparecem na literatura representada em posições subalternas conforme constatou Regina Dalcastagnè (2012). Por meio da personagem Ponciá Vicencio, pobre, negra e iletrada visualizamos uma figura feminina subalterna que desejava inserir-se na esfera social urbana a fim de tornar-se um sujeito feminino exímio dos demais que havia perpassado a sua história. Evaristo (2017) embora nos apresente uma personagem subalterna em processo de desterritorialização, submissa aos designíos do “homem branco” ora nas propriedades rurais, ora nos limites urbanos, desencadeia em nós, leitores de sua obra, constante percepção da condição limitante em que está inserida a mulher negra, que se sente escravizada nas diversas conjunturas sociais. A escritora ao dá voz a sua personagem, expondo de modo crítico a angústia de inúmeras mulheres negras que ao longo das Eras revestem-se de coragem para enfrentar o novo e desafiar estruturas e desarticular “as identidades estáveis do passado”. (Hall, 2015, p.14). Ainda neste limiar que envolve as identidades que se modificam ao longo dos tempos, podemos revestir-nos do seguinte pensamento: Evaristo, a partir da sua escrivivência leva 498

Anais ao seu leitor dilemas enfrentados por mulheres negras que ao longo da vida tentaram sair dos limites subalternos, mas que diante das situações inquisidoras envolvendo a classe feminina e negra nem sempre tiveram uma oportunidade sair dos limites da subalternidade. Evaristo deixa-nos outra breve reflexão: sair dos limites geográficos que as oprime nem sempre significa sair da submissão. É preciso trilhar novos caminhos para obter novas possibilidades de vida, visto que as mulheres negras (em especial) são sujeitos cuja identidade está se modificando, não é uma formação estável, pois vivenciamos o período da pós-modernidade, que nos insere em um ambiente aberto a novos processos distantes do conforto permeados pela tradição. Portanto, pensar na mulher-negra é refletir sobre a capacidade de atuação da mulher, das inúmeras possibilidades de existência, na tentativa de extrair do imaginário masculino a posição subalterna que a história as inscreveu e que a literatura se remete a fim de nos apontar as mudanças, os deslocamentos feitos por elas no decorrer das Eras. Por fim, na obra de Evaristo (2017) o pensamento de Hooks (2014, p.07), mediante as imposições masculinas nesse âmbito da legitimação se desenvolve a fim de que reconheçamos que as mulheres negras ao longo da história já foram submissas dentro de sua própria classe, agindo sob circunscrições cujo objetivo era a subserviência, pois: Os ativistas masculinos negros publicamente reconheceram que esperavam que as mulheres negras envolvidas no movimento se ajustassem a um papel de um modelo sexista. Eles exigiram que as mulheres negras assumissem uma posição subserviente. Foi dito às mulheres negras que deviam cuidar das necessidades da casa e criar os guerreiros para a revolução. (Hooks,2014, p.07). Portando, a mulher-negra como vimos acima atuava sob a condição submissa, mediante as ordens do pai e de toda conjuntura masculina local, atribuindo as mulheres deveres domésticos, o cuidado com sua prole e de pequenas roças, agindo pelo viés da subserviência. Ademias, notamos que a mulher avança no percurso histórico atuando mediante a sua resistência a partir do instante em que ela resolve habitar novos ambientes e tentar uma vida diferente da que lhe foi oferecida por sua família circunscrito pela opressão com uma falsa ideia de liberdade. Conclusão 499

Anais Em virtude dos fatos mencionados acerca da obra de Conceição Evaristo e dos textos utilizados como aporte teórico, tivemos a oportunidade de perceber nesta pesquisa a importância da representação do indivíduo, da reivindicação de tornar o sujeito marginalizado e oprimido como um indivíduo que pode falar e ser ouvido na sua condição sem precisar utilizar-se do “discurso hegemônico para fazê-lo”, como afirma Spivak (2010, p.16), é preciso, verdadeiramente, criar espaços em que estes sujeitos subalternos de classes minoritárias falem e sejam ouvidos. Evaristo, na condição militante, enquanto mulher negra, traz representações das dificuldades enfrentadas por ela e por sua classe, envolvendo os desafios de se legitimar em um universo literário homogêneo, a qual milita por ter sua voz audível e ouvida por aqueles que compõem este ambiente estereotipado, de julgo desigual para com as classes minoritárias no trabalho intelectual da escrita, com vistas na valorização da história, do contexto em que fora produzido, ou seja do lugar ocupado por quem deseja falar. Este trabalho teve como principal foco a observação do sujeito subalterno feminino, em especial os de origem negra, como é o caso da personagem Ponciá Vicêncio que a partir de suas lutas representa o negro e sua condição subalterna na busca por uma mudança de vida que requer desbravar novos horizontes, “desterritorializar-se”, sair do seu lugar e buscar outras opções para sua condição de vida, mas que fora impedida por falta de letramento e conhecimentos outros exigidos pela cidade. Fato que acontece nos dias atuais com aqueles que saem de sua região de origem para tentar sobreviver nos grandes centros, mas ao chegarem em determinados espaços lhes resta apenas papéis, condições, profissões que ainda os escravizam, ou “semiescravizam” com longas jornadas de trabalho e salários baixos como acontecia com os familiares de Ponciá. No entanto, esta pesquisa levou em consideração a “escrivivência” da autora para chegar aos resultados aqui expressos, como por exemplo, as indiferenças sociais que cercam o universo literário desde o perfil de quem a produz e até mesmo aquilo que produz, como vimos em algumas citações de Dalcastagnè (2012) em relação a posição minoritária que se insere as personagens das obras produzidas por homens escritores privilegiados, expondo a condição subalterna dada as mulheres e o espaço em que aparecem, relatando assim a obscuridade do perfil feminino dessas produções. Ao contrário do que acontece na maior parte das obras contemporâneas de escritores homens e brancos, Evaristo, a partir de sua vivência cria espaços para que as mulheres negras (em especial) sejam ouvidas por meio de seus próprios contextos e condições de 500

Anais autorrepresentação, se utilizando de uma mulher negra, pobre, sem leitura, sem origens explícitas por meio do seu sobrenome e desterritorializada, para tratar de maneira cúmplice e concreta do “ser marginal” que enfrenta estruturas resistentes para com seu deslocamento em meio as classes estereotipadas, socialmente constituídas, na tentativa incessante por mudança desse perfil homogêneo dos produtores de textos literários, visando assim fortificar a pluralidade e a interculturalidade da escrita contemporânea, possibilitando o espaço de fala aos de classe subalterna, que outrora não conseguiram se autorrepresentar a partir do seu local cultural de fala. Como é o caso dos trabalhadores da roça, das empregadas domésticas, dos negros, entre outros que por meio de sua subalternidade na maioria das vezes não conseguem ter sua voz legitimada na sociedade. REFERÊNCIAs ALVES, Branca Moreira; PITANGUY, Jaqueline. O que é feminismo? São Paulo: Abril Cultural. Brasiliense, 1991. DALCASTAGNÈ, Regina. Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Regina Dalcastagnè. Vinhedo, Editora Horizonte/ Rio de Janeiro, Editora da UERJ, 2012. EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015. HOOKS, Bell. Não sou eu uma mulher? Mulheres negras e feminismo. 1ª edição 1981. Tradução livre para a Plataforma Gueto. Janeiro, 2014. PERROT, Michelle. Parte II: Mulheres. In: Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 1. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Recurso digital, 2017. SPIVAK, Gayatry. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart Almeida. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 501

ENTRE AS PATAS DO LOBO: LIBERDADE E/OU APRISIONAMENTO FEMININO EM “A COMPANHIA DOS LOBOS” Mirian Lúcia FERREIRA (UFCAT)1 RESUMO No conto “The Company of Wolves”, inicialmente publicado em 1979, Angela Carter intertextualiza com o conto de fadas “Chapeuzinho vermelho”, de Charles Perrault. A reescrita busca desconstruir o papel social da personagem principal, que de passiva e submissa passa a ser retratada como empoderada, voraz e sensual. As duas versões nos fazem pensar a respeito de questões que as mulheres são submetidas ao longo dos tempos, como à ordem patriarcal, por exemplo. No caso dos contos de fadas tradicionais, retrata-se a figura feminina ora domesticada ora perversa, ao passo que os contos reescritos, e aqui citamos Carter, pautam-se pela transgressão na medida em que trazem mulheres protagonistas e donas de seus destinos. No entanto, ainda cabe o questionamento: seriam, de fato, as mulheres livres para escolher, ou ainda objetos de desejo, pertencentes a uma nova ordem patriarcal de aprisionamento? Objetiva-se, portanto, demonstrar que apesar de separadas por séculos, ambas as obras ainda trazem questões em comum, como mulheres marginalizadas, detentoras do pecado e da culpa, condenadas e mantidas como formas de alteridade. Para fomentarmos nossas leituras, nossa pesquisa se baseará em teorias sobre representações femininas e misoginia. Utilizaremos as obras História do medo no 1 Pós-graduanda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem (nível Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal de Goiás/Universidade Federal de Catalão. E-mail: [email protected] 502

Anais Ocidente, de Jean Delumeau (2009), Da fera à loira, de Marina Warner (1999), A mulher que eles chamavam fatal, de Mirelle Dottin-Orsini (1996), dentre outros. Palavras-chave: Patriarcalismo, texto literário, intertextualidade. ABSTRACT In the short story The Company of Wolves, initially published in 1979, Angela Carter intertextualizes with the fairy tale Little Red Riding Hood, by Charles Perrault. The rewriting seeks to deconstruct the social role of the main character, who goes from passive and submissive to being portrayed as empowered, voracious, and sensual. Both versions make us think about issues that women have been subjected to throughout time, such as the patriarchal order, for example. In the case of traditional fairy tales, the female figure is portrayed as either domesticated or perverse, while the rewritten tales, and here we quote Carter, are guided by transgression insofar as they bring women as protagonists and owners of their destinies. However, the question still remains: are women in fact free to choose, or are they still objects of desire, belonging to a new patriarchal order of imprisonment? Our goal, therefore, is to demonstrate that despite being separated by centuries, both works still bring common issues, such as marginalized women, holders of sin and guilt, condemned and maintained as forms of otherness. To further our readings, our research will draw on theories about female representations and misogyny. We will use the works History of fear in the West, by Jean Delumeau (2009), From the beast to the blonde, by Marina Warner (1999), The woman they called fatal, by Mirelle Dottin-Orsini (1996), among others. Keywords: Patriarchy, literary text, intertextuality. Introdução The Bloody Chamber and other stories é uma coleção de contos da autora britânica Angela Carter, cujo trabalho foi e continua sendo amplamente divulgado por críticos contemporâneos, apesar de sua morte prematura em 1992. A coleção de contos de Carter foi publicada pela primeira vez em 1979 e ganhou o Prêmio Literário do Festival de Cheltenham. Este trabalho é uma revisão de contos de fadas clássicos que possuem um viés feminista contra as formas de patriarcado impostas à sociedade quando foram escritos. Carter deixou claro que, neste trabalho, sua intenção não era fazer versões de contos de fadas tradicionais, mas usá-los como material para extrair histórias clássicas para iniciar novas narrativas. Carter conta a história de uma menina cujo nome é Chapeuzinho Vermelho, que está na puberdade. Uma menina que não tem medo de nada, principalmente da floresta, seus pais dizem que a floresta é perigosa porque há lobisomens por toda parte. No caminho para visitar sua avó, ela conhece um belo rapaz que aposta que se ele chegar primeiro na casa de sua avó, ela o beijará. No entanto, o menino bonito, que era lobisomem, comeu a pobre vovó, 503

Anais e planejava comer Chapeuzinho Vermelho, foi seduzido por ela para sua surpresa: ela conseguiu não ser devorada pelo lobisomem, e entende-se que Chapeuzinho Vermelho conseguiu fazer sexo com ele porque a história termina com a seguinte frase: \"Ele dormia na cama da avó, entre as patas do lobo tenro\". (Carter, 1979, p. 129). A composição dos personagens, especialmente as personagens femininas, expressa uma crítica ao patriarcado e uma ruptura com seus valores na história. Portanto, o objetivo deste estudo é ler o artigo The Company of Wolves, tendo em vista a fratura do estado feminino de representação feminina no patriarcado, ou seja, o ideal de comportamento feminino mudou, causando surpresa ao leitor. Para leitores acostumados aos contos de fadas tradicionais e seus finais moralizantes e óbvios. O conto “A COMPANHIA DOS LOBOS”, DE ÂNGELA CARTER e o feminismo Os contos de fadas começaram como uma tradição oral, contada pelos agricultores para agradar aqueles que pertenciam à sua comunidade. Essas pessoas se reuniam para ouvir as narrativas, para entreter e também para servir como fonte de aprendizado, a partir dos exemplos de comportamento social contidos nas histórias. Uma vez considerada uma fonte de entretenimento e ensino, é comum oferecer lições morais explícitas. Portanto, é necessário registrar essas narrativas orais e dar-lhes o caráter da época, bem como as questões sociais e ideológicas dominantes. O trabalho de transcrição de exercícios de ditado foi iniciado pelo escritor francês Charles Perrault e continuado décadas depois pelos Irmãos Grimm. É importante ressaltar que as obras transcritas criam uma ilusão de fidelidade entre seus leitores porque os autores fizeram escolhas específicas em seus textos. Dessa forma, o resultado da transcrição é uma montagem de palavras colocadas pelo autor e integradas pelo leitor, visto que não tem acesso ao texto original. Conforme cita Lejeune na seguinte declaração: A transcrição não é uma simples operação de cópia, mais ou menos sutil ou tediosa. É um entretenimento completo. Procuramos encontrar uma forma de comunicar ao leitor, paralelamente ao lançamento da narrativa, a sua escuta. Essa forma vai impor ao leitor uma certa atitude, marca ideológica, associada ao modelo. (LEJEUNE, 2008, p. 164) O gênero conto de fadas foi institucionalizado, dessa forma, Martins afirma que 504

Anais Na institucionalização dos contos de fadas como gênero literário, o importante papel desempenhado pelas mulheres permanece pouco divulgado. (...) Durante a época de ouro do gênero nos séculos XVII e XVIII, mais da metade dos autores eram mulheres; embora considerada pioneira, Perrault era, na verdade, \"uma das muitas escritoras, e em muitos casos até mesmo antes dele” (WARNER, 1999, p. 14), apesar da relevância dessa informação, o fato inegável é que a consolidação dos contos de fadas como gênero literário ocorreu dentro de um discurso patriarcal marcadamente masculino. (Martins 2005, p. 10). A ausência de vozes femininas ocorre não apenas nos preparadores da história, mas também, muitas vezes, no processo de criação literária, no processo narrativo, onde os discursos das personagens femininas são revistos e até mesmo excluídos. Como argumenta a escritora indiana Spivak (2010), essa reticência imposta às personagens e escritoras femininas reflete uma sociedade da época, que via as mulheres como subordinadas superiores, as marcava como secundárias, que é um assunto apagado da história e da escrita. A estudiosa Gayatri Spivak, em Pode o subalterno falar (2010), enfatiza que a subclasse é \"pessoas que pertencem às camadas mais baixas da sociedade, excluídas do mercado, da representação política e jurídica e que podem se tornar membros de um estrato social completamente dominante\" (SPIVAK, 2010, p. 12). Nos contos de fadas, a mulher é quem ocupa esse papel subalterno. Diante disso, vemos uma reprodução do discurso silencioso das mulheres nos contos de fadas nos escritos de Charles Perrault (1628-1703), Jacob Grimm (1785-1863) e William Grimm (1786-1859). Analisando os séculos em que Perrault e os Irmãos Grimm viveram, a articulação entre o estado da produção literária e a esfera social atesta o discurso do patriarcado, aspecto marcante da narrativa clássica. No entanto, ainda que esses autores acrescentem que revelam seus princípios de ordem religiosa ou social, “isso não implica necessariamente uma mudança significativa em relação à ideologia patriarcal por trás do texto” (Martins, 2005, p. 10). O revisionismo, comum hoje, constitui uma estratégia de manipulação das convenções literárias, abrindo a possibilidade de que as histórias sejam revistas e reestudadas a partir de outras perspectivas. Adrienne Rich o define como \"o ato de olhar para trás, olhar-lhe com novos olhos e inserir um texto antigo de uma nova direção crítica\" (1985, p. 2045). A crítica feminista mais tarde tentou atribuir papéis a personagens femininas em contos de fadas ao longo dos anos. O revisionismo é uma técnica que erve como 505

Anais ferramenta para abrir fronteiras na história cultural de todas as mulheres que ficaram em silêncio no passado. Portanto: O processo revisionista dos contos de fadas se move justamente no sentido de expor o sentido cristalino dos contos de fadas ao questionamento, de modo a minar o contexto discursivo dessas histórias e provocar rupturas para que as mulheres possam, por exemplo, ganhar voz no contexto. Até então, eles permaneceram em silêncio. Esta é uma oportunidade para surgir outra história, uma que fale do que foi apagado anteriormente, nem sequer ousou sugerir. A tarefa de revisão dessa forma, portanto, é um ato político de quebrar, ultrapassar e subverter a ordem patriarcal estabelecida nos textos tradicionais. Isso possibilita a emergência de outros significados que, em parte, contribuem para mudanças efetivas nas práticas sociais atuais e nos padrões de comportamento internalizados que são muitas vezes responsáveis pela opressão e declínio intelectual das mulheres. (Martins, 2005, p. 41). Assim, o processo revisionista é colocado em um mecanismo problematizado para discutir os contos de fadas tradicionais, por exemplo, em que se cristalizam as mensagens e os silêncios das personagens femininas. Para ilustrar a importância do revisionismo, tomaremos como exemplo os trechos do encontro entre o lobo e a Chapeuzinho Vermelho na transcrição de Charles Perrault, através do livro da autora Ana Maria Machado e traduzido por Maria Luiza X. de A. Borges e o segundo encontro entre os personagens no texto revisionista escrito por Carter. Perrault descreveu o encontro da seguinte forma: Andando por uma floresta, ela encontrou uma amiga loba e quis comê-la, mas não se atreveu porque havia lenhadores na floresta. Ele perguntou para onde estava indo. A pobre menina, sem saber que era perigoso parar e ouvir o lobo, respondeu: \"Vou visitar minha avó e trazer-lhe um bolo e um pequeno pote de manteiga da minha mãe.\" \"Sua avó mora longe, perguntou o lobo, respondeu Chapeuzinho Vermelho. “Ela mora longe do moinho, na primeira casa da aldeia”. “Excelente!” disse o lobo. \"Eu vou vê-la também. Eu vou por aqui, você vai por ali. Vamos ver quem chega lá primeiro.\" (MACHADO, 2010, p. 43). Por outro lado, Carter relata desta forma: As feras rugiam para a lua com seus focinhos afiados, como se ela tivesse partido seu coração. Dez lobos, vinte lobos, mais do que ela podia contar, uivando em uníssono, como se estivesse louco ou distraído. Seus olhos captaram a luz da cozinha, brilhando como uma centena de velas. Está muito frio, coitado, disse ela. Não é à toa que eles estavam soluçando. Ela fechou a janela para bloquear o lamento do funeral do lobo e tirou o xale escarlate das oferendas e da menstruação. Como o medo não a ajudava em nada, ela não tinha mais medo. (Carter, 1979, p. 126). 506

Anais A personagem feminina nos contos de Perrault é descrita como um ser vulnerável e inocente, como no excerto \"Pobre menina que não sabe que é perigoso parar e ouvir o lobo\" (MACHADO, 2010, p. 43). Além disso, ao final do diálogo, a menina se deixar influenciar pelo lobo, aceita o caminho instruído pelo lobo e demonstra certa passividade e obediência à voz masculina na história. Submissão e obediência derivam, assim, da base patriarcal da necessidade de mulheres passivas e reprimidas, pois os textos de Perrault visam disseminar normas regulatórias visando homogeneizar valores e comportamentos que ele vê como socialmente apropriados, como demonstra o relato de Walker (1996): Os contos de fadas tradicionais vêm de uma variedade de fontes, incluindo mitos antigos, paganismo, fábulas políticas, jogos morais [...]. A maioria dessas histórias revela séculos de cultura patriarcal que mostra pouco respeito pelas mulheres além da jovem e bela \"princesa\". As personagens femininas nessas histórias antigas são apenas domésticas. (Walker, 1996). Ao contrário do arquétipo feminino de Perrault, Carter sugeriu que sua personagem fosse retratada como uma mulher corajosa: \"Como o medo não a ajudava, ela não tinha mais medo\" (Carter, 1979, p. 126), fechou a janela, deixou prantear o funeral da loba, e tirou seu xale escarlate das oferendas e da menstruação” (Carter, 1979, p. 126). O conto contraria quaisquer expectativas da protagonista de obediência, passividade e silêncio, de modo que o processo de revisão de Carter aponta para um preconceito feminista contra a forma patriarcal de representação da mulher, ou seja, rompendo com as representações ingênuas e vulneráveis da personagem sobre as mulheres. Os leitores ficam impressionados com as diferentes perspectivas sobre personagens femininas estabelecidas pelas histórias tão diferentes dos autores. O crescente número de releituras contemporâneas, seja de forma crítica ou reafirmando alguns valores, apontam para as limitações da narrativa tradicional do conto de fadas que vem sendo lisonjeada pela tradição. O resultado é o desenvolvimento desse campo de estudo na literatura contemporânea. Nesse sentido, pretendemos contribuir para este crescente campo de pesquisa, para o qual optamos por revisar os contos de fadas clássicos utilizando uma das várias abordagens feministas atuais. Personagens e liberdade e/ou aprisionamento feminino 507

Anais O conto The Company of Wolves é uma releitura muito interessante e inusitada de Angela Carter, enquanto ela brinca com o tradicional conto de fadas Chapeuzinho Vermelho, combinando fantasia com realidade, subvertendo as representações historicamente patriarcais da sexualidade. A autora percebe a conotação ideológica dos contos de fadas tradicionais, reformula e critica a concepção conservadora de gênero dessas histórias infantis, os quais possuem uma influência tão forte na sociedade. Utiliza o revisionismo para contrariar as imagens cristalizadas do discurso patriarcal, alterando as noções da existência da mulher nas histórias infantis. Como aponta Crunelle-Vanrigh: \"A interação entre repetição, imitação e diferença\" (2001, p. 129). É importante ressaltar como os personagens são apresentados no conto The Company of Wolves: a menina ora é a heroína, ora a vilã; e o homem, que se torna lobisomem, não mata, mas sucumbe ao charme feminino. Há subentendido descrições de cenas de sexo implícitas na narrativa. A escolha desses personagens e como a história é descrita está relacionada ao período em que a obra foi publicada, final dos anos 1960 e 1970, período bastante representativo dos movimentos sociais que ocorrem no mundo: No final dos anos 1970, durante a marcha contra a pornografia, quando as feministas londrinas se radicalizaram contra o uso do corpo feminino para despertar os homens e provaram que a pornografia era uma das muitas formas de dominação, Angela Carter levantou a ideia de que o problema da pornografia não é. Nele, mas em sua natureza reacionária. (Wyler, 1999, p. 15). Angela Carter foi muito além do pensamento feminista dos anos 1970. Ela revisita a liberdade do corpo feminino, argumentando que a ideia de que o corpo serve apenas para despertar os homens é vaga porque as mulheres podem fazer mais para alcançar seus objetivos. Objetivos, usando tentações, por exemplo, jogos ou outros meios para atingir seus desejos, como nessa passagem do conto: Ela estava deslumbrada e nua, os dedos penteando seu cabelo; seu cabelo parecia tão branco quanto a neve lá fora. Então ele caminhou direto para o homem de olhos vermelhos, os piolhos se movendo em sua juba bagunçada. Ele ficou na ponta dos pés e desabotoou o colarinho da camisa. (Carter, 1979, p. 127). A sagacidade da subversão de Carter das personagens femininas com os contos de fadas é evidente, revelando personagens muito diferentes dos arquétipos construídos pelo patriarcado. Assim, em sua obra, Angela Carter visa problematizar a construção de 508

Anais personagens, especialmente de mulheres, para expor uma crítica ao patriarcado e uma ruptura com seus valores, chamando a atenção para a análise de gênero por conta da ideologia, afeta todas as práticas sócio-culturais. A narrativa contemporânea tem um caráter arrojado: \"No século XX, as histórias tradicionais paradoxalmente forneciam a muitos ficcionistas esferas livres de resistência\" (WARNER, 1999, p. 226). A contemporaneidade é uma época que problematiza o que antes era um conceito indiscutível. Diante disso, a Chapeuzinho Vermelho de Carter está longe de ser submissa, passiva e silenciosa. Como a própria Carter disse: \"Ser um objeto de desejo é definido pela voz passiva. Existir na voz passiva é morrer na voz passiva - isto é, ser morto. Isso é o que a mulher perfeita nos contos de fadas é tudo”. (WYLER apud CARTER, 1999, p. xvi). É importante ressaltar a subversão da personagem na narrativa, pois ela tem algo diferente da história clássica: ela é corajosa, \"não sabe o que é tremer. Ela tem sua faca e não tem medo de nada\". Carter, 1979, p. 118). Ou seja, ela estava alerta e ciente dos perigos da floresta; não muito tempo atrás, ele havia desistido da infância; “neste sertão as crianças não serão crianças por muito tempo” (CARTER, 1979, p. 117); sinais de maturidade e sensualidade; \"Seus seios estão começando a inchar, seu cabelo é como algodão e leve o suficiente para quase lançar uma sombra em sua testa pálida; suas bochechas são um escarlate e branco simbólico, ela está apenas começando e sua feminilidade, o relógio em seu corpo, desde então, soou uma vez por mês.” (Carter, 1979, p. 117). Esta, chapeuzinho vermelho não é ingênua, ela desfruta de toda a felicidade que um lobisomem pode lhe dar: (...) Arrancou sua camisa e a jogou no fogo ao lado dos vestígios de fogo de suas próprias roupas descartadas. As chamas dançavam como almas mortas na noite de São Silvestre, e os velhos ossos debaixo da cama começaram a colidir violentamente, mas ela os ignorou. Encarnado como um carnívoro, apenas uma carne impecável pode apaziguá-lo. (Carter, 1979, p. 128). Neste parágrafo, verificamos a descrição implícita da protagonista fazendo sexo com um lobisomem, mas principalmente uma relação iniciada por Chapeuzinho Vermelho, ou seja, uma das partes se interessa e consente com a situação em que está envolvida. O comportamento das meninas não é tão predeterminado no discurso patriarcal de como as mulheres deveriam se comportar ou ser. A moralidade vem em forma de ensinamentos na história de Perrault para lembrar as meninas da sociedade da época, pois se elas não estão se comportando de maneira decente, 509

Anais respeitando sua integridade de castidade e modéstia, cabe à igreja e à sociedade, meninos como os lobos na história, eles podem manchar a honra dessas mulheres inocentes e perder todo o prestígio e status na sociedade em geral. Perrault submeteu sua história ao discurso social de sua época, e sua obra se justifica pela moralidade definida pela Contra-Reforma, como explica Ligia Cademartori: O princípio educativo que rege a história de Perrault, por ele exposto no prefácio da edição de 1695 do poema, é o padrão da arte moral definido pela Contra-Reforma: humilde valorização, mas cristianização. (CADEMARTORI, 2006, p. 41). Perrault veio com a moral porque no final de sua história, Chapeuzinho Vermelho foi devorado pelo lobo, pois ela ingenuamente parou na floresta para falar com ele e dizer-lhe para onde ir. Carter, por outro lado, propõe que o comportamento de sua personagem é completamente diferente da moralidade que Charles Perrault defende. Ela mostra em sua personagem um ato de saber o que quer e buscar sua própria vontade, uma atitude e um ato de coragem. O lobisomem foi quem seguiu as instruções de Chapeuzinho Vermelho, deixando-a decidir o final da história para os dois. Ao contrário do final de Perrault, além de mostrar a vulnerabilidade, infantilidade e inocência da protagonista, a falta de atitude de Chapeuzinho Vermelho a leva a aceitar seu trágico destino: Chapeuzinho Vermelho tirou a roupa e foi para a cama, e quando observou a avó de pijama, se assustou. Eu disse-lhe: \"Minha avó, que braços grandes você tem!\" \"Para abraçá-la melhor, minha neta.\" \"Minha avó, suas pernas são tão grossas!\" \"Isso é para Correr melhor, minha filha.\" avó, suas orelhas são tão grandes!\" \"É para ouvir melhor, minha filha.\" \"Minha avó, seus olhos são tão grandes!\" \"Para te ver melhor, minha filha.\" \"Minha avó, seus dentes são tão grandes! \" \"Para te comer\". (Machado, 2010, p. 45). Perrault termina sua história após esta passagem, dizendo: “Com estas palavras, o lobo pulou em Chapeuzinho Vermelho e a devorou.” (Perrault, 2010, p. 45). Assim, o autor pinta sua história de forma objetiva, não deixando espaço para a imaginação e sem espaço para alterar a história, permitindo que o leitor desenhe exatamente o que diz. Isso fica mais claro quando comparamos essa passagem com a obra de Angela Carter. Ela usa o diálogo de mesmo nome da história Chapeuzinho Vermelho, mas sob o preconceito da personagem feminina, pois o protagonista não se deixa devorar por um lobisomem, mas o seduz, mostrando que sua personagem é uma mulher com voz e não permite que outros escrevam 510

Anais sua própria História: “Quão grandes são seus braços. Para te abraçar melhor. Os lobos de todo o mundo estavam cantando uma canção de casamento do lado de fora da janela, e ela de bom grado deu-lhe o beijo que ela merecia.” (Carter, 1979, p. 127) Seus dentes são tão bons! (...) para te comer melhor. A garota riu alto, eu sabia que não era a carne de ninguém. Ela riu dele, na frente dele, rasgou sua camisa, e deitou perto do fogo ao lado dos restos ardentes de suas próprias roupas descartadas. (Carter, 1979, p. 127 e 128) No final, Chapeuzinho Vermelho fez sexo com o lobisomem e adormeceu na cama de sua avó, \"(...) entre as garras do tenro lobo\". (Carter, 1979, p. 129). Assim, a autora Angela Carter faz exatamente isso, subvertendo as representações da sexualidade que foram historicamente construídas pelo discurso patriarcal. Carter re-expressa a história tradicional Chapeuzinho Vermelho, critica os conceitos conservadores de gênero nas histórias infantis, usa o revisionismo para contrapor a imagem cristalizada do discurso patriarcal e muda o conceito da existência da mulher nas histórias infantis. Conclusão Angela Carter revisa os contos de fadas clássicos com um viés feminista para combater as formas de patriarcado impostas à sociedade quando os contos de fadas foram escritos. Ao fazer isso, ele subverterá essas identidades em um nível consciente, pois fará com que os leitores questionem e questionem desconfortavelmente a realidade que insere. A autora usa sua habilidade de escrever por meio da literatura para ampliar maiores possibilidades para esse leitor desconstruir ideias que antes generalizavam, surpreendiam e descortinavam uma possível nova forma de olhar o papel da mulher na literatura. Assim, nos contos de fadas, a moralidade de manter a ordem vigente e difundir o duplo conceito de bem e mal, certo e errado é questionada por Carter, que abre novas possibilidades para as personagens femininas dessas histórias. Assim, neste trabalho, o conto The Company of Wolves é usado como exemplo para mostrar a obra de Carter tentando derrubar mulheres sempre vulneráveis, ingênuas, caladas diante das vozes masculinas, sempre seguindo esses estereótipos. Um comportamento padrão imposto pelo patriarcado, atualizando a antiga tradição dos contos de fadas com uma versão mais moderna. 511

Anais Além disso, a pesquisa de gênero aqui apresentada corrobora a afirmação de Butler sobre identidade de gênero, dizendo: \"Não há identidade de gênero por trás da expressão de gênero; essa identidade é construída através da atuação da expressão que é o seu resultado\" (BUTLER, 2010, p. 48). Dessa forma, a identidade é construída, em vez de o gênero determinar qual comportamento ou atitude uma pessoa deve adotar. REFERÊNCIAS BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 3.ed. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2010. CADEMARTORI, Lígia. O que é Literatura Infantil. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. CARTER, A . The Bloody Chamber and Other Stories. First published in Great Britain by Victor Gollancz Ltd, 1979. COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo: Paulinas, 2008. CRUNELLE-VANRIGH, Anny. The Logic of the Same and Différance: \"The Courtship of Mr.Lyon\". In: ROEMER, Danielle M.; BACCHILEGA, Cristina (Ed.). Angela Carter and the Fairy Tale. Detroit: Wayne State University Press, 2001. p. 128- 144. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico. De Rousseau à internet. Trad. Jovita Gerheim Noronha, Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008. MACHADO, A. M. Contos de Fadas de Perrault, Grimm, Andersen e outros. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges . Rio de Janeiro . Jorge Zahar Editor Ltda, 2010. MARTINS, Maria Cristina. \"E foram(?) felizes para sempre...\" : (Sub)Versões do feminino em Margaret Atwood, A. S. Byatt e Angela Carter. 2005. 295 f. Tese (Doutorado em Letras: Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005. RICH, Adrienne. When We Dead Awaken: Writing as Re-vision. In: GILBERT, Sandra M.; GUBAR, Susan (Ed). The Norton Anthology of Literature by Women: The Tradition in English. New York: W.W. Norton, 1985. p. 2044-56. SPIVAK, G. C. Pode o Subalterno Falar? 1.ed . Trad. Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; Andre Pereira. Belo Horizonte. Editora da UFMG, 2010. WALKER, Barbara G. Feminist fairy tales. New York: Harper Collins. 1996. WARNER, Marina. Da fera à loira. Sobre contos de fadas e seus narradores. Trad. Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 512

O RACISMO RETRATADO NA NARRATIVA ÚRSULA DE MARIA FIRMINA DOS REIS E NO CONTO MARIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO Welliton dos Anjos BARBOSA (UESPI)1 Antonio Vinícius da Silva NASCIMENTO (UESPI)2 Debora Keyte Rodrigues LIMA (UESPI)3 Jailma Santana SILVA (UESPI)4 Luana Clenilda de SOUSA (UESPI)5 Maria Aurilene de SOUSA (UESPI)6 Mariza de Moura Machado GUIMARÃES (UESPI)7 Mônica Maria Feitosa Braga GENTIL (UESPI)8 RESUMO O presente trabalho tem como objetivo apresentar, uma análise comparatista entre as obras Úrsula da escritora Maria Firmina dos Reis e o conto Maria que está no livro de contos Olhos D'Água da escritora Conceição Evaristo, evidenciando que ambas possuem em suas narrações a exposição de um problema que tem sido persistente na sociedade brasileira, o racismo. A partir da escrevivência, as autoras relatam os atos de racismo que aconteceram no Brasil em Úrsula, e ainda acontecem, em Maria. Lima e Vala (2004), ao apresentarem uma definição de racismo afirmam que: “O racismo constitui-se num processo de hierarquização, 1 Graduandos [email protected], [email protected], [email protected], [email protected], [email protected], [email protected], [email protected], Doutora [email protected] 513

Anais exclusão e discriminação contra um indivíduo ou toda uma categoria social que é definida como diferente com base em alguma marca física externa (real ou imaginada), a qual é re- significada em termos de uma marca cultural interna que define padrões de comportamento.” (LIMA; VALA, 2004. p. 402). Desse modo, mostraremos que Úrsula e Maria apresentam em suas narrativas representações do racismo, mesmo que sob perspectivas diferentes, através da atitude de personagens, que se colocam em situação de superioridade, desumanizando aqueles que possuem uma cor de pele diferente, sentindo-se livres para praticar violência contra seus corpos, e que se utilizam de estereótipos para agredir o outro. PALAVRAS-CHAVE: Racismo. Escrevivência. Análise comparatista. ABSTRACT This paper aims to present a comparative analysis between the works Ursula by the writer Maria Firmina dos Reis and the short story Maria, which is in the book of short stories Olhos D'Água by the writer Conceição Evaristo, showing that both have in their narratives the exposure of a problem that has been persistent in Brazilian society, racism. Based on their experience of writing, the authors relate the acts of racism that happened in Brazil in Ursula, and that still happen in Maria. Lima and Vala (2004), when presenting a definition of racism state that: “O racismo constitui-se num processo de hierarquização, exclusão e discriminação contra um indivíduo ou toda uma categoria social que é definida como diferente com base em alguma marca física externa (real ou imaginada), a qual é re-significada em termos de uma marca cultural interna que define padrões de comportamento.” (LIMA; VALA, 2004. p. 402). In this way, we will show that Ursula and Maria present in their narratives representations of racism, even if from different perspectives, through the attitude of characters, who put themselves in a situation of superiority, dehumanizing those who have a different skin color, feeling free to practice violence against their bodies, and who use stereotypes to attack the other. KEYWORDS: Racism. Escrevivência. Comparative analysis. O livro “Úrsula” de Maria Firmina dos Reis e o conto “Maria” de Conceição Evaristo compartilham uma mesma temática, o racismo, possuindo nas suas narrações a representação dos sofrimentos enfrentados pelos negros no Brasil, no passado com a escravidão, e no presente, com o preconceito racial. As obras foram escritas em períodos diferentes e se passam em períodos diferentes, contudo ambas estão conectadas, são comprometidas em expor e denunciar um problema da sociedade brasileira que se perpetuou através do tempo, continuando a causar sofrimento e dor. Destacaremos a seguir alguns elementos em comum entre as duas obras, bem como as discussões e reflexões que podem surgir tendo-as como ponto de partida. Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, nos apresenta uma história de amor entre dois jovens extremamente apaixonados, Úrsula e Tancredo, narrando como se dá e se desenvolve esse romance. Contudo como apresenta Rosa ao parafrasear Teles: “[...] o que mais distingue 514

Anais o livro não é o enredo romântico de amor, dor, incesto e morte, temas comuns ao romance do século XIX, mas o tratamento dado à questão do escravo.” (TELES, 1997 Apud ROSA, 2018, p. 3). O maior destaque do livro está em apresentar e representar a questão daqueles que foram arrancados de sua terra e trazidos para o Brasil para serem escravizados, fazendo-o com um olhar humano, dando evidência aos terríveis sofrimentos e privações que eles passaram, sempre enfatizando a perda, ou melhor, o roubo da liberdade dos negros forçados a serem escravos, como verificamos no seguinte fragmento que é uma conversa entre Túlio e Suzana, ambos personagens negros: A africana limpou o rosto com as mãos, e um momento depois exclamou: Sim, para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Elas são inúteis, meu Deus; mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a tudo quanto me foi caro! Liberdade! Liberdade... ah! Eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana com amargura – Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. (REIS, 2018, p. 69). Podemos ver nas palavras de Suzana a dor que ela sente quando se lembra da época em que era livre e chora com amargura, infelizmente como ela mesmo diz lágrimas inúteis, prestando seu tributo de saudade, a personagem transmite ao leitor seu sentimento de aflição, percebe-se que há aqui, uma intenção por parte da autora em mostrar como se sentiam aqueles que eram desumanizados, evidenciando como era grande o sofrimento e como havia a saudade da terra natal e do tempo em que se era livre. A autora em diversos momentos da obra confronta o leitor com os pensamentos e sentimentos dos personagens, mostrando uma preocupação de nessa representação apresentar uma visão interna e não externa da escravidão. Enquanto que, no conto Maria de Conceição Evaristo, vê-se a representação do racismo nos dias atuais mostrando que as práticas de violência contra o corpo negro persistem através do tempo. A narrativa mostra o fim de um dia de trabalho de uma doméstica chamada Maria, quando ela está voltando para casa e pega um ônibus que é assaltado. No desenrolar da história, Maria acaba sendo acusada de ser cúmplice do assalto por ter envolvimento com um dos assaltantes. A narrativa evaristiana mostra de forma crua a violência que é enfrentada pelos negros no Brasil, infelizmente, o conto pode confundir-se com a realidade de uma notícia atual. Maria em uma narrativa breve, porém impactante, deixa evidente o racismo que existe na sociedade brasileira, e a facilidade com que uma pessoa negra pode ser brutalmente agredida no Brasil. 515

Anais Herculano aponta o racismo como: [...] a forma pela qual desqualificamos o outro e o anulamos como não semelhante, imputando-lhe uma raça. Colocando o outro como inerentemente inferior, culpado biologicamente pela própria situação, nos eximimos de culpas, de efetivar políticas de resgate, porque o desumanizamos: “ô raça!” (HERCULANO, 2006, p. 2). Pode-se ver nas obras, exatamente o que é definido por Herculano como racismo, a anulação do outro como semelhante, como pessoa, como sendo não dotado das mesmas características humanas, apenas por possuir uma cor de pele diferente, sendo por isso a ele atribuída uma raça diferente. Há nos personagens das obras, a sensação de superioridade e a imputação de inferioridade nos negros, isso fica evidente em Úrsula no comportamento do personagem Túlio em relação a Tancredo logo na primeira vez em que se encontram: “Senhor! – balbuciou o negro – vosso estado... Eu – continuou, com o acanhamento que a escravidão gerava – suposto nenhum serviço vos possa prestar, todavia quisera poder ser- vos útil. Perdoai-me!”. (REIS, 2018, p. 20). Verifica-se que Túlio, havia sido ensinado a se ver como menor pela escravidão, pois mesmo em uma situação em que estava prestando socorro, sente-se pressionado a pedir perdão pela atitude que tomou diante de seu “superior” sem que este lhe tenha dado a devida permissão para ajudar. O que reforça a representação real dos efeitos que a escravidão sobre aqueles tornados escravos, que tentava fazer com que estes se vissem da forma que eram vistos pelos escravizadores, sendo desumanizados. Túlio não conhecia Tancredo, mas mesmo assim já havia sido ensinado a considerá-lo como superior a si, apenas pelo fato de ele ser branco, fica clara a ideia de separação que a escravidão buscava implantar. Tancredo tenta se aproximar e estabelecer uma relação no mesmo nível mostrando também gratidão, chamando-o de amigos: “— Meu amigo, – continuou – podes acreditar no meu reconhecimento e na minha amizade.” (REIS, 2018, p. 20), porém Túlio insiste: “A minha condição é a de mísero escravo! Meu senhor – continuou – não me chameis amigo. Ah! O escravo é tão infeliz!... Tão mesquinha e rasteira é a sua sorte, que...” (REIS, 2018, p 21). Em Maria também podemos perceber que o racismo definido por Herculano está presente, quando a personagem é diminuída, desumanizada e tratada como inferior por outros ocupantes do ônibus. Ela não é vista como igual, e por ser de outra “raça” não lhe é dado o direito nem de explicar-se, aliás lhe é retirado o direito de sequer defender-se, ela foi acusada, julgada e condenada quase que no mesmo instante, restando àqueles que eram 516

Anais “superiores” puni-la, e puniram brutalmente com a morte. Em determinado momento um personagem diz: “Negra safada, vai ver que estava de coleio com os dois”. (EVARISTO, 2016, p. 25) O personagem faz questão de iniciar sua fala enfatizando a cor de Maria, justamente para evidenciar que ela não pertencia ao mesmo espaço que eles, os brancos, que ela não era um deles, era uma negra e por isso deveria fazer parte do grupo de criminosos, porque todos os negros são assim, dessa forma, fica evidente que a ela bastava carregar sua cor e seus traços para ser suspeita ou culpada. É possível identificar que há uma violência “justificada” segundo os olhos do racismo, que se dá na forma como os passageiros do ônibus direcionam- se à Maria. Fica evidente que os comentários e acusações que a mulher recebe já estavam internalizados nos personagens. Aparentemente, estes os carregavam consigo esperando externá-los quando houvesse a oportunidade, como se o racismo sempre fosse ter espaço na sociedade. Lima e Vala (2004) conceituando racismo também apresentam que: O racismo constitui-se num processo de hierarquização, exclusão e discriminação contra um indivíduo ou toda uma categoria social que é definida como diferente com base em alguma marca física externa (real ou imaginada), a qual é ressignificada em termos de uma marca cultural interna que define padrões de comportamento. (LIMA; VALA, 2004, p. 402). É interessante destacar que as duas definições reforçam que o racismo sempre acontece vindo de pessoas que se colocam em situação de superioridade em detrimento do outro. O diferente traz consigo uma ideia de estranhamento, contudo, as divisões ficam mais expressas quando há acepção de pessoas. A ideia de hierarquização também está contida nas duas obras, em Úrsula vemos ela estabelecida de forma oficial com a escravidão, já em Maria, embora se esteja em uma época após a abolição da escravatura, ela se mantém, sendo neste caso explícita, e não velada como as vezes ocorre. A cor da pele, nas duas situações, é um fator definitivo, e como aponta Lima e Vala (2004), essa única característica traz consigo estereótipos que a ela são atribuídos. Em Maria nota-se que os personagens insistem em fazer referência a cor dela: “Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões!” (EVARISTO, 2016 p. 16) e novamente em: “Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher.” (EVARISTO, 2016 p. 25). Isto evidencia que eles estão tentando trazer uma carga de significação apoiada no estereótipo que é atribuído à sua cor, como já citado, do negro violento, buscando utilizar o temo de forma pejorativa, imputando- 517

Anais lhe uma carga negativa, na tentativa de uma ofensa, imagens que foram sendo criadas através do tempo, emergindo dos estereótipos que são frutos da escravidão. Nota-se também que as duas obras dão uma atenção especial para a questão da mulher negra. Em Úrsula somos apresentados a uma personagem chamada Suzana, ela foi retirada da sua terra trazida para o Brasil de navio e tornada escrava, tendo sua história e sua vida no seu país de origem completamente ignorados. Na narração feita pela própria Suzana em uma conversa com Túlio, percebemos a sua dor, em um momento ela era livre, e alguns segundos depois sua vida tinha mudado completamente. Ela saíra para colher milho, deixando sua filhinha aos cuidados da mãe, porém ela não sabia que nunca mais a veria: “Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe, e fui-me à roça colher milho. Ah! Nunca mais devia eu vê-la…” (REIS, 2018, p. 70). A vida de Suzana muda bruscamente e rapidamente: E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. (REIS, 2018, p. 70). Este momento da narrativa de Úrsula consegue construir bem a imagem da escravidão, a sua crueldade e desumanidade, o menosprezo com o qual os negros eram tratados e a forma como eram vistos. Ela fora pega sem aviso prévio, e é desta forma que o preconceito roubava a liberdade e o direito dos negros, e ainda se mantém contra suas vidas, seus sonhos e sua família, como é o caso de Maria. O trecho narrado por Reis (2018) explicita sentimentos de inconformidade por ações de caráter injusto e sem fundamentação, posteriormente reforçadas em Evaristo (2016), agora em uma época diferente, mas ainda ocorrendo de forma semelhante, o que soa totalmente incoerente mediante a tantos meios de informação e denúncia. As lágrimas de Suzana são e continuam sendo essas denúncias e pedidos de ajuda, pois nunca se esperou e nunca será esperado que atos de discriminação ocorram. Evaristo (2016) traz a personagem Maria, uma mulher que carrega as suas dores cotidianas, mas que encontra dentro de sua rotina exaustiva uma razão maior para seguir, que seriam os seus filhos. No trecho a seguir, a autora descreve a alegria da personagem ao poder levar para casa os “restos” da festividade de alguém, no caso, sua patroa. Para ela já era o suficiente ter como alimentar a fome de seus filhos: 518

Anais Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa. Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso, a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e aquele remedinho de desentupir nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e havia melão. As crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos iriam gostar de melão? (EVARISTO, 2016, p. 24). Nota-se que, ao questionar se os seus filhos iriam gostar de melão, ela demonstra e retira de si a preocupação de qualquer outra coisa em relação a seu próprio bem-estar. Assim, temos uma personagem que traz consigo não só o peso imposto pela sociedade de ser uma mulher negra, mas que enfrenta a dificuldade de ser mãe solo. Logo, seu trabalho e sua dedicação vão direcionar-se apenas a como eles estarão no fim do dia. Os restos e a gorjeta são mais úteis se puderem suprir as necessidades de seus pequenos. Ao reencontrar o pai de seu filho, Maria remonta lembranças de um passado. Ambos se desmontam e reconhecem que a vida não continuou fácil. Evaristo (2016) toca em um ponto de bastante relevância: “surgiram os dois filhos menores. E veja só, homens também! Homens também? Eles haveriam de ter outra vida.”(EVARISTO, 2016, p. 24). A autora usa estas palavras para deixar claro como a vida de um homem pode tornar-se melhor e mais próspera ou, simplesmente, distante da dureza que é ser uma mulher. O fato é que ela parece mais aliviada por ter filhos, e não filhas, já que aparentemente, o homem não tem o mesmo peso ou responsabilidade de ser pai, e não é cobrado por isso. Pode-se ver que as obras apresentam diferentes manifestações de racismo, Úrsula apresenta a crueldade da escravidão, mostrando como eram tratados os escravizados, vistos apenas como mercadorias como se não possuíssem humanidade, como se não fossem pessoas iguais aqueles a quem serviam: Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. (REIS, 2018, p. 71). Como o próprio trecho deixa claro, Suzana é tratada de forma inferior a um ser humano, o que importava era que o “produto” chegasse até o Brasil e fosse comercializado, 519

Anais aquelas pessoas eram apenas mercadorias que estavam sendo transportadas, em nenhum momento são minimamente reconhecidas como semelhantes. Em Maria vemos que a situação não mudou muito, Maria, acaba sendo marcada por ser negra: “A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito: Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões!” (EVARISTO, 2016, p. 25). Certamente, ela não teria sido acusada e brutalmente assassinada se fosse de outra cor. As obras apresentadas mostram a liberdade que os brancos sentem em praticar violência contra o corpo negro, em Úrsula, vemos o terrível tratamento que era dado aos escravizados, por exemplo, quando destaca como era a vida dos escravos do Comendador: “Esfaimados, seminus, espancados cruelmente, suspiravam pelas duas ou três horas de sono fatigado, que lhes concedia a dureza de seu senhor”. (REIS, 2018, p. 98). Em Maria vemos a mesma situação se repetir agora sob outra forma, mas ainda assim demonstrando a liberdade sentida por aqueles que se colocam em situação de superioridade: “Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão” (EVARISTO, 2016, p. 26). As pessoas tanto daquela época quanto de hoje, aplicam essa violência com uma normalidade e naturalidade que não deveria acontecer. As obras cada uma a sua forma são um grito de denúncia, e mostram a liberdade que foi brutalmente roubada de Maria, com sua morte, de Túlio, Suzana e tantos outros com a escravidão. O que se observa ainda é que a cor de sua pele parecia ser o suficiente para justificar as agressões verbais e físicas, como também ter domínio sobre seu corpo, de modo a tratá-lo como lhes parecia justo. Úrsula apresenta em determinado momento uma visão otimista sobre o futuro, conforme a fala de um personagem, uma esperança de dias melhores onde a situação que era vivenciada seria extinta: “— Cala-te, oh! Pelo céu, cala-te, meu pobre Túlio – interrompeu o jovem cavaleiro – dia virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos.”(REIS, 2018, p. 21). É triste saber que embora a situação tenha mudado, e tenha melhorado em muitos aspetos a esperança que é apresentada em Úrsula sobre o futuro melhor, não se concretiza completamente, Maria nos mostra que infelizmente a mudança que ocorreu não foi o suficiente, ainda se mantém muito preconceito e violência, percebe-se que nem todos os homens se veem como irmãos. É fato que o período da escravidão deixou marcas profundas, não somente para aquele século. Há aqueles que tomam esses registros históricos para transformar os dias de hoje, para que não se repitam, e isso se dá pelos movimentos de luta em prol de seus semelhantes, sendo que muitas vezes estes são menos favorecidos na 520

Anais sociedade contemporânea. Quando lemos o que registra Evaristo (2018), nos entristecemos, sabendo que alguns fecham os olhos como ato de negação para combater o racismo e não admitem que ele ainda está presente, e são alguns desses que o reproduzem para abrir feridas. Conforme aponta Nilha (2021): “A palavra \"escrevivência” foi criada por Conceição para definir a sua arte: escrever a vivência do dia a dia e das lembranças dela mesma e de seu povo. Palavras e vida, sempre unidas, como ela havia aprendido ao guardar no peito as histórias que eu via no pindura saia.” (2021). Dessa forma destacamos que as obras citadas, se enquadram nesse estilo de escrita, suas histórias contém a vivência do passado e do presente, as lembranças do sofrimento enfrentado pelos negros no brasil, sinalizando que até hoje discriminações semelhantes aconteçem. Em Úrsula a escravidão é apresentada sob uma ótica interna, promovendo uma aproximação com as histórias narradas, em Maria o racismo é mostrado com clareza, bem como suas consequências mais severas. Orlando Nilha (2021) ao falar sobre a literatura de Evaristo também diz: A literatura de Conceição resgata uma voz ancestral, voz das “mães pretas” escravizadas que eram obrigadas a contar histórias para entreter os filhos dos senhores. Conceição não ecoa essa voz para agradar aos ouvidos das classes privilegiadas, mas para expressar o mundo interior da mulher negra: “a nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa- grande e sim para incomodá-los em seus sonos injustos. (NILHA, 2021, p. 29). Há nas obras o compromisso de denunciar as ações da sociedade, que não pode esquecer o que passou e não pode fechar os olhos para o que acontece hoje: o racismo ainda é um discurso que rouba a liberdade, identidade e as vivências do outro, como também um discurso que leva à morte. Conforme apontado por Nilha, a literatura de Evaristo não se compromete em agradar as classes privilegiadas, mas com a exposição e denúncia do racismo ainda praticado no brasil, de igual forma a obra de Reis, expondo as consequências trágicas da escravidão, ligando-se através do tempo, para incomodar os sonos injustos dos privilegiados. Evaristo e Reis encontram a literatura como instrumento de refúgio e desde então vêm sendo exemplo para as gerações seguintes. Suas literaturas soam como vozes mediante a jovens que estão descobrindo suas raízes e como a vida pode ser cruel, principalmente para homens e mulheres negros, assim, os relatos e a vida das autoras são 521

Anais como guia e espelho para que se reconheçam e sintam-se inspirados a erguer sua própria voz. As narrativas acima contam a história de personagens negras que, embora estejam localizadas em períodos históricos diferentes sofrem com o problema do racismo, sendo desumanizadas, humilhadas e tratadas com muita violência, contudo, fora da literatura continuam existindo várias “Marias”, “Túlios” e “Suzanas” que convivem com essa realidade atordoante. O racismo é um fator persistente nas diversas camadas sociais, mas as mulheres negras e de baixa renda acabam sendo mais martirizadas, ficando evidente o problema estrutural no Brasil. O corpo negro é sexualizado e objetificado, causando a desvalorização da mulher negra, resumindo-a a algo que ainda sirva somente para suprir prazeres alheios. As obras possuem uma distância entre os anos em que se passam, todavia ao serem comparadas, mostram que tratam da mesma temática, mesmo que cada uma represente sob sua perspectiva os problemas da época em que se passam, infelizmente tais problemas ainda persistem na sociedade e violentam essas mulheres. O tema tratado é de grande importância e tais obras são muito pertinentes para que essas questões possam ser discutidas através da literatura, reconhecer e estudar esse acervo é enaltecer a escrita feminina negra diante de uma sociedade que não reconhece o valor dessa literatura. REFERÊNCIAS EVARISTO, Conceição. Olhos d'água. Pallas Editora, 2016. ROSA, Soraia Ribeiro Cassimiro. Um olhar sobre o romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Revista Literafro, Belo Horizonte, 2018. REIS, Maria Firmina. Úrsula e outras obras [recurso eletrônico]. ed. 11. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2018. HERCULANO, Selene; PACHECO, Tania. Racismo ambiental, o que é isso. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentável e Democrático: FASE, 2006. NILHA, Orlando. Conceição: Conceição Evaristo. Campinas: Mostarda, 2021. 522

“UMA FORMA QUE ENCONTROU PRA POLÍTICA EXERCER FOI NA ARTE LITERÁRIA”: Uma análise do cordel Maria Firmina dos reis, de Jarid Arraes Mairylande Nascimento Cavalcante Ferreira (PPGLB-UFMA/FAPEMA)1 Mikeias Cardoso dos Santos (UFMA-PPGLB)2 Orient.: Cristiane Navarrete Tolomei (UFMA-PPGLB/PGCult)3 RESUMO Este estudo tem a intenção de analisar o folheto de cordel Maria Firmina dos Reis que faz parte de uma antologia intitulada Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, de Jarid Arraes, lançado em 2017. Na obra em destaque, a autora versifica 15 mulheres negras que exerceram um importante papel na sociedade. A poesia de cordel surgiu em Portugal por volta do século XV, e espalhou-se pela França e Espanha, e em meados do século XVII o sertão 1Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Maranhão/UFMA campus Bacabal, vinculada à linha de pesquisa 2: Literatura, cultural e outros saberes, sob orientação da profa. Dra. Cristiane Navarrete Tolomei. Membro do grupo de pesquisa Marginália Decolonial/CNPq. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão – FAPEMA. E-mail: [email protected] 2 Mestrando em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras de Bacabal – PPGLB, da Universidade Federal do Maranhão – UFMA, no Centro de Ciências, Educação e Linguagens de Bacabal – CCEL na Área de Concentração Linguagem, Cultura e Discurso com ênfase na Linha de Pesquisa 2 Literatura, Cultura e Fronteiras do Saber. Integrante do Literatura e Visualidade - CNPq-UFS e do Núcleo de Pesquisa em Literatura Maranhense - NUPLIM/ CNPq-UEMA. E-mail: [email protected] 3 Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Docente adjunto III do curso de Letras da Universidade Estadual do Maranhão, Campus Bacabal; docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Letras (PGLB/UFMA/Bacabal e docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (PGCult/UFMA/São Luís). 523

Anais do Brasil foi agraciado com esse gênero literário, isso aconteceu por causa da vinda dos colonizadores da Península Ibérica que trouxeram seus livros para as terras brasileiras, sendo ressignificados de acordo com a história e o contexto dos que a teciam no novo território. Com uma linguagem acessível, o cordel não ficou somente no Nordeste do Brasil, espalhando-se por todo o país. Na literatura brasileira estão presentes mulheres escritoras que publicam suas obras e têm seu reconhecimento para tal oficio. Nesse sentido, buscamos analisar o folheto de cordel Maria Firmina dos Reis, o qual narra a trajetória de vida e luta da primeira romancista negra brasileira que nascera em São Luis-MA,11 de outubro 1825. Ela escreveu contos, livros e poesias, entre suas obras de grande potência destacamos o romance Úrsula, publicado em 1959, que é visto por uma parcela da crítica literária como o primeiro romance abolicionista e primeiro romance escrito por uma mulher negra no Brasil. A metodologia aplicada é de caráter analítico e a pesquisa é bibliográfica. O aporte teórico é composto por autores como: Arraes (2017), Fanon (2008), Tolomei (2019), Mendes (2006) e Dalcastagnè (2015/2018). PALAVRAS-CHAVE: Poesia de cordel. Maria Firmina dos Reis. Romancista Negra. ABSTRACT This study intends to analyze the cordel pamphlet Maria Firmina dos Reis that is part of an anthology entitled Heroínas negras brasileira em 15 cordels, by Jarid Arraes, released in 2017. In the featured work, the author versifies 15 black women who exercised an important role in society. Cordel poetry emerged in Portugal around the 15th century, and spread to France and Spain, and in the mid-17th century the sertão of Brazil was graced with this literary genre, this happened because of the coming of the colonizers from the Iberian Peninsula. who brought their books to Brazilian lands, being re-signified according to the history and context of those who wove it in the new territory. With an accessible language, cordel was not only in the Northeast of Brazil, spreading throughout the country. In Brazilian literature there are women writers who publish their works and have their recognition for such an office. In this sense, we seek to analyze the cordel pamphlet Maria Firmina dos Reis, which narrates the life and struggle of the first black Brazilian novelist who was born in São Luis-MA, October 11, 1825. She wrote short stories, books and poetry, among In his works of great power, we highlight the novel Úrsula, published in 1959, which is seen by some literary critics as the first abolitionist novel and the first novel written by a black woman in Brazil. The methodology applied is analytical and the research is bibliographic. The theoretical contribution is composed by authors such as: Arraes (2017), Fanon (2008), Tolomei (2019), Mendes (2006) and Dalcastagnè (2015/2018). KEYWORDS: Cordel poetry. Maria Firmina dos Reis. Black Novelist. 1 Para início de conversa A literatura de cordel é uma literatura interdisciplinar que abarca os mais variados temas de forma popular que agrada tantos leitores e ouvintes que são convidados pelos poetas de bancada e repentistas a se divertirem através de versos cômicos e até mesmo se informarem por meio de versos que possuem a criticidade. Sem dúvidas, a poesia de cordel 524

Anais é popular por apresentar uma linguagem acessível e que agrada os mais variados grupos de leitores. Sobre a literatura de cordel ser popular, Arantes (1998), nos fala que: Quando se fala em cultura popular, acentua-se a necessidade de pôr a cultura a serviço do povo, isto é, dos interesses efetivos do país. Trata-se, então, de agir sobre a cultura presente, procurando transformá-la, estendê-la, aprofundá-la. O que define a cultura popular. (...) é a consciência de que a cultura tanto pode ser instrumento de conservação, como de transformação social. Para a jovem intelectualidade brasileira”, continua ele, o homem de cultura está também mergulhado nos problemas políticos e sociais, (...) assume ou não a responsabilidade social que lhe cabe. Ninguém está fora da briga. Cultura popular é, portanto, antes de mais nada, consciência revolucionária, um tipo de ação sobre a realidade social. (ARANTES, 1998, p. 54). Para Arantes a cultura popular está preocupada em servir os interesses do povo, na proporção que essa cultura é conservada e, consequentemente, é realizado o processo de divulgação dessa cultura popular para a população, que faz uso desse gênero literário para denunciar os problemas sociais, tais como: saúde, meio ambiente, violência, política, questões raciais dentre outros temas que são inerentes e façam parte do cotidiano do povo e contribui para uma consciência revolucionária de direitos e deveres humanos. Os folhetos de cordel apresentam fatos de acontecidos e de criação do povo que por muito tempo alimentam o imaginário das pessoas com histórias que encantam e em alguns casos informam quem lê e ouve as histórias de mulheres negras, por igualdade de diretos entre homens e mulheres, por condições de trabalho iguais dentre outros assuntos que são importantes a população conhecer. A Literatura Brasileira por muito tempo teve um protagonismo de maior parte masculino que escreviam e publicavam seus escritos tanto na prosa como na poesia, suas obras são estudadas e reconhecidas, porém existia um público de muitos escritores que ficavam a margem desse processo de escrever e publicar, porque a literatura canônica que é, de fato, reconhecida e valorizada quando se tratava em escrever e publicar, no caso as mulheres que por muito tempo ficavam a parte dos grandes nomes de nossa literatura. A classe feminina não deixava de lado o desejo de escrever e em vez de colocar a sua autoria nas obras preferiam assinalar com um pseudônimo, como assim bem fez Maria Firmina dos Reis “Uma Maranhense”. 525

Anais O artigo tem o objetivo de apresentar o folheto de cordel Maria Firmina dos Reis que faz parte de uma antologia intitulada Heroínas negras brasileiras: em 15 cordéis, de Jarid Arraes, lançado em 2017, a autora versifica 15 mulheres negras que tiveram um importante papel na sociedade. Entre as 15 Poesias de Cordel foi escolhido o folheto de cordel Maria Firmina dos Reis, o cordel narra à trajetória de vida e luta, de uma das mais importantes romancistas do Brasil. Essa poetisa e romancista nasceu em São Luis-MA, dia 11 de outubro 1825, foi uma grande ativista em favor da raça negra. A escolha de analisar o folheto de cordel em questão foi em decorrência de sua importância para o Contexto histórico-social para nossa Literatura Brasileira, e de apresentar a primeira romancista negra brasileira. Além de escrever prosa, Maria Firmina, escreveu contos, poesia, uma de suas obras famosa é o romance Úrsula, publicado em 1959 como primeiro romance abolicionista e primeiro romance escrito por uma mulher negra no Brasil. Acredita-se, que a Literatura Brasileira tem a presença de muitas mulheres escritoras e poetisas que publicam anualmente suas obras e tem o seu reconhecimento merecido por tal oficio, graças às tantas mulheres que se destacaram e, ainda, são destaques na tarefa árdua que demanda tempo e dedicação, o ato de escrever. Na construção do trabalho será considerada que a metodologia aplicada é de caráter analítico, pesquisas bibliográficas e com a análise de fragmentos do folheto de cordel em questão. A pesquisa está apoiada em autores como: Arraes (2017), Fanon (2008), Tolomei (2019), Mendes (2006) e dentre outros estudiosos e teóricos que serão vistos no decorrer do artigo. 2 Contexto histórico da literatura de cordel A Poesia de Cordel surge no continente europeu em meados do século XI – XII, seus textos faziam menção aos acontecimentos da Idade Média, mais precisamente no século XVII aparece em Portugal, versos de cordel que eram inspirados sobre os reinos, príncipes, princesas, donzelas e as famosas novelas de cavalarias. Em Portugal essa poesia era apreciada e lida por uma camada elevada, como assim descreve Marinho e Pinheiro (2012): Os cordéis portugueses, diferentemente dos folhetos brasileiros, eram escritos e lidos por pessoas que pertenciam às camadas médias da 526

Anais população: advogados, professores, militares, padres, médicos, funcionários públicos, entre outros. (MARINHO; PINHEIRO 2012, p. 19). Isso comprova como de fato os folhetos de cordel agradavam os mais variados públicos de pessoas que se debruçavam com histórias dos mais variados gostos, como um divertimento e às vezes ficavam informados dos assuntos do cotidiano da população. Com a vinda dos colonizadores nas navegações marítimas ao Brasil no Período Colonial de 1500, formada pelos padres da Companhia de Jesus, cronistas com seus livros. Porém somente por volta do século XIX o cordel tem sua ascensão, primeiramente, isso aconteceu na região Nordeste do país, isso se sucedeu pelos tais motivos: a linguagem do povo acessível, a presença de violeiros, o cangaço, os costumes rurais, o clima, e dentre outros aspectos que favoreceram sua adaptação. O grupo leitor do Brasil, segundo Marinho; Pinheiro (2012, p.19) “em muitos casos, os cordéis eram comprados por uma pessoa letrada e lidos para um público não letrado, situação que se reprodução aqui no Brasil, onde os folhetos eram consumidos coletivamente.” O cordel contribuiu e ainda, tem sua parcela de contribuição na formação leitora dos menos favorecidos, em tempos que a educação no país era somente elitizada pela burguesia e por conta disso as pessoas que ficavam a margem da sociedade consumiam os folhetos de cordel para ficarem informadas sobre os acontecimentos do povo que envolviam os seguintes assuntos: política, seca, cangaço, enchentes, crimes policiais entre outros. Na Literatura de Cordel tem-se a presença do repentista que é aquele que cria os versos na hora, é o puro improviso e do poeta de bancada que escreve os folhetos de cordel, é preocupado com o que vai escrever, procura versificar com palavras do vocabulário que faz parte do cotidiano das pessoas, e também temos o xilógrafo que idealiza a arte da Xilogravura, que por meio dessa arte puramente artesanal e popular cria a capa dos folhetos de cordel com imagens bem comum da realidade do povo. O cordel é uma literatura popular e cultural, pois representa a fala do povo, segundo Santos (2006): cultura diz respeito à humanidade como um todo e ao mesmo tempo a cada um dos povos, nações, sociedades e grupos humanos. Quando se considera as culturas particulares que existem ou existiram, logo se constata a grande variação delas. (SANTOS, 2006, p. 8). 527

Anais Esse gênero textual comunica de maneira popular às culturas dos diversos povos e nações, além disso, tem o interesse de divulgar conhecimentos para as futuras gerações que alimentam o imaginário com as histórias que são registradas no folheto de cordel por meio dos cordelistas e cantadas pelos repentistas por meio da viola. Corroborando com o que foi dito anteriormente Certeau fala sobre a “cultura popular”: A ‘cultura popular’ supõe uma ação não-confessada. Foi preciso que ela fosse censurada para ser estudada. Tornou-se, então, um objeto de interesse porque seu perigo foi eliminado. [...] Uma repressão política está na origem de uma curiosidade científica: a eliminação dos livros julgados subversivos e imorais. [...] Os estudos desde então consagrados a essa literatura tornaram-se possíveis pelo festo que a retira do povo e a reserva aos letrados ou aos amadores. [...] Ao buscar uma literatura ou uma cultura popular, a curiosidade científica não sabe mais que repete suas origens e que procura, assim, não reencontrar o povo. (CERTEAU, 2001, p. 55-56). Na fala de Certeau “‘a cultura popular’ precisou ser censurada para ser estudada pelos estudiosos e defensores dessa cultura do povo.” A literatura popular até hoje é criticada pelos defensores do cânone, por causa de sua linguagem acessível e também por ser escrita pessoas que possui poucas instruções das letras, mas ao longo dos anos essa literatura popular está ganhando formas e incentivando pessoas interessada sem estudar, conhecer e divulgar por meio dos estudos da academia as produções da cultura popular. Em relação ao interesse dos estudos da cultura popular, a literatura de cordel também pode ser pensada por meio dos estudos culturais, corrente de pensamento que teve início por volta dos anos 1950 e 1960 desenvolveu nos EUA, pois nos possibilita os estudos e observar o além das culturas nos diversos grupos sociais, tais como: pós-colonialismo e multiculturalismo, movimentos negros e dentre outros assuntos. Em relação a necessidade de estudarmos os Estudos Culturais, Cardoso nos fala que: Os estudos culturais surgem dessa necessidade de ligar a arte e a vida. Da necessidade de aplicação da técnica de análise literária a outros objetos artísticos e/ou culturais. Ampliou-se o corpus dos pesquisadores da área da literatura ao abarcar também o estudo de histórias em quadrinhos, mangás, telenovelas, videojogos, cordel, anúncios publicitários, movimentos étnicos, feminismo, homoerotismo, tribos urbanas, música, cinema, reportagens, tribos urbanas, etc. Os estudos culturais consistem em um estudo multidisciplinar que conecta várias áreas do saber de forma coerente e relevante. (CARDOSO, 2020, p. 46). 528

Anais Segundo a citada os Estudos Culturais vieram a somar com os estudos literários, pois ampliou o leque de corpus de investigação dos estudiosos, que passam a buscar novas fronteiras do saber e levando ao estudo interdisciplinar dos assuntos que podem dialogar com os mais variados estudiosos e teóricos de nossa literatura. A exemplo da literatura de cordel que também traz sua parcela de contribuição, pois faz parte meio literário que está em ascensão na academia. A Literatura de Cordel recebeu recentemente um título através do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, considerado a partir do ano de 2017 como o “Patrimônio Imaterial Cultural Brasileiro”. Uma conquista muito valorosa dos defensores da cultura popular que incansavelmente buscam o reconhecimento de suas raízes e tradições para que as novas gerações venham a conhecer e preservar. 3 Análise literária do folheto Maria Firmina dos Reis, de Jarid Arraes “Uma Maranhense” Antes da análise do folheto de cordel faz-se necessário mencionar um pouco da autora do cordel, Jarid Arraes, nascida em Juazeiro do Norte, na região do Cariri (CE), em 12 de fevereiro de 1991, é escritora, cordelista e autora dos livros Redemoinho em dia quente (2019), Um buraco com meu nome (2018), Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis (2017), As Lendas de Dandara (2016). Atualmente vive em São Paulo (SP), onde criou o Clube da Escrita Para Mulheres. Têm mais de 70 títulos publicados em Literatura de Cordel, incluindo a coleção Heroínas Negras na História do Brasil. Fazendo o uso da Poesia de Cordel a autora tenta de alguma forma divulgar as vozes femininas negras que foram silenciadas no transcorrer de nossa história. Dentre uma dessas vozes tem-se o cordel “Maria Firmina dos Reis” que está no livro Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis, lançado em 2017. Segue a análise de alguns fragmentos do cordel. De início é apresentado uma pequena biografia de Maria Firmina: Maria Firmina dos Reis De mulata foi chamada Mas renego esse termo Pra gente miscigenada Reconheço-a como negra Sendo assim bem nomeada. (ARRAES, 2017, p. 107). Inicialmente a poeta apresenta Maria Firmina dos Reis declarando: “Reconheço-a como negra”, Arraes afirma que a personagem do cordel é negra. Em seguida é citado o seu 529

Anais local e data de nascimento São Luís-MA no dia 11/10/1825.Nesse período o país sofria um momento muito triste de sua história a escravidão que assolava africanos que vieram ao Brasil em navios negreiros como cativos que durou a partir de meados de 1530, século XVI, e termina no século XIX com A Lei Áurea assinada pela Princesa Isabel em maio de 1888. A seguir são expostas as dificuldades de Maria Firmina para conseguir concretizar o sonho de ser professora: (...) Para ter vida melhor Com a tia foi morar Sempre muito esforçada Conseguiu se educar Pois sabia da importância Que existe em estudar. (ARRAES, 2017, p. 108). A protagonista da narrativa teve uma vida muita sofrida, além de sofrer preconceito era pobre e humilde, porém ela não se deixou abater diante das circunstâncias, era muito dedicada para com os estudos, resolve mudar de vida e foi “Com a tia foi morar”, o resultado de sua dedicação foi tamanha “Quando foi ela aprovada” para trabalhar em uma escola como professora efetiva. Em relação a vida dura de Maria Firmina dos Reis, Mendes (2006) nos diz que Firmina era: Autodidata, sua instrução fez-se através de muitas leituras – lia e escrevia francês fluentemente. Exerceu a profissão de professora primária, tendo sido aprovada em primeiro lugar para a vaga do concurso público estadual em 1847 para mestra régia. (MENDES, 2006, p. 19). Firmina era uma mulher além de seu tempo, pois diante das situações que eram desfavoráveis por causa de sua posição social não a deixou se intimidar, e consequentemente, concretiza seus sonhos, entre eles ser aprovada em primeiro lugar como professora concursada do Estado do Maranhão. Uma conquista por méritos próprios. Isso enaltece a figura feminina que através de Maria Firmina, busca sua independência diante de uma sociedade que observa a mulher como um ser inferiorizado. E sua luta não parou somente na educação: Só que Maria Firmina Tinha livre o coração 530

Anais Defendendo com clareza Que acabasse a escravidão Para ela o ideal Era a certa abolição. (ARRAES, 2017, p. 108). Maria Firmina sempre lutou pela educação e tinha seu coração o desejo de acabar com a escravidão de seu povo, pois acreditava que cedo ou mais tarde a abolição aconteceria. A romancista encontrou no ato de escrever o desejo de exercer sua libertação e de seu povo com a escrita de “Contos, livro e poesia” que ajudaram alimentar seus anseios como uma mulher sonhadora. Firmina não perdeu tempo escrevia suas poesias de amor para jornais da época, porém não assinava com sua autoria. Sobre a destreza e garra de Firmina relatada nas estrofes anteriores, segundo Cristiane Tolomei: Mesmo nessa condição de subalternidade, as mulheres passaram a ganhar e/ ou conquistar os espaços até então destinados aos homens, como o jornalismo, e, devido a isso, a produção jornalística foi se intensificando no século XIX no país. Elas escreviam em jornais destinados somente para mulheres ou atuavam junto aos periódicos voltados ao público geral, publicando editoriais, ensaios, informes, charadas, músicas, poemas, crônicas, contos, novelas, romances e críticas em torno de diferentes assuntos: desde a maternidade, a defesa da família e do lar, da moda europeia e etiqueta, até ao que podemos chamar de um movimento protofeminista na luta pela libertação dos sujeitos escravizados, pelo direito à educação, à profissão e ao voto. (TOLOMEI, 2019, p. 155). Segundo a citada as mulheres eram subalternizadas por causa do machismo que era frequente, em tempos remotos que a mulher não tinha o direito de falar e muito menos de escrever e publicar suas obras. Mas ao longo dos tempos a mulher vem conseguindo ocupar direitos que outrora foram renegados pelo homem, como o direito a publicação de livros, ao voto democrático e outros direitos que foram conquistados por meio do “movimento protofeminista” que defendia as causas e interesses das mulheres, semelhantemente, como hoje temos as feministas. Em seguida Arraes apresenta a publicação do livro de Maria Firmina e sobre o pseudônimo de Firmina: (...) Como “Úrsula” chamou Seu romance publicado E na História brasileira 531

Anais O seu nome está gravado Como sendo a pioneira (ARRAES, 2017, p. 109). Além de escrever poesias de amor Maria Firmina se destacou na prosa ao escrever o romance Úrsula, o livro que aborda a questão da escravidão e considerado o primeiro romance abolicionista da época, daí pode-se perceber a magnitude desse trabalho. A autora tinha dificuldades financeiras e por conta do preconceito e machismo da época. Sobre o livro Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, segundo Duarte (2004): Ao publicar Úrsula, Maria Firmina dos Reis desconstrói uma história literária etnocêntrica e masculina até mesmo em suas ramificações afrodescendentes. Úrsula não é apenas o primeiro romance abolicionista da literatura brasileira, [...], mas é também o primeiro romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção de autoria afrodescendente, que tematiza o assunto do negro a partir de uma perspectiva interna e comprometida politicamente em discutir a condição dos negros no Brasil [...]. O romance Úrsula vem inaugurar, em nossas letras, o momento em que remanescentes escravos tomam, com as suas mãos, o sonho de, através da literatura, construir um país sem opressão. (DUARTE, 2004, p. 279). Para o citado a obra Úrsula marca uma nova história no meio literário, pois é por meio dessa obra que a produção feminina ganha destaque, na medida que apresenta o primeiro romance abolicionista escrito por uma mulher negra, que discute por meio de sua prosa os interesses da população negra, que buscava o respeito e o reconhecimento de seus direitos, pois foram revogados ao longo dos séculos. A seguir Jarid destaca o dom da arte de escrever que Firmina possuía: (...) Quando publicou seu livro Chegou mesmo a falar Que não tinha educação E o prestígio elementar De quem era branco e rico Podendo a tudo comprar. (ARRAES, 2017, p. 110). A protagonista afirma que quando lançou seu livro não possuía a educação de branco e muito menos era uma pessoa rica, mas tinha a força de uma mulher, por que ela sabia escrever “E sabia o seu valor”, detinha o talento de escrever, pois dava o brilho em sua escrita que tanto faz refletir os leitores e ouvintes que estudam as obras literárias de Firmina. Em relação à submissão do negro para com seu senhor, Maria Luiza Tucci Carneiro, na obra O racismo na história do Brasil: mito e realidade (1996), diz: 532

Anais Raras eram as profissões às quais os negros conseguiam ter acesso. Livres e analfabetos, tentavam vender cestos, galinhas, doces, tabaco. Alguns, mais espertos e conhecedores da natureza, serviam de guias aos viajantes estrangeiros enviados para estudar no Brasil, geralmente a serviço das grandes potências europeias. (CARNEIRO, 1996, p. 16). O negro não tinha forças para libertar do homem branco, pois com a “libertação” pela Lei Áurea, o negro voltou a ser escravizado outra vez por meio de trabalhos bem inferiores que legitimava sua escravidão. O negro sofria a humilhação de não possuir um emprego digno e tão pouco um salário que desse subsídio para a sobrevivência. Firmina realiza o sonho de fundar uma escola mista: Aos cinquenta e cinco anos Uma escola ela fundou Pra meninas e meninos Sendo mista começou Como escola gratuita Que pouquíssimo durou. (ARRAES, 2017, p. 110). Passados os dias como professora na escola em São Luís, Firmina se aposenta e vai para a cidade de Guimarães-MA, onde por conta própria funda uma unidade de ensino mista e gratuita no povoado da cidade mencionada, porém seu sonho durou pouco tempo somente três anos “E o portão já foi fechado”. Isso não foi motivo para Firmina ser vencida em seu período da história que predominava o machismo, preferindo mostrar sempre a determinação para lutar por dias melhores por meio suas produções literárias. A seguir a poeta Arraes apresenta a data que marca o falecimento e o legado que Maria Firmina deixou: (...) Em mil novecentos e dezessete A Firmina faleceu Mas deixou para memória A herança que escreveu E que sempre a duras penas Para o mundo ofereceu. (ARRAES, 2017, p. 111). Diante de tantas lutas e vitórias morre Maria Firmina “Em mil novecentos e dezessete” uma data que está registrada no pensamento das pessoas “Mas deixou para memória” as lembranças duras que foram motivos para seguir em frente. Em seguida a autora do cordel expõe um momento de subjetividade “E a mim muito emociona/ Quase ao 533

Anais ponto de chorar” e isso de certa forma, contribui para afirmar mais uma vez reconhecimento do valor literário que Firmina possui para quem lê suas obras. Em seguida Arraes faz algumas ressalvas a respeito de Firmina, com o intuito de reconhecimento de suas obras: (...) No entanto, me revolta O nojento esquecimento Pois nem mesmo na escola Nem sequer por um momento Eu ouvir falar seu nome Para o reconhecimento (ARRAES, 2017, p. 111). A autora do cordel se manifesta reclamando do esquecimento que as pessoas têm sobre Maria Firmina, pois ele merece a valorização por parte da sociedade e em especial para a escola literária que deveria repassar esse conhecimento, e assim dá o devido valor para quem é de direito, ou seja, Maria Firmina dos Reis. Em seguida a poeta se utiliza da poesia de cordel, como o objetivo que as pessoas conheçam o trabalho de Firmina, pois ela foi “Um orgulho pra nação” e todos deveriam conhecer sua obra. Segundo Franz Fanon na obra Pele negra, máscaras brancas nos alerta que: O problema é saber se é possível ao negro superar seu sentimento de inferioridade, expulsar de sua vida o caráter compulsivo, tão semelhante ao comportamento fóbico. No negro existe uma exacerbação afetiva, uma raiva em se sentir pequeno, uma incapacidade de qualquer comunhão que o confina em um isolamento intolerável. (FANON, 2008, p. 59). O negro ainda busca sua libertação, essa luta ainda persiste nos dias atuais, quando o mesmo se depara com as situações da sociedade que não dá o seu devido respeito e valor. O mesmo se acha pequeno e incapaz de superar e reverter essa situação, porém correlacionando com o cordel em discussão Firmina a personagem conseguiu superar essa sensação de ser “inferior” através de sua produção literária, mas esse reconhecimento chegou tardiamente. A seguir são mencionados alguns livros de Firmina: Sendo “Úrsula” seu livro “A Escrava” foi um conto Mais “Cantos à beira-mar” Que aqui aumenta um ponto Obras de profundidade E também de contraponto. (ARRAES, 2017, p. 112). 534

Anais Nas duas últimas estrofes a poeta cita algumas obras literárias que marcaram a vida literária de Reis livro Úrsula e os contos A Escrava e Cantos à beira-mar, isso é um convite aos leitores para realizarem leituras e discussões acerca dos escritos. E por fim, a autora enaltece “A Firmina escritora” / “Uma negra corajosa” um jeito de respeito pela romancista e reafirmar sua importância para a Literatura Negra. Corroborando com as duas estrofes analisadas anteriormente, Zin (2017) menciona a respeito de algumas obras de Maria Firmina: Se o tratamento que Maria Firmina dos Reis atribui às personagens negras e à questão da escravidão em Úrsula e em A escrava é um tanto particular para a literatura brasileira produzida até aquele momento, em outro tema bastante em voga no período, o encontro da cultura europeia com a cultura indígena autóctone, ela também vai apresentar ideias distintas. (ZIN, 2017, p. 36). Segundo o citado Maria Firmina apresentava por meio de suas obras literárias personagens negras como forma de denuncia social sobre o negro que era a temática central dos seus escritos, mas Firmina foi uma escritora além do seu tempo, pois já questionava e refletia outras questões pertinentes a sociedade, como a cultura europeia e a cultura indígena por meio da sua escrita multifacetada. Firmina por ser negra e não possuir riquezas, conseguiu vencer tudo isso por meio de sua escrita, na medida que foi uma autora à frente de seu tempo, deixando um legado e uma lição para seus contemporâneos. Firmina sempre buscou mostrar a força do negro em querer ser livre das mãos do homem branco, que tanto usurpou seus direitos e falseou uma libertação. Firmina é um exemplo de mulher que sempre defendeu a libertação, todavia muito já foi conquistado, como direito a saúde, educação, emprego, direito ao voto e dentre outros, mas faltam outros que serão conquistados ao longo do tempo. Acreditamos que eles desejam mais é o reconhecimento de igualdade entre o negro e o homem branco que até hoje não foi concretizado por causa de um preconceito estrutural da sociedade em querer dividir as raças como superiores e o negro como inferiorizado. 4 Para final de conversa A Literatura de Cordel possibilitou a voz feminina uma oportunidade para expressar seus sentimentos, lutas, decepções e o desejo de que dias melhores poderiam surgir, como a 535

Anais busca pelo espaço na produção literária. Como Maria Firmina dos Reis, por ser uma mulher negra não deixou se abater pelas críticas da sociedade, que de certo modo, não davam vislumbre a escrita feminina que buscava o espaço no cenário da Literatura Brasileira. A romancista Maria Firmina usou o pseudônimo “Uma Maranhense” em tempos que a escrita feminina não tinha espaço, mas sua ideia criativa de usar o pseudônimo favoreceu a divulgação no mundo literário, as pessoas ficaram interessadas em saber quem estava escrevendo, isso foi se cumprindo na vida romancista que por meio de seus escritos deixou registrada sua marca na produção da Literatura brasileira e maranhense. Maria Firmina realizou seu desejo em lecionar e obteve sua aprovação em concurso público, podemos nos atrever a imaginar que foi uma professora que tentou de todas as maneiras mudar a realidade daquele grupo de alunos por meio do estudo. Firmina queria mais, depois que cumpriu sua vida pública, fundou uma escola mista que dava acesso ao ensino gratuito as pessoas carentes no Maranhão. Quando se fala abolição não deixar de mencionar Maria Firmina que escreveu uma obra primorosa sobre o assunto, a obra chamada Úrsula, publicado em 1959. A obra tem sua importância para academia e também para a literatura afro-brasileira, pois é o primeiro romance abolicionista e escrito por uma mulher negra no Brasil. Firmina escreveu um material substancioso para a produção do país. Uma mulher que foi além de seu tempo e contribui muito para o fortalecimento da raça negra por dias melhores e o respeito de seus direitos. O cordel é um gênero textual riquíssimo que não poderia deixar de lado a importância de Maria Firmina dos Reis e de outras mulheres negras que foram importantes para o Brasil, esse é o trabalho da autora do cordel analisado Jarid Arraes, que tenta mostrar a voz feminina no cenário literário, às vozes de mulheres que outrora foi silenciadas e esquecidas por quem escreve e divulga a história, porém Firmina está sendo divulgada por meio da poesia de cordel, que tem o seu papel social que é facilitar a divulgação acessível aos seus leitores e ouvintes. Referências bibliográficas ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. São Paulo: Brasiliense, 1998. ARRAES. Jarid. Heroínas negras brasileiras: em 15 cordéis. 1 ed. São Paulo: Pólen, 2017. 536

Anais CARDOSO, Franciely Gonçalves. Cultura de massa e recepção: os movimentos interpretativos de O mundo de gelo e fogo de George R. R. Martin. 248 f. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-graduação em Literatura, Florianópolis – SC, 2020. CARNEIRO. Maria Luiza Tucci. O racismo na história do Brasil: mito e realidade. 4 ed. São Paulo: Ática, 1996. CERTEAU, Michel de. A beleza do morto. In: A cultura no plural. Campinas: Papirus, 2001. DUARTE, Eduardo de Assis. Posfácio. In: REIS, Maria Firmina. Úrsula: A escrava. Florianópolis: Editora Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004. p. 265-281. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008. MARINHO, Ana Cristina. PINHEIRO, Hélder. O cordel no cotidiano escolar. São Paulo: Cortez, 2012. MENDES, Algemira de Macêdo. Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláqua na história da literatura brasileira: representação, imagens e memórias nos séculos XIX e XX. 2006. 372 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Letras. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 2006. TOLOMEI, Cristiane Navarrete. Maria Firmina dos Reis, decolonialidade e escrita abolicionista na imprensa maranhense oitocentista. Exæquo, n. 39, p. 153-168, 2019. https://doi.org/10.22355/exaequo.2019.39.10 ZIN, Rafael Balseiro. Maria Firmina dos Reis e seu conto Gupeva: uma breve digressão indianista. Em Tese. Florianópolis. v. 14, n. 1, jan./jun., 2017. p. 31-45. 537

A PRESENÇA DO INSÓLITO NA FICÇÃO MARANHENSE/CAXIENSE: DUAS MULHERES DE TERRAMOR Aerlys Pinheiro do SANTOS (UEMA)1 Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2 RESUMO O trabalho trará uma análise teórica na obra Duas Mulheres de Terramor (1976) do escritor Maranhense e Caxiense Osmar Rodrigues Marques (1929), apontando elementos reais e irreais que por vezes se misturam, ocasionando o fenômeno espantoso, admirável e incomum, com a finalidade de evidenciá-los na ficção à luz das teorias insólita e seus gêneros vizinhos: o fantástico, o estranho e o maravilhoso. Rodrigues Marques apresenta-nos uma incrível ‘viagem’ na leitura, propicia aventura com direito a expectativas à romance, como também, aguça o imaginário por linhas traçadas com eventos sobrenaturais, naturais e/ou quiméricos na pequena cidade – interiorana – sinais de fantasia - hesitação; estranheza - explicação racional ao evento, noutras palavras, implica a existência de acontecimentos aparentemente inexplicáveis e imprecisos. Assim, temos como objetivo contribuir para futuras pesquisas na área literária caxiense e maranhense, possibilitando aos estudantes e pesquisadores conhecer a grandeza e a importância do acervo literário cultural, além de resgatar a literatura local e valorizar nossos conterrâneos. Desse modo, são utilizados referenciais teóricos que nos cercam de reflexão sobre a presença da teoria no decorrer da 1 Graduanda em Letras e Literaturas da Língua Portuguesa – CESC / UEMA, membra do NuPLiM/CNPq e LICLE (Liga Interdisciplinar do Curso de Letras) 2 Professora Dra. Solange Santana Guimarães Morais dos cursos de Letras-CESC/UEMA, do Mestrado em Letras- UEMA, Editora da Revista de Letras Juçara-PPG/CESC/UEMA. Líder do NuPLiM/CNPq 538

Anais narrativa, no qual, instiga uma leitura atenta e emotiva, visto que para identificá-las está intrinsecamente ligado ao deleite do leitor. Para tanto, acolheremos Tzvetan Todorov (1939), Maria Cristina Batalha (2012), Flávio Garcia (2007) e outros estudiosos devidamente referenciados. Palavras-chave: O insólito. Fantástico. Estranho e Maravilhoso. ABSTRACT The work will bring a theoretical analysis in the work Duas Mulheres de Terramor (1976) of the writer from Caxias, Maranhão Osmar Rodrigues Marques (1929), pointing out real and unreal elements that sometimes mix, causing the amazing admirable and unusual phenomenon, with the purpose of evidencing them in fiction in the light of the unusual theories and their neighboring genres: the fantastic, the strange and the wonderful. Rodrigues Marques presents us with an incredible 'trip' in the reading, provides adventure with the right expectations to the novel, as well as, sharpens the imaginary by lines drawn with supernatural, natural and/or chimerical events in the small town - interior - signs of fantasy - hesitation; strangeness - rational explanation to the event, in other words, implies the existence of seemingly inexplicable and imprecise events. Thus, we aim to contribute to future research in the literary area of Caxias and Maranhão literature, enabling students and researchers to learn about the greatness and importance of the literary cultural heritage, in addition to rescuing local literature and valuing our fellow countrymen. In this way, theoretical references are used to reflect on the presence of theory in the course of the narrative, which instigates an attentive and emotional reading, since to identify them is intrinsically linked to the reader's delight. For this, we will take in Tzvetan Todorov (1939), Maria Cristina Batalha (2012), Flávio Garcia (2007) and other scholars duly referenced. Keywords: The Unusual. Fantastic. Strange and Wonderful. INTRODUÇÃO O presente trabalho, enseja um percurso teórico-metodológico na obra Duas Mulheres de Terramor (1976) do autor caxiense e maranhense Osmar Rodrigues Marques (1929). A temática é resultado de leituras, pesquisas e reflexões acerca do literato, assim como, de suas produções. A problemática/estudo surgiu devido à ausência de pesquisas sobre o referido autor e suas criações artísticas, tão importante em sua época de deslumbre na literatura caxiense, mas que foi caindo na marginalidade literária, sendo aos poucos esquecidos. Assim, temos como objetivo contribuir para futuras pesquisas na área literária caxiense e maranhense, possibilitando aos estudantes e pesquisadores conhecer a grandeza do acervo cultural e a importância do (s) autor (es) e da literatura maranhense, além de resgatar a literatura local e valorizar nossos conterrâneos. 539

Anais A análise propõe evidenciar o insólito na narrativa, apontando elementos reais e irreais que por vezes se misturam, ocasionando o fenômeno fantástico, maravilhoso e estranho. Rodrigues Marques apresenta-nos uma incrível ‘viagem’ na leitura, propicia aventura com direito a expectativas ao romance, como também, aguça o imaginário por linhas traçadas com eventos sobrenaturais e naturais. Desse modo, cabe-nos informar sobre o método aplicado ao qual partimos durante a análise. Para tal foi utilizada a pesquisa bibliográfica, esta predomina como fonte de todo trabalho científico, fornecendo subsídios necessários, tal como, averigua e propicia conhecimento para refutar ou comprovar tal problemática. A pesquisa bibliográfica é uma vertente da pesquisa científica a qual apresenta várias modalidades. Investigação que conduz, principalmente, o acadêmico em suas produções científicas, sendo elas feitas por livros, internet, jornais, teses, monografias entre outros meios. Para Severino (2007), a pesquisa bibliográfica ocorre por meios de: [...] registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros, artigos, teses etc. Utilizam-se dados de categorias teóricas já trabalhadas por outros pesquisadores e devidamente registrados. Os textos tornam-se fontes dos temas a serem pesquisados. O pesquisador trabalha a partir de contribuições dos autores dos estudos analíticos constantes dos textos. (SEVERINO, 2007, p. 122). Dessa forma, a base norteadora de uma escrita científica se dá pelas pesquisas e leituras de produções da temática ou teoria já existente, fornecendo informações que guia e induz o discente a comprovar seus argumentos defendidos. Portanto, como afirma Amaral (2007) acerca da importância e do embasamento teórico levantados ao longo da inquirição do trabalho sendo uma etapa fundamental, o presente artigo se deu pela pesquisa bibliográfica fornecida por leituras e reflexões de artigos: da professora Doutora Maria Cristina Batalha; do Doutor e Mestre Jean Carlos Caniel; teses, livros: Introdução à Literatura Fantástica do teórico Tvezetan Todorov (1939); As funções do Maravilhoso na Narrativa Brasileira da Regina Zilberman entre outros estudiosos, além de pesquisas na internet como fontes de estudos. Fiquemos agora com a breve explanação teórica norteadora da escrita científica. 540

Anais Embasamento teórico Antes de adentrarmos no objetivo desta análise, cabe-nos apresentar um cotejo das principais teorias do insólito, a fim de elucidar alguns pontos do gênero fantástico e dos gêneros que lhe fazem fronteira: o maravilhoso e o estranho3 na obra. O insólito na narrativa é considerado uma modalidade literária relevante, que transita entre o real, o imaginário e o sobrenatural, considerado fora do que se tem como comum – anormal. Tem se tornado destaque na literatura contemporânea dos grandes centros de pesquisa do mundo, emergindo da marginalidade para o resgate e revalorização de um matiz literário, como descreve o professor Dr. Flavio García (UERJ/ UNISUAM/ UFRGS, 2017) em seu artigo intitulado Fantástico: a manifestação do insólito ficcional entre modo discursivo e gênero literário – literaturas comparadas de língua portuguesa em diálogo com as tradições teórica, crítica e ficcional. O gênero insólito subsiste na literatura como a ruptura da ordem natural dos fatos na ficção, o natural e o sobrenatural, o real e o imaginário, um entrelaçamento que por vezes não sabe ao certo a definição dos acontecimentos, caracterizados “pouco costumeiros” como aponta Flávio García (2007) acerca da caracterização e adjetivações: Os eventos insólitos seriam aqueles que não são freqüentes de acontecer, são raros, pouco costumeiros, inabituais, inusuais, incomuns, anormais, contrariam o uso, os costumes, as regras e as tradições, enfim, surpreendem ou decepcionam o senso comum, às expectativas quotidianas correspondentes a dada cultura. (GARCÍA, 2007, 19). Portanto, sua presença (insólita) se dá na narrativa por meio de um desses insights de casualidade ou não causalidade, “quebrando” a expectativa ou até mesmo surpreendendo o leitor. Todorov em seu livro Introdução à Literatura Fantástica (1970) redige que ocorre através da “hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 1939, p. 31). A literatura do insólito, implicitamente, está relacionada à perspectiva do leitor, do seu nível emocional despertado na leitura – atrelado à recepção do estilo. Atraindo-nos nas mais diversas modalidades, seja ela narrativa vampiresca, de bruxaria, terror ou fantasma. Dessa forma, os fenômenos Fantástico, Estranho e Maravilhoso estão interligados ao insólito, 3 Palavras retirada do artigo intitulado A presença da fenomenologia insólita na narrativa literária da Gisela Lacourt (UPF). 541

Anais tendo como principal embrião o sobrenatural. Conforme Maria Cristina Batalha4 (2012) explicita: Do ponto de vista da narratologia, alguns teóricos propõem a categoria do “insólito” para reunir todos os textos nos quais irrompe aquilo que não é habitual, que é improvável, que foge à realidade, que não “soe” acontecer. (Batalha, 2012, p. 496 grifo nosso)5. Por conseguinte, é fundamentado neste e outros apontamentos que discutiremos a respeito do estilo na análise aqui supracitada, logo após, uma breve exposição no que concerne às teorias do Fantástico, Estranho e Maravilhoso. Pois, essa fenomenologia insólita, de acordo com a professora doutora Cecil Jeanine Albert Zinani6 em um capítulo do livro: O insólito na Literatura: olhares Multidisciplinares (2020) diz que: A respeito da narrativa fantástica ou, mais especificamente, do insólito ficcional, cabe lembrar que, com esse termo, são referidas diversas modalidades literárias, tais como: o fantástico propriamente dito, o estranho, o maravilhoso, o realismo mágico, o animismo. (ZINANI, 2020, p. 27). Partindo dessa afirmação, incumbe-nos enunciar sobre o gênero Fantástico, no qual alguns teóricos remetem seu ápice ao século XVIII, entre eles Todorov. Em consoante, Maria Cristina Batalha7, elucida que “é apenas no final do século XVIII, que Charles Nodier (1780- 1844) o transforma em gênero literário, escrevendo o célebre artigo “Du fantastique en littérature” (1830)” (BATALHA, 2012, p. 484). Gênero que emerge em oposição ao Iluminismo, rompendo com a razão, estabelecendo uma relação intrínseca entre real e fantasia. Ainda, no que diz respeito, à sua gênese Rodrigues (2003) assevera que: O fantástico (stricto sensu), como gênero literário surge no século XVIII, paradoxalmente, pois surge em pleno século das Luzes. Este é o momento da afirmação do empirismo e da rejeição de toda metafísica, seja ela religiosa 4 Professora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected] 5 Citação retirada do artigo Literatura fantástica: algumas considerações teóricas. R. Let. & Let. Uberlândia- MG v.28 n.2 p.481-504 jul.|dez. 2012 6 Doutora em Letras - Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Estágio Pós-Doutoral em Memória e História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora e pesquisadora nos programas de Pós-graduação em Letras (PPGLET e PDLET) e no curso de Letras da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Literatura e Gênero - (UCS) 7 Professora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: [email protected] 542

Anais ou não. Todos sabem que este grande movimento de racionalização que, segundo alguns autores (Theodor Adorno), é inaugurador da Modernidade, culmina com a explicação laica da História, fornecida pela Enciclopedie(1751-1772). Entretanto, o iluminismo de Voltaire, Montesquieu, Diderot, autores que pretendem oferecer uma explicação racional e lógica do mundo e da história, criar sistemas e críticas sociais, acaba por não dar conta da singularidade e da complexidade do processo de individuação. (RODRIGUES, 2003, p. 98, grifo nosso). Logo, o excerto acima deixa explícito que o Fantástico ‘acompanha’ o homem desde tempos remotos, através das “epopeias, contos populares” (RODRIGUES, 2003, p. 95), oralidade e outras formas. Considerações que remetem ao fantástico produto de racionalidade e não oriundo de uma mente doentia, de acordo a professora doutora Cecil Jeanine Albert Zinani8. Nesse sentido, o estilo literário desponta na narrativa causando hesitação no leitor – a dúvida entre o real e o sobrenatural para certos acontecimentos na ficção - diante do evento insólito. Subverte os padrões da narrativa literária real-naturalista. Todorov (1939) assevera que “o fantástico (...) dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação comum ao leitor e à personagem” (TODOROV, 1939. p. 47), ou seja, dura apenas enquanto o leitor fica na dúvida permanente, se aconteceu ou não, procurando explicações para o evento. Destarte, se ocorre uma explicação plausível/racional deixa-se de ser fenômeno fantástico e transita para seus gêneros vizinhos: o Estranho e o Maravilhoso, conforme evidencia Todorov (1939): “O fantástico ocorre nesta incerteza; ao escolher uma ou outra resposta, deixa-se o fantástico para se entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso” (TODOROV, 1939. p. 31). Logo, o Estranho se manifesta quando há no final da narrativa uma justificativa racional para o ocorrido, conforme declara Todorov “acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de toda a história, no fim recebem uma explicação racional” (TODOROV, 1939, p. 51) e o Maravilhoso quando não há uma explicação possível, o leitor aceita como parte de uma realidade impossível, de acordo a professora Cecil Jeanine Albert Zinani considera que “No fantástico maravilhoso, não há explicação, apenas uma sugestão referente ao sobrenatural, não há reação de estranhamento, uma vez que ocorre uma 8 Doutora em Letras - Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com Estágio Pós-Doutoral em Memória e História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora e pesquisadora nos programas de Pós-graduação em Letras (PPGLET e PDLET) e no curso de Letras da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Literatura e Gênero - (UCS) Nota: excerto lido no artigo - O insólito na literatura: perspectivas da narrativa fantástica, 1° capítulo do livro: O insólito na Literatura olhares multidisciplinares (2020). 543

Anais negociação com o leitor de aceitação daquela realidade como natural (ZINANI, 2020, p. 21). Logo, o Maravilhoso se porta como fenômeno aceitável pelos leitores, presente na humanidade desde o pretérito, nos contos de fada, bosques encantados, magia, acontecimentos inexplicáveis racionalmente. Conforme defende Nelly Novaes Coelho sobre o evento aludido: No início dos tempos, o maravilhoso foi a fonte misteriosa e privilegiada de onde nasceu a literatura. Desse maravilhoso nasceram personagens que possuem poderes sobrenaturais; deslocam-se, contrariando as leis da gravidade; sofrem metamorfoses contínuas; defrontam-se com as forças do Bem e do Mal, personificadas; sofrem profecias que se cumprem; são beneficiadas com milagres; assistem a fenômenos que desafiam as leis da lógica, etc. (COELHO, 2000: 172). Portanto, os três fenômenos - Fantástico, Estranho e Maravilhoso – permeia por uma linha tênue: apreensão do elemento mágico, imaginário, sobrenatural, fornecendo uma 'viagem' atemporal, possibilitando ao amante da leitura fugir do “plano” real. Para tal, diferenciá-los está no modo como cada leitor reage aos elementos irreal e real. Feitas as apresentações teóricas, deleitem-se com análise da obra Duas Mulheres de Terramor (1976), no qual exemplificaremos a presença do insólito. A presença do insólito na ficção “A geografia do cérebro comporta histórias de nível mais elevado do que os que povoam o chão de nossa vizinhança.” (Rodrigues Marques, 1972). É com este epíteto - que faz jus à problemática levantada - que se realizará as reflexões da parte final do trabalho. O célebre escritor maranhense e caxiense Osmar Rodrigues Marques (1929), publica sua obra Duas Mulheres de Terramor em 1976, pela Livraria São José. Autor de uma escrita simples, como aponta o escritor piauiense Francisco de Assis Almeida Brasil na descrição do autor na orelha do livro que diz: “a linguagem simples sem maiores compromissos literários, é o forte de Rodrigues Marques”. Assis Brasil prossegue o comentário e relata que “seu romance, Duas Mulheres de Terramor (1976), é sem dúvidas a soma benéfica de toda a sua experiência anterior”. Afrânio Coutinho não poupou elogios ao 544

Anais nosso escritor na obra intitulada “brasil brasileiros de hoje” que redigiu: “homem contemporâneo, à custa de quem o país vai progredindo em seus diversos setores”9. Em vida, foi um escritor ativo, participando e propiciando eventos culturais. Nascido em Caxias – MA em 23 de janeiro de 1929; aos 12 anos iniciou sua carreira, publicando seu primeiro conto. Herdeiro de uma família simples: pai apicultor e marceneiro Dionísio Rodrigues Marques e mãe doceira, Maria Lourdes Marques, não foi empecilho para seu envolvimento na literatura, assim como em outras áreas, dentre elas, jornalista, contista e advogado; sua intensa dedicação ao mundo das palavras e das artes lhe rendeu diversas premiações pelo país, entre eles: “Orlando Dantas - 4° centenário do Rio de Janeiro”; “Graça Aranha” (São Luís); “Ficção”, do Banco Regional de Brasília; “Ficção”, do Governo do Distrito Federal; “Prêmio Adelino Magalhães”; (Rio de Janeiro); e o Prêmio romance, do Governo de Goiás, assim como, inúmeras obras publicadas, entre romances, contos e novelas. Rodrigues Marques, reúne em seu romance ficcional – Duas Mulheres de Terramor (1976) - um percurso imaginário e real, na mesma proporção que sucedem cenas reais que remetem a cidades pequenas – interiorana – apresenta sinais de fantasia - hesitação; estranheza - explicação racional ao evento, noutras palavras, implica a existência de acontecimentos aparentemente inexplicáveis e imprecisos. A ficção discorre sobre uma cidade fictícia - Terramor -, em que mãe e filha sonham em encontrar o amor. As personagens vivem em um casarão de três andares, no qual, o terceiro é reservado às vacas. Em meio a sonhos e delírios acontecem os mais inusitados fenômenos na pequena e agitada cidade, fenômenos que por vezes assustam e surpreendem o leitor. Um trecho estranhíssimo10 ocorre quando a mulher leva o defunto do seu marido para ser chicoteado em troca de dívidas que deixou no plano terreno, a seguir a cena deste episódio: [...] Antuza disse que não e a mulher explicou: como não tinha dinheiro para pagar todos os credores – ela e dois carregadores mais tarde sairiam com o defunto, pelo comércio, perguntando se havia dívida a pagar. Se houvesse, o credor poderia dar uma surra no defunto e o compromisso assim ficaria quitado. (MARQUES, 1976, p. 69). 9 Informação retirada de um antigo jornal, publicado em uma página do Facebook: Farol Caxiense, em que reúne diversas informações e documentos importantes que foram com o tempo se perdendo. Disponível em: https://www.facebook.com/ronaldocxma. Acesso em 11/02/2022 10 Palavra utilizada com o sentido de: não afeito; não habituado. Definição dada pelo dicionário online priberam de português. Site// estranhíssimo - Dicionário Online Priberam de Português, acessado em 06/02/2022. 545

Anais Apesar de ser inusitada a atitude da mulher, os credores hesitam em açoitar o falecido, levando-os a afirmar: “e eu acho ainda que isto que a senhora está dizendo é um crime” (p. 69), fato que é explicado mais adiante, em que a esposa justifica que “É um costume de nossa família. Todos os meus antepassados fizeram isto (MARQUES, 1976, p. 69). Diante do exposto, pode-se inferir como algo fora do normal, rompendo assim, com as narrativa-naturalista, pois, logo depois que a esposa explica a razão do seu comportamento, os credores o açoitam com toda sua ira, ainda houve aqueles que não eram credores, mas que o surrou: “embora não houvesse nenhuma conta a pagar, o verdureiro ergueu o chicote e por várias vezes surrou o defunto” (p.71). Condizente ao que reflete o estilo da narrativa insólita, a respeito Flávio Garcia afirma que: Insólito abarca aquilo que não é habitual, o que é desusado, estranho, novo, incrível, desacostumado, inusitado, pouco freqüente, raro, surpreendente, decepcionante, frustrante, o que rompe com as expectativas da naturalidade e da ordem, a partir senso comum, representante de um discurso oficial hegemônico. (GARCIA, 2007, 1 apud citação do ebook). Rodrigues Marques nos apresenta uma narrativa surpreendente, fugindo, por vezes, do real; aludindo para uma literatura ficcional insólita/maravilhosa, ocorrências que veremos a seguir em outros trechos. À exemplo, em um outro capítulo, no primeiro, ocorre a mesma ação de provocar terror seguido de nojo e incompreensão, pois Artemiza, filha de Antuza, avisa sua mãe que há um corpo (defunto) na praia carregado de guaiamuns - espécie de caranguejo -, a mãe de imediato pede a filha que vá buscar, sem ao menos certificar quem era o indivíduo. Conforme verifica-se na passagem: Artemiza segurou o cachimbo por alguns minutos e pediu a filha que voltasse à praia e se de fato os siris fossem bonitos e gordos como acabara de dizer, os trouxesse todos [...] Antuza andou novamente légua e meia até alcançar a praia. Quando se curvou para retirar os siris do seu interior, o róseo de sua pele parecia mais belo [...] com as mãos ágeis foi retirando os gordos siris no jacá e, ao notar que já não havia mais um só para levar para Artemiza, permaneceu ainda algum tempo ajoelhada ao lado do afogado e concluiu que se tivesse força para atirar novamente o cadáver ao mar, por certo quando voltasse à praia viria mais recheado de siris e até trouxesse algum peixe ou algum caranguejo no seu bojo. ( MARQUES, 1976, p. 12 grifo nosso). Nestes breves trechos que narra o exemplar, nos apresenta ações que se dá “num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem sílfides, nem diabos, nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo 546


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