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ANAIS COLINT Definitivo

Published by biblioteca, 2022-11-14 14:14:28

Description: ANAIS COLINT Definitivo

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Anais Maurice-Jean Lefebve, em Estrutura do Discurso da Poesia e da Narrativa, argumenta que a poesia, cuja linguagem se desgarra e se separa da utilidade prática da língua, é carregada de intencionalidade, que consiste em “[...] desligar o discurso do seu uso prático, em considerá-lo como um novo estado de linguagem em que o processo de significação contaria mais que o sentido ou a coisa significada” (LEFEBVE, 1980, p.48). Assim, o discurso poético caracteriza-se pela utilização de uma linguagem, ou seja, metalinguagem, que se exacerba a conotação, a polissemia, a ambiguidade, e a intenção de se construir um objeto, neste caso, a obra de arte literária, no poema Canto à cidade de São Luís, de Arlete Nogueira da Cruz, que tem a existência material independente e que ultrapassa a comunicação propiciada pela linguagem corrente. Memória e espaço a partir da cidade de São Luís Em se tratando de memória, Maurice Halbwachs, sociólogo francês, foi um dos grandes teóricos que postularam sobre o tema. Sua decisão de pensamento ao atribuir à memória um caráter social, e não individual5, inaugura uma nova perspectiva às discussões sobre memória. Apesar de ter cunhado o conceito de “quadros sociais da memória” anteriormente, foi na obra A Memória Coletiva (publicada postumamente em 1950), que Halbwachs afirma que para se lembrar, precisa-se do outro. Halbwachs (2006), também considera a existência da memória individual, estando ela enraizada em diferentes contextos e grupos sociais com os quais um indivíduo cruza ao longo da vida. Por isso, o indivíduo que lembra, é sempre um indivíduo inserido e habitado por grupos de referência; a memória é sempre construída em grupo, mas também é um trabalho do sujeito. A reminiscência é uma experiência pessoal que permite situar a singularidade de uma vida no contexto da experiência histórica mais ampla. A memória auxilia na história de um determinado indivíduo para que se associe com diversas outras histórias dos grupos sociais que ele frequenta. Cada história pessoal é uma pequena parte que integra e compõe a memória coletiva de uma época. 5 O que ia de encontra às teses fenomenológicas de Agostinho, Locke, Husserl, por exemplo, que acreditam que a memória era fenômeno individual, pessoal e interna. 297

Anais Sendo assim, pode-se afirmar que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva e que, além disso, cada enfoque muda de acordo com o lugar que é ocupado no campo social e, também, segundo a relação mantida em outros ambientes Halbwachs (2006). Ao tratar da memória coletiva e do espaço, no capítulo IV da mesma obra, o autor declara que o ambiente material no qual vivemos traz simultaneamente nossa marca e a marca do outro. Dessa forma, tudo o que compõe uma casa, por exemplo, seus móveis, eletrodomésticos, cor das paredes e até o cheiro dos ambientes remetem à família e amigos que podem ser vistos nesse contexto. Tal consideração vale tanto para pessoas que vivem em família, independente da sua composição, quanto para pessoas que moram sozinhas. Mesmo que seus adereços domésticos não remetam alguém com quem conviva diariamente sob o mesmo teto, eles “circulam dentro do grupo e nele são apreciados, comparados, a cada instante descortinam horizontes das novas orientações da moda e do gosto, e nos recordam os costumas e as antigas distinções sociais” (HALBWACHS, 2006, p. 158). Portanto, entende-se que o ambiente interno reflete a influência do social. No entanto, não é somente o espaço domiciliar, interno, que sofre tais ações sociais, o espaço público, externo, também recebe graus de interferência. Quando postula sobre o espaço ocupado por um determinado grupo6, Halbwachs não o entende como um quadro- negro onde se escreve e apaga sem deixar rastros. Isso se dá porque “o local recebeu a marca do grupo, e vice-versa” (HALBWACHS, 2006, p. 159), tendo suas ações traduzidas em “termos espaciais”, tornando esse lugar, a reunião de todos esses termos. Sobre a significância desses termos, ele afirma: Cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem um sentido que só é inteligível para os membros do grupo, porque todas as partes do espaço que ele ocupou correspondem a outros tantos aspectos diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade, pelo menos o que nela havia de mais estável. (HALBWACHS, 2006, p. 160). Dessa forma, o conjunto arquitetônico de uma cidade, bem como suas cores, tamanhos e outras características pode remeter ao passado e carregar significados específicos a um grupo. No entanto, a relação entre um grupo e esse lugar com o qual eles se relacionam podem sofrer mudanças, caso algum acontecimento “grave” ocorra, seja porque 6 Podendo ser uma rua, um bairro, cidade etc. (HOUAISS, 2001, p. 2246) 298

Anais modifica o grupo como um todo, a exemplo do falecimento de um dos participantes, ou um casamento, seja pela mudança do lugar, a exemplo da mudança, para uma remuneração maior ou menor de um dos membros do grupo, gerada por uma promoção, ou troca de emprego, ou até mesmo demissão. Halbwachs entende que isso modifica o grupo, a memória coletiva e o ambiente material. Exposto isso, agora cabe analisar o poema de Arlete Nogueira da Cruz, intitulado Canto à cidade de São Luís, publicado na antologia Colheita (2017). Esse poema faz parte de um conjunto de composições poéticas reunidas pela própria autora que foram escritas no decorrer da sua carreira literária. O poema analisado é composto por 30 estrofes com quatro versos cada, sendo cada verso uma redondilha maior (sete sílabas poéticas), e esquema de rima ABAB. A temática principal do poema é o saudosismo. O eu-lírico7, após muitos anos distante da cidade de São Luís, retorna ao local onde cresceu e é assaltado pelas lembranças do seu passado. A presente análise contempla os três momentos do poema: o primeiro, aborda as reminiscências da voz lírica do poema e as suas emoções pessoais, no segundo, descreve um dos grupos sociais ao qual ela fazia parte, a saber: sua família, e no terceiro, é uma reflexão pesarosa causada pelo revisitar dessas memórias. Atuação no espaço intelectual maranhense O amálgama profundo do poema Canto à cidade de São Luís, concomitantemente, traz à tona uma perspectiva construtiva que ressalta com a metafísica, o mítico, o místico e a transcendência, no intuito de captar os padrões essenciais e subjacentes às contraditórias aparências da cidade, do espaço, do tempo, da cultura e da história na literatura maranhense. Segundo Bourdieu: A noção de espaço não diz respeito a um cálculo sistemático, mas à relação – também não plenamente inconsciente – entre as disposições incorporadas ao longo das trajetórias dos agentes e o que está em jogo no espaço social em que se inserem, ou seja, pelo acionamento de recursos tangíveis ou 7 No poema Canto à cidade de São Luís, o eu-lírico é feminino. Constata-se isso pelo uso de artigos e substantivos femininos para se referir a si mesmo no decorrer dos versos. (HOUAISS, 2001, p. 2248) 299

Anais intangíveis condicionados a meio caminho entre as determinações objetivas e as disposições incorporadas. (BOURDIEU, 2004, p. 47). Percebemos que, a definição crítica de espaço é bastante funcional, em relação a imagem da metáfora no referido poema e na descrição, mas também na forma de analogia, comparação, justaposição na apreensão e representação de objetos, conforme Arlete Nogueira da Cruz expõe em sua antologia poética. O espaço urbano da cidade de São Luís pode ser entendido como o gatilho para o destravar das memórias descritas pelo eu-lírico do poema, como descrito na primeira estrofe: “Ó cidade de São Luís/ estanco nestes degraus/ subindo escadas que fiz/ suando os mais altos graus” (CRUZ, 2017, p. 18). A interjeição “ó” denota o chamamento inerente ao seu uso, que nesse caso, pode indicar alegria, nostalgia, saudades ou até mesmo dor pela invasão dos sentimentos que o retorno à cidade de São Luís lhe causa. Em seguida é descrita a lembrança evocada pelo ato de subir as escadas as quais o eu-lírico subiu por muitos anos, mas por algum motivo8 foi impedido de fazê-lo. O verbo “estanco” demonstra a incapacitação que a nostalgia pode causar no corpo de um indivíduo. O fenômeno mnemónico pode até mesmo trazer à tona sensações físicas, tais como suores, causado pelo clima tropical úmido que mantém as temperaturas altas na ilha de São Luís, fenômenos que podem ser explicados pela psicologia. A partir do ato de subir essas escadas, desencadeia uma série de lembranças no eu- lírico. O luto pela mãe perdida descrito nos versos: “À vista de tuas casas/ reclamo mãe que perdi” (CRUZ, 2017, p. 18) encontra a poeticidade da comparação: “igual aves sem asas/ não sei a forma de ir” (CRUZ, 2017, p. 18) e mais uma vez tem o espaço urbano de São Luís como cenário que suporta sua nostalgia: “chorar de perto do Anil”, “rever o sítio, o barril/ de pólvora sobre meu sono” (CRUZ, 2017, p. 18). Existe, ainda um paralelo entre duas estrofes do poema que demonstram a passagem do tempo cronológico e o estado físico e emocional do eu-lírico em cada um desses momentos de sua vida: “Contente, uma menina/ àquela praia trazida/ tornou-se ali purpurina/ e logo 8 Provavelmente a mudança geográfica, que pode ser motivada por diversos fatores. Halbwachs (2006) afirma que tais movimentações podem gerar uma modificação no grupo (nesse caso, o eu- lírico, que representa um dos membros desse coletivo) e o local com o qual eles se relacionavam (nesse caso, a casa onde eles moravam. No poema, os versos “Lembrança antiga da terra/ deixada um dia apara trás” ilustra o pensamento de Halbwachs, embora não seja possível identificar o motivo exato desse abandono. 300

Anais comprometida” (CRUZ, 2017, p. 20) e “Vinte anos transcorridos/ à praia volta a criança/ assustada dos havidos/ chorar materna lembrança” (CRUZ, 2017, p. 22). O paralelo entre essas duas estrofes e o seu cenário, a praia9, é palco de episódios emocionalmente marcantes: no primeiro momento, tornar-se purpurina, pode fazer referência à menarca10 do eu-lírico, o que justificaria a razão pela qual ela, logo depois, comprometeu-se com alguém, já no segundo momento, o retorno a praia relembra a perda de sua mãe. São Luís é palco de boas venturas não somente para o eu-lírico, mas para sua família: “Ó cidade aventurada/ de nossa Márcia, das mãos/ dessa mãe Enoi, da amada/ mãe destes seis irmãos” (CRUZ, 2017, p. 20) e “Ó terra que ao pai foi/ prometida: de mel e azeite” (CRUZ, 2017, p. 20). A lembrança materna11 e paterna está carregada do sentimento de labor, o que denota o esforço empregado pelos pais do eu-lírico na criação de seis filhos. Na estrofe que fala sobre o pai, encontra-se uma referência ao texto bíblico12, denotando o conhecimento bíblico e a fé (católica ou cristã) do eu-lírico. Outras referências bíblicas são feitas durante a narrativa poética, a exemplo de: “Através de ti nosso pai/ nos deu o pão de cada dia/ (a nossa for, nosso aí, a nossa mãe resolvia” (CRUZ, 2017, p. 21) e “Dever que temos agora/ que tu mãe, e que tu pai, nos deram naquela hora/ conduziu-nos ao monte Sinai” (CRUZ, 2017, p. 21). Interessante notar que, todas as referências bíblicas estão baseadas no texto bíblico de Êxodo, que narra a libertação do povo hebreu da escravidão no Egito e sua peregrinação rumo “à terra prometida”13. Pode-se confirmar a hipótese de que, o eu-lírico e sua família não 9 Embora na primeira estrofe destacada o substantivo “praia” possa fazer referência à ilha de São Luís (essa perspectiva será considerada posteriormente). 10 A menarca, a primeira menstruação de uma menina, em algumas culturas, marca a passagem da infância para a vida adulta, o que a tornaria apta para casar, uma vez que, biologicamente, seu corpo pode gerar uma nova vida. 11 Curiosamente o eu-lírico, no decorrer da narrativa poética, ao se referir aos seus pais, faz referência à figura materna em primeiro lugar. Isso acontece, possivelmente, pelo fato da voz poética ser feminina, o que pode gerar uma empatia e identificação quanto às lutas de sua progenitora. 12 Uma referência indireta, uma vez que o texto bíblico faz chama a terra prometida ao povo de Israel de “terra que mana leite e mel”, e no poema de Arlete Nogueira ela chama a cidade de são de terra de “mel e azeite”. 13 Foi no deserto que o povo recebeu o “pão de cada dia” em forma de maná; foi lá também Moisés conduziu o povo “ao monte Sinai” e lá recebeu as tábuas da lei, que continham as diretrizes éticas que o povo hebreu deveria seguir, como relatado no livro de Êxodo. 301

Anais sejam ludovicense, mas retirantes que vieram para o litoral em busca de melhores condições de vida. Ainda falando sobre o monte Sinai, pode-se relacionar essa ideia bíblica aos versos que seguem sua referência: “alertado ao que seríamos, enquanto esperamos vez” (CRUZ, 2017, p. 21). Assim, é possível constatar que, a cidade de São Luís seria esse local onde os pais do eu-lírico tentaram traçar um destino para ela e seus irmãos, uma vez que o monte Sinai é um local no qual, os destinos são traçados, no contexto bíblico. É possível notar a fé sendo esteira para as decisões tomadas pela família do eu-lírico: “Com século de cidade-ilha/ São Luís, ficou esperando/ toda a fé de uma família/ inteira à praia chegando” (CRUZ, 2017, p. 19). Essa estrofe carrega um enigma, pois pode ser considerada como um momento de transição temática no poema. As estrofes anteriores tratam de lembranças e sentimentos individuais do sujeito lírico que narra seu retorno à cidade de São Luís. Considerando apenas essas primeiras estrofes, pode-se pensar que o eu-lírico seja ludovicense, no entanto, ao ponderar os versos destacados a cima, em “São Luís ficou esperando/ toda a fé de uma família/ inteira à praia chegando”, a imagem pintada é de um grupo de pessoas se mudando para a ilha14. A personificação atribuída à cidade conota o sentimento de acolhimento que a ilha proporcionou a esses retirantes, que vieram em busca de novas oportunidades, o que pode ser verificado em: “/ Ó tu que nos deste o boi/ às nossas manhãs de leite/ nos deste em torno da mesa/ ciência de um solitário/ esforço para proeza/ do nosso comer diário” (CRUZ, 2017, p. 20). A cidade recebe novas características humanas nos versos: São Luís então se oferece/ maternalmente na noite (CRUZ, 2017, p. 22). Aqui São Luís assume o papel da mãe que o eu- lírico perdeu, agindo com condescendência e, mais uma vez, acolhimento: “Acolhe esta andarilha (CRUZ, 2017, p. 22), “Ó terra que sempre soube/ dar dia e dar noite” (CRUZ, 2017, p. 22), “nos deste em ganho à lavoura” (CRUZ, 2017, p. 21), “mostraste a esperança” (CRUZ, 2017, p.21). Os versos “à órfã que desconhece/ a origem de tanto açoite” (CRUZ, 2017, p. 22) aludem a um sentimento recorrente nessa narrativa poética: dor. Embora a ilha tenha recebido bem essa família, a voz poética constantemente descreve sentimentos de angústia: 14 Aqui o substantivo “praia” é considerado conotativamente, representando a mudança de uma família de um local continental para o litoral. Embora essa não seja a proposta desta análise, é possível notar um paralelo entre a vida da autora e o poema em questão, uma vez que a mesma veio ainda criança do interior do estado do Maranhão com seus pais para a cidade de São Luís. 302

Anais “(a nossa dor, nosso ai)” (CRUZ, 2017, p. 21), “suor, sangue e salmoura” (CRUZ, 2017, p. 21), “asila-me neste desvio/ repleta destes meus idos” (CRUZ, 2017, p. 22), “subindo no desamor/ das águas que me querem ilha, / de outras que me trazem dor” (CRUZ, 2017, p. 22). Assim, nota-se a curva descendente que o desbloqueio dessas memórias causou no eu-lírico. Não existe clareza quanto aos infortúnios sofridos por essa família de possíveis migrantes, mas os sentimentos narrados são suficientes para constatar que o despertar dessas lembranças fazem-na reviver na pele essas emoções aviltantes, motivadas pelo abandono de sua terra natal, pelas dificuldades vivenciadas em família na sua nova casa, pelas perda de entes queridos (como é descrito no início do poema e reiterado em alguns versos seguintes sobre a perda da mãe), pela saudade dos parentes vivos – e mortos –, ou até mesmo um pouco de cada uma dessas hipóteses levantadas. No entanto, constata-se o protagonismo da cidade de São Luís no despertar dessa memória, e sua plena participação como palco de momentos marcantes na história (e ficaram na memória) da voz poética que narra com saudosismo e pesar, mas com gratidão, os caminhos trilhados por seu eu de tempos atrás. CONSIDERAÇÕES FINAIS O retorno para suas origens se revelou uma experiência dolorosa para o eu-lírico que narra a Canção para a cidade de São Luís. Ao mesmo tempo que as boas lembranças de sua infância junto de sua família trazem acalento ao seu interior, os anos de labor e perdas sofridas maculam de angústia e luto essas memórias. Ao investigar parte da fortuna crítica de Arlete Nogueira (Colheita, 2017), percebemos a relação entre a cidade de São Luís e a pessoa de Arlete, embora não seja suficiente para afirmar que o eu-lírico do poema seja a própria. Identificamos, também, as formas marcadas pela metamorfose do desgaste do tempo e do espaço, representados metaforicamente pelo salitre. Sendo assim, a obra Canção das horas úmidas (1973), livro esse que tem sua estrutura demarcada dentro da antologia poética Colheita (2017), ressalta como marco importante de contribuição contemporânea na mensagem dos poemas: Canto à cidade de São Luís, no qual, o brilho através do tempo, torna-se uma grande riqueza para a literatura maranhense. Portanto, neste trabalho, intitulado: Pelos caminhos da memória e da história no poema Canto à cidade de São Luís, de Arlete Nogueira da Cruz, percebeu-se a relevante 303

Anais importância para com a Literatura Maranhense Contemporânea, na perspectiva do tempo e do espaço ludovicense. REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. Leitura, leitores, letrados, literatura. In: _______. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004. CRUZ, Arlete Nogueira da. Colheita (antologia poética). São Luís: INIGRAF, 2017. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. HOUAISS, Antônio. Grande dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001. LEFEBVE, M.-J. Estrutura do discurso da poesia e da narrativa. Coimbra: Almedina, 1980. RICCEUR, Paul. [TRADUÇÃO: Alain François et al]. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. SAMUEL, Rogel. Novo manual de teoria literária. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. TV ASSEMBLEIA MARANHÃO. Arlete CRUZ da Cruz lança livro 'A Colheita', no terraço da casa de Nauro Machado. – 29 de nov de 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qouEXuI8DHk – Acesso em 13 de jan de 2022 às 22h. 304

AUTOBIOGRAFIA E CONSTRUÇÃO DO NARRADOR EM CAZUZA Erika Maria Albuquerque SOUSA (UEMA)1 Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)2 RESUMO A complexidade da construção da identidade em Cazuza (1938), de Viriato Corrêa, revela-se em uma intricada rede de representações, em que o personagem se submete a tantos outros (família, amigos, colegas de escola etc.), constitutivos de sua própria persona. Se a autobiografia é essa representação de acontecimentos baseada na memória, acreditamos que Corrêa pauta-se no ato de recordar ao transmitir por meio da escrita o vivido (sua meninice) e o ato de descrevê-lo, ao transformar suas reminiscências em romance; nesse sentido a autobiografia como construção do narrador/autor de uma redefinição da forma da memória histórica é considerada como um dado que o romance situa-se “numa espécie de zona de indefinição de fronteiras entre ficção e realidade” (SENA, 1997, p.9). A partir da posição do narrador, o presente trabalho discute e reconhece o romance autobiográfico de Viriato Corrêa, Cazuza, como “uma espécie de tensão entre o presente e o passado do eu” (SENA, 1997, p.9). Como resultado desses encontros, o presente texto surge, atento a seus sujeitos: personagens, narrador, autor, instâncias subjetivas que se autorrevelam pela linguagem. Sujeitos nacionais, transnacionais que, no livro Cazuza, são unidos como textos críticos sobre o tema da autobiografia como construção do narrador. A pesquisa é analítica e tem como base primária a obra e como base teórica os estudos de pesquisadores que, de alguma forma, têm em comum, trabalhos que apresentem ideias sobre a obra Cazuza (1938), como é o caso de Moisés (1994), Lejeune (1975), Benveniste (1982) dentre outros. Palavras-chave: Autobiografia; Cazuza; Viriato Corrêa; narrador. 1 Graduanda em Letras Português e Literaturas de Língua Portuguesa (Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, campus Caxias). E-mail: [email protected] 2 Doutora em Ciência da Literatura (UFRJ/UEMA, campus Caxias). Docente na Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, campus Caxias. Editora da Revista de Letras Juçara -PPG/Letars/CESC-UEMA. Docente no programa de mestrado em Letras/UEMA. E-mail: [email protected] 305

Anais ABSTRACT The complexity of identity construction in Cazuza (1938), by Viriato Corrêa, reveals itself in an intricate network of representations, in which the character submits to so many others (family, friends, schoolmates, etc.), constitutive of your own persona. If autobiography is this representation of events based on memory, we believe that Corrêa is guided by the act of remembering by transmitting through writing the experience (his childhood) and the act of describing it, by transforming his reminiscences into a novel; In this sense, autobiography as a construction of the narrator/author of a redefinition of the form of historical memory is considered as a fact that the novel is located “in a kind of zone of undefined boundaries between fiction and reality” (SENA, 1997, p. 9). From the narrator's point of view, the present work discusses and recognizes Viriato Corrêa's autobiographical novel, Cazuza, as “a kind of tension between the present and the past of the self” (SENA, 1997, p.9). As a result of these encounters, the present text appears, attentive to its subjects: characters, narrator, author, subjective instances that are self-revealed through language. National and transnational subjects that, in the book Cazuza, are united as critical texts on the theme of autobiography as a construction of the narrator. The research is analytical and has as its primary basis the work and as a theoretical basis the studies of researchers who, in some way, have in common, works that present ideas about the work Cazuza (1938), as is the case of Moisés (1994), Lejeune (1975), Benveniste (1982) among others. Keywords: Autobiography; Cazuza; Viriato Corrêa; storyteller. Introdução O presente artigo trata de uma pesquisa bibliográfica e documental sendo, portanto, de natureza descritiva e exploratória, além de se apresentar resultado de um projeto de pesquisa fomentado pela Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Tecnológico – FAPEMA/MA. Desta maneira, consistirá na análise qualitativa da obra Cazuza (1938) sob o viés da teoria do Pacto Autobiográfico, de Phillipe Lejeune (1973-1975), buscando identificar os possíveis efeitos da autobiografia como instrumento de preservação da memória individual e coletiva, bem como destacar a importância da autobiografia no âmbito dos estudos literários; compreender os principais conceitos da Teoria do Pacto Autobiográfico, de Philippe Lejeune e verificar como a autobiografia influencia na construção do narrador, que são nuances que a teoria do Pacto suscita. A obra Cazuza (1938) foi publicada em um contexto específico, tanto no âmbito nacional como particular da vida do autor, pois em 1930, Corrêa acabou afastando-se da 306

Anais política ao ser preso pela Revolução de 30.3 Da política seguiu para a Literatura, onde escreveu romances, peças teatrais, livros para crianças e crônicas históricas. Em 14 de julho de 1938 acaba sendo o terceiro ocupante da Cadeira 32, na sucessão de Ramiz Galvão e recebido pelo Acadêmico Múcio Leão em 29 de outubro de 1938. Datas concomitantes ao lançamento de seu livro infantojuvenil, Cazuza, publicado em 1938, período de ascensão do Estado Novo. Em vista disso, o romance em questão trata de um relato autobiográfico dos tempos de meninice do escritor, apresentando críticas, em tom singelo, sobre o período em que o Brasil se encontrava, tanto na educação como na política, nos apresenta, também, os costumes, as crenças e a religião do povo maranhense. Com uma linguagem simples e bem humorada os personagens do livro levantam discussões sobre os métodos de ensino vigentes, a ideia de pátria, a guerra e a diferença de tratamento entre ricos e pobres, fazendo- nos conhecer o Maranhão e a História do Brasil. Nessa perspectiva, a pesquisa é feita a partir de um suporte teórico direcionado aos estudos de teoria da literatura voltados tanto para o Narrador como para o Pacto Autobiográfico, especificamente para o papel do narrador enquanto protagonista da diegese. Para tanto, entre os pesquisadores estudados, serão utilizados aqueles que abordam a literatura sob o enfoque da Memória, da Autobiografia e do Narrador, tais como Lejeune (2008), Josef (1998), Benjamin (2012), dentre outros. Quem foi Viriato Corrêa? Manuel Viriato Corrêa Baima do Lago Filho, ou simplesmente Viriato Corrêa, foi uma figura de destaque no cenário intelectual maranhense, na primeira metade do século XX. Nasce em 1884, na cidade de Pirapemas, Maranhão, filho de Manuel Viriato Corrêa Baima e de Raimunda Silva Baima. Cursou as primeiras letras numa escola pública, no povoado de Pirapemas, e, ainda criança, aos nove anos, deixou a sua cidade natal para dar continuidade aos estudos primários no colégio São Luís, na capital do Estado. Uma vez concluídos os estudos preparatórios no Liceu Maranhense, mudou-se para Recife-PE, onde frequentou por 3 A chamada Revolução de 30 pode ser entendida como a disputa pelo poder federal entre as oligarquias de São Paulo, de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul e da Paraíba. Neste sentido há a obra de Boris Fausto (1997). 307

Anais três anos a Faculdade de Direito, encantando-se com a vida intelectual que esta lhe proporcionava. Sob o pretexto de terminar o curso jurídico na metrópole, Viriato Corrêa também deixou o Maranhão, no início do século XX, transferindo-se para a Faculdade Nacional, na capital federal, onde se bacharelou. Cumpria-se, assim, o destino de Viriato, vaticinado desde sua infância por uma vizinha que, ao presenciar a avidez com que o menino aprendia as primeiras letras do alfabeto, rabiscadas na areia pelo pai, dizia “em seu pitoresco linguajar de mulher do povo”: “- Qual! Esse menino não é daqui, é de lá...” E abrindo os braços: é do mundo!”.4 Ainda perambulando pelas redações, fundou os jornais Fafazinho, nome de sua seção da Gazeta que tanto êxito obtivera e A Rua, que organizou com Peixoto de Castro e que logo se tornou um jornal muito popular. Foi também diretor do jornal A Noite, onde assinou por vários anos uma coluna com o pseudônimo de Pequeno Polegar, e colaborador de várias revistas, entre as quais Careta, Kosmos, Ilustração Brasileira, A Noite Ilustrada, Para Todos, O Malho e Tico-tico. Em 1941, quando é fundado, sob a direção de Cassiano Ricardo, o jornal A Manhã, Viriato redige a coluna diária sobre teatro, que mantém durante anos na seção “O Rio e suas diversões”, dividindo a página com escritores como Manuel Bandeira (1886-1968) e Vinícius de Moraes (1913-1980). Apesar de sua vasta produção e trajetória, destacando-se como jornalista, cronista, advogado, dramaturgo, teatrólogo e político brasileiro, o que consagrou Viriato até os dias atuais foram seus escritos na literatura infantil como: Histórias de nossas histórias (1991), Brasil dos meus avós (1927), O país do pau de tinta (1939), Cazuza (1938), A macacada (1949), e, História do Brasil para crianças (1934). Viriato Corrêa faleceu no Rio de Janeiro, em 10 de abril de 1967. O que é Autobiografia? É a presença do autor como principal personagem – ainda que oculta – que distingue o verdadeiro, o mais puro romance; a mais bela arte é sempre autobiográfica. Adolfo Casais Monteiro “Sobre Eça de Queirós”, Presença 17, dez.1928. 4 “Gente grande fala ao Calunga”. Diário de notícias. Rio de Janeiro, 05/05/1960. 308

Anais Phillipe Lejeune (1975, p.14) ao definir autobiografia, descreve o termo como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando põe o acento em sua vida individual, particularmente na história de sua personalidade”. Nessa definição entram em jogo elementos pertencentes a quatro categorias diferentes: A primeira se trata da forma da linguagem: a) narrativa; b) em prosa. A segunda, o assunto tratado: vida individual, história de uma personalidade. Na terceira, situação do autor: identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador. Por quarta, a posição do narrador: a) identidade do narrador e do personagem principal; b) perspectiva retrospectiva da narrativa. Desta forma, para Phillipe Lejeune (1975) é uma autobiografia toda obra que preenche ao mesmo tempo as condições indicadas em cada uma dessas categorias. Para Sena (1997) A autobiografia é uma representação de acontecimentos baseada na memória, no próprio ato de recordar que adquire forma e sentido por meio da escrita, ocorre uma aproximação entre vivido (o passado) e o ato de descrevê-lo (o presente). Gusdorf (1991) defende que a narrativa autobiográfica não se limita à narração exata dos fatos, ao contrário: preocupa-se em revelar o sentido de uma vida, na plenitude de sua permanente atualidade. A Autobiografia, enquanto gênero ou subgênero da escrita literária, é uma forma híbrida de expressão, porque essencialmente destinada ao registro de fatos tidos como verídicos; ela pode ser um discurso documental, testemunhal ou ficcional (JOSEF, 1998, p.295). De qualquer forma, o que marca o eu do texto autobiográfico é seu caráter “real”, segundo o desejo do escritor de “oferecer um retrato do seu ego (civil, autêntico) e não de um ‘eu’ imaginário, em que se transformasse ou que constituísse o eixo de suas projeções (MOISÉS, 1994, p.163). Para Klinger (2006) na definição de autobiografia de Philippe Lejeune, o que diferencia a ficção da autobiografia não é a relação que existe entre os acontecimentos da vida e sua transcrição no texto, mas o pacto implícito ou explícito que o autor estabelece com o leitor, através de vários indicadores presentes na publicação do texto, que determina seu modo de leitura. Assim, a consideração de um texto como autobiografia ou ficção é independente do seu grau de elaboração estilística: ela depende de que o pacto estabelecido seja “ficcional” ou “referencial”. 309

Anais A Autobiografia, pois, também é apresentada - como rememoração do passado com a finalidade de organizá-lo - representa recurso perfeito à verossimilhança da obra. Em uma autobiografia ou diário, o narrador deve, necessariamente, ser o protagonista. (RAMOS, 2010, p.73). Mediante o estudo das teorias supracitadas pode-se compreender a obra Cazuza como pertencente aos romances do gênero, cujo propósito é a formação do leitor mediada pela formação do protagonista, o que Delory-Momberger (2019) denominará de heterobiografização, conceito criado para dar conta dos efeitos de compreensão e de formação de si mesmo pela leitura ou escuta da experiência alheia da qual a pessoa que lê se apropria como se fosse sua. Assim, para Lira e Passeggi (2021) autobiografização e heterobiografização convergem, portanto, para um ponto comum: a formação de quem narra a experiência vivida e de quem lê a experiência narrada por outrem, respectivamente. No primeiro caso, a reflexão se faz sobre a própria experiência no ato de narrar, no segundo, pela mediação da narrativa contada por alguém. Nos dois casos, a obra autobiográfica de Corrêa e o romance de formação por ele criado, Cazuza, são protótipos para a compreensão da formação humana mediante as narrativas. Autobiografia e construção do narrador em Cazuza Para Klinger (2006, p.9) segundo o conceito de Lejeune, o “espaço autobiográfico” compreende o conjunto de todos os dados que circulam ao redor da ideia do autor: suas memórias e biografias, seus (auto) retratos e suas declarações sobre sua própria obra ficcional. Em um sentido geral, todo texto de ficção participa do espaço autobiográfico, a ficção em primeira pessoa analisada neste artigo e com traços autobiográficos ocupa aí um lugar de destaque: estabelece o que Lejeune chama de “pactos indiretos”, pois o autor, por meio de alguma indicação, os dá a ler indiretamente como “fantasmas reveladores do indivíduo”. (KLINGER, 2006). Em Cazuza, o narrador possui vários traços da biografia do autor, fato que o crítico literário Múcio Leão salientou sobre a importância de Cazuza na obra e vida de Viriato Corrêa, afirmando que a obra era “uma suave autobiografia encerrando a pureza, a poesia 310

Anais idílica da primeira infância do autor não sendo possível lê-la sem sentir nos olhos o calor das lágrimas da emoção e da ternura”. 5 Viriato afirma que nutria por Cazuza um carinho especial, pois o protagonista era um retrato de sua meninice, no Maranhão, fato que pode ser comprovado porque a obra vem à luz somente em 1938, tendo consumido dez anos de trabalho de seu autor, que nunca se dava por satisfeito com o resultado: “Tudo porque eu queria fazer de Cazuza, o personagem principal, um garoto igual a muitos outros. Um dia, finalmente acertei e depois de parar um pouco para pensar, cheguei à conclusão de que Cazuza sou eu, nos meus tempos de criança”.6 Italo Calvino (1993), ao discorrer sobre os livros considerados clássicos e a importância de sua leitura, explica que o que torna uma obra clássica é seu efeito de ressonância numa cultura - e isso se aplicaria tanto para obras modernas quanto para as antigas. Os livros clássicos seriam, então, aqueles que “exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual” (CALVINO, 1993, p.11). E as constantes reedições de Cazuza podem comprovar essa ressonância. (PENTEADO, 2001). Segundo o historiador Robert Darnton (1988, p. 34): O narrador procede como se caminhasse por uma estrada bem conhecida. Pode desviar-se aqui, para fazer uma pausa, ou ali, para uma vista, mas sempre permanece em terreno familiar (...). Cria seu texto ao narrá-lo, escolhendo novos caminhos através dos velhos temas. Diante disso, o enredo da obra Cazuza, inicia-se com o relato explicativo, que irá justificar o título do romance e sobre como tudo aconteceu: Um dia, o homem bateu à minha porta, pedindo-me cinco minutos de atenção. Entrou, abriu a pasta, tirou de dentro um grosso maço de manuscrito e disse-me: São minhas histórias dos tempos de menino. O senhor, que escreve, veja se isto presta para alguma coisa. (CORRÊA, 2011, p. 8). 5 A tarde. Rio de Janeiro, 18/01/1960. 6 “Viriato vai ver sua ‘História da Liberdade’ no samba do Salgueiro”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 19/08/1966. 311

Anais Observa-se no trecho supracitado um narrador, em primeira pessoa, humilde, que entrega um caderno de memórias dos seus tempos de menino ao seu vizinho, questionando- o se isso prestava para alguma coisa, uma vez que o outro escrevia. Uma interpretação para Corrêa iniciar seu livro assim, poder-se-ia justifica-se pelo fato de em 1903 ter saído no Maranhão o seu primeiro livro de contos, Minaretes, marcando o aparecimento de Viriato Corrêa como escritor. O livro, no entanto, não agradou a João Ribeiro, que descarregou contra ele toda a sua crítica. Considerou afetado o título, proveniente do árabe, porque uma mesquita não tem nada em comum com contos sertanejos, que foram o tema da obra.7 Por conta da má recepção de sua primeira obra, acredita-se que Corrêa utiliza-se do prólogo, na obra Cazuza, para se apresentar mais humilde diante da sociedade literata. Assim, a partir do primeiro capítulo deparamo-nos com um narrador-personagem que utiliza-se de suas reminiscências para narrar os seus tempos de escolas, juntamente com tais experiências temos contato com a cultura maranhense, pessoas que foram marcantes em seu processo de amadurecimento, a religiosidade, dentre outros. Walter Benjamin ao se apegar à reminiscência, de forma contundente, se preocupava com a problemática das narrativas, uma vez que se relaciona com a transmissibilidade de uma experiência e com o reconhecimento de um encontro marcado entre gerações. A partir daí a arte de narrar encontrar-se em um terreno infértil, pois: São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. É cada vez mais frequente que, quando o desejo de ouvir uma história é manifestado, o embaraço se generalize. É como se estivéssemos sendo privados de uma faculdade que nos parecia totalmente segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 2012, p. 213). Conforme o trecho acima pode-se afirmar que Corrêa através de seu narrador- personagem cumpre a faculdade de intercambiar experiências ao descrever com fidedignidade a hospitalidade como um dever religioso, no interior do Nordeste, conforme descreve: Ao se despedirem apertavam a mão de minha mãe. Apertavam a mão de meu pai, dizendo-lhes “obrigado” e nada mais. É que nada mais lhes era permitido. No sertão do Brasil, quem perguntar o preço da hospedagem ofende aquele que a deu. A hospitalidade por lá é uma religião, e ninguém se furta a um dever religioso. (CORRÊA, 2011, p.19). 7 https://www.academia.org.br/academicos/viriato-correia/biografia, acesso em 04/07/2022. 312

Anais Pinto (1966, p.21) descreve como esse dever religioso de hospedagem é típico do Maranhão, verificado em Cazuza (1938), tem caráter processual, como defendido por Hall (1999), ao afirmar que, para outrem, seria perfeitamente natural, já para os sertanejos maranhenses seria qualquer coisa profundamente ofensiva, pois tanto no romance como na vida real, hospedar alguém é um dever pago com simpatia: Talvez por isso tudo, toda gente que vinha tomar a gaiola, hospedava-se na Casa Grande. Como a passagem dos barcos não obedecia a horário rígido, muita vez, famílias inteiras ficavam ali alojadas uma semana, 15 dias, comendo, bebendo, na mais santa das tranquilidades. O barco chegava, agradeciam com efusão e partiam sem perguntar aos hospedeiros quanto deviam porque, tal pergunta que, para outrem, seria perfeitamente natural, para estes era qualquer coisa profundamente ofensiva (PINTO, 1966, p. 21). Hércules Pinto em seu livro Viriato Corrêa (a moda de biografia), publicado em 1966, decide fazer uma homenagem ao seu amigo Viriato, pois como era amigo da família sentiu a necessidade de contar a história de seu admirável amigo, Corrêa. Deste modo, ao se traçar um estudo comparativo entre o livro de Pinto e a obra Cazuza, podemos encontrar muitos traços autobiográficos de Viriato Corrêa, como o trecho acima, que destaca o dever religioso de recepcionar os visitantes; bem como a casa grande, que era a casa dos pais do autor e que na obra ele preserva a lembrança ao descrevê-la como a casa de Cazuza: “a melhor casa de telha era a da minha família, com muitos quartos e largo avarandado na frente e atrás. Chamavam-lhe a casa-grande, por ser realmente a maior do povoado” (CORRÊA, 2011, p.17). Outro ponto interessante a se ressaltar é o lugar onde a história se desenrola, pois Viriato Corrêa nasceu em Pirapemas/Maranhão e o primeiro capítulo de Cazuza, desenrola- se justamente no mesmo local, reforçando o pacto autobiográfico presente. Assim, o narrador irá apresentar seu local de nascimento como: Um dos lugarejos mais pequenos, mais pobres e mais humildes do mundo. Ficava à margem do Itapicuru, no Maranhão, no alto da ribanceira do rio. Uma ruazinha apenas, com vinte ou trinta casas, algumas palhoças espalhadas pelos arredores e nada mais. Nem igreja, nem farmácia, nem vigário. De civilização, a escola, apenas. A rua e os caminhos tinham mais bichos do que gente. Criava-se tudo à solta: as galinhas, os porcos, as cabras, os carneiros e os bois. (CORRÊA, 2011, p.17). 313

Anais Viriato Corrêa também preserva em sua obra memorialística a migração campo- cidade sofrida por ele, quando ainda era uma criança precisou deixar a cidade natal para fazer cursos primário e secundário em São Luís do Maranhão. Utilizando essa experiência como mote ele consegue desenrolar todo o enredo de Cazuza. Pois a primeira parte da narrativa inicia-se no Povoado de Pirapemas e por conta de ordens financeiras, os pais do protagonista precisam deixar o povoado para migrarem a Vila do Coroatá, o que iremos descobrir com a biografia de Viriato que, na verdade, a família se muda para São Luís por conta do falecimento do pai de autor. Destarte, ao recorrer a suas memórias Corrêa toma o cuidado de alterar o nome dos locais, ao trocar São Luís por Coroatá, no segundo capítulo do livro, mas que não escapou ao terceiro e último capítulo, pois é quando Cazuza muda-se para a capital do Maranhão, assim como seu criador, para concluir os textos primários na capital. Portanto, se a memória fosse a conservação completa do passado em uma “cópia interior” daquele, tudo estaria resolvido. Mas não existe essa duplicata, porquanto os afetos, a linguagem, a atuação e principalmente a imaginação (que é feita do mesmo substrato) são fatores responsáveis pela seleção, definição e significação do passado. Considerações finais À guisa de conclusão, compreende-se que as memórias individuais se esvaem com a morte de seus portadores, restando para a história, recursos que devem sobreviver por gerações, só concebíveis em uma “memória coletiva”, onde o termo memória adquire um sentido necessariamente distinto. Para Ricœur (2007), a fenomenologia da memória deve dar conta de nada menos do que o “enigma da memória”. Desta maneira, ainda que exista o pacto autobiográfico no romance Cazuza, não podemos afirmar que Viriato Corrêa, seu criador, seja o mesmo personagem narrador, porque o autor-narrador adquire personalidade na obra, quando é apresentado na diegese como um “ser” em processo de formação, ainda que essa apropriação da memória seja do seu autor, estaríamos diante então, do que ratifica Ricoeur, como enigma da memória, pois não sabemos quão verdadeiramente são as reminiscências vivenciadas pelo autor ao escrever o romance e se criar os personagens. Segundo as pesquisas de Sousa e Morais (2022) a obra Cazuza apresenta diversas temáticas que vão desde a Literatura infantil à cultura maranhense, agregando-lhe valor 314

Anais cultural, histórico e social, pois além de retratar os costumes e tradição de um povo, insere- o em um contexto de aparente inovação de uma determinada época, utilizando-se do contexto educacional para tecer suas críticas. Estabelecendo, ainda, por meio do desvio autobiográfico situações que deixam margem para interpretações, como se compararmos o fato de Viriato Corrêa quando infante também vivenciado o processo migratório campo- cidade, e concluir seus estudos na capital do Maranhão, São Luís, com a coincidência do menino Cazuza, também concluir seus estudos na capital. Com uma linguagem simples, o autor utiliza-se da autobiografia e suas memórias para passear por um período e nos apresentar aspectos relevantes para uma época, um povo e uma cultura. A obra analisada, para além das áreas de pesquisa utilizadas por esse artigo, ainda deixa margem para outras linhas de pesquisa em vieses distintos, reconhecendo e agregando ainda mais notoriedade à Corrêa e suas obras. Estas conclusões são, portanto, parciais, deixando margem para muito do que ainda pode ser dito sobre o autor e toda a sua obra. Referências BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012. CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. Tradução: Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras,1993. CORRÊA, Viriato. Cazuza. 2. ed. São Paulo: IBEP jovem, 2011. DARNTON, Robert. O Grande massacre de gatos - e outros episódios da cultura francesa. 2. ed. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de Janeiro: Graal, 1988. DELORY-MOMBERGER, Christine (Org.). Vocabulaire des histoires de vie et de recherche biographique. Toulouse: Érès, 2019. GUSDORF, G. Lesécrituresdu moi; lignes de vie 1. Paris: Odile Jacob, 1991. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de janeiro: DP&A, 1999. JOSEF, B. “(Auto)biografia”: os territórios da memória e da história. In: LEENHARD, J.; PESAVENTO, S. J. (Ed.). Discurso histórico e narrativa literária. Campinas: Ed. Unicamp, 1998, p.295-308. KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na narrativa latino-americana contemporânea. 2006. 205 f. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. LEJEUNE, Ph. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975. 315

Anais LIRA, André Augusto Diniz; PASSEGGI, Maria da Conceição. Autobiografia e formação humana: refletindo com Goethe. Pontos de Interrogação—Revista de Crítica Cultural, v. 11, n. 2, 2021. NIGRO, Cláudia Maria Ceneviva; BUSATO, Susanna; AMORIM, Orlando Nunes de. Literatura e representações do eu: impressões autobiográficas. São Paulo: Editora Unesp, 2010. MOISÉS, M. A criação literária: prosa II. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Cultrix, 1994. MUFTI, A.R. “Auerbach in Istanbul: Edward Said, Secular Criticism, and the Questiono f Minority Culture”. CriticalInquiry, v. 25, n. 1, p. 95-125, 1998. PENTEADO, A. E. de A. Literatura de formação e cidadania nos anos 1930: Cazuza de Viriato Corrêa. Quaestio - Revista de Estudos em Educação, [S. l.], v. 4, n. 2, 2002. Disponível em: http://periodicos.uniso.br/ojs3/index.php/quaestio/article/view/1382. Acesso em: 3 maio. 2022. PINTO, G.E. Viriato Corrêa a modo de biografia. Rio de Janeiro: Editora alba limitada, 1966. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007. SENA, J. Os grão-capitães: uma sequência de contos. 5. ed. Lisboa: Edições 70, 1989. SOUSA, E. M. A.; MORAIS, S. S. G. O desvio autobiográfico em Cazuza: infância, educação e cultura. In: DUTRA, R. M. M.; RODRIGUES, P. R. E. (Orgs.). Tópicos sobre Infância e Educação: políticas, história e cultura. Tutoia/MA: Diálogos, 2022. DOI: 10.52788/9786589932420 316

A MENINA SEM PALAVRA: O SILENCIAMENTO E A CRÍTICA PÓS-COLONIAL EM MIA COUTO João Batista TEIXEIRA (FMB)1 Renata Martins de LEMOS (FMB)2 RESUMO A literatura moçambicana em seus vários expoentes com suas histórias a tratarem da tradição, do cotidiano e das vivências desse povo que tem em sua literatura contemporânea a ficção de Mia Couto. Suas narrativas funcionam como uma representações que ficcionalizam as várias faces de Moçambique, do urbano ao rural, o autor percorre a partir de sua construção literária caminhos e descaminhos, errâncias e incertezas pelos mais variados aspectos da experiência humana, expõe as feridas da colonização assim como também acena para a descolonização, processo esse a ser refeito todos os dias na busca das identidades moçambicanas, silenciadas pelo colonizador que usurpou da terra e violou direitos fundamentais ao impor a sua presença por anos num processo violento e sobre o qual a ficção de Mia Couto fala, para que esse passado vergonhoso não se repita na história dos moçambicanos. A menina sem palavra, conto e título da coletânea, pela Editorial Caminho (1997) de Portugal e no Brasil pela Companhia da Letras (2020), A menina sem palavra ao 1 Professor Doutor em Literatura e Interculturalidade pelo PPGLI – Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade da Universidade Estadual da Paraíba, atua na docência da Educação Básica e Ensino superior assim como na pesquisa em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. Docente colaborador da FMB – Faculdade do Maciço de Baturité e Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literatura Brasileira – GEPLT. 2 Professora de Língua Portuguesa, licenciada pela Universidade Estadual da Paraíba – Especialista em Literatura Brasileira pela FMB – Faculdade do Maciço de Baturité e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Literatura Brasileira – GEPLT. 317

Anais falar, se inspirar na expressão mar, única palavra a fazer parte de seu vocabulário e termo que responde por vários significados, sendo um deles a vivência do povo moçambicano com o mar, seja pelo Índico ou pelo Atlântico, quantas histórias são veiculadas via mar?, histórias de invasões, violência colonial, trânsitos culturais assim como sentimentos de travessia, itinerância, passagem e também libertação, elementos socioculturais já pontuais na literatura de Mia Couto. Palavras-chave: Literatura Africana de Língua Portuguesa, silenciamento e Pós- colonialidade. ABSTRACT Mozambican literature in its various exponents with their stories dealing with tradition, daily life and the experiences of this people who have in their contemporary literature the fiction of Mia Couto. His narratives work as representations that fictionalize the various faces of Mozambique, from urban to rural, the author travels from his literary construction paths and misdirections, wanderings and uncertainties through the most varied aspects of human experience, exposes the wounds of colonization as well as also beckons to decolonization, a process that is being redone every day in the search for Mozambican identities, silenced by the colonizer who usurped the land and violated fundamental rights by imposing his presence for years in a violent process on which Mia Couto's fiction speaks so that this shameful past is not repeated in the history of Mozambicans. The wordless girl, tale and title of the collection, by Editorial Caminho (1997) in Portugal and in Brazil by Companhia da Letras (2020), The wordless girl when speaking, inspired by the expression sea, the only word to be part of her vocabulary and term that accounts for several meanings, one of which is the experience of the Mozambican people with the sea, whether by the Indian Ocean or the Atlantic, how many stories are transmitted via sea?, stories of invasions, colonial violence, cultural transits as well as feelings of crossing , itinerancy and passage and also liberation, sociocultural elements already specific in Mia Couto's literature. Keywords: Portuguese-speaking African Literature, silencing and Post-coloniality. Introdução Pensando a partir de uma sociedade que marcada pela colonização portuguesa, forçada a incorporar em seu cotidiano os costumes e tradições do colonizador, Moçambique descolonizada e independente se vê também nas representações que Mia Couto insere e recria em sua literatura através dos quadros de exclusão de moçambicanos, retrata os resquícios de uma violência colonial, processo que atravessou tribos, campos e cidades e ainda reverbera quando os cidadãos moçambicanos e em especial as mulheres, privadas do acesso devido à escolarização, à saúde, assistência social e mercado de trabalho. A presença da pessoa mulher na ficção de Mia Couto é uma referência nos contos e romances, já que a figura feminina representa nessas sociedades, a criação, a maternidade, o 318

Anais trabalho nas machambas, o cuidar da família quando os homens eram levados a servirem nas guerras e no trabalho fora do país, temas que o escritor esboça nos espaços ficcionais para que nesse mover e descontruir discursos a mulher possa ser visibilizada e metaforizada como a nova nação tão propalada na libertação de Moçambique: Sua obra se volta a indivíduos que nos caminhos e descaminhos de uma nação que se ergue em meio aos escombros, com personagens deslocados, absortos no tempo, num silêncio de quem se isolou da realidade, como estratégia de não sofrer, ou amenizar as marcas do sofrimento, das mazelas da guerra civil, das secas que assolaram por anos o território moçambicano. (TEIXEIRA; BEZERRA, 2013, p. 2). Seja em O outro pé da Sereia (2006), Mwadia Malunga a buscar a sua identidade perdida no traslado de uma imagem e ícone católico e também refazendo a sua travessia em busca de suas identidades, Mariamar em A confissão da leoa (2010), ao narrar a história em contraponto ao narrador homem e caçador, entre outras representações que personificam a voz feminina muitas vezes silenciada e a reclamar por essa voz duplamente negada,seja na cultura local pelos costumes e códigos culturais da terra, pela presença também de duas religiões patriarcais como o Islã e o catolicismo romano. Nesta reflexão alocamos o conto do autor A menina sem palavra, da coletânea Contos do nascer da terra (1997), optamos pela edição portuguesa da Editorial Caminho. O conto sendo uma narrativa que Mia Couto acolhe e por ela desfia as histórias mais diversas da cultura moçambicana, informa o cotidiano recriado, performatizado a trazer as histórias perdidas, convocando o passado a presentificar-se para a compreensão das existências. Sobre o conto em Moçambique, observemos: As narrativas curtas pululam na produção moçambicana como uma totalidade dinâmica, representando o avanço do percurso da literatura deste país, que se tornou cada vez mais independente em relação a um ponto de partida em que a aculturação e a assimilação não permitiram a consciência e a formação de uma entidade literária autônoma. (AFONSO, 2004, p. 37). Mia Couto, contista por excelência, recolhe as narrativas da tradição, as histórias e cotidianos que também conhece e consegue extrair da cultura do seu povo, narrativas que nos permite conhecer através da ficção os caminhos e descaminhos desta nação que tenta se erguer em meio a um passado de colonização ferrenha. 319

Anais O autor se coloca também acerca do valor do conto como narrativa muito frequentada: O conto é feito com pinceladas. É um quadro sem moldura, o início inacabado de uma história que nunca termina. O conto não segue vidas inteiras. É uma iluminação súbita sobre essas vidas. Um instante, um relâmpago. O mais importante não é o que revela, mas o que sugere, fazendo nascer a curiosidade cúmplice de quem lê. No conto o que vale não é tanto o enredo, mas o surpreender em flagrante a alma humana. No conto (como qualquer género literário) o mais importante não é o seu conteúdo literário, mas a forma como ele nos comove e nos ensina a entender não através do raciocínio, mas do sentimento (será que existem estas categorias, assim separadas?). (COUTO, 2005, p. 46). Nessa perspectiva, o conto oferta a possibilidade de tomarmos a leitura e de forma breve termos acesso a uma infinidade de informações e representações as quais insere-nos na vida dos personagens e nos modos como eles atuam na trama, esse movimento de comoção e ensinamento, pois ao tratar também da experiência humana como o faz os outros gêneros literários, o conto por ser breve e apresentar a problemática aproximando o leitor numa relação de cumplicidade, interesse e entendimento de histórias que também são muito parecidas com as que vive também o leitor. Silenciamento, mulher e literatura em Mia Couto Em se tratando das sociedades com passado colonial, a presença da mulher neste espaço em muitas situações não lhes dá o direito de lugar, de pertencimento e fala. Com as representações das literaturas de países descolonizados ainda é uma frequência a presença de personagens marcadas pelo silêncio e silenciamento, assim ocorre nas narrativas de Mia Couto como no conto A menina sem palavra: A menina não palavreava. Nenhuma vogal lhe saía, seus lábios se ocupavam só em sons que não somavam nem dois nem quatro. Era uma língua só dela, um dialecto pessoal e intransmixível? Por muito que se aplicassem, os pais não conseguiam percepção da menina. Quando lembrava as palavras ela esquecia o pensamento. Quando construía um raciocínio perdia o idioma. Não é que fosse muda. Falava em língua que nem há na actual humanidade. Havia quem pensasse que ela cantasse. Que se diga, sua voz era bela de encantar. Mesmo sem entender nada as pessoas ficavam presas na entonação. E era tão tocante que havia sempre quem chorasse. (COUTO, 1997, p. 4). 320

Anais Há uma outra língua que a menina sem palavra conhece, seria a língua da tão sonhada liberdade que viria na libertação de Moçambique? De quantas liberdades se constrói um mundo melhor? Seria essa língua uma canção ainda ensaiada em vistas à uma existência melhor para o indivíduo mulher, em uma sociedade atravessada por diferenciados códigos culturais e neles há sempre a ordem de não falar, de não dizer de si. Em se tratando do termo silêncio e silenciamento: Há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido e, de certa maneira, as próprias palavras transpiram silêncio. Há silêncio nas palavras; o estudo do silenciamento nos mostra que há um processo de produção de sentidos silenciados que nos faz entender uma dimensão do não-dito absolutamente distinta da que se tem estudado sob a rubrica do implícito. (ORLANDI, 2007, p. 11-12). Estar em silêncio se relaciona a uma ordem estabelecida e que se impõe a negar a fala a outrem. Não há total ausência da linguagem, o que se verifica é que a menina do conto articula uma língua e linguagem desconhecida e até sugere uma espécie de música: havia quem pensasse que ela cantasse, com esse modo de querer emitir algum som, de mostrar-se como pessoa, a menina do conto intensifica o processo de subalternização naquele espaço familiar que não se materializa o lugar de fala, de afetos e possibilidades de expressão e comunização. Quais categorias de silêncio a personagem de Mia Couto podem ser perspectivadas? Esse silencio é também medo, censura, apagamento da fala. Para que falar? Para quem falar? São questionamentos que perseguem essa análise, a qual se baseia na reflexão de que enquanto sujeito mulher em uma sociedade patriarcal e herdeira de uma colonização violenta, para a mulher é reservado os espaços de silêncio. A menina sem palavra, expõe o quanto ainda é necessário reconhecer os direitos civis das mulheres nessas sociedades e que haja mais espaço para que a mulher fale, reclame, persista, exija seu espaço e lugar para falar e se construir em perspectiva de respeito a enfrentar a vida a partir de um lugar na agenda política dos tempos atuais a desconstruir esse mundo que ainda traz a marca do poder colonial. Sobre o termo lugar de fala, convocamos o pensamento de Djamila Ribeiro: 321

Anais Spivak é uma das autoras importantes para se pensar lugar de fala. Sua obra Pode o subalterno falar, publicada pela primeira vez em 1985, originalmente como um artigo, com o subtítulo especulações sobre os sacrifícios das viúvas, traz reflexões importantes sobre como o silêncio imposto para sujeitos que foram colonizados. A professora indiana é um importante nome do pensamento pós-colonial, que, resumidamente, pretende questionar e interrogar os fundamentos da epistemologia dominante e evidenciar os saberes produzidos por grupos que foram subalternizados em territórios coloniais. (RIBEIRO, 2017, p. 8). Os territórios coloniais e os saberes produzidos por grupos que foram subalternizados como afirma (RIBEIRO,2017), reflete o que é representação no conto de Mia Couto. Ao trazer Spivak para a discussão, pensamos no título do seu livro Pode o subalterno falar? e vemos em A menina sem palavra, uma reflexão também precisa e acertada quando estamos discutindo a partir de uma outra cultura que é a moçambicana e os reveses que essa sociedade viveu e ainda vive. Lembramos do romance A Confissão da leoa, de Mia Couto e perspectivamos essa mulher que ainda não adentrou a universidade e o mercado de trabalho, a mulher que não tem condições de vender seus produtos agrícolas em sua comunidade assim como não pode expressar a sua crença ancestral, são as mulheres do cotidiano que essa fala de Djamila Ribeiro e Spivak deve alcançar também. O Insílio ou exílio interno na personagem de Mia Couto A linguagem e a língua que a personagem do conto de Mia Couto não negocia e se recusa a esboçar, traduz o silêncio imposto pela colonização a comunidade de Moçambique respondendo por um cotidiano de emudecimento da cultura local e assimilação da cultura portuguesa. Esse tema é priorizado nas narrativas pós-coloniais, ou seja, a literatura que expressa a criatividade e inventividade do escritor quando produz uma ficção que não tem como matriz única a cultura do colonizador, mas se utiliza da língua do colonizado e ao intercambiar via idioma imposto na colônia novas formas de dizer de si. Convocamos Bonnici para aclarar questões fulcrais sobre a literatura pós-colonial: A ruptura operada pela literatura pós-colonial e a apropriação do idioma europeu para desenvolver a expressão imaginativa na ficção aconteceram 322

Anais após investigações e reflexões sobre o mecanismo do universo imperial, o maniqueísmo por ele adotado, a manipulação constante do poder e a aplicação do fator desacreditador na cultura do outro. (BONNCI, 2000, p. 8). Os temas da literatura pós-colonial imprimem à criação literária as representações locais e ancestrais, perfomatizadas e reescritas numa perspectiva de valorização do povo antes colonizado e sem voz e pela ficção que ora se apresenta nas nações descolonizadas, dizem e recriam as histórias, apresentam muitas narrativas suplantadas e vindas à público por autores comprometidos com a cultura do seu povo, sendo essa a escrita de Mia Couto. Assim, importa pontuar: Com vínculos tão fortes com a História, a literatura funciona como um espelho dinâmico das convulsões vividas por esses povos. Nela refletem-se de maneira impressionante os grandes dilemas que mobilizam a atenção de quem tem a África como objeto de preocupação: relação entre a unidade e diversidade, entre o nacional e o estrangeiro, entre o passado e o presente, entre a tradição e a modernidade. (CHAVES, 2005, p. 221). Convocando o narrador do conto A menina sem palavra, reconhecemos na narrativa a preocupação do pai para com a sua filha emudecida, era afeiçoado a ela e assim agiu querendo uma solução para a falta de língua e comunicação oral daquela que não tem palavra e como numa revelação começa a falar e isso é uma quebra de expectativa já que não se esperava que viesse ela a se manifestar de forma a dizer o que todos queremos; ser portadores de uma palavra, ter a palavra e dominá-la no seu círculo social: Seu pai muito lhe dedicava afeição e aflição. Uma noite lhe apertou as mãozinhas e implorou, certo que falava sozinho: - Fala comigo, filha! Os olhos dele deslizaram. À menina beijou a lágrima. Gostos e ou aquela água salgada e disse: - Mar... O pai espantou-se de boca a orelha. Ela falara? Deu um pulo e sacudiu os ombros da filha. Vês, tu falas, ela fala, ela fala! Gritava para que ouvisse. Disse mar, ela disse mar, repetia o pai pelos aposentos. Acorreram os familiares e se debruçaram sobre ela. Mas nenhum som entendível se anunciou. (COUTO, 1997, p. 4). Qual a relação que há entre o mar e a ficção de Mia Couto? Podemos elencar algumas, o Índico que banha Moçambique e traz a relação de elos que ligam o continente à ilha. 323

Anais Há também outras significações entre o Índico e a história que faz referência ao sagrado e as viagens como contraponto à história do tráfico humano, conhecido como a escravidão negra nas Américas e Europa, a venda de pessoas num comércio horrendo, promotor de muito sofrimento e barbárie seja no Continente africano e para além mar na rota das grandes navegações e colonização: Mia Couto nasceu em Beira, nas margens do Índico, numa cidade onde todo homem tem a impressão de não se encontrar em lugar nenhum, na visão do próprio autor. Lugar de passagem e pouso durante as longas travessias, toda a costa moçambicana sempre foi um entrecruzar de civilizações. Ilhas, muitas ilhas, e portos que, primeiro, foram ocupados pelos naturais do lugar, que nunca foram poucos e sempre carregaram entre si históricas dissenções. (BEZERRA, 2007, p. 31). Vale lembrar também do insílio, ou seja do exílio interior, tema trabalhado por Nazir Can e que neste conto se relaciona a segunda categoria, a textual, representação da personagem construída pelo silêncio e exílio interno no seu território a mirar o mar: Em Exil, “retour et écriture” (2011), Bernard Mouralis discute a problemática do exílio nas literaturas africanas a partir de dois ângulos: o relato autobiográfico sobre a experiência de um indivíduo que vive em outro país; a representação literária de um herói que é levado a abandonar seu lugar de pertença e rumar ao exterior (Mouralis,2011,348-349). Focalizando o sistema literário moçambicano e situando a reflexão no romance, poderíamos sugerir a inclusão de duas novas categorias. A primeira liga-se mais diretamente ao campo institucional: a experiência do exílio interno dos próprios autores. A segunda, de natureza marcadamente textual: a criação de heróis romanescos que, por distintos motivos, também conhecem a realidade do exílio interno. O exílio dentro de Casa, ou o insílio, termo que designa o estranhamento vivido no próprio país, convida-nos a repensar as relações que se estabelecem entre produtores e representações. (CAN, 2015, p. 31, grifos do autor). O mar surge para a menina sem palavra como o lugar das memórias, das dores, saudades, distância, ligações com outros mundos e metaforicamente é o mar lugar de passagens, de lavar as narrativas e tornar a dizê-las pelos mitos e representações próprias deste lugar: A incorporação do Índico, como eixo temático, extravasa a ilha em si, anunciando um cosmopolitismo e uma modernidade dos quais esses poetas foram os portadores primeiros. No entanto, insistimos, trata-se de um extravasar para dentro do próprio território e não tanto para o outro lado 324

Anais do oceano. [...] Daí que a realidade de outros espaços banhados pelo Oceano Índico acabe por ser incorporada apenas parcialmente, através da representação de personagens que, sendo nacionais e simultaneamente diaspóricas, fazem ecoar o tal outro lado. Importa, neste sentido, salientar o viés “fantasmático” de algumas designações ao outro índico, visíveis em expressões que são já lugares comuns nas respectivas sociedades. (CAN, 2013, p.97). Para a personagem que balbucia a palavra mar e depois emudece fechando-se em seu mundo, mesmo sendo ainda uma criança, há uma saudade doída por um tempo que ainda não aconteceu, há um olhar perdido para além do mar a perder-se nas memórias coletivas da colonização, ferida que evocada via imaginação retrai a fala de uma menina ou de uma nação ainda vivendo a infância da liberdade? A menina chegou àquela azulação e seu peito se definhou. Sentou-se na areia, joelhos interferindo na paisagem. E lágrimas interferindo nos joelhos. O mundo que ela pretendia infinito era, afinal, pequeno? Ali ficou simulando pedra, sem som nem tom. O pai pedia que ela voltasse, era preciso regressarem, o mar subia em ameaça. - Venha, minha filha! Mas a miúda estava tão imóvel que nem se dizia parada. Parecia a águia que nem sobe nem desce: simplesmente, se perde do chão. Toda a terra entra no olho da águia. E a retina da ave se converte no mais vasto céu. O pai se admirava, feito tonto: por que razão minha filha me faz recordar a águia? (COUTO,1997, p. 4). Há um cuidado do pai sobre o silenciamento da filha, ele deseja que a menina fale, que diga algo e se manifeste, sabe que o mar tem uma ligação cultural e até espiritual com aquela criança e espera que ao mirar o oceano possa através desse instante ser uma pessoa que se comunica: À medida que o olhar caminha pela geografia e pela história, atravessando fronteiras e épocas, são muitas as travessias que demarcam as viagens, por terra, mar e ar. Em praticamente todos os campos do conhecimento, há sempre aqueles que realizam sua reflexão passeando o olhar por outros lugares e outras épocas, ou mergulhando-o no mesmo lugar, rebuscando épocas. A inquietação e a interrogação caminham juntas, sempre correndo o risco de encontrar o óbvio ou o insólito, o novo, o fascinante, o outro ou o eu. (IANNI, 2000, p. 25). A relação entre o pai e os filhos na ficção de Mia Couto e se repete a cada produção de maneira mais criativa e sensível, uma troca entre a tradição e a modernidade, relação sempre 325

Anais necessária para que possa as humanidades se revestirem de identidades novas sem perder a riqueza da ancestralidade. Essa relação é verificada também em Antes de nascer o mundo(2010),quando Mwanito, um menino que encontra em seu pai Silvestre Vitalício a sua razão de suportar as dores da guerra civil e o território queimado, destruído a ponto do seu pai criar via imaginário a Jesusalém, lugar onde Jesus Cristo iria se descrucificar, lugar onde não haveria mais dor nem sofrimento, nessa relação entre pai e filho, pai e filha como no caso da menina sem palavra, Mia Couto em sua ficção, mostra os danos da colonização, mas também aponta para uma esperança mesmo que tênue, que que frágil a pensar caminhos, travessias ainda a serem feitas por essa humanidade: O pai rodopiava em seu redor, se culpando do estado da menina. Dançou, cantou, pulou. Tudo para distrair. Depois, decidiu as vias do facto: meteu as mãos nas axilas dela e puxou-a. Mas peso tão toneloso jamais se viu. A miúda ganhara raiz afloração de rocha? Desistido e cansado, se sentou ao lado dela. Quem sabe cala, quem não sabe fica calado? O mar enchia a noite de silêncios, as ondas pareciam já se enrolar no peito assustado do homem. Foi quando lhe ocorreu: sua filha só podia ser salva por uma história! E logo ali lhe inventou uma, assim: Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como um baloa. (COUTO, 1997, p. 5). A criança ainda se volta e estende a mão ao pai, ao avô – figuras da tradição para que não se percam na pós-modernidade que emerge nos tempos atuais muito mais que uma marco temporal, mas como um discurso geopolítico, como mais uma invenção das sociedades sejam elas descolonizadas ou aquelas que ainda colonizam as mentes, respondem esses discursos por novas ordens que muitas vezes portam também maneiras de calar mulheres, pobres, refugiados, aqueles que à margem da vida e sociedade pela violência perdem a capacidade de falar. Considerações finais Pela ficção de Mia Couto vamos adentrando um campo de representações que funcionam como um grande inventário de Moçambique e que reverbera uma riqueza incalculável a partir da reinvenção linguística e literária, materializa pelos narradores e 326

Anais personagens a história de seu país à título de passado e presente, a dizer das várias maneiras de ser moçambicano e moçambicana. O conto A menina sem palavra, evoca as relações entre a colonização, o mar e os silêncios como falas perdidas nas fronteiras do pensamento e da história de Moçambique. Os temas que gravitam por essa análise se relacionam ao silêncio, silenciamento da mulher e subalternidade como resquícios da colonialidade que ainda se mostra nas instituições civis, nas maneiras que os países de eixo africano e para além do continente, se relacionam em ordens políticas as mais diversas a provocar a diáspora, os exílio interno e insílio assim como a desorganização familiar e cultural produzindo pessoas sem fala, sem lugar de pertencimento, refugiados das guerras e apagamento das culturas. Nesse direcionamento a escrita de Mia Couto acena e permuta saberes e reflexões sobre as representações de Moçambique como um mapa a ser reconstruído pelas histórias orais e narradores a apresentarem as vozes por anos silenciadas, que exigem audibilidade e encontram na construção literária do autor, espaço de reclamação e existência fora da literatura e maquinaria colonial. Referências AFONSO, Maria Fernanda. O conto moçambicano: escritas pós-coloniais. Lisboa: Caminho, 2004. BEZERRA, Rosilda Alves. Intermediários entre o mundo e o infinito: As margens e as mortes em Guimarães Rosa e Mia Couto. In: Mosaico de Culturas: Identidade e Representação nas literaturas de língua portuguesa. Natal: Philia Editora, 2007. BONNICI, Thomas. O pós-colonialismo e a literatura. Maringá: EDUEM, 2000. CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. Cotia – SP: Ateie Editorial, 2005. CAN, Nazir Ahmed. Índico e(m) Moçambique: notas sobre o outro. Diacrítica, v. 27, n. 3, 2013, pp. 93-120. http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S08078967201300300007 CAN, Nazir. Alter-idade em casa. O exílio interno no romance moçambicano. Mulemba: Revista das Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, v. 8, n. 14, 2016, p. 76-91. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php /mulemba/article/view/4324. COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 327

Anais COUTO, Mia. Antes de Nascer o Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. COUTO, Mia. O outro Pé da Sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. COUTO, Mia. A menina sem palavra. In: Contos do nascer da terra. Lisboa:Caminho,1997. COUTO, Mia.O jogo das reinvenções. In: La Insignia. Entrevista com Mia Couto. Sophia Beal. Storm. Portugal, março de 2005. Disponível em: http://www.lainsignia.org/2005/marzo/cul_030.htm IANNI, Octavio. A metáfora da viagem. In: Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ORLANDI, E. As formas do silêncio. No movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte – Letramento, 2017. TEIXEIRA, João Batista; BEZERRA, Rosilda Alves. A infância e o Fantástico nos contos: A menina, as aves e o sangue, de Mia Couto e a menina de lá, de João Guimarães Rosa: um estudo comparativo. In: Anais do XIII Congresso Internacional da ABRALIC Internacionalização do Regional – Universidade Estadual da Paraíba – Campus I – Departamento de Letras e Artes – Campina Grande – PB,2013. Disponível em: https://www.editorarealize.com.br/index.php/artigo/visualizar/4362 328

DESENVOLVIMENTO DA ORALIDADE E DA CRITICIDADE NOS ANOS FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: O GÊNERO PODCAST NA SALA DE AULA Giovanna Silva da SILVA (UEPA)1 Raphael Bessa FERREIRA (UEPA)2 RESUMO O presente estudo tem o intuito propor, a partir do gênero digital podcast, uma metodologia para que o professor possa tornar a sala de aula um ambiente propício ao desenvolvimento da oralidade e da criticidade do aluno. Para a construção desta pesquisa, foram lidos os autores Zilberman e Lajolo (1993), Rojo e Barbosa (2015), Costa Val (2006) e Schneuwly e Dolz (2010). O referencial teórico também é composto pela Base Nacional Curricular Comum – BNCC (2018) e pela obra de literatura infantojuvenil Histórias de quem conta histórias (2018), uma coletânea de contos – organizada por Lenice Gomes e Fabiano Moraes – registrados por diferentes contadores, os quais são originados do Brasil, de Portugal e do México. Assim, mediante uma pesquisa bibliográfica com fins a uma pesquisa-ação, busca-se 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Língua Portuguesa e Suas Respectivas Literaturas (PPGELL) da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Especialista em Ensino de Língua e Literatura pela Escola Superior da Amazônia. Graduada em Letras - Língua Portuguesa - pela UEPA. E-mail: [email protected] 2 Doutor pelo Programa de Pós-graduação em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Docente do do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Língua Portuguesa e Suas Respectivas Literaturas (PPGELL). Professor da área de Literatura do Departamento de Língua e Literatura da Universidade do Estado do Pará. Líder do Grupo de Pesquisa em Linguagens Artísticas e Estilos Poéticos (LAESP). E-mail: [email protected] 329

Anais a construção de um projeto interventivo. Isso porque, durante as aulas presenciais após o período de ensino remoto, a dificuldade dos discentes em explicar seus respectivos trabalhos acadêmicos e tecer análises sobre seus livros paradidáticos foi notável. Diante disso, defende-se que o gênero digital podcast tem potencial pedagógico para auxiliar o estudante a partilhar informações, experiências e impressões, visto que, para a construção de tal, considera-se planejamento, produção e adaptação à situação comunicativa. O projeto será aplicado em uma turma de 7º ano do Ensino Fundamental de uma escola privada no município de Ananindeua, no Pará. Com isso, espera-se que os alunos aprendam as características do gênero podcast, reflitam sobre diferentes contextos em que se produzem textos orais e compreendam as diferenças formais, estilísticas e linguísticas que esses determinam. Palavras-chave: Podcast. Oralidade. Histórias de quem conta histórias. Criticidade. Ensino. ABSTRACT The present study aims to propose, from the digital podcast genre, a methodology so that the teacher can make the classroom an environment conducive to the development of orality and criticality of the student. For the construction of this research, authors Zilberman and Lajolo (1993), Rojo and Barbosa (2015), Costa Val (2006) and Schneuwly and Dolz (2010) were read. The theoretical framework is also composed of the National Curricular Common Base - BNCC (2018) and the work of children's literature Histórias de quem conta Histórias (2018), a collection of short stories - organized by Lenice Gomes and Fabiano Moraes - recorded by different accountants, the which originate from Brazil, Portugal and Mexico. Thus, through a bibliographical research with the purpose of an action research, the construction of an interventional project is sought. This is because, during the face-to-face classes after the remote teaching period, the students' difficulty in explaining their respective academic works and analyzing their paradidactic books was remarkable. In view of this, it is argued that the digital podcast genre has pedagogical potential to help the student share information, experiences and impressions, since, for the construction of such, planning, production and adaptation to the communicative situation are considered. The project will be applied in a class of 7th grade of Elementary School of a private school in the city of Ananindeua, in Pará. With this, it is expected that students learn the characteristics of the podcast genre, reflect on different contexts in which oral texts are produced and understand the formal, stylistic and linguistic differences that they determine. Keywords: Podcast. Orality. Histórias de quem conta histórias. Criticality. Teaching. Introdução A presente pesquisa propõe uma metodologia para o desenvolvimento da oralidade – enquanto prática da linguagem – dos alunos, a partir da obra de literatura infantojuvenil Histórias de quem conta histórias (2018), uma coletânea de contos – organizada por Lenice Gomes e Fabiano Moraes – registrados por diferentes contadores, os quais são originados do Brasil, de Portugal e do México. Assim, os alunos poderão conhecer diferentes maneiras de 330

Anais ser, pensar, agir e sentir, o que será fulcral para que esses valorizem e respeitem a diversidade em suas vivências cotidianas. De início, destaca-se que a escolha pela temática foi feita em consonância com a Base Nacional Curricular Comum – BNCC (2018), a qual defende que cabe ao professor selecionar procedimentos e estratégias de leitura para promover um processo de ensino e aprendizagem que instigue o educando a ler, de forma autônoma, lendas e contos, e compreendê-los para, posteriormente, expressar suas respectivas avaliações. Esse será o ponto de partida da pesquisa. É indispensável destacar que durante as aulas presenciais posteriores ao período de ensino remoto motivado pela pandemia da covid-19, notou-se que os discentes apresentaram dificuldades para explicar seus respectivos trabalhos acadêmicos e tecer análises sobre seus livros paradidáticos. Diante disso, percebeu-se a necessidade de construir uma estratégia pedagógica a fim de auxiliar o desenvolvimento da oralidade dos educandos. Ademais, é importante, também, que a sala de aula seja um ambiente no qual gêneros que circulam socialmente possam ser analisados. Tal demanda é ratificada pelo fato de que os gêneros digitais3, como o podcast, estão cada vez mais presentes nos livros didáticos, sobretudo naqueles que são adotados pela rede privada de ensino. Considerando essa crescente, o gênero midiático podcast será explorado nesta pesquisa, os alunos frequentarão aulas tuteladas por um docente que utilizará um método de ensino apoiado na tecnologia podcast, com o fito de instigá-los a perceberem a importância da disciplina Língua Portuguesa para a comunicação em suas diferentes situações. Desse modo, propõe-se a exploração do potencial pedagógico dos podcasts no ambiente escolar. Vale ressaltar, a partir de tal discussão, que a sala de aula é, muitas vezes, vista como local de aprendizagem de via única, como se o aluno fosse apenas receptor do conhecimento, das informações e dos direcionamentos, já que, recorrentemente, o educando recebe tudo isso de forma não crítica, ou seja, sem ser um sujeito questionador, participante, de fato, da 3 A área da educação passou por intensa transformação desde 2020. Considera-se aqui que o uso da realidade virtual serve como suplemento para a sala de aula, visto que a hiper conectividade leva a novas formas de aprendizado, explorando o potencial humano. 331

Anais aula. Diante desse contexto, a promoção de atividades a partir de um gênero digital pode ser a ponte entre docente e discente, para promover a criticidade neste. Nesse sentido, levanta-se a questão norteadora: Como o gênero digital podcast pode contribuir para o desenvolvimento da oralidade e tornar os alunos do Ensino Fundamental (Anos Finais) mais críticos diante daquilo que leem? Para a construção desta pesquisa, foram lidos os autores: Zilberman e Lajolo (1993), para versar sobre a literatura infantojuvenil; Rojo e Barbosa (2015), com o intuito de discutir letramentos múltiplos; Costa Val (2006), para fundamentar a abordagem acerca da escrita; e Schneuwly e Dolz (2010), como auxílio no desenvolvimento uma sequência didática. O referencial teórico também é composto pela Base Nacional Curricular Comum – BNCC (2018), a qual configura um documento de caráter normativo criado e desenvolvido com o intuito de constituir um conjunto progressivo de aprendizagens essenciais para os alunos da Educação Básica. A Oralidade segundo a Base Nacional Curricular Comum De acordo com a BNCC, cabe ao componente Língua Portuguesa proporcionar aos alunos experiências capazes de contribuir para a ampliação dos letramentos, de modo que o estudante possa, com criticidade, participar significativamente nas diversas práticas sociais permeadas pela oralidade. Em outras palavras, o supracitado documento destaca que as aulas da disciplina Língua Portuguesa não devem ser limitadas à escrita e à leitura, mas precisam, também, apresentar aos discentes gêneros da modalidade oral da língua. É perceptível a ênfase que a BNCC dá à oralidade, desde a conceituação à descrição da habilidade a ser desenvolvida. No que se refere ao conceito de oralidade, a BNCC define que essa é a prática de linguagem que ocorre em situação oral com ou sem contato face a face. Nesse contexto, o professor deve explorar nas aulas gêneros como webconferência, mensagem gravada, jingle, seminário, debate, programa de rádio, entrevista, declamação de poemas, peça teatral, apresentação de cantigas e canções, vlog de game, contação de histórias e podcast. Para a Base, o trabalho com as práticas da oralidade deve considerar as condições de produção, a compreensão e a produção de textos orais, além de explorar os seus efeitos de sentidos e a relação entre fala e escrita. Esta pesquisa discutirá, sobretudo, a produção de textos orais, pois conforme a BNCC, o aluno precisa: 332

Anais Produzir textos pertencentes a gêneros orais diversos, considerando-se aspectos relativos ao planejamento, à produção, ao redesign, à avaliação das práticas realizadas em situações de interação social específicas. [...] Oralizar o texto escrito, considerando-se as situações sociais em que tal tipo de atividade acontece, seus elementos paralinguísticos e cinésicos, dentre outros. (BRASIL, 2018, p. 59). Nesse contexto, o documento normativo elucida que nos Anos Finais do Ensino Fundamental, o adolescente participa com maior criticidade de situações comunicativas diversificadas. Diante disso, é necessário fortalecer a formação para a autonomia nessa etapa, visto que é quando os jovens assumem maior protagonismo em práticas de linguagem realizadas dentro e fora da escola. Dentre as competências específicas de Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental, vale ressaltar aqui a terceira, que consiste em: Ler, escutar e produzir textos orais, escritos e multissemióticos que circulam em diferentes campos de atuação e mídias, com compreensão, autonomia, fluência e criticidade, de modo a se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos, e continuar aprendendo. (BRASIL, 2018, p. 87) É nessa competência que se baseia a estratégia pedagógica apresentada neste artigo. Busca-se, pois, propor ao aluno uma produção de texto oral, por intermédio do gênero midiático podcast, na qual ele possa compartilhar, com riqueza de detalhes, sua experiência ao ter contato com o livro paradidático Histórias de quem conta histórias (2018) e expressar suas impressões e opiniões acerca do texto lido. O que é, afinal, um podcast? Podcast é uma programação de áudio, com diferentes tipos de registro (monólogo, diálogo, entrevista, palestra, exposição, aula), sobre variados assuntos, disponibilizada na Internet. Logo, trata-se essencialmente da reprodução de oralidade por um meio tecnológico. Podcast: a história A partir da criação do sistema RSS, tornou-se possível aos internautas a recepção automática de conteúdos informativos atualizados. Admirado com a possibilidade da 333

Anais distribuição on-line de áudios, Adam Curry discutiu com Dave Winer a inclusão de arquivos MP3 no RSS. Sendo assim, Adam se dispôs a aprender sobre programação Apple Script para desenvolver um aplicativo com o fito de distribuir, por demanda, áudios digitais. Entretanto, essa ferramenta era consideravelmente precária. No ano de 2004, Adam Curry produziu o primeiro podcast, o qual se chamava Daily Source Code. Tal produção foi feita para que os softwares de podcasts pudessem ser aprimorados. A partir disso, determinados profissionais da tecnologia passaram a demonstrar interesse pelo projeto de Curry e, dessa forma, a colaboração conjunta proporcionou o desenvolvimento técnico daquilo que outrora era a ideia de Adam. Com esse aprimoramento, foi possível alcançar maiores graus de compatibilidade, o que foi fulcral para o mecanismo ser utilizado, até mesmo, pelo iTunes, da multinacional norte-americana Apple, o qual passou a agregar, em 2005, podcasts na sua plataforma. A notável popularidade da Apple influenciou o nome da nova tecnologia, pois o termo podcast advém da junção de iPod – o tocador MP3 da supracitada marca – e broadcast. Outras grandes empresas, posteriormente, perceberam o forte potencial de distribuição de conteúdo sob demanda dos podcasts. E diante de tal popularidade, em 2006, o dicionário New Oxford American atribuiu ao termo podcast o título de “palavra do ano”. Hodiernamente, os conteúdos em áudio disponibilizados pelas plataformas de streaming auxiliam as pessoas a aproveitarem o tempo com informações acerca de distintos assuntos. Isso porque a facilidade para ouvir um episódio torna o conteúdo extremamente acessível, podendo ser escutado, por exemplo, no carro, no ônibus ou na academia. Constata- se, pois, que a referida tecnologia conquistou, pelas características de sua funcionalidade, espaço no cotidiano social. Literatura infantojuvenil no contexto do letramento digital A cada momento histórico, o perfil do aluno-leitor transforma-se. Sabendo disso, vale ressaltar a importância da adequação do professor ao contexto tecnológico contemporâneo. Isso, porém, não significa, em hipótese alguma, que o livro físico deva ser removido do processo de ensino-aprendizagem. Há, na contemporaneidade, tecnologias que podem se conjugadas ao ensino de literatura nas escolas. 334

Anais Este estudo propõe uma metodologia que conjuga a tradicional leitura silenciosa e solitária – defendida por Zilberman e Lajolo (1993, p.67) – com a nova tecnologia, configurando, desse modo, um letramento digital associado à literatura infantojuvenil. Considerando que a finalidade desta pesquisa é a criação de uma sequência didática pela qual o professor poderá promover o desenvolvimento da oralidade do aluno e de sua criticidade diante daquilo que lê, será construída uma pesquisa bibliográfica com características de pesquisa-ação que, segundo Thiollent (2008, p. 11), trata-se “[...] da pesquisa voltada para a descrição de situações concretas e para a intervenção ou a ação orientada em função da resolução de problemas efetivamente detectados nas coletividades consideradas [...] com observação e ação em meios sociais delimitados”. O projeto será aplicado em uma turma de 39 discentes do 7º ano do Ensino Fundamental (Anos Finais) de uma escola privada Ananindeua, município da região metropolitana de Belém, os quais produzirão, de forma individual, resenhas sobre as obras lidas e, posteriormente, podcasts em 13 grupos formados por três pessoas. A execução pedagógica desta pesquisa será composta pelas seguintes etapas: a. Apresentação do livro paradidático aos alunos; b. Início da leitura individual da obra Histórias de quem conta histórias (2018) pelos discentes; c. Leituras coletivas e discussões em sala sobre os contos e lendas lidos; d. Produção de resenhas; e. Apresentação teórica sobre o gênero podcast aos educandos; f. Escuta de episódios de podcasts em sala, os quais serão cuidadosamente selecionados pela professora, para exemplificar; g. Organização para as produções dos alunos, com divisões de temáticas e de grupos; h. Produções de podcasts sobre os contos e lendas; i. Socialização das produções em sala de aula por intermédio da escuta. Todas essas etapas explorarão a obra Histórias de quem conta histórias (2018), a qual é oriunda da oralidade de contadores brasileiros, portugueses e americanos. Nessa coletânea, são apresentados textos escritos por autores que se empenham em, com qualidade, transmitir a palavra falada, construindo rememorações de narrativas ancestrais. Assim, o livro apresenta em suas páginas registros de alto valor cultural. 335

Anais Nesse contexto, é válido ressaltar que o contato com lendas, contos de assombro, histórias de fadas e causos de esperteza propicia a familiaridade com livros e com diferentes gêneros literários. Sob esse viés, as experiências com a literatura infantojuvenil, propostas por um professor aos alunos, têm potencial para desenvolver o gosto pela leitura, estimular a imaginação e ampliar o conhecimento de mundo. Portanto, para construir um produto pedagógico com o fito de desenvolver a oralidade dos educandos, foi selecionado um livro com a transcrição de narrativas orais, pois acredita-se que a obra despertará nos alunos o encanto pelas palavras – as quais são organizadas para criar histórias e, posteriormente, compartilhá-las –, estimulando-os a compreender as narrativas, interpretá-las e dividir com outras pessoas, por intermédio de episódios de podcast, suas respectivas considerações acerca dos textos lidos. Considerações finais A partir da aplicação deste projeto, espera-se que os alunos aprendam as características do gênero podcast e, mediante a prática, suas condições de produção. Isso porque os referidos vivem a era digital e precisam conhecer os gêneros midiáticos que marcam tal período, sabendo sobre a linguagem utilizada, os estilos de produção, os efeitos sonoros e as plataformas de veiculação. É, nesse sentido, fundamental que os discentes entendam que vivem em um contexto marcado por tecnologia, acessibilidade e praticidade. Além disso, são consequências esperadas a valorização e o respeito às diferenças. Acredita-se que mediante o contato com histórias oriundas do Brasil, de Portugal e do México, os educandos compreenderão que cada cultura tem suas peculiaridades e não serão perpetuadores de discursos etnocêntricos. Com a produção dos podcasts, deseja-se que – pela prática de uma linguagem contemporânea – os alunos desenvolvam oralidade proficiente e fluida. Nesse sentido, a oralização de opiniões sobre os textos lidos contribuirá para que os sujeitos sejam mais críticos diante das leituras posteriores, o que favorecerá que esses façam ponderações e avaliações acerca das obras literárias com as quais tiverem contato. Também é esperado que os alunos produzam podcasts, considerando os enunciadores envolvidos, os objetivos, o gênero, o suporte, a circulação e a variedade linguística apropriada ao contexto em questão, à construção da textualidade relacionada às propriedades textuais e do gênero). Para isso, será fulcral que esses utilizem estratégias de 336

Anais planejamento, elaboração, revisão e edição; desse modo, será possível corrigir e aprimorar as produções realizadas, fazendo cortes, acréscimos, reformulações, ajustes e alterações de efeitos. Por fim, é importante que os discentes desenvolvam, também, a competência de serem ouvintes ativos. Isso será possível a partir do trabalho do professor com a leitura coletiva seguida de comentários pertinentes, da escuta de podcasts exemplificativos e da escuta dos episódios produzidos pelos colegas da turma. Essa interação ativa contribuirá, inclusive, para que esses possam ouvir mais atentamente os professores das outras disciplinas – melhorando, consequentemente, o desempenho em outras áreas do conhecimento. Referências BRASIL. Base Nacional Comum Curricular: Ensino Fundamental. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Básica, 2018. COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. DOLZ, Joaquim; SCHNEUWLY, Bernard. Gênero de texto como um (mega)instrumento para o ensino e a aprendizagem da linguagem humana. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 7, n. 2, p. 2-9, maio/ago. 2010. GOMES, Lenice; Moraes, Fabiano. Histórias de quem conta histórias. 1.ed. São Paulo. Cortez, 2018. ROJO, Roxane; BARBOSA, Jacqueline P. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros discursivos. São Paulo: Parábola Editorial, 2015. THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo. Cortez, 2008. ZILBERMAN, Regina & LAJOLO, Marisa. Um Brasil para crianças. Para conhecer a literatura infantil brasileira: história, autores e textos. São Paulo: Global, 1993. 337

REFLEXÕES SOBRE O CORPO FEMININO NA LITERATURA PORTUGUESA NO ROMANCE OS TRÊS CASAMENTOS DE CAMILLA S. DE ROSA LOBATO DE FARIA Michelle Thalyta C. A. PEREIRA (UEPB/GIELLus)1 Erica Dayana Monteiro CAVALCANTE (UEPB/PPGLI)2 RESUMO O presente estudo traz uma análise do romance Os Três Casamentos de Camilla S. (1997), da escritora portuguesa Rosa Lobato de Faria, com o objetivo de estudar a personagem principal do respectivo romance, observando, especificamente, sua condição feminina, que foi absolutamente sufocada pela sociedade patriarcal da época e cuja as vivências revelam- se na construção do seu corpo. Por se tratar de uma literatura de autoria feminina, não apenas enfatiza a questão da corporalidade da personagem em destaque, mas as suas lutas em romper com tradicionalismo. Assim, destaca-se a escrita de Rosa Lobato de Faria que, 1 Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos Literários Lusófonos – GIELLus/UEPB. Mestre em Literatura e Interculturalidade (PPGLI-UEPB). CPF: 105.614.294-48. E-mail: michelly- [email protected]. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI-UEPB- CAPES). CPF: 110.973.364-09. E-mail: [email protected]. 338

Anais através da literatura, traz reflexões sobre a construção da identidade feminina e a luta da mulher em conquistar sua autonomia. Para essas indagações utilizou-se os aportes teóricos de: Cecil Jeanine Albert Zinani (2003), Constância Lima Duarte (2019), Elizabeth Grosz (2000), Elódia Xavier (2007), Rita Terezinha Schmidt (2019), entre outros críticos e teóricos que ajudaram a complementar e enriquecer esse trabalho com seus posicionamentos sobre o tema abordado. Palavras-chave: Literatura Portuguesa; Representação Feminina; Corporalidade; Questões de Gênero. ABSTRACT The present study presents an analysis of the novel Os Três Casamentos de Camilla S. (1997), by the Portuguese writer Rosa Lobato de Faria, with the objective of studying the main character of the respective novel, observing, specifically, her feminine condition, which was absolutely suffocated by the patriarchal society of the time and whose experiences are revealed in the construction of her body. As it is a literature by women, it not only emphasizes the issue of the highlighted character's corporeality, but also her struggles to break with traditionalism. Thus, the writing of Rosa Lobato de Faria stands out, which, through literature, brings reflections on the construction of female identity and the struggle of women to conquer their autonomy. For these inquiries, the theoretical contributions of: Cecil Jeanine Albert Zinani (2003), Constância Lima Duarte (2019), Elizabeth Grosz (2000), Elódia Xavier (2007), Rita Terezinha Schmidt (2019), among other critics and theorists were used. who helped to complement and enrich this work with their positions on the topic addressed. Keywords: Portuguese Literature; Female Representation; Corporeality; Gender Issues. Apresentação O romance Os Três Casamentos de Camilla S. (1997), da escritora portuguesa Rosa Lobato de Faria, relata as vivências de Camilla S., protagonista que apresenta seu diário por meio de quarenta e seis episódios, marcados com data, mês e ano, relatando os acontecimentos de sua vida dos doze até os seus noventa e cinco anos. Esses acontecimentos, narrados em seu diário pessoal, constituem a narrativa do romance em análise. Sobre a escritora, Rosa Lobato de Faria nasceu no ano de 1932, em Lisboa, vindo a falecer em 2010, aos setenta e sete anos. Se destacou em várias áreas, atuando como romancista, poetiza, compositora e atriz, deixando sua marca na cultura portuguesa e tornando-se uma dama de referência na história de Portugal. Seu legado segue vivo, com suas obras literárias que servem como influência para várias escritoras e estudiosos da atualidade, sobretudo como exemplo da voz feminina na literatura. Sobre o texto de autoria feminina, Rita Terezinha Schmidt pontua que: 339

Anais Os textos de autoria de mulheres levantam interrogações acerca de premissas críticas e formações canônicas, bem como tensionam as representações dominantes calcadas no discurso assimilacionista de um sujeito nacional não marcado pela diferença. A hegemonia desse sujeito sempre esteve calcada em formas de exclusão de outras vozes, outras representações. (SCHMIDT, 2019, p. 66). A sociedade foi demarcada ao longo de sua história pela perpetuação de padrões patriarcais, os quais silenciava e excluía as mulheres das práticas intelectuais e sociais. Sobre o assunto, Duarte (2019, p. 25) argumenta que “o feminismo foi um movimento legítimo que atravessou várias décadas, e que transformou as relações entre homens e mulheres”. Diante dos avanços dos movimentos feministas, as mulheres conquistaram seu espaço em várias áreas, sendo uma delas a posição de escritora, tecendo, através da sua escrita, inúmeras críticas ao sistema dominante. É possível afirmar, portanto, que “o feminismo aparece como um movimento libertário” (PINTO, 2010, p. 16). Essa visão de liberdade feminina é possível de ser notada por meio da autonomia presente escrita de Rosa Lobato de Faria, ao apresentar em seus escritos, relatos de forma clara e simples que trazem bastantes reflexões sobre a condição feminina. Conforme traz Zinani (2013, p. 13) “na medida em que a mulher se apropria do discurso, constituindo-se como autora promove a desconstrução do discurso patriarcal, por meio do questionamento dos valores tradicionais”. Dentro dessa perspectiva, o presente artigo realiza uma breve análise da escrita romanesca de Rosa Lobato de Faria, que apresenta em sua obra Os Três Casamentos de Camilla S. (1997), questionamentos referentes à construção da identidade da mulher que refletem na relação de dominação do seu corpo. Neste ponto, busca-se, por meio do estudo, realizar uma análise da obra, considerando que se trata de uma escrita de autoria feminina, relacionando-a com os estudos acerca do corpo e suas representações. A obra, por ter sido escrita por uma mulher/escritora, traz vários questionamentos sobre a condição da mulher na época em que o romance foi escrito. Corroborando com essa visão, Xavier (2007) pontua ser relevante relacionar as obras de autoria feminina com os estudos acerca das representações do corpo, já que: Dada à importância que o corpo tem hoje na teoria feminista, parece-nos relevante um estudo da narrativa de autoria feminina pelo viés da questão 340

Anais corporal, uma vez que o corpo aí representado é local de inscrições “sociais, políticas, culturais e geográficas. (XAVIER, 2007, p. 23). Em narrativas de autoria feminina, são recorrentes a discussão de questões acerca da tipologia do corpo, utilizando-se de personagens femininas e suas vivências para aborda-las. Desta forma, partindo dos estudos de Xavier (2007) que tratam das questões de gênero ligadas ao corpo feminino e apresentam discussões em torno da tipologia do corpo, apresenta-se neste estudo uma breve análise acerca da construção do corpo de Camilla S. com base nas vivências da protagonista, sob o viés das interferências que as condições sociais, culturais e psicológicas geram sobre o mesmo. Partindo desses pressupostos, é possível conceituar a protagonista em duas categorias que envolvem a tipologia do corpo: no início da sua vida, aos doze anos, e na primeira fase adulta, a protagonista estava condicionada as características de um corpo disciplinado, entretanto, ela rompe com estereótipos e começa a ter uma vida sem regras e padrões a serem seguidos. Já aos noventa e cinco anos, pode-se perceber uma evolução e mudança em sua identidade, em que a protagonista adquire características de um corpo liberado. Neste interim, o próximo tópico traz uma breve análise da representação da personagem feminina, a partir de uma perspectiva crítica literária feminista e dos estudos sobre a tipologia do corpo, ressaltando aspectos significativos para a trajetória de luta e conquista da mulher dentro do romance, por meio das experiências vividas da protagonista, sobretudo no dilema entre seguir os padrões conservadores ou lutar pela sua liberdade. As insatisfações da protagonista com a condição social a qual submetida acaba por refletir sobre as características do seu corpo e na construção da sua identidade. Breves apontamentos: relação do corpo feminino x construção da identidade feminina De acordo com Grosz (2000, p. 47) “o feminismo adotou acriticamente muitas das suposições filosóficas em relação ao papel do corpo na vida social, política, cultural, psíquica e sexual.”. A partir desse viés, é possível analisar a construção da protagonista no romance por meio das representações que marcaram sua vida e a transição entre um corpo disciplinado, nos anos iniciais da sua vida, passando para um corpo liberado ao longo de sua vivência. 341

Anais A construção da identidade da personagem protagonista inicia-se aos três meses de idade, já que a orfandade de Camilla trouxe grandes implicações no decorrer de sua vida. Após a morte de seus pais, por tuberculose, ela foi adotada por seus tios que, diante da necessidade de amamenta-la, encontraram uma “ama de leite” para cuidar da criança, visto que: “... davam-me leite de vaca e eu vomitava...” (FARIA, 1997, p. 34). Este papel é executado por Paca, uma mulher jovem (aparentava ter 18 anos), morena, mãe solteira e que a pouco perderá seu filho, que é contratada pela família para cuidar (e amamentar) Camila, com quem conviveu até envelhecer e morrer. Nos anos iniciais da vida de Camilla, Paca profetizava que todos os esposos da jovem teriam o sobrenome iniciados por “S” e assim acontece ao longo da história. Por esse motivo o romance possui o título “Os três casamentos de Camilla S”. Já na juventude de Camilla, seus tipos já se encontram idosos e, por receio de eventuais acontecimentos devido à idade, temem deixá-la desamparada: “A nossa maior preocupação é morrer e deixá-la sem amparo” (FARIA, 1997, p. 42). Diante dessa situação, resolvem casa-la com o médico conhecido da família: “É verdadeiramente uma felicidade para nós que um homem tão ilustre, professor da Escola Médica e médico do rei, queira contrair matrimônio com a nossa sobrinha Camilla. Espero que a menina esteja à altura da situação” (FARIA, 1997, p. 57). É possível observar a partir dos primeiros relatos da vida da protagonista que ela apresenta, já na sua infância, marcas de um corpo disciplinado. Aos doze anos, Camila encontra-se em uma situação marginalizada: era órfã e estava vivendo com os tios, estando sobre o total controle deles, bem como sob influência dos conselhos de sua ama de leite: “– A Paca disse que eu devo obedecer aos meus tios, fazer o que me mandam, casar de boa vontade, mas eu só quero brincar, tocar piano e aprender o meu catecismo” (FARIA, 1997, p. 63). Ao apresentar esses relatos em seu diário, pode-se perceber a construção identitária da personagem, ao ser despojada da sua liberdade, percorrendo caminhos preestabelecidos por uma cultura patriarcal. De acordo com Xavier (2007, p. 56), é possível identificar “no seu corpo as marcas de um sistema injusto e repressor”, isto é, a protagonista estava sendo condicionada as características de um corpo disciplinado. Aos doze anos, Camilla casa-se com o seu primeiro marido, o médico Emídio Seabra, antes mesmo que se tornasse mulher de acordo com a biologia do seu corpo, isto é, sem que tivesse recebido os sinais da primeira menstruação e sem entender muito ou quase nada do que viria ser o casamento. A personagem também se mostrava apegada aos costumes 342

Anais relativos à infância, conforme percebe-se com a reação dela ao saber do matrimônio: “Junto as poucas forças que me restam e pergunto, numa voz quase inaudível: - Posso levar minhas bonecas?” (FARIA, 1997, p. 67). Diante da citação anterior, revelasse a face de uma menina muito jovem que está prestes a abandonar a fase infantil para adentrar em um casamento com um homem bem mais velho, com as bonecas sendo um símbolo do momento em que ela deixa a vida e costumes regulares de sua idade, para assumir o papel de mulher casada e suas respectivas responsabilidade impostas pela sociedade da época, sendo obrigada por seus familiares, conforme revela-se no seguinte trecho: “Continuo a não querer casar com aquele velho de barbas [...]” (FARIA, 1997, p.68). Novamente, Camilla apresenta características de um corpo disciplinado, que, segundo o pensamento de Xavier (2007, p. 59) é possível identificar uma “relação entre carência e a subordinação”, conforme será visto mais detalhadamente adiante. Após algum tempo do casamento, a jovem torna-se uma “mulher formada” como eram consideradas as mulheres ao iniciar o período menstrual: “A água do meu banho está cor- de-rosa, alguém esmagou o meu bago de romã, a Paca tira-me da água, vai buscar um pano de algodão, ensina-me a usá-lo. Finalmente sou púbere, [...]” (FARIA, 1997, p. 80). Assim, poderia iniciar sua vida sexual com o médico Emídio Sobral. Diante do acontecimento e com a possibilidade de consumar seu casamento, Emídio convida Camilla para um baile, afim de apresentar a sua esposa: “Quero que se apresente deslumbrante, porque se trata da sua entrada oficial na sociedade”. (FARIA, 1997, p. 84). No baile, Camilla apresenta-se deslumbrante para a sociedade e conhece André Sobral, por quem se apaixona rapidamente, mesmo estando casada e sem ter ainda chegado às núpcias do casamento. Na mesma noite, Emídio Seabra percebe que Camila já não é mais apenas uma menina e, ao chegar do baile, faz inferências sobre a relação de pertencimento que a jovem lhe tem e resolve ter a primeira relação sexual com a mesma, após os agradecimentos da jovem: Agradeço-lhe ter-me levado ao baile, desejo-lhe boa noite, mas ele segura com força as minhas mãos, faz-me sentar no cadeirão de veludo e olhando- me profundamente nos olhos pergunta com doçura, Camilla, sabe o que significa ser casada? Bem, tio Emídio, eu... A partir de hoje não volta a chamar-me tio Emídio, apenas Emídio, está bem? Sim, se o tio quer assim... Diga a Paca que a dispa, que a lave, que a perfume, que lhe vista o seu mais bonito négligé e vá ter ao meu quarto daqui a uma hora porque quero ensinar-lhe algumas coisas muitíssimo importantes. Mas... hoje? Sim, hoje, daqui a uma hora. (FARIA, 1997, p. 92). 343

Anais Embora esteja a pensar em André Sobral, aquele por quem se apaixonou após os momentos vividos no baile, a partir daquele momento ela passa a ser percebida como mulher que deve desempenhar suas atividades de esposa. Este impasse simboliza o momento que se inicia a ruptura de Camilla para com os costumes estereotipados de sua época. Depois da noite de núpcias com Emídio, ela lembra do convite para o encontro que André Sobral lhe fizera: Paca, o André está à minha espera, às onze, no parque. Que parque? Que André? Estás louca Nena? Agora és uma senhora casada, acabou o devaneio. Agora teu marido espera de ti compostura, prudência, dignidade, beleza e muito amor. E eu, Paca? E eu? Pobrezinha. Não existe mais isso, EU. (FARIA, 1997, p. 94). Mesmo casada, ela se desprende de todos os ensinamentos e procura viver a sua felicidade pessoal, a liberdade, mesmo diante dos riscos e consequências que os seus atos podiam trazê-la, deixando os ditames impelidos para “uma mulher casada e bem composta”, de quem se espera fidelidade e exclusividade, levando apenas em consideração os desejos imperativos do corpo masculino diante do feminino. Assim, Camilla passa a romper com os dogmas socais, libertando-se de um corpo disciplinado, por meio de encontros às escondidas com André, os quais eram seguidos por dias de tristeza, já que não podia expressar publicamente o sentimento que lhe pertencia. Camilla continua casada e tem o seu primeiro filho do seu esposo Emídio Seabra, que, durante alguns dias desconfiou de Camilla, vindo logo a fazer as pazes: “[...] o Emídio beija- me, finalmente fazemos as pazes. Não me refiro à paz aparente, mas à paz verdadeira, que vem do coração. (FARIA, 1997, p. 98). Dias após a reconciliação, viajaram à Inglaterra em virtude do trabalho de Emídio, e lá, Camilla dá os primeiros sinais da gravidez. Dada à confirmação da gravidez, o casal escolhe o nome do menino e, após pouco tempo do nascimento da criança, Emídio morre em detrimento de uma epidemia “pneumônica”. Após a morte de Emídio, Carlos Eduardo (filho de Emídio e Camilla) vai morar com sua madrinha e Camilla volta com a Paca para Portugal, a fim de resolver situações administrativas, mesmo sem nenhuma experiência no assunto, já que seu esposo nunca lhe permitirá entender sobre: “Agora não sei o que fazer. Nunca cuidei dos nossos assuntos econômicos.” (FARIA, 1997, p. 101). 344

Anais Em meio a essa situação, com objetivo de reverter a possível perda da casa, que, ao voltar para Lisboa, Camilla resolve procurar trabalho. A partir desses acontecimentos da vida da protagonista, acontece a transição do seu corpo disciplinado para um corpo liberado. Sobre o assunto, Xavier (2007, p. 169) ressalta a importância das protagonistas mulheres “que passam a serem sujeitos da própria história, conduzindo suas vidas conforme valores redescobertos através de um processo de autoconhecimento”. Esse processo de redescobrimento de valores e de autoconhecimento é o que acontece com a protagonista do romance, uma vez que, após a morte dos seus tios e, em seguida, a do seu primeiro marido, se encontra sozinha e responsável pelo seu próprio destino, sendo a partir desse momento que começa a transição de um corpo disciplinado para um corpo liberado. Conforme cita Xavier (2007, p. 173): “ao exorcizar o passado doloroso, ela se liberta das amarras familiares e das dependências afetivas, ousando viver, sem repressões e sem medo, a existência com seus mistérios”. Diante das inúmeras crises econômicas que permeavam sua vida, Camilla consegue alugar a casa, entretanto, não é o suficiente para custear as suas dívidas e gastos mínimos. Entretanto, surge uma vaga de pianista numa casa de alta costura que se enquadra no perfil dela, dominando algumas poucas notas no piano e tem beleza exuberante: “Está à procura de uma senhora de muito bom aspeto que acompanhe as passagens com uma música leve e agradável. Se não esqueceste o teu Chopin, és a pessoa ideal”. (FARIA, 1997, p. 104). Camilla resolve aceitar a proposta de trabalho. Assim, a nova fase da vida da protagonista se inicia quando ela decide trabalhar, tornando-se uma mulher independente, não estando mais presa e submissa como foi durante toda a sua vida até este momento, primeiro pelos seus tios e depois pelo seu marido, “construindo assim uma nova postura diante da vida, em que o corpo e como o “mar” com seus mistérios, mas é também uma “viagem” aberta ao desconhecido” (XAVIER, 2007, p. 173). Sua primeira impressão do ambiente de trabalho é de que não há nada fora do habitual: “É um salão muito luxuoso, onde a nova alta sociedade lisboeta se exibe com segurança” (FARIA, 1997, p. 108). Com o passar dos dias, Camilla começa a perceber que atividades obscuras ocorrem naquele lugar, servindo também para a realização de encontros escusos: 345

Anais Além do salão onde está o piano e se recebem as clientes, há, por trás de reposteiro chumbo-dourado, várias salas de provas e o atelier propriamente dito. Um dia Madame Armandine pede-me que suba ao camarim. Abre com uma chave que tira do decote a misteriosa porta do corredor e manda-me entrar para uma sala absolutamente encantadora em tons de malva, onde os jarrões cheios de hortênsias nos dão as boas-vindas. [...]. Sem perder de vista, contudo, que há algo de insólito nesta situação. (FARIA, 1997, p. 109). Com o passar do tempo, Mandame Armandine, dona desse estabelecimento, sugere que Camilla passe a se encontrar com homens que frequentam o salão, para que viesse a aumentar sua renda e encontrar o equilíbrio financeiro que tanto desejava. Incialmente, a jovem se recusa: “Não me ofenda, Madame”. (FARIA, 1997, p. 112), visto que aquele comportamento não fazia parte de seus costumes “[...] tenho vontade de fugir dali para nunca mais voltar” (FARIA, 1997, p. 112). Entretanto, se vendo quase que obrigada devido sua situação financeira, a protagonista cede e começa a ter encontros com homens (na maioria das vezes casados) da alta sociedade lisboeta: “Ninguém diria que ali se passam coisas condenáveis” (FARIA, 1997, p. 113). Durante esse período de encontros escusos, Camilla, aos 30 anos, relaciona-se com dois homens: Casimiro Saldanha e o Barão. Camilla via aquela situação com um tom de recusa e, em outros momentos, custava a acreditar que aquele tipo de comportamento se desenrolava: “O que é terrível é descobrir que me agrada esta duplicidade” (FARIA, 1997, p. 116). O desfecho dessa fase da vida de Camilla ocorre em uma tentativa de ser tocada por Gualter Costa, resolvendo jogar-se da janela do quarto para não se submeter a ele, já que, desde o tempo em que era casada, ele lhe causava desconforto devido o comportamento ameaçador expresso no período que trabalhava para o médico Emídio Seabra. Após ter se atirado da janela do quarto onde se davam os encontros com seus amantes, Camilla passa alguns dias no hospital e depois é liberada para se recuperar em casa. Ainda no período de recuperação, ela é apresentada ao alemão Salomão Schwartzenbach, com quem brevemente casa-se e, durante o mesmo período, reencontra-se com André Sobral: “Nossas são as noites. Quando toda a casa dorme encontramo-nos no quarto dele ou no meu, de preferência no dele porque é mais isolado e há ordens para nunca o incomodarem.” (FARIA, 1997, p. 121), de quem engravida do segundo filho, em decorrência da traição na ausência de seu esposo. O segundo filho de Camilla se chamava Francisco, herdando os traços de André: “Já reparei que todo o filho ilegítimo traz a marca do verdadeiro pai, talvez seja a natureza a 346


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