Anais Lembrei-me de uma conta que precisava pagar naquele dia. Abri a gaveta da minha ex-mulher e vi o boleto no meio de um caderno. Li uma frase e minhas pernas perderam a força. Sentei no lado dela da cama e por um instante lutei contra mim mesmo para tomar a decisão mais difícil da minha vida. Resolvi por fim ler o diário da primeira à última linha de uma só vez. (LÍSIAS, 2013, p. 25). Após descobrir a traição por meio dos textos contidos no diário, o narrador- personagem inicia seu relato sobre as suas angústias. Decepcionado, faz uma cópia do diário, sai de casa e muda-se para o cafofo, local usado como depósito de móveis e livros após seu casamento. Ricardo conta sobre suas noites sem dormir, sua constante sensação de sufocamento e sobre se sentir em “carne viva”. “[...] Minha cabeça só pensava no diário da minha ex-mulher e mesmo as necessidades básicas, como comer e ir ao banheiro, não me interessavam.” (LÍSIAS, 2013, p. 52). A partir daí a narrativa é construída por meio de flashbacks, anotações, fragmentos do diário da ex-esposa, fotos da infância do autor e de suas próprias falas. Na tentativa de recobrar a consciência e voltar à rotina, Ricardo recorre a caminhadas noturnas, o que, posteriormente, acaba tornando-se um hábito e evolui para a prática de corrida. “Depois, comecei a correr. [...] A corrida nos deixa empolgados”. (LÍSIAS, 2013, p.126). Em razão desse fato, os capítulos do livro são intitulados por quilômetros, em um total de quinze, distância equivalente à percorrida pelo narrador-personagem ao final do livro, quando decide participar da Corrida de São Silvestre. Divórcio é uma narrativa não linear. Os fatos se sobrepõem ao longo da obra e a sua estrutura é desordenada. Em meio a fotografias e relatos sobre seus ressentimentos, o narrador faz revelações de detalhes sórdidos da relação, fala das suas lembranças da infância e expõe suas memórias de viagens. Essa ausência de linearidade é uma das características do gênero autoficcional. Segundo Martins (2014, p.24) “A escrita autoficcional parte do fragmento, não exige início-meio-fim nem linearidade do discurso; o autor tem a liberdade para escrever, criar e recriar sobre um episódio ou uma experiência de sua vida, fazendo, assim, um pequeno recorte no tempo vivido.” Além disso, o romance imprime um ritmo acelerado das revelações feitas pelo protagonista, refletindo, dessa forma, seu estado de angústia e nervosismo durante as cenas relatadas. 447
Anais Tenho trinta e seis anos e uma renda, há algum tempo, que me permite figurar entre os privilegiados. Mesmo assim, nunca fiz nenhuma aplicação financeira. Não guardo dinheiro. Compro livros com tudo o que me sobra. Jamais quis ter um carro ou me preocupei em comprar uma casa. Já gostei de algumas mulheres e ainda vou encontrar um grande amor para ter filhos e passar o resto da vida. [...] Quanto aos objetos, como com tudo, sempre fui muito constante: gosto apenas de livros. Tenho doze mil e pretendo aos sessenta anos ter multiplicado meu acervo por dez. (LÍSIAS, 2013, p. 122). É interessante notar o fluxo intenso de pensamentos que o narrador-personagem expõe. Com rapidez, ele perpassa por vários pontos e aspectos de sua vida que julga ser relevante para esclarecer sua história. O discurso da narrativa é instável, o narrador, por vezes, apresenta-se como autodiegético, afirmando relatar experiências pessoais. “Aliás, não há uma palavra de ficção nesse romance.” (LÍSIAS, 2013, p.172). No entanto, em outras passagens, opta pelo narrador heterodiegético, sublimando a ficcionalidade do romance, tentando mostrar-se, por assim dizer, indiferente aos fatos. “Divórcio é um livro de ficção em todos os seus trechos.” (LÍSIAS, 2013, p.190). De acordo com a proposta doubrovskiana, essa experimentação de linguagens e ausência de formas é uma das premissas do gênero autoficcional. Na visão do teórico, a autoficção é a “aventura da linguagem, fora da sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontro, fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias.” (apud MARTINS, 2014, p. 25). À beira de um colapso emocional, o protagonista tece o seu relato intercalando trechos do diário íntimo de sua ex-mulher, que apresentam datas e letras em formato itálico. Ricardo conduz o enredo expondo suas reflexões auto-analíticas, bem como suas percepções acerca do romance. Em determinadas passagens, ele faz referência ao fato de também estar escrevendo outro livro “O céu dos suicidas”, coincidentemente, o mesmo título do livro publicado pelo escritor Ricardo Lísias no ano de 2012. Nessa perspectiva, é válido ressaltar a noção de verossimilhança no romance. Com uma identidade onomástica entre autor, narrador e personagem, o escritor Ricardo Lísias atribui sua assinatura a tudo que escreve e, sobretudo, adiciona biografemas. A narrativa é permeada por registros fotográficos de sua infância ao lado da família; referências diretas às suas obras, profissão, cidade onde mora e até aos seus gostos pessoais. O narrador- personagem justifica o emprego das fotografias como uma de tentativa de reconstrução da consciência. Em razão do “colapso emocional” sofrido, ele afirma estar “perdendo a memória”, assim, o resgate das fotos o faria recobrar os sentidos e recordar os momentos que em viveu. O trauma o fez sofrer um bloqueio de memória recente: “Não encontrei muita 448
Anais dificuldade com as lembranças antigas. A questão é recordar o que vivi nos últimos anos” (Lísias, 2013, p.133-134). Entretanto, Ricardo não consegue encontrar nenhum registro do período em que ele manteve o relacionamento com sua ex-esposa, todos os acontecimentos que se sucederam nesse período surgem de forma desordenada e obscura em sua mente. Desse modo, a partir do capítulo/quilômetro oito, o narrador-personagem passa a inserir fotografias suas de quando era criança e também de seus familiares. Em uma das imagens, aparece o escritor Ricardo Lísias quando era bebê. Na foto, o menino está sem roupa ao lado de um homem adulto. A narrativa tem continuidade sem qualquer relação com essa imagem, no entanto, em uma passagem próxima, Ricardo faz uma nova referência ao fato de seu corpo ainda estar sem pele. Isso pode ser entendido como uma tentativa de o autor relatar uma experiência simbólica de morte e renascimento, relacionando a troca de sua pele de quando nasceu à sua nova pele adquirida após o trauma. Sem sucesso em sua busca por registros de sua história recente, o narrador- personagem progride com a narrativa e com a apresentação de mais algumas imagens suas quando criança. A maioria delas, contudo, sem uma possibilidade clara de associação com o que está sendo narrado. Ricardo instiga a curiosidade do leitor com os registros biográficos apresentados, porém, em virtude de sua instabilidade emocional, torna complexa a tarefa de analisar a veracidade e transparência do relato. Como em um jogo de quebra-cabeças, o autor apresenta as peças por meio de textos e imagens, tornando impossível atribuir a um único sujeito (real ou ficcional) os fatos descritos. Há, no livro de Lísias, uma série de outros elementos que atravessam o leitor quanto à verdade dos acontecimentos, como no trecho em que o narrador-personagem afirma: “Não aconteceu nada: ela não escreveu esse diário e não cobriu o Festival de Cannes de 2011 para um jornal. É só um conto.” (LÍSIAS, 2013, p.15) e outro trecho afirma o extremo oposto: “Acabo de achar a folha com as frases autobiográficas que redigi naquele dia. [...] ACONTECEU NÃO É FICÇÃO” (LÍSIAS, 2013, p.16). Nesse sentido, a ambivalência proposta pelo autor cria uma contradição entre verdade e imaginação, sendo impossível definir a veracidade dos fatos apresentados pelo sujeito. O eu fragmentado e híbrido provoca essa ambiguidade característica do jogo autoficcional. Acerca dos limites existentes entre a ficção e a autobiografia que marcam o romance, Martins (2014) afirma que “[...] em Divórcio, temos um caso extremo dos efeitos práticos e reais desse jogo com a realidade.” (MARTINS, 2014, p.135). A noção entre o que é 449
Anais ou não real se dilui pela forma contraditória com a qual o narrador-personagem expõe os fatos. Klinger (2006), em sua tese, discorre sobre a linha que separa a autoficção dos demais gêneros. Segundo a autora, um traço característico dessa categoria de texto é o grau de ficcionalidade apresentado. A autoficção, de acordo com ela, “[...] mistura verossimilhança com inverossimilhança e assim suscita dúvida tanto a respeito da sua verificabilidade quanto da sua verossimilhança” (KLINGER, 2006, p. 47-48). Nessa perspectiva, ela formula um conceito para o gênero. [...] consideramos a autoficcão como uma narrativa híbrida, ambivalente, na qual a ficção de si tem como referente o autor, mas não enquanto pessoa biográfica, e sim o autor como personagem construído discursivamente. Personagem que se exibe “ao vivo” no momento mesmo de construção do discurso, ao mesmo tempo indagando sobre a subjetividade e posicionando- se de forma crítica perante os seus modos de representação. (KLINGER, 2006, p. 65). É nesse interstício que Klinger situa autoficção e enfatiza o autor como personagem que se constrói por meio do seu discurso. Em Divórcio, Lísias faz uso de si para criar seu personagem, assim, lança mão da indecibilidade entre identidade e alteridade. Através desse recurso, tece críticas e reflexões sobre o mote e os demais personagens. “Se minha ex-mulher não queria inspirar uma personagem, não deveria ter brincado com a minha vida. No estágio atual da ficção, é preciso que o esqueleto de um romance esteja inteiramente à vista.” (LÍSIAS, 2012, p. 189-190). O escritor joga a todo instante com a noção de verdade e falsidade dos fatos. Na trama, o protagonista revela que foi ameaçado de processo judicial pela ex-esposa, em razão disso, teve de se explicar: “Não estou tratando de uma pessoa em particular. Minha ex-mulher não existe: é personagem de um romance” (LÍSIAS, 2013, p. 128). Apesar de suas colocações, foi necessária uma justificativa à notificação extrajudicial em que ele afirma ser ridículo o fato do romance ser levado a julgamento. O que faz então com que Divórcio seja um romance? Em primeiro lugar, Excelência, é normal hoje em dia que os autores misturem à trama ficcional elementos da realidade. Depois há um narrador visivelmente criado e diferente do autor. O livro foi escrito, Excelência, para justamente causar uma separação. [...] Enfim, Excelência, o senhor sabe que a literatura recria outra realidade para que a gente reflita sobre a nossa. Minha intenção era justamente reparar um trauma: como achei que estava dentro de um 450
Anais romance ou de um conto que tinha escrito, precisei criá-los de fato para ter certeza de que estou aqui do lado de fora, Excelência. (LÍSIAS, 2013, p. 217- 218). O escritor Ricardo Lísias tem apresentado respostas semelhantes às de seu narrador- personagem ao ser questionado sobre seu romance polêmico, como se pode ver na entrevista concedida à Martins: Não acho possível que a ficção traga “experiências pessoais do autor”. [...] A literatura não reproduz a realidade, mas cria outra realidade a partir da utilização da linguagem. Sabemos todos que a linguagem é limitada e muito diferente da realidade, as palavras não são as coisas. Portanto, não pode haver realidade de nenhuma ordem na ficção. O que parece ocorrer é que, com as novas mídias, a figura do autor passou a aparecer mais e, então, a leitura dos textos dos autores começa a ser calcada nessa representação de sua vida pelas diferentes mídias. Ainda que o resultado sociológico possa ser interessante, uma leitura do tipo “há experiência pessoal aqui” é redutora do ponto de vista artístico. Estou tentando escrever, na minha ficção, textos que induzam as pessoas a verem como elas podem se enganar quando vão atrás da “realidade”. (MARTINS, 2014, p. 239). Entretanto, sabe-se que o livro tem como ponto de partida uma experiência real e traumática do próprio escritor. Bastante midiático e ativo em redes sociais, o autor anunciou seu processo de divórcio pelo Facebook. Logo em seguida, ele publica um conto intitulado “Meus três Marcelos”. De acordo com Azevedo (2013), exatos três meses antes do anúncio do divórcio é possível ler em um jornal semestral idealizado pelo próprio Lísias, uma nota editorial em que ele comemora seus três meses de casamento. Para a pesquisadora, a publicação do conto logo na sequência do anúncio evidencia a clara possibilidade de associação entre o Ricardo do texto e próprio autor. Em sua acepção, O texto trata da dor do personagem, identificado como Ricardo, depois do diário escrito por sua mulher. A plaquete distribuída a alunos do curso ‘Os contos clássicos do século XX’, ministrado por Lísia, incorpora à própria narrativa o episódio factual: ‘Comecei a dar um curso de contos 34 dias depois de quase ter me matado. (AZEVEDO, 2013, p. 103). As polêmicas em torno do romance não param de surgir. Na contracapa do livro, em sua primeira edição, a sinopse também trata do caráter autoficcional do enredo: “Num fluxo emocionante, numa reconstrução ficcional da memória, o amor ultrapassa os limites da autoficção e alcança um novo terreno, em que a literatura – a literatura combativa e 451
Anais desafiadora – tem a última palavra.” Por sua vez, esse elemento paratextual introduz ao leitor um aspecto realístico da trama. Os esforços em narrar à vida parece ser um recurso recorrente nas produções de Lísias. Antes da publicação do romance, o autor publica outros contos, são eles: Divórcio e A corrida, respectivamente, em novembro de 2011 e fevereiro de 2012 pela revista Piauí. Junto a eles, Meus três Marcelos, publicado em 2011 pelo selo Dobra Editorial. Azevedo (2013) considera os três contos uma “espécie de trilogia” em que o escritor confunde, inquestionavelmente, os limites entre realidade e ficção. Ademais, outro ponto bastante discutido na obra é o questionamento da ética jornalística. O narrador-personagem evidencia em Divórcio a sua “insatisfação” com os jornalistas. Enfatizando a profissão da sua ex-esposa, jornalista de um veículo importante da cidade de São Paulo, o protagonista tece críticas e faz reflexões sobre a prática dos profissionais. “O sistema em que as pessoas fazem denúncias sem precisar assumi-las é dominante na imprensa brasileira”. (LÍSIAS, 2013, p.196). De acordo com o conteúdo do diário apresentado por Ricardo, sua ex-esposa relata a relação extraconjugal que manteve com um cineasta, que resultou em informações privilegiadas na cobertura do Festival de Cinema de Cannes. Ao que parece, para o autor, esse motivo é o principal objetivo do romance: uma crítica à falta de ética no jornalismo.Nessa perspectiva, é possível inferir que o artifício da autoficção contribui para sustentar o projeto de literatura política do autor, já que por meio dela ele consegue “criar” o seu enredo e fazer suas considerações sobre o jornalismo embasadas pelo seu ponto de vista pessoal. Segundo o escritor Lísias em entrevista à Bruno Soares dos Santos, “Divórcio não é um romance sobre adultério, é um romance sobre adultério cometido durante o festival de Cannes, com um dos jurados do festival, para que uma jornalista soubesse quem iria ganhar o festival antes dos outros jornalistas.” (2017, p. 55). Todavia, não é válido desconsiderar a realidade em partes reproduzidas na obra em prol de uma situação unicamente ficcional. Em um artigo não ficcional, intitulado “Eu sou normal” o escritor diz que Concordo com a crítica literária: Divórcio borra a fronteira entre ficção e realidade. Um dos objetivos do meu projeto estético é mostrar a impossibilidade de recriar, através da linguagem, qualquer tipo de referência segura a uma realidade mais comezinha e direta. Ao perceber a operação, como fizeram leitores especializados e o público em geral, a literatura assume o protagonismo e se torna o ator principal na constituição 452
Anais dos sentidos. O primeiro passo foi observado: é tudo literatura e tudo é literatura. (LÍSIAS, 2015, p. 90). Lísias utiliza, desse modo, os mecanismos da autoficção para criar uma estratégia narrativa que confunde o leitor, ao unir biografemas e ficção. O autor parte de uma experiência pessoal, mas a verdade ali representada é distorcida. Sendo assim, observa-se que não é possível separar a realidade da invenção na obra, atendendo assim de forma incontestável ao gênero autoficcional. Considerações finais A leitura de Divórcio torna clara a associação entre autor e narrador-personagem. A ambiguidade construída ao longo do enredo por meio de vários elementos aponta para uma voz que parece querer elaborar uma narrativa no espaço entre vida e ficção. Lísias joga abertamente com a verdade e a mentira, oscilando ora para aspectos biográficos de sua vida ora para um romance fictício. Esses procedimentos de elaboração textual constituem-se como uma marca de autoria do escritor. Assim, com as diferentes possibilidades de recepção da obra, o autor provoca no leitor o desejo de desvendar o que é verdade e o que é ficção. Os limites existentes entre o referencial e o ficcional são tênues, motivo gerador das discussões acerca do gênero. Essas indefinições que circundam a escrita autoficcional é o que tem fomentado as pesquisas entre críticos e teóricos. Embasando-se no raciocínio de Martins (2014) autoficção é a melhor maneira de chamar essa prática híbrida de ficcionalização de si. A literatura contemporânea caminha para a uma nova configuração do romance em que a autoexposição e a hibridez fazem parte. A ficção de si na obra de Lísias propõe um novo modo de leitura em que o autor-personagem expõe e é exposto. Essa operação autoficcionalizante revela-se um recurso literário recorrente na literatura atual. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Luciene. Ricardo Lísias: versões de autor. In: CHIARELLI, Stefania; DEALTRY, Giovanna; VIDAL, Paloma (Orgs.). O futuro pelo retrovisor: inquietudes da literatura brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2013. 453
Anais BENJAMIN, Walter. “O narrador”. In: _______. Magia e técnica, arte e política – Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. v. 1. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. DOUBROVSKY, Serge. O último eu. In: NORONHA, Jovita Maria Gerheim (Org.). Ensaios sobre autoficção. Tradução: Jovita Maria Gerheim, Maria Inês Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. KLINGER, D. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. 2006. 204 f. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. 2006. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/handle/1/6168. Acesso em: 13 mai. 2022 LÍSIAS, Ricardo. Divórcio. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2013. LÍSIAS, Ricardo. Eu sou normal. Scriptorium, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 84-100, jul./dez. 2015b. Disponível em:https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/scriptorium/article/view/21617. Acesso em: 20 mai. 2022. Martins, Anna F. Autoficções: do conceito teórico à prática na literatura brasileira contemporânea. 2014. 251 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras, PUC-RS. Porto Alegre, 2014. Disponível em: https://hdl.handle.net/10923/5746. Acesso em: 10 mai. 2022. MARTINS, Anna F. Uma discussão teórica acerca da autoficção: a ficcionalização de si em O filho eterno, de Cristovão Tezza. Sintaxe & Literatura Comparada, Porto Alegre, v. 4, n. 11, p. 181-195, 2011. Disponível em:https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica/article/view/7984. Acesso em: 15mai. 2022. SANTOS, Bruno. Autoficção e contemporaneidade: lendo Divórcio, de Ricardo Lísias. 2017. 57 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação - Habilitação em Jornalismo) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. Disponível em: http://hdl.handle.net/11422/6585. Acesso em: 17 mai. 2022. 454
A CIDADE DE SÃO LUÍS E OS PERCURSOS MEMORIALÍSTICOS EM QUATROCENTONA CÓDIGO DE POSTURAS & IMPOSTURAS LÍRICAS DA CIDADE DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO (2021), DE LUÍS AUGUSTO CASSAS Ana Caroline Nascimento OLIVEIRA (UEMA)1 Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA/UESPI)2 RESUMO Este trabalho objetiva analisar a relação entre homem e cidade na obra Quatrocentona: código de posturas & imposturas líricas da cidade de São Luís do Maranhão (2021) de Luís Augusto Cassas, poeta natural da cidade de São Luís - MA. A cidade de São Luís, fundada em 1 Graduanda do Curso de Letras Portuguesa da Universidade Estadual do Maranhão, Campus de Timon. Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq (2021-2022). CPF: 081.358.893-64. E-mail: [email protected]. 2 Pós-doutorado em estudos da Memória e suas interfaces com a Literatura (PROCAD - AM/CAPES). Doutorado em Letras, área de concentração em Teoria Literária. Profa. de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade Estadual do Maranhão e da Universidade Estadual do Piauí. Profa. dos Programas de Pós Graduação em Letras de ambas universidades. Bolsista de Produtividade do CNPq. CPF: 249.772.923-91. E-mail: [email protected]. 455
Anais 1612, é conhecida como cidade dos azulejos, os quais fazem parte da antiga decoração das fachadas dos casarões, e por seu calçamento colonial, igrejas seculares, monumentos, fontes, ruas, becos, dentre outros, concentrados no centro histórico da capital, cuja paisagem é ressignificada pelo eu lírico da obra Quatrocentona. A paisagem arquitetônica da cidade está cada vez mais se alterando em decorrência da vida moderna, o que tem influenciado a relação que o homem estabelece com ela, fato que nos motivou a investigar a obra em questão na perspectiva memorialística. Nesse sentido, vale os seguintes questionamentos: como os fatos urbanos do acervo patrimonial de São Luís são ressignificados pelas impressões do eu lírico? de que modo o eu lírico dá relevância à memória da cidade e também aos costumes e tradições do lugar? Como se dá a relação do eu lírico com a cidade? A pesquisa está fundamentada no pensamento de Abreu (1998), Bosi (2003), Benjamim (1994), Gomes (2008) e Santos (2015). PALAVRAS-CHAVE: Cidade. Memória. Poesia. Cassas ABSTRACT This work aims to analyze the relationship between man and city in the work Quatrocentona: código de posturas & imposturas líricas da cidade de São Luís do Maranhão (2021) by Luís Augusto Cassas, a poet born in the city of São Luís - MA. The city of São Luís, founded in 1612, is known as the city of azulejos, which are part of the old decoration of the facades of the mansions and for its colonial paving, secular churches, monuments, fountains, streets, alleys, among others, concentrated in the historic center of the capital, whose landscape is re- signified by the lyrical self of the work Quatrocentona. The city's architectural landscape is increasingly changing due to modern life, which has influenced the relationship that man establishes with it, a fact that motivated us to investigate the work in question from a memorialist perspective. In this sense, the following questions are worth asking: how are the urban facts of the São Luís heritage collection re-signified by the impressions of the lyrical self? How does the lyrical self-give relevance to the memory of the city and the customs and traditions of the place? How does the lyrical self relate to the city? The research is based on the thinking of Abreu (1998), Bosi (2003), Benjamim (1994), Gomes (2008), and Santos (2015). KEYWORDS: City. Memory. Poetry. Cassas. Introdução Este trabalho tem por objetivo analisar a relação entre homem e cidade, a partir da memória na obra Quatrocentona: código de posturas & imposturas líricas da cidade de São Luís do Maranhão (2021), de Luís Augusto Cassas, poeta natural da cidade de São Luís - MA. O estudo integra a pesquisa desenvolvida no PIBIC/CNPq (2021-2022) vinculado à Universidade Estadual do Maranhão – UEMA. Cassas estreou na literatura com a publicação de República dos becos em 1981, sendo, de imediato, aclamado pela crítica local. O poeta já fazia parte do cenário cultural 456
Anais maranhense integrado do Movimento Antroponáutico (1971), formado por jovens poetas com suas produções alternativas. Radicado em São Paulo, Cassas tem uma vasta obra, com mais de 20 publicações, com destaque para: A paixão segundo Alcântara e novos poemas (1985 – 1ª; 2006 – 2ª), Ópera barroca (1998), O vampiro da Praia Grande (2002), Evangelho dos peixes para a ceia de aquário (2008). Em 2012, reuniu toda a sua produção anterior à Quatrocentona em dois volumes intitulados A poesia sou eu: poesia reunida. A obra, objeto de estudo, gira em torno da paisagem da cidade de São Luís, uma homenagem aos seus mais de quatrocentos anos de fundação. O livro é dividido em 9 partes, \"A cidade aberta\", \"A cidade relembrada\", \"A cidade no varejo & atacado\", \"A cidade & a alma ensolarada\", \" A cidade transfigurada véu e máscara\", \" A ilha dançada\", \" O dono do mar\", \" A cidade fantasma romântico\", \"O renascimento da cidade\" totalizando 90 poemas. Alguns poemas já foram publicados em outras obras, porém a maioria são inéditos. Foram objetos de análise nesta primeira parte da pesquisa, os seguintes poemas: “introdução aos sanctus”, “Bechiana n°10”, “ecos da cidade-fantasma\", \"paralelepípedo”, localizados nas partes iniciais da obra. A cidade moderna mostra-se sedutora com sua arquitetura futurista, mas também desafiadora com seus contrastes e problemas sociais. O seu dinamismo é resultante do processo histórico e do modo como os sujeitos sociais interagem com um conjunto de fatores que a vida moderna impõe. A partir da interação com o espaço do presente e do passado, o eu poético de Quatrocentona3 intui sobre a memória da cidade: seus homens ilustres, sua cultura, seus costumes e seu patrimônio urbano. Para tanto, questiona-se: como os fatos urbanos do acervo patrimonial de São Luís são ressignificados pelas impressões do eu lírico? De que modo o eu lírico dá relevância à memória da cidade? Como se dá a relação do eu lírico com a cidade? Com base nessa problematização, a pesquisa está sendo norteada pela visão dos seguintes teóricos: no que se refere à memória, adotamos o pensamento de Halbwachs (2006), Bosi (2003) e Asmann (2011); quanto ao estudo sobre o espaço urbano, as visões de Ferrara (1998) e Pesavento (2002); acerca das paisagens urbanas pós-modernas, o pensamento de Zukin (2018). Relação cidade e memória em Quatrocentona 3 Ao longo do artigo, adotaremos apenas a palavra Quatrocentona para nos referir ao título do livro, objeto de estudo. 457
Anais Na literatura, especialmente na poesia, a relação entre homem e cidade tem sido motivo de interesse de diferentes escritores ao longo dos tempos. Em Portugal, Cesário Verde surge dando evidência a Lisboa, seguido do heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos; no Brasil, Mário de Andrade aclama a cidade de São Paulo, Ferreira Gullar, Nauro Machado e, mais recentemente, Joãozinho Ribeiro, Luís Augusto Cassas, Natan Campos voltam o olhar para a sua São Luís, isso só para citar alguns. A condição do poeta é de um construtor que tem o privilégio de criar lugares e ambientes em sua produção literária. Esse fenômeno é comum na poesia, como explica Benjamin: O poeta goza o inigualável privilégio de poder ser, conforme queira ele mesmo ou qualquer outro. Como almas errantes que buscam um corpo, penetra, quando lhe apraz, a personagem de qualquer um. Para o poeta tudo está aberto e disponível; se alguns espaços lhe parecem fechados, é porque aos seus olhos não valem a pena serem inspecionados. (BENJAMIM, 1994, p. 52). A poesia de Cassas explora a relação homem/cidade, a partir das impressões e sensações do sujeito poético. Ao longo dos poemas de Quatrocentona, o eu lírico observa as transformações pelas quais a cidade passa. Ao adotar a postura de um flâneur, deambula pelos espaços da urbe trazendo à tona a paisagem ludovicense, com seus monumentos, elementos urbanizados, costumes e tradições. Sobre o flâneur, Benjamin assevera: “Se, no começo, as ruas se transformavam para ele em interiores, agora são esses interiores que se transformam em ruas, e, através do labirinto das mercadorias ele vagueia como outrora através do labirinto urbano”. (BENJAMIM, 1994, p. 81). O centro histórico, da cidade de São Luís foi tombada pela UNESCO em 1997, sendo considerada Patrimônio Cultural Mundial, por sua importância cultural e arquitetônica para a humanidade. Em Quatrocentona o eu lírico estabelece uma relação de familiaridade com os lugares que guardam a memória da cidade de São Luís: ruas, igrejas seculares, casarões, becos, bondes, dentre outros. São espaços públicos, comuns aos habitantes do lugar, que cedem lugar à memória coletiva, de modo que a memória individual do eu-poético ajuda na consolidação dessa memória do grupo. Abreu (1998) diz que a memória da cidade envolve o estoque de lembranças eternizado na paisagem e nos registros de um determinado lugar, lembranças essas que são 458
Anais objeto de reapropriação por parte da sociedade. O eu poético faz uso do processo de rememoração quando executa o seu ato de flanar a cidade, depositando nesse gesto suas emoções, sensações, inquietações e preocupação com o patrimônio urbano. O nosso flâneur, no seu passeio pela urbe, faz referência a comidas típicas da região, seguida de fina ironia, como se estivesse em oração, ao pedir proteção aos habitantes do lugar, como se percebe no fragmento a seguir: pelo sinal do cuscuz com coco e do peixe-serra livrai do mal o povo da minha terra minha cidade minha ruína minha catarina mina meu licor de tangerina minha mina meu buquê de hiroxima [...] (CASSAS,2021, p. 21). O cuscuz com coco, o peixe-serra, os licores de tangerina são consumidos na Ilha e corroboram para a representação da identidade do lugar. Com isso, o eu-lírico valoriza a cultura local, o que também faz parte da memória citadina. Ao usar a expressão “minha ruína\" denúncia o processo de deterioração de antigas construções arquitetônicas que constituem a memória do lugar. O uso do pronome possessivo “minha” demonstra uma relação de posse do eu-poético sobre a cidade, que sugere um dever de cuidado. Assim a cidade, como um espaço geográfico de vivências, acaba por despertar sentimento de pertencimento. Sobre a relação homem e ambiente construído, explica Gomes: A cidade como ambiente construído, como necessidade histórica, é resultado da imaginação e do trabalho coletivo do homem que desafia a natureza. Além de continente das experiências humanas, com as quais está em permanente tensão, “a cidade é também um registro, uma escrita, materialização de sua própria história”. (GOMES,1994, p. 23.). Servindo-se das lembranças do eu-lírico, a cidade acaba por se tornar o alicerce para a memória poética, relacionada a práticas sócios-culturais da região. Em Quatrocentona percebe-se uma sensibilidade do sujeito lírico para com a cidade, expressando forte ligação com as particularidades que a envolve, é o que podemos observar no poema bechianas n°10: 459
Anais minha casa tem muitas meias-moradas entrai: abri as tramelas quem penetrar as escadas & sacadas salvará as portas e janelas (CASSAS, 2021, p. 30. Negrito nosso) As casas de porta-e-janela da parte antiga da cidade de São Luís se comprimem umas nas outras, sem muro para separá-las e muito próximas às calçadas. Observamos que o eu- lírico se reporta à cidade de São Luís como “minha casa”, tratando-a, mais uma vez, com um sentimento de posse. Ao mesmo tempo, o eu lírico faz um convite para que a conheçam: “entrai: abri as tramelas”. Já na segunda estrofe, o eu-lírico faz um apelo: “salvará as portas e janelas”. Com isso, a cidade adota uma nova funcionalidade, não mais de moradia, mas sim de visitação, sendo essa uma forma de sobrevivência do passado. Muitas das construções arquitetônicas do centro histórico de São Luís estão abertas ao turismo, de modo que a súplica dele é um ato de proteção que leva a refletir sobre a importância da preservação do patrimônio urbano. Na sociedade moderna, o surgimento de novos prédios, de construções futuristas e de outras inovações vem deixando cada vez mais os espaços antigos sitiados, o que talvez justifique a revalorização do passado das cidades nos últimos tempos, como defende Abreu: Depois de um longo período em que só se cultuava o que era novo, um período que resultou num ataque constante e sistemático às heranças vindas de tempos antigos, eis que atualmente o cotidiano urbano brasileiro vê-se invadido por discursos e projetos que prega restauração, a preservação ou a revalorização dos mais diversos vestígios do passado. (ABREU, 1998, p. 5). A justificativa desse projeto de revalorização do passado é uma tentativa de preservar a memória urbana que se entrelaça à memória coletiva e individual dos habitantes do lugar. Diante disso, o patrimônio cultural apresenta-se como uma prática da memória de valor simbólico por meio de seus bens, como o acervo arquitetônico, logradouros, restaurações de antigos casarões como uma forma de garantindo o lugar de preservação. A seguir tem-se o poema “ecos da cidade-fantasma”, pertencente à parte intitulada “a cidade relembrada”. É um exemplo de poema que rememora alguns marcos históricos da 460
Anais cidade. Faz referência aos primeiros transportes que circularam na ilha: os bondinhos elétricos. Noturno na rua Grande em vão espero o bonde Bonde bonde bonde bonde Sei que um dia vai chegar feérico sob o luar luar luar luar luar Ei-lo: brilho no trilho ao sol Reflexo do vidro pra cerol Cerol cerol cerol cerol [...] Estou em ti e tu estás em mim Como moram juntos o início e o fim O início e o fim o início e o fim O fim o fim o fim o fim o fim o fim (CASSAS, 2021, p. 60) Até 1966 os bondes circulavam pela Ilha, foram os primeiros transportes moderno a chegar na província e até hoje são lembrados por poetas maranhenses. Em Poema sujo (2004, p. 261), o eu poético de Ferreira Gullar rememora a cartografia da cidade fazendo referência aos bondes: “[...] enquanto o bonde Gonçalves Dias/ descia a rua Rio Branco/rumo à Praça dos Remédios e outros/ bondes desciam a Rua da Paz [...]”. O bonde é um dos elementos urbanos marcado no imaginário coletivo, especialmente por sua funcionalidade trafegando pelas ruas antigas da capital. Algumas das costumeiras ruas por onde os bondes circulavam encontram-se interditadas para tráficos aumobilísticos, livres apenas à circulação de pedestres. O eco que se visualiza ao final de cada estrofe de “Ecos da cidade-fantasma” remete a um passado distante, som que se duplica no vazio da rua, o que justifica o título do poema. No verso: “Estou em ti e tu estás em mim” expressa, mais uma vez, sensação de pertencimento, de modo que homem e cidade se completam. O eu-lírico precisa da cidade para vivenciar suas memórias e a cidade precisa do seu flâneur para dar visibilidade à memória, existindo numa relação simbiótica, como é explicado por Santos e Moreira (2020, p,527): Em geral, nada questiona porque está atrelado ao meio por vínculos afetivos, modelados por pegadas deixadas em calçadas e ruas, por lastros que se 461
Anais fixam em degraus, paredes de casas e fachadas de prédios, por isso muitas vezes a visão é envolta por uma cortina de neutralidade. (SANTOS; MOREIRA 2020, p. 527). Recentemente as ruas antigas de São Luís passaram por um processo de revitalização com a substituição de postes por fiação subterrânea, novo calçamento e outras alterações. Assim a cidade vai recebendo camadas sobrepostas como uma escrita em palimpsesto. A modernização das grandes cidades é inevitável e as alterações espaciais influenciam na maneira como a cidade é percebida. Por conseguinte, a experiência de recordar o passado citadino acaba sendo sentida, em meio ao processo de modificações dos lugares de memória. Com esse processo, o desenraizamento da memória é inevitável. Como diz Bosi (2003, p. 28): “O desenraizamento é a condição desagregadora da memória”. Assim, a experiência de rememorar é relevante nessa obra de Cassas. De modo semelhante, naturalmente os sujeitos sociais vão se afastando do passado individual: sua primeira casa, a rua da infância, dos conhecidos. No poema “Paralelepípedo” o eu lírico dá visibilidade a um traço do calçamento da parte antiga de São Luís, que remonta ao período colonial. Os paralelepípedos das ruas de São Luís Parecem e são bordados de croché feitos à mão navalhas do belo pedras da criação os paralelepípedos das ruas de São Luís poetram do chão ovos barrocos testemunhos dos destroços ó paralelepípedos das ruas de São Luís granito dos meus ossos joalheria a céu aberto diamantes de multidão os paralelepípedos das ruas de São Luís fragmentos de coração nas ruas de São Luís os paralelepípedos têm cara de munição pesados pombos sem asa arrebentam a solidão 462
Anais (CASSAS,2021, p.61) O eu-poético continua pondo em cena as ruas antigas de São Luís, elementos primários da cidade. Ele compara antigo calçamento da cidade como “bordados de croché”, que se assemelham por serem construídos manualmente e terem suas formas delicadas e cuidadosas na sua feitura. O eu-lírico faz um detalhamento do calçamento, este por sua vez carregado de histórias, em que notamos uma sensibilidade ao descrever a sua arquitetura. No verso “poetram do chão”, o eu lírico apropria-se da figura de linguagem para personificar o paralelepípedo, que agora faz poesia do chão, sendo testemunho das mudanças ocorridas na cidade. O calçamento de paralelepípedo, mesmo desgastado, ainda resiste às transformações urbanas e o desgaste do tempo, sendo testemunho da gênese da cidade. Sobre a relação patrimônio e memória, Santos e Moreira (2020, p.531) esclarecem: “O detalhamento dos logradouros provavelmente comporta singularidades que acabam fundindo-se com trajetos pessoais dos habitantes do lugar”. Observa-se que eventos do passado podem ser rememorados a partir de circunstâncias rotineiras que apresentam elementos de referências para a memória do eu poético. O calçamento se recorta em camadas de vivências e se fragmenta pelo corpo da cidade, assim, percebemos que a poesia de Cassas retrata mais uma fragmentação do espaço urbano, como no verso “fragmento de coração”, demonstrando que está acarretado de ressentimento ao perceber os espaços se esfacelando. Em Quatrocentona vê-se vários fragmentos de lugares completamente diferentes, mas que convergem para o propósito poético, qual seja dar visibilidade à memória citadina. O eu-lírico está ora na praça, ora no cinema roxy ou na avenida beira-mar e em outros lugares. Essa é a artimanha do eu poético para mostrar o seu desejo de enraizamento nos espaços de pertencimento. Considerações finais O cenário urbano tem papel importante para a memória do lugar, visto que os espaços são palcos de vivências e de memórias. Observamos que o sujeito poético de Quatrocentona, ao longo da obra, rememora os espaços citadinos por meio de recortes da cidade e mostra seu vínculo afetivo com a urbe. Assim, faz refletir sobre a importância da preservação do 463
Anais patrimônio cultural em colaboração com o ato de rememorar. Por outro lado, a história da cidade também depende dessas mesmas ações de rememorações. Vejamos na poesia de Cassas uma pluralidade de lembranças no mesmo cenário: o centro histórico de São Luís, cujos elementos pertencentes à paisagem são ressignificados a partir das percepções e impressões do eu lírico. A cidade, com seus costumes e tradições, exerce um papel relevante na vivência e experiência dos sujeitos que a habitam. Ela carrega em suas curvas a história do próprio lugar, isso acaba repercutindo na literatura, especialmente na poesia. Sendo o poeta um construtor, aproveita-se dos recursos linguísticos à sua disposição para construir seu cenário poético por meio do patrimônio urbano. A relação homem e cidade mostra-se forte, pois o sujeito poético sente-se ligado à cidade ao ponto de chamá-la de “minha casa”, como é destacado no primeiro verso do poema “bechianas n°10”. Dessa maneira, demostra sensação de pertencimento à cidade por intermédio de elementos que os interligam. Por outro lado, nota-se em outras passagens que o eu poético sofre com o processo de desenraizamento, em decorrência de modificações e fragmentações da paisagem urbana. Desse modo, a voz poética consegue apresentar a relação homem/cidade, a partir de experiências e vivências; ressignifica a memória do lugar e dá um novo sentido ao patrimônio, demarcando o lugar de pertencimento. Portanto, pode-se afirmar que o processo de restauração, tombamento, valorização dos elementos que compõem os centros urbanos antigos são de suma importância para a memória citadina. Diante disso, considera-se importante a conservação dos lugares de memórias frente ao ato de rememorar, pois eles fazem parte da construção pessoal e social de uma comunidade. REFERÊNCIAS ABREU, Mauricio de Almeida. Sobre a memória das cidades. Revista TERRITÓRIO, ano III n°4, (p,01-22), jan./jun.1998 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Editora brasiliense,1994. CASSAS, Luís Augusto. Quatrocentona: código de posturas & imposturas líricas da cidade de São Luís do Maranhão. Cajazeiras: Arribaçã Editora, 2021 464
Anais GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. SANTOS, Silvana Maria Pantoja dos; MOREIRA, Marcello. Quando a cidade não passa: memória e patrimônio na poesia baiana. Patrimônio e Memória, Assis, SP, v. 16, n. 2, p. 522- 539, jul./dez. 2020. Disponível em: pem.assis.unesp.br. 465
MEMÓRIA E ESPAÇO CABO-VERDIANO: IMPACTOS NA FORMAÇÃO DA IDENTIDADE DOS SUJEITOS MARGINALIZADOS Igor Luid de Souza OLIVEIRA (UFMA/PGLB/CCEL)1 RESUMO Esta pesquisa buscou os conceitos de memória e identidade, com objetivo de compreender como o espaço descrito no romance, Marginais, do escritor Evel Rocha, contribui na construção da identidade dos sujeitos marginalizados que vivenciam o lugar contextualizado na obra. A memória é um fenômeno que se constitui em grupos, mas também, sempre é um trabalho do sujeito, e a identidade retrata, na construção da memória, todo o investimento que um grupo faz na medida que passa por inúmeras experiências. No romance Marginais é notória a abordagem desses conceitos, uma vez que reflete na vida dos personagens, tanto no plano individual como no coletivo. É importante destacar que o espaço no qual estão os personagens vivem e transitam, os momentos caóticos lá vivenciados, interfere direto na formação das suas identidades, na construção das suas memórias. Apresenta-se aqui este trabalho, o qual é produto de pesquisa bibliográfica e centrado numa abordagem qualitativa, baseado nas reflexões e discussões desenvolvidas por teóricos como Halbwachs (2003) acerca da memória coletiva; Joel Candau (2012) com suas contribuições sobre a dialética da 1 Memória e espaço cabo-verdiano: impactos na formação da identidade dos sujeitos; e-mail: [email protected] 466
Anais memória e identidade; Alvarenga (2017) e Relph (2012) e dentre outros, apresentando suas noções de lugar, e vivências/experiências que transfiguram o espaço em lugar atuando na identidade dos sujeitos. Palavras-chave: Memória do espaço; Identidade; Sujeitos sociais; Crítica literária; Evel Rocha. ABSTRACT This research searches the concepts of memory and identity, in order to understand how the space described in the novel, Marginais, by the writer Evel Rocha, contributes to the construction of the identity of marginalized subjects who experience the contextualized place in the work. Memory is a phenomenon that is constituted in groups, but it is also always a work of the subject, and the identity portrays, in the construction of memory, all the investment that a group makes as far as it goes through countless experiences. In the novel Marginais, the approach of these concepts is notorious, since it reflects the lives of the characters, both in individuall and collective plans. It is important to highlight that the space in which the characters live and transit, the chaotic moments experienced there, interferes, in the formation of their identity directly, in the construction of their memories. This work is presented here, which is the product of bibliographic research and focused on a qualitative approach, based on reflections and discussions developed by theorists such as Halbwachs (2003) about collective memory; Joel Candau (2012) with his contributions about the dialectic of memory and identity; Alvarenga (2017) and Relph (2012) and others, presenting their notions of place, and living/experiences that transfigure space into place, operating in the identity of the subjects. Keywords: Space memory. Identity. Social subjects. Literary criticism. Evel Rocha. INTRODUÇÃO A memória e o espaço são dois conceitos cruciais para formação identitária do sujeito marginalizado, uma vez que o contato diário com os objetos materiais, mudados ou não, resultam para o sujeito uma imagem de permanência e estabilidade. Este trabalho vem tratar sobre os conceitos de memória, espaço e identidade, apresentando reflexões sobre como a memória e o espaço da Ilha de Sal, em Cabo Verde, constituída no Romance Marginais (2010), escrito por Evel Rocha, contribui nessa construção da identidade do ser marginalizado na obra. Ilha de Sal, pertencente ao arquipélago de Cabo Verde, é o ambiente descrito em Marginais (2010), onde o autor apresenta uma narrativa social com situações desalentadora, representando um cenário forte de desigualdade social, violência de gênero e uma opressão das classes bastardas em relação ao restante da população, condenada à margem da sociedade, à miséria. Como afirma Lugarinho (2012, p. 220), sobre o lugar 467
Anais narrado em Marginais, entre 1977 e 1999: “A terra é esvaziada de sentido porque a nação é representada por um Estado indolente, incapaz de ser a entidade capaz de promover justiça e a estabilidade social, com políticas efetivas de inclusão e socialização”. O romance Marginais é percebido como uma construção que representa uma narrativa dentro ou além da própria narrativa, uma vez que Sergio Pitboy, personagem principal, pega as suas memórias e entrega para um “Engenheiro”, na expectativa de serem divulgadas, perpassando ou antecipando a narração principal. Na obra, Evel subintitula as memórias de Sergio Pitboy como “Apontamentos de um vagabundo”, e ademais, como segundo autor, confessa as mudanças apontadas no texto original. A princípio, a memória pode ser entendida como um conceito individual, algo literalmente íntimo da pessoa, porém, Halbwachs (2003), já apontava que a memória pode ser vista também como um fenômeno coletivo e social, a saber, como algo que é construído coletivamente e sujeito a transformações, como aponta Halbwachs (2003): “Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros...” (HALBWACHS, 2003, p. 30). A identidade pode ser compreendida em até duas dimensões, a saber, a primeira na dimensão social, que pode ser também política e cultural, e a segunda está conectada no plano pessoa, ou seja, individual. Desse modo, a identidade pode ser tanto auto atribuída como também apropriada, isto significa que ela é socialmente marcada por outros e pode se modificar para se acomoda-se em diferentes cenários. Hall (2006) faz nota-se a identidade como um processo em andamento, em construção: “A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é \"preenchida\" a partir de nosso exterior, pelas formas, através das quais nós imaginamos ser vistos por outros...” (HALL, 2006, p. 39). Em relação ao o espaço, como cenário, entende-se como um conceito que fundamenta a presença do sujeito no mundo, uma vez estando unidamente ligado com as memórias dos sujeitos e das coletividades humanas. Alvarenga (2017) aponta: “A abordagem fenomenológica do lugar, como espacialidade da experiência, ultrapassa a dimensão da experiência direta, estritamente individual” (ALVARENGA, 2017, p. 102). Relph (2012) aponta: “cada um de nós se relaciona com o mundo e onde o mundo se relaciona conosco” (RELPH, 2012, p.31). Desse modo, o espaço/cenário, considerado nesta pesquisa, é o que traduz melhor essa atuação da memória na conduta social sujeito aos lugares, tendo em vista que é uma relação que une a idealização de espaço e experiência. 468
Anais Esse trabalho está dividido em duas partes: na primeira, Memória e Identidade: revisão teórica, introduzo a discussão tecendo sobre a memória e apresentando um revisionismo sobre o conceito de identidade e suas relações dialéticas, Halbwachs (2003), Joel Candau (2012), Hall (2006) e dentre outros. Em seguida, em o Espaço como cenário de impacto na formação identitária do sujeito marginalizado, discuto sobre como o lugar, a vivência, as experiências que transfiguram esse espaço em lugar, influenciam na identidade do sujeito marginalizado, Alvarenga (2017), Relph (2012) e dentre outros. MEMÓRIA E IDENTIDADE: revisão teórica Maurice Halbwachs (2003), em seu livro Memória Coletiva, discute no primeiro capítulo sobre as duas principais categorias de memória: memória individual - “O primeiro testemunho que podemos usar será sempre nosso” (p. 29) e memória coletiva - “É como se estivéssemos diante de muitos testemunhos” (p. 30). Diante da perspectiva de que o indivíduo nunca está sozinho, até os eventos solitários são percebidos como lembranças que permanecem coletivas, ou seja, para o autor, a memória individual é construída a partir da memória coletiva. Halbwachs (2003) enfatiza ainda que, para lembrar ou confirmar uma memória, nenhum testemunho é necessário “no significado literal da palavra, isto é, indivíduos presentes em forma material” (HALBWACHS, 2013, p. 31). Todavia, se a narrativa acontece em primeira pessoa, assume-se a ideia de que há maior confiabilidade dos fatos lembrados pelo sujeito. Ainda é possível perceber um caráter social na teoria de Halbwachs (2003), uma memória coletiva configurada em instituições sociais como família, igreja, escola, entre outras, que formam o sujeito com certas visões de mundo. Para esse autor, o indivíduo confia no coletivo, uma vez que o indivíduo se encaixa nessa coletividade a partir de uma estrutura de sentido que o grupo compartilha. Halbwachs, no início do século XX, evidenciou não apenas o caráter coletivo da memória, mas também problematizou uma ideia de identidade social. A partir de uma espécie de comunhão do olhar, desde que se estabeleceu, com base no que ele chamou de memória coletiva, os indivíduos compartilham uma leitura da temporalidade e uma experiência cotidiana que dá sentido a um determinado grupo. Complementando essa ideia, entende-se então que é a partir disso e de que Halbwachs (2003) chama a comunhão do olho que surgem representações culturais, ou 469
Anais melhor, “representações coletivas”, nas quais a experiência comum do indivíduo está ligada a uma esfera de valores de grupo. Por extensão, revela que as identidades culturais são formadas, tendo uma base concreta precisamente nessas representações, compartilhadas por um determinado grupo social, ao qual, mais amplamente, se relacionam com a centralidade da cultura na constituição da subjetividade, da própria identidade e da pessoa como ator social. Desse modo, Halbwachs (2003), diz: Por isto, quando um homem entra em sua casa sem estar acompanhado por ninguém, sem dúvida durante algum tempo ‘ele andou só’, na linguagem corrente – mas ele esteve sozinho apenas em aparência, pois, mesmo nesse intervalo, seus pensamentos e seus atos se explicam por sua natureza de ser social e porque ele não deixou sequer por um instante de estar encerrado em alguma sociedade. (HALBWACHS, 2003, p. 42). Nesse sentido, pode-se aplicar uns dos elementos que faz parte desse processo de construção da memória, tanto no plano individual quanto coletivo, a saber, os acontecimentos conhecidos como “vividos por tabela”. Como aponta Oliveira (2021) sobre esse esquema das tabelas: Segundo, são os eventos que eu chamaria de \"tabela vivida\", ou seja, eventos experimentados pelo grupo ou comunidade à qual a pessoa se sente pertencente. São eventos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que, no imaginário, ganhou tanto destaque que no final das contas, fica quase impossível para ela saber se participou ou não. (OLIVEIRA, 2021, p. 13). Ainda se utilizando do pensamento de Halbwachs (2003), que, ao dar um status social à memória, acabará refletindo na lembrança, entendendo que o passado é uma construção do pensamento, e o presente, mostrando a relação do homem com o tempo e sua própria identidade. Como salienta Oliveira (2021): Pode-se dizer, então, que para esse autor não existe passado em si, mas um passado construído/reconstruído pelo grupo, a partir de uma consciência dotada de significados, subjetividades, intencionalidades, relações de poder na construção de uma homogeneização do ver e pense em um elemento particular da vida cotidiana. (OLIVEIRA, 2021, p. 17). Desse modo, para Halbwachs (2003): “Geralmente o indivíduo vincula suas memórias a um espaço e a uma temporalidade em que compartilha com outros sentimento em relação ao compartilhamento dessa temporalidade”. (HALBWACHS, 2003, p. 54). 470
Anais Outro teórico bastante necessário para esta discussão chama-se, Paolo Rossi (2010), que traz em seu livro O passado, a memória e o esquecimento, onde no capitulo primeiro, apresenta que quão importante tratar da memória é também entender a relação que tem com o esquecimento. Diante disto, o escritor trata os significados da memória e esquecimento, observando como esse quadro memória/esquecimento vem sendo abordado na tradição filosófica. Rossi (2010) evidencia que: Na tradição filosófica, e também no modo de pensar comum, a memória parece referir-se a uma persistência, a uma realidade de alguma forma intacta e contínua; a reminiscência (ou anamnese ou reevocação), pelo contrário, remete a capacidade de recuperar algo que se possuía antes e que foi esquecido. Segundo Aristóteles, a memória precede cronologicamente a reminiscência e pertence a mesma parte da alma que a imaginação: é uma coleção ou seleção de imagens com o acréscimo de uma referência temporal. [...]. Voltar a lembrar implica um esforço deliberado da mente; é uma espécie de escavação ou de busca voluntária entre os conteúdos da alma; quem rememora ‘fixa por ilação o que antes viu, ouviu ou experimentou e isso em substância, é uma espécie de pesquisa. (ROSSI, 2010, p. 15-16). Para o filósofo, “[...] a história é jogo de revelação e encobrimento, de manifestação e ocultação” (ROSSI, 2010, p. 19). É por isso que quando se pensa em memória, passado e esquecimento, a saber, na relação entre elas, vale ressaltar sempre o que está por trás do que aparece e do que fica oculto. Desta vez, o que nos permite pensar sobre o futuro é também essa relação que a memória tem com a identidade e não somente com o passado. Por sua vez, Rossi (2010) mostra como também a memória se apresenta dentro de dois quadros, a saber, as lembranças e o esquecimento. Dentro desse quadro, o autor apresenta que as memórias são manipulas através do esquecimento mostrando que há uma relação da memória com a verdade. O “apagar” não tem a ver só com a possiblidade de rever, a transitoriedade, o crescimento, a inserção de verdades parciais em teorias mais articuladas e mais amplas. Apagar também tem a ver com esconder, ocultar, despistar, confundir os vestígios, afastar da verdade, destruir a verdade. (ROSSI, 2010, p. 32). Pensando sobre o conceito de identidade, Candau (2011) ressalta “que o ato de ver a identidade como um estado construído socialmente de certa maneira sempre acontece no quadro de uma relação dialógica com o Outro” (CANDAU, 2011, p. 09). Desse modo, ver-se que assimilar a identidade social de si, para si e com os outros, há um elemento nessas definições que inevitavelmente escapa do indivíduo e se estende ao 471
Anais grupo, e esse elemento é obviamente o outro. Ninguém pode constituir uma autoimagem sem mudança, sem negociação e sem mudança nas funções dos outros. A construção da identidade é um fenômeno que se refere ao outro, referenciando padrões de aceitabilidade e credibilidade, e se concretiza por meio da negociação direta com o outro. Acerca do processo de construção das identidades, reforça-se que o exercício de poder seja simbólico ou autoritário, será uma ação constante, uma vez que as identidades são forjadas para garantir a manutenção de um grupo no poder. Desse modo, Silva (2014) ressalta: Primeiramente, a identidade não é uma essência; não é um dado ou um fato – seja da natureza, seja da cultura. A identidade não é fixa, coerente, unificada, permanente. A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado, podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder. (SILVA, 2014, p. 96-97). Para Hall (2006) há três tipos de concepção sobre a identidade. Nessas concepções, o autor mostra que a identidade se torna uma celebração móvel, uma vez que ela é formada e constantemente transformada em relação aos meios que são representados ou interpelados nos sistemas culturais que estão ao redor. a) Sujeito do Iluminismo - baseado numa concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, e de ação cujo centro consistia num núcleo interior, que emergia deste o nascimento e ao longo de toda sua vida, permanecendo totalmente o mesmo. b) Sujeito Sociológico - reflete a complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo moderno não era autônomo e autossuficiente, mas isto era formado na relação com outras pessoas importantes para ele. c) Sujeito pós-moderno - a identidade torna-se uma celebração móvel, formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. (HALL, 2006, p. 11-12). Segundo Hall (2006), até o século XX acreditava-se na existência da denominada sociedade sólida, devido aos cenários culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, provocando assim solidas localizações como indivíduo social. Desde então, no 472
Anais final desta época, as cenas culturais foram se modificando, atingindo também a ideia da identidade pessoal, inclusive o sujeito assumindo um novo olhar sobre si. Desse modo, a construção e a constituição da sociedade, sempre estiverem espaço às relações de poder, aprestando que para que o indivíduo tenha a necessidade de ser inserido vai depender da sua representatividade. Nesse sentido, a identidade do indivíduo é desenvolvida pela necessidade de sobreviver, também seguindo o curso das variáveis relações sociais, e de sua limitação no espaço e tempo em que o sujeito está inserido. A identidade também se apresenta como uma forma do indivíduo fazer parte de algo referente a uma formação de grupos, etnias, gênero, raça ou profissão no quais o igual e o diferente vivem simultaneamente. Nesse sentido, a construção da identidade está unificada com o contexto, sendo que todas as mediações sociais e as peculiaridades de cada tipo de identidade está conectada ao ser social. Como isso, Bauman (2005), reporta a consideração de que pensar sobre a identidade leva-se a uma conceituação e a tendências que dão ênfase sobre as mudanças comunicacionais que acorre na sociedade, as relações sociais, também quando se refere a limitação quando se diz respeito a cunho humanístico até morais. Para Bauman (2005), no que diz respeito às comunidades, ressalta que elas são definidoras de identidades, dividindo- as em tipos: “comunidades de vidas e destino, cujo membros vivem juntos numa ligação absoluta; e outras que são fundidas unicamente por ideias ou por uma variedade de princípios” (BAUMAN, 2005, p 17). Nesse sentido, Bauman (2005) ressalta a não solidez e o não pertencimento da identidade por toda a vida, uma vez que as relações são negociáveis e o livre arbítrio também faz parte desse processo. Ademais, mostra que com as presunções apresentadas, os sujeitos também procuram, produzem e mantêm as referências dos movimentos de identidade que se acham em mudanças, porém se combinam entre os vínculos grupais em um limitado espaço temporal. A identidade pode ser compreendida e reinterpretada de várias formas, uma vez que guiada pelas pressuposições conceituais e causando reflexões enfatizadas por cada sujeito e em sua complexa subjetividade. [...] a ‘identidade’ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, ‘um objetivo’; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente 473
Anais inconclusa da deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta. (BAUMAN, 2005, p. 21-22). Mediante o fragmento acima, percebe-se que a identidade é uma construção social, o homem não nasce pronto, vai sendo moldado, construído a partir das suas experiências e relações sociais, afinal, o sujeito é um ser inconcluso. Neste sentido, as identidades dos sujeitos marginalizados do romance de Evel Rocha, são invenções do meio social onde eles estão, no caso de Sérgio Pitboy, moldados pela ausência do pai e da mãe, o abandono do irmão, as intrigas da cunhada. Portanto, Bauman (2005) parece dialogar com Hall (2006) acerca da construção do sujeito na contemporaneidade. O ESPAÇO COMO CENÁRIO DE IMPACTO NA FORMAÇÃO IDENTITÁRIA DO SUJEITO MARGINALIZADO Podemos dizer que os lugares e o espaço que localizam a existência e as experiências dos sujeitos, por exemplo, a própria cidade, influenciam e moldam suas vivências e suas identidades levando em conta de como estão vivendo. Para Oliveira (2021), há lugares de memória, como aponta: Lugares particularmente anexados a uma memória, um lembrete pessoal, mas também pode não ter suporte cronológico. Pode ser por exemplo, um local de férias de infância que permaneceu muito forte na memória, muito notável, independentemente da data real em que a experiência ocorreu. (OLIVEIRA, 2021, p. 14). Na memória mais pública, nos aspectos mais públicos da pessoa, pode haver locais de suporte à memória, são os locais de celebração. Lugares muito distantes, fora do espaço- tempo da vida de alguém, podem ser um lugar importante para a memória do grupo e, portanto, para a própria pessoa, seja por tabela ou por pertencer a esse grupo. O apego ao lugar decorre da perspectiva da experiência cotidiana, entendida e percebida muitas vezes como sua raiz como pessoa, sugerindo um profundo sentimento de conexão e pertencimento, mas também, paradoxalmente, um sentimento de quietude. Quando se pensa a atuação dos Pitboys, percebe-se que o grupo já se tornara um espaço para a construção de identidade ou identificações contínuas, possibilitado a experiência e o vigor proveniente da união dos pares, garantindo o reconhecimento da individualidade, como afirma o narrador do romance cabo-verdiano: 474
Anais Pertencer aos Pitboys era o mesmo que receber um certificado de emancipação à repressão dos pais e dos adultos que nos rodeavam; era uma forma de defender a nossa integridade, onde expúnhamos a nossa cólera sem medo dos outros, onde enunciávamos toda a nossa crueldade de modo a nos vingarmos da rejeição social. Toda a nossa revolta tinha apenas um alvo: a intolerância. No seio do grupo o medo ficava de fora. Ninguém, enquanto estivesse no grupo, deveria demonstrar qualquer sinal de fraqueza. O choro, a submissão e o medo eram sinais de fraqueza e nenhum de nós estava na disposição de passar por afronta. Era necessário encarar o perigo com desprezo e cuspir na cara do medo, era necessário demonstrar revolta por tudo o que fosse regra e bom comportamento, pois, as pessoas olhavam-nos com desprezo e devíamos retribuir-lhes desprezo também. (ROCHA, 2010, p. 29). Como aponta o trecho a cima, esse sentimento de pertencer aos Pitboys, que o narrador, a saber, Sergio apresenta, não trata somente de um lugar no qual tem uma ligação mais forte, como aquele lugar que traz à memória as experiências despreocupadas e, também, feliz da infância, mas um lugar de refúgio onde os personagens marginalizados podem refletir sobre a vida. Sérgio, funda desde pequeno, junto com seu amigo Fusca, esta gangue chamada de Pitboys. Grupada por crianças carentes, a gangue transformou-se numa organização onde o futebol, a diversão e as experimentações sexuais eram trocadas por furtos e outras práticas ilícitas. Desde a infância, Sérgio aprendeu trabalhando nas casas dos ricos, a furtar comida para ajudar na sustentabilidade da família que vivia na miséria: Fui o menino da Ribeira Funda que mais deu trabalho aos adultos. Conhecia todos os cantos onde as galinhas poedeiras escondiam seus ninhos, sabia todas as manhãs de como tirar o sorvete das outras crianças, sabia cor o nome dos actores famosos e era capaz de falsificar ingressos para entrar no cinema. Claro que não me orgulho dessas façanhas, mas ajudaram-me a aliviar a dor de ser pobre, compensavam as privações que o destino me impunha. (ROCHA, 2010, p. 35). O lar é uma referência à vida que ainda está guardada na memória e molda nossa identidade. Mesmo quando saímos deste lugar, estamos constantemente à procura de outro espaço para ocupar o seu lugar, trazendo de volta o que vivenciamos em primeiro lugar; que é o sentimento e certeza de pertencimento e identidade. É por meio dessa transformação do viver e/ou dos espaços de convivência que os construímos e lhes damos sentido. Opondo-se aos ideais dos Pitboys nas páginas dos Marginais, eles lutam por melhores condições de vida, enquanto a sociedade da ilha de Sal está imersa nos arquétipos do preconceito e da discriminação, e reprime os chamados marginalizados. As trágicas 475
Anais consequências de certos personagens do romance podem ser vistas como a cristalização das condições sociais, que são causadas por uma série de fracassos vivenciados cotidianamente pelos marginalizados de Evel Rocha: [...] naquele ano, quase fui violado por um polícia, perdi a zizi, perdi o direito à escola, via a mãe viajando para a terra longe, meu irmão expulsou-me de casa, a professora Izilda humilhou-me à frente de todos e, para cúmulo das desgraças, recebi a notícia que não tinha futuro como jogador de futebol. Meu corpo era pequeno demais para conter tanta angústia e sofrimento. [...] Atirei-me cegamente para baixo do camião para pôr fim à minha desgraça, porém, o condutor travou a tempo de evitar minha morte. [...] Ensopei a minha tristeza com grogue33 e passei a acreditar na força da droga como o caminho da redenção. (ROCHA, 2010, p. 83). Nesse sentido, o trecho acima ilustra como há alguns lugares que podem ganhar novos significados, se remetem a uma memória não prazerosa, como a perda de alguém. Uma vez que há essa perda do outro, o lugar pode trazer novos sentidos transfigurando-se em “cenário de tragédias”. Outro fator a ser considerado aqui são as evidências: a importância da narrativa no processo de memória. Por meio do processo de narrativa, o sujeito sequência e dá coerência aos acontecimentos e experiências de sua vida nos espaços e tempos que considera importantes. Dessa forma, o ato de narrar leva à preservação da memória para si e para os outros, pois nossas memórias são compartilhadas, como aponta Rocha (2010): As memórias do sol descarado a caminho de Terra Boa e Poço Verde com o barril, único brinquedo a sério a que tive direito, as investidas do vento endiabrado, em redemoinho, que fazia dançar a poeira, maquilhando o meu rosto prensado de dificuldades, o sal da maresia que dava gosto à minha pele, o mar que enchia meus olhos e o céu da ilha, por onde os meus sonhos alados invadiam o infinito, foram meus companheiros por toda a vida. Com eles construí o meu destino porque não sabia de outros caminhos. (ROCHA, 2010, p. 34). O lugar ocupado por um grupo não é como um quadro-negro no qual se escreve e depois se apaga números e figuras. Como mostra a citação acima, o ambiente material traz ao mesmo tempo a nossa marca e a dos outros. As casas, os móveis e a maneira como são arrumados, todo o arranjo das peças em que se vive, lembra a família e os amigos que são visto com frequência nesse contexto. Candau (2012) então sugere que a perda da memória provoca a perda da identidade. 476
Anais Sem memória o sujeito se esvazia, vive unicamente o momento presente, perde suas capacidades conceituais e cognitivas. Sua identidade desaparece. Não produz mais do que um sucedâneo de pensamento, um pensamento sem duração, sem a lembrança de sua gênese que é a condição necessária para a consciência e o conhecimento de si. (CANDAU, 2012, p. 59-60). Desse modo, percebe-se que a Ilha de Sal, cenário que se passa a narrativa do romance Marginais é contraposta com a noção de lugar como uma imagem que a partir do qual “cada um de nós se relaciona com o mundo e onde o mundo se relaciona conosco” (RELPH, 2012, p.31). Estabelecendo um diálogo entre a teoria e o romance menciona-se: Há melhor terapia do que quebrar os vidros de uma montra num país onde os filhos dos pobres são excluídos e a discriminação é estimulada? É necessário vandalizar os interesses da burga, que enriquece facilmente, para que o estado possa olhar para nós, os marginalizados; é necessário vandalizar o património dos coronéis da ilha, conquistado à custa dos fracos, para que chorem de raiva como nós chorámos por um pedaço de pão e pelos nossos direitos. (ROCHA, 2010, p. 40). Desse modo, pode-se sentir que o processo de construção da identidade está gravado no processo memorial, que envolve reconstruir o passado, renovar e esquecer algumas imagens do passado. É preciso trazer a identidade para o discurso, e é a memória que possibilita que a identidade se realize para que o sujeito possa narrar a si mesmo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo desse artigo, foi visto que a memória e o espaço são fatores fundamentais na construção identitária do sujeito marginalizado. Essa relação que a memória e o espaço apresentam, resultou de uma força para que o grupo dos Pitboys consagrassem a pertença como marginais. A partir das reflexões propostas neste trabalho, refletiu-se, ao longo do texto, com base nos autores que tratam sobre a temática de identidade, memória e espaço. A memória é essencial para uma cultura que quer manter sua identidade e está intimamente ligada a ela, pois fornece subsídios para o estabelecimento e fortalecimento da identidade por meio de vínculos comuns. O vínculo comum é a vida miserável e a desigualdade social em que estão imersos os jovens e os mais pobres da Ilha do Sal, espaço da narrativa Marginais (2010), de Evel Rocha, adolescentes que vendem seus corpos como Mirna na esperança de uma vida melhor. Deles apenas o Jorginho escapa à má sorte da marginalidade, foi escolhido para ser 477
Anais jogador de futebol de um time português, Beto Vesgo casa e passa a viver longe da marginalidade, o Fusco, embarcou em um iate e não se soube mais dele, o Pianista, depois de preso foi diagnosticado com AIDS, Lela Magreza morreu de paixão pela filha do Dr. Apolinário e Sérgio também morre aos 23 anos. Observa-se que a temática da identidade é importante para refletir, atuar e permite um conhecimento de si, como sujeito histórico, social, político e aponta as perspectivas de sua identificação como único e múltiplo, pelas diferenças que o tempo faculta no processo contínuo de transformação pessoal e múltiplo porque ele é um e outro ao mesmo tempo. Nesse processo de compreensão acerca de identidades o estudo possibilitou-nos compreender que as identidades vão sendo modeladas em diferentes contextos, sejam eles familiares, escolares, experienciais e vão sendo processados ao longo da vida sem desconsiderar as questões que envolvem a sociedade atual. Considerando a teorização sobre a memória presente em Halbwachs (2003), Rossi (2010), os estudos da identidade presente em Hall (2006), Candau (2012) e Bauman (2005) entendeu-se que a memória é fundamental para tecer uma cartografia identitária. No tocante, à obra de Evel Rocha, Marginais (2010), a identidade de Sérgio Pitboy é toda tecida pela memória, as experiências da infância, os sofrimentos na escola e na esfera social da Ilha do Sal, a viagem da mãe para a Itália, a expulsão da casa dos pais pelo irmão. Todas as vivências de Sérgio, a doença que o tira a possibilidade de ser jogador de futebol, a evasão escolar que o impede de ser um advogado como ou melhor que o seu desafeto, Dr. Apolinário e a sua entrada no mundo da marginalidade e os últimos dias na prisão. Tudo entrelaça memória e identidade, o leitor só conhece a Sérgio e os outros marginais porque a substância guardada na memória, traz viva a lembrança individual que é também sabida pela coletividade como presente em Halbwachs. REFERÊNCIAS ALVARENGA, André. Lugar e memória: cenários. GEOgraphia Niterói, Universidade Federal Fluminense. GEOgraphia, vol. 19, n. 41, set./dez. 2017. BAUMAN, Zigmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2012. 478
Anais HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução: Laís Teles Benoir, São Paulo: Centauro, 2003. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LUGARINHO, Mário César. Em Cabo Verde, os Marginais, de Evel Rocha: justiça social e gênero. Via Atlântica, n. 22, p. 219-233, São Paulo, dezembro, 2012. OLIVEIRA, S, L, Igor. MARGINAIS: memória e identidade social dos marginalizados. Monografia (Graduação em Letras). Universidade Federal do Maranhão. Bacabal-Maranhão, p. 57. 2021. RELPH, Edward. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essências de lugar. In. MARANDOLA JR., Eduardo; HOLZER, Welter; OLIVEIRA, Lívia de (Orgs.). Qual o espaço do lugar? geografia, epistemologia, fenomenologia. São Paulo: Perspectiva, 2012. ROCHA, Evel. Marginais. Praia: ASA/Gráfica da Praia, 2010. ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento. São Paulo: UNESP, 2010. SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença. In. SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. 479
FILOSOFIA E LITERATURA: TEMPO E MEMÓRIA EM INGLÊS DE SOUSA Messias Lisboa GONÇALVES (UFPA)1 Antônio Máximo FERRAZ (UFPA)2 RESUMO A Filosofia busca pensar o tempo com um toque qualitativo, que leva em conta sua relação com a dimensão existencial e a literatura não fica alheia à discussão acerca do tempo, sobre ele refletindo, não discursivamente, mas concretizando-o em imagens que se apresentam em toda narrativa. Pensando a respeito disso, este estudo destaca os romances O Cacaulista (1876) e O Coronel Sangrado (1877), de Inglês de Sousa (1853-1918). O objetivo fulcral deste trabalho é pesquisar as questões do tempo e da memória postas em obra pelos romances O Cacaulista e O Coronel Sangrado. O estudo limita-se à reflexão do personagem Miguel, que se destaca por sua relação com o tempo, tendendo ao futuro, mas sempre tecendo conexões com o passado e o presente, por meio do manifestar da memória. E, no eterno desvelamento e velamento das questões, ir além dos caminhos conceituais e classificatórios, para oferecer outras chaves de leitura acerca da produção de Inglês de Sousa. Para realizar este intento, buscamos especialmente em Martin Heidegger (1889-1976), Henri Bergson (1859-1941), 1 Doutorando em Estudos Literários pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal do Pará (UFPA). Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar Kairós – Estudos de Poética e Filosofia (NIK/UFPA). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected] 2 Doutor em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Adjunto do Instituto de Letras e Comunicação, da Universidade Federal do Pará (UFPA) e do Programa de Pós-Graduação em Letras na mesma Universidade. Coordenador do Núcleo Interdisciplinar Kairós – Estudos de Poética e Filosofia (NIK/UFPA). E-mail: [email protected] 480
Anais Benedito Nunes (1929-2011) e Manuel Antônio de Castro (1941-) um diálogo que permitiu pensar como se manifestam as questões do tempo e da memória naquelas obras de Inglês de Sousa. Palavras-chave: Tempo, Memória, Inglês de Sousa, O Cacaulista, O Coronel Sangrado. ABSTRACT Philosophy seeks to think about time with a qualitative touch, which takes into account its relationship with the existential dimension and literature is not alien to the discussion about time, reflecting on it, not discursively, but concretizing it in images that are presented in all narrative. Thinking about it, this study highlights the novels O Cacaulista (1876) and O Coronel Sangrado (1877), by Inglês de Sousa (1853-1918). The main objective of this work is to research the questions of time and memory put into work by the novels O Cacaulista and O Coronel Sangrado. The study is limited to the reflection of the character Miguel, who stands out for his relationship with time, tending to the future, but always weaving connections with the past and the present, through the manifestation of memory. And, in the eternal unveiling and veiling of the issues, to go beyond the conceptual and classificatory paths, to offer other keys to reading about the production of Inglês de Sousa. In order to achieve this aim, we sought especially in Martin Heidegger (1889-1976), Henri Bergson (1859-1941), Benedito Nunes (1929-2011) and Manuel Antônio de Castro (1941-) a dialogue that allowed us to think about how the questions are manifested. of time and memory in those works by Inglês de Sousa. Keywords: Time, Memory, Inglês de Sousa, O Cacaulista, O Coronel Sangrado. PARA INÍCIO DE CONVERSA... As três primeiras obras do romancista Herculano Marcos Inglês de Sousa (1853- 1918), História de um Pescador (1876), O Cacaulista (1876) e O Coronel Sangrado (1877)3, publicadas sob o pseudônimo Luiz Dolzani, receberam do autor o título geral de Cenas da vida do Amazonas. Adentramos nas questões do tempo e da memória em diálogo com os romances de Inglês de Sousa, que constituem o corpus deste estudo. Foi necessário questionar e aprofundar o pensamento por um caminho outro que possibilitou mais uma janela de sentido e interpretação das obras, com destaque para uma escuta ontológica e desvelar de questões. 3 O Coronel Sangrado foi publicado em 1877 na Revista Nacional de Ciências, Artes e Letras e a primeira edição do romance em livro ocorre somente em 1882. No entanto, a data de publicação do romance ficou fixada pela história literária oficial como sendo em 1877 (Cf. FERREIRA, 2017). 481
Anais No mais, pela dinâmica deste artigo e para uma maior compreensão e aprofundamento do campo temático, este trabalho limitou-se à reflexão do personagem protagonista Miguel Faria que percorre os romances O Cacaulista e O Coronel Sangrado. Como resultado, a pesquisa mostrou que o personagem-questão rompe com a clássica divisão do tempo e, no seu tempo, experiencia o tempo humano e o tempo poético. Por conseguinte, Benedito Nunes (1988) destaca que “a ideia de tempo é conceitualmente multíplice; o tempo é plural em vez de singular” (NUNES, 1988, p. 23). A partir desse ponto de vista, cabe neste estudo uma noção de tempo que se opõe ao tempo controlado pelo relógio, o que possibilita perceber o tempo enquanto uma questão. Ainda, Martin Heidegger (2005) reflete que Dizemos “agora” e pensamos no tempo. Mas em parte alguma do relógio que nos indica o tempo encontramos o tempo, nem no mostrador nem no mecanismo. Tampouco encontramos o tempo nos cronômetros da técnica moderna. Impõe-se a afirmação: quanto maior a perfeição técnica, isto é, quanto mais exatos no efeito de medição, tanto menor será a oportunidade para meditar sobre o que é próprio do tempo. (HEIDEGGER, 2005, p. 258). Dessa maneira, a contagem do tempo pelo relógio não demonstra o que seja o tempo nem tão pouco expressa o que seja o fluir contínuo do tempo, porque o tempo é uma questão. Desse modo, já que o tempo é uma questão, não é possível ao homem viver fora do tempo nem sem o tempo. Então, o tempo não pode ser encontrado na cronometragem da máquina criada pelo homem com o intuito de dominá-lo, mais afinal “onde, porém, está o tempo? É, aliás, o tempo e possui ele algum lugar? O tempo, sem dúvida, não é nada” (HEIDEGGER, 2005, p. 258). Diante de tal fato, Manuel Antônio de Castro no Dicionário de Poética e Pensamento4 reflete que “o nada, possibilidade das possibilidades, é sempre doação de novas realizações, 4 Este dicionário digital distingue-se por ser feito de verbetes-questões e não por definições conceituais ou por levantamento de significados semânticos. O leitor terá para cada verbete diferentes acessos através de reflexões e passagens essenciais de diversos pensadores e poetas. Tais acessos querem provocar o leitor e levá-lo a questionar, a pensar, mostrando como cada verbete se constitui numa questão que não pode ser resolvida através de conceitos lógicos. Pelo contrário, deve prevalecer o diálogo poético, interpretativo, onde interpretar é interpretar-se na e com a escuta do que é. Consultando o dicionário, o leitor tem acesso a diferentes indicações bibliográficas. Em muitos casos, o dicionário limita-se a transcrever uma passagem julgada essencial. Cabe a cada leitor procurar a fonte integral indicada para aprofundar o pensamento. O Dicionário está disponível em <http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br>. 482
Anais tempo sendo, que voltam sempre ao nada que é tudo” (CASTRO: Nada, 2)5. Logo, o nada é a esperança do acontecimento. Cabe evidenciarmos que o tempo, o qual o homem intentou controlar por meio de um relógio contador, não pode ser comensurado, uma vez que existe uma concepção de tempo que se estende e se faz presente nas ações do próprio homem, fugindo assim de qualquer medição ou cálculo. Martin Heidegger (2005) nos explica que o tempo é presença, o tempo é poético, o tempo é acontecer e o tempo é destinado a cada ser vivente.6 Nesse sentido, o tempo é vida sendo, destinando-se ao ser humano. Em consonância com esse pensamento, Manuel Antônio de Castro menciona que O vivente só vive e sabe que vive e pensa a vida porque sua vida como vivente já vigora na vida como tempo e este como unidade ou sentido. A sucessividade de nossa vida nunca nos aparece nem como um amontoado desconexo de momentos nem como uma sequência linear e causal de vivências. Vivemos de surpresas inesperadas. Isso é o sentido não a explicação racional e muito menos o significado. (CASTRO: Tempo, 7). O tempo instaura sentido na vida do ser vivente e, por isso, a vida ininterrupta daquele que vive não se apresenta como um aglomerado de momentos. A vida não pode ser pausada, uma vez que é contínua. Nem mesmo quando dormimos, deixamos de viver ou de termos vida, mas, como somos um ser temporal, findamos. No entanto, o tempo e a própria vida continuam existindo, e a nossa existência só tem sentido por causa do tempo, e o tempo é vida. A vivência temporal é o tema de onde deveremos sempre partir e para o qual sempre retornaremos ao estudarmos o pensamento bergsoniano. Importa mencionar que, quando um pensamento repousa inteiramente sobre um fato originário, a saber, o da passagem do tempo, não é de se espantar que as respostas científicas universalmente aceitas apareçam como insuficientes, uma vez que tais explicações não esgotam o sentido primitivo dessa passagem e não expressam o que seria por natureza inexprimível. Além disso, Henri Bergson (2010) reflete que a memória tem tanto a função de “recobrir” de lembranças a percepção imediata quanto a de contrair os múltiplos momentos 5 Todas as referências que vierem nesse formato estão de acordo com as normas de citação sugeridas pelo dicionário digital Dicionário de Poética e Pensamento, de Manuel Antônio de Castro. Disponível em: <http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br>. Acessado em: 2 jul. 2022. 6 Cf. Heidegger (2005). 483
Anais e condensá-los, conferindo a essa multiplicidade de momentos um aspecto de unidade (ou continuidade): Em suma, a memória sob estas duas formas, enquanto recobre com uma camada de lembranças um fundo de percepção imediata, e também enquanto ela contrai uma multiplicidade de momentos, constitui a principal contribuição da consciência individual na percepção, o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas. (BERGSON, 2010, p. 31). Desse modo, a memória agrupa as vivências pessoais, representa o passado e também o presentifica, além de adquirir uma função criadora, pois cria um passado ao estabelecer relações com os vários conteúdos percebidos em momentos diversos do tempo vivido. Sendo assim, centralizamos o pensamento no personagem Miguel Faria, que nos foi demasiado importante para pensarmos o tempo e a memória desprendidos das tradições metafísicas e dos modelos encerrados em conceitos cristalizados pelo homem. No tocante, a uma passagem de O Cacaulista em que o narrador desvela que apesar de todo o cuidado e o esforço do tio – padre José Fernandes –, Miguel sentia-se deslocado em Óbidos e cultivava o sentimento de voltar a morar com a mãe na fazenda São Miguel em Paraná-miri. Atrelado a isso, o narrador atreve-se apontar que “não há prazeres duradouros nesta vida, e mesmo a opa mais bonita e os sinos mais sonoros aborrecem por fim” (SOUSA, 2004, p. 33). Foi essa sensação de desgaste que Miguel experimentou. Com isso, “o pequeno recaiu na tristeza” (SOUSA, 2004, p. 33) e nada conseguia distraí-lo dela. De acordo com Martin Heidegger (2003), quanto mais alegre a alegria, mais pura é a tristeza nela adormecida. Quanto mais profunda a tristeza, mais a alegria que nela repousa nos convoca. Tristeza e alegria tocam e jogam uma com a outra. O jogo que afina tristeza e alegria entre si, aproximando a distância e distanciando a proximidade, é a dor. Por isso, tanto a alegria mais intensa como a tristeza mais profunda são, cada uma a seu modo, dolorosas. (HEIDEGGER, 2003, p. 186). De fato, a tristeza de certa forma encurtou a distância entre o menino e a mãe, conectando-o cada vez mais com a atmosfera da São Miguel. O narrador diz que “dominado pelas saudades do sítio; uma grossa lágrima rolou-lhe pela face morena” (SOUSA, 2004, p. 33-34). A saudade que o pupilo do padre sente é o próprio vigorar do tempo em sua vida, o passado vivido na São Miguel permanece no presente, já que o tempo pretérito continua sendo no tempo e no agora do filho de D. Ana. Segundo Manuel Antônio de Castro (2011), 484
Anais A escuta que se escuta no presente é a voz velada no passado. Tanto é assim que tal voz desvelada não cessa de se tornar passado, a ausência de um presente, não a sua negação. Saudade. Sem presente não há ausência e sem as possibilidades do que se faz passado, sendo, não há presente. Só o acontecer do silêncio possibilita como presente o passado sendo no futuro que não é, mas passa a ser a vigência do próprio passado, no vigorar da unidade realizadora da memória, unidade e possibilidade de patência e ausência, isto é, de passado, presente e futuro. (CASTRO, 2011, p. 258). A saudade de Miguel é o desvelo da voz do passado no presente, do não-mais-sendo e que por isso continua a vigorar por já ter sido em Miguel. Como percebemos na seguinte passagem do romance: Figurava-se longe dali: parecia-lhe ouvir o mugido do gado no curral, o cantar do japiim e o latido alegre do seu cão de caça. Como que sentia a montaria deslizar rápida no rio, impelida pelo seu remo redondo; via perfeitamente boiarem à pequena distância enormes tartarugas e monstruosos peixes-bois (SOUSA, 2004, p. 34, grifo nosso). Assim, o tempo vivido expande-se no menino, a São Miguel permanece com ele no presente, “parecia-lhe ouvir o mugido do gado no curral” (SOUSA, 2004, p. 34) e que é muito mais que um simples parecer, visto que logo em seguida acrescenta o narrador “via perfeitamente boiarem à pequena distância enormes tartarugas e monstruosos peixes-bois” (SOUSA, 2004, p. 34). Então, o passado caminha com o menino, e o futuro que ainda não é; porém, torna-se a vigência do passado7. Por essa razão, Miguel escapou do tio rumo à fazenda, saiu correndo pela rua à frente da igreja, “em breve desapareceu nas matas que mediam entre o cemitério e a cidade” (SOUSA, 2004, p. 34). Sendo assim, a escuta da voz do narrador e do silêncio da narrativa nos permitiu chegar até o protagonista Miguel Faria, uma criança órfã de pai, que de maneira furtiva regressou para Paraná-miri de Cima para reencontrar e morar com a mãe. Miguel transporta-se para a narrativa de O Coronel Sangrado colocando-nos em contato com o prosseguimento de sua travessia enquanto ser humano. As linhas finais de O Cacaulista reportam a partida de Miguel da cidade de Óbidos para Belém e as páginas primeiras de O Coronel Sangrado aludem o seu retorno para Óbidos. 7 Cf. Castro (2011). 485
Anais Um movimento circular de partida e retorno acompanhado pelo olhar sempre atento do narrador inglesiano, que delineia temporalmente o início da narrativa e a volta do filho de D. Ana logo nas primeiras páginas. Sendo assim, o narrador abre o romance revelando que a narrativa inicia na “manhã de um dos últimos dias de maio de 1870” (SOUSA, 2003, p. 27). Miguel está agora com 22 anos de idade. O rapaz fez a viagem de volta para a sua terra no vapor Madeira e quando ancorou no porto de Óbidos, ele andava pelo navio “absorto em melancólicos pensamentos” (SOUSA, 2003, p. 41) e uma impaciência lhe transparecia no rosto. Emmanuel Carneiro Leão (2010) assinala que O Pensamento é um passado tão vigente que sempre está por vir. Qualquer esforço da Filosofia não deixa de ser um esforço do e pelo Pensamento. E por quê? – Porque nenhum esforço filosófico, em qualquer hora, tanto outrora como agora, pode dispensar a força de futuro do Pensamento no passado. (LEÃO, 2010, p. 13). É quase certo que o pensamento de Miguel Faria estava mesmo voltado para o passado, essa é grande possibilidade do pensar humano, como nos alerta Emmanuel Carneiro Leão (2010). Logo, é inegável a comunicação entre passado, presente e futuro. Além, disso fatiar o tempo nessas três dimensões é se afastar mais ainda da possibilidade de compreendê-lo. Como nos adverte Henri Bergson (2010). O tempo pretérito pulsa na vida de Miguel, o tempo para ele é uma questão que o interroga constantemente. A História da Filosofia mostra que o tempo sempre foi uma questão para os homens sendo motivo de muita investigação filosófica. Outrossim, o passado não estando confinado a um eterno esquecimento desvela-se diante de Miguel, ao passo que em seu desvelar sempre resguarda o horizonte de seu desvelo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os romances O Cacaulista e O Coronel Sangrado trazem como personagem central Miguel Faria, que é demasiado instigador ao nosso pensamento, travessia e aprendizagem poética. Miguel possui uma estreita relação com as questões do tempo e da memória, que, desde as primeiras páginas de O Cacaulista, nos lançam um apelo de escuta. Diante disso, 486
Anais percebemos que os romances de Inglês de Sousa cernes do nosso diálogo, quando pesquisados, foram submetidos a estudos rotineiros que consagraram uma persistente maneira de alcançar tais romances. Com isso, enveredamos no sentido contrário dos anos e descobrimos outras janelas de sentidos ainda não pensadas pela crítica. Assim, costuramos especialmente com os pensadores Martin Heidegger, Henri Bergson, Benedito Nunes e Manuel Antônio de Castro um diálogo que permitiu pensar como se manifestam as questões do tempo e da memória em dois romances de Inglês de Sousa. Por outro lado, dado a complexidade do tema, fizemos aqui uma reflexão introdutória da temática. Diante disso, esforçamo-nos para apresentar uma leitura outra dos romances inglesianos. Dentre tantas possíveis, doamo-nos à escuta de duas questões que se entrelaçam na travessia de Miguel: Tempo e Memória. Ademais, a realização da escuta poética das questões que brotam das páginas silenciosas dos romances inglesianos foi a ânsia de aprender a caminhar poeticamente pelos caminhos não só no sentido das obras, mas também no sentido de nosso próprio existir. E no eterno desvelamento e velamento das questões, desbravar caminhos conceituais e classificatórios para oferecermos outras chaves de leitura acerca da produção de Inglês de Sousa. REFERÊNCIAS BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Trad. Paulo Neves. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. CASTRO, Manuel Antônio de. Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011. CASTRO, Manuel Antônio de. “Nada, 5”. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet. Disponível em: <http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Nada>. Acesso em: 2 jul. 2022. CASTRO, Manuel Antônio de. “Tempo, 7”. In: CASTRO, Manuel Antônio de. Dicionário de Poética e Pensamento. Internet. Disponível em: <http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/index.php/Tempo>. Acesso em: 2 jul. 2022. FERREIRA, Marcela. Inglês de Sousa: imprensa, literatura e realismo. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2017. 487
Anais HEIDEGGER, Martin. A caminho da linguagem. Trad. Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2003. HEIDEGGER, Martin. Tempo e ser. In: HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2005. LEÃO, Emmanuel Carneiro. Filosofia grega: uma introdução. Teresópolis: Daimon, 2010. NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Ática, 1988. SOUSA, Inglês de. O Coronel Sangrado (Cenas da vida do Amazonas). 2. ed. Belém: EDUFPA, 2003. SOUSA, Inglês de. O Cacaulista (Cenas da vida do Amazonas). 2. ed. Belém: EDUFPA, 2004. SOUSA, Inglês de. História de um pescador (Cenas da vida do Amazonas). 2. ed. Belém: EDUFPA, 2007. 488
A SUBALTERNIDADE FEMININA NA OBRA PONCIÁ VICÊNCIO, DE CONCEIÇÃO EVARISTO Erica Dayana Monteiro CAVALCANTE (UEPB/PPGLI)1 Michelle Thalyta C. A. PEREIRA (UEPB/GIELLus)2 RESUMO Este trabalho tem como corpus a obra Ponciá Vicêncio (2017) da escritora Conceição Evaristo, romance, cuja temática reflete na realidade subalterna da protagonista em destaque. A escritora apresenta fatos a serem desenvolvidos e misturados com a realidade, utilizando-se da sua “escrivivência” tratando de temas relativos à vida e a representatividade de sua classe, enquanto mulher, negra e escritora, fazendo alusão a escrita e a vivência de suas lutas, que representa também a de outras mulheres, objetivando a sua legitimidade em um ambiente que ainda se diz muito homogêneo em relação aos espaços de fala. Visto que existe uma tradição literária que vai de encontro com a tentativa de mudança social principiada pelas classes subalternas, as quais têm como objetivo permitir a fala transgressora dos subalternos e expressarem a voz de outros indivíduos por meio de seus escritos, implicando a responsabilidade de representação no cenário literário contemporâneo. Sendo assim, para confirmar e reafirmar os pensamentos expressos neste 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI-UEPB- CAPES). E-mail: [email protected]. 2 Integrante do Grupo Interdisciplinar de Estudos Literários Lusófonos – GIELLus/UEPB. Mestre Literatura e Interculturalidade (PPGLI-UEPB). CPF: 105.614.294-48. E-mail: michelly- [email protected]. 489
Anais trabalho utilizaremos os seguintes referenciais teóricos: Bell Hooks (2014), Gayatry Spivak (2010), Michelle Perrot (2007) e Regina Dalcastagnnè (2012), e entre outros aportes, a fim de tratar dos impasses desta ciência, em especial dos marginalizados no campo literário. Palavras-chave: Feminino. Subalternidade. Contemporaneidade. ABSTRACT This work has as its corpus the work Ponciá Vicêncio (2017) by the writer Conceição Evaristo, a novel, whose theme reflects on the subaltern reality of the featured protagonist. The writer presents facts to be developed and mixed with reality, using her \"writing\" dealing with topics related to life and the representation of her class, as a woman, black and writer, alluding to writing and the experience of her struggles, which also represents that of other women, aiming at their legitimacy in an environment that still claims to be very homogeneous in relation to speech spaces. Since there is a literary tradition that goes against the attempt of social change initiated by the subaltern classes, which aim to allow the transgressive speech of subalterns and express the voice of other individuals through their writings, implying the responsibility of representation in the contemporary literary scene. Therefore, to confirm and reaffirm the thoughts expressed in this work, we will use the following theoretical references: Bell Hooks (2014), Gayatry Spivak (2010), Michelle Perrot (2007) and Regina Dalcastagnnè (2012), and among other contributions, in order to to deal with the impasses of this science, especially those marginalized in the literary field. Keywords: Feminine. Subalternity. Contemporaneity. Introdução O presente artigo terá como principal objetivo o estudo da subalternidade feminina através da observação do lugar de fala do sujeito feminino e suas possibilidades de ser ouvida (sua representação), utilizando-se ainda do contexto histórico ligado as origens de escravos e africanos, por meio das implicações relativas à descendência de Ponciá e sua família, em Evaristo (2017). A obra literária contemporânea Ponciá Vicêncio, da escritora mineira, Conceição Evaristo, traz em seu contexto situações conflituosas por meio do contexto da desfiguração identitária, uma vez que ela e sua família não utilizam o sobrenome real da família a qual pertencem, levando-as a utilizarem o sobrenome do ex-dono das terras onde morava juntamente com toda sua família, os quais antes da libertação dos escravos eram trabalhadores deste tal senhor, dono de terras, cujo sobrenome os acompanhava como se ainda fossem parte da propriedade. Situação que causava grande desconforto à Ponciá, pois quando a chamavam pelo nome, ela não se reconhecia, era como se ao chamarem o seu nome estivessem falando com outra pessoa. 490
Anais Outro ponto a ser estudado neste trabalho é a relação da escrita feminina e o estado de subalternidade, a legitimidade do dizível na literatura brasileira a partir de novas vozes, em especial daqueles que buscam falar sobre si e visam também a autenticidade daquilo que dizem/ escrevem, incluindo os que outrora não eram valorizados por não corresponderem a um perfil estereotipado, por meio de um enquadramento social privilegiado, hierarquizado, esteticamente definido de como se deve fazer ou dizer para se legitimar, de modo confortável na literatura a que pertencem. Sendo assim, no presente artigo traremos uma breve abordagem temática baseando- nos na obra e na pessoa de Conceição Evaristo, tomando os textos pertencentes à crítica literária anteriormente citados no resumo, levando o leitor a refletir sobre a autorrepresentação subalterna atual e indiferença reproduzida por alguns grupos e classes que põem em obscuridade a fala e a representatividade do sujeito subalterno, assim como a voz, e a sua legitimidade na sociedade por meio dos textos literários. Por isso serão observados alguns dados passíveis de reflexão sobre o julgo em relação a valoração de determinadas obras literárias. Ponciá: Histórias e Desafios O romance Ponciá Vicêncio, traz em seu enredo a história de Ponciá Vicêncio e sua família descendente de negros escravos que desde o tempo de seus avós viviam nas terras do coronel Vicêncio que fora também dono de suas bisavós. A partir destes fatos iniciais a trama se desenvolve acerca dos acontecimentos referentes a escravidão e a exploração do trabalho na zona rural, de modo que Ponciá e sua família mesmo não estando mais na condição de escravos, continuavam cultivando a terra, trabalhando para aqueles que um dia fora o dono de seus parentes, fato que lhes causava desconforto: Se eram livres por que continuavam ali? Por que, então, tantos e tantas negras na senzala? Por que todos não se arribavam à procura de outros trabalhos? (EVARISTO, 2017, p.17). Havia em todo aquele ambiente uma relação de subserviência e semiescravidão que os envolvia, e despertava na protagonista o desejo de sair do povoado para a cidade, pois: Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De ver a terra dos negros coberta de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e, depois, a maior parte das 491
Anais colheitas serem entregues aos coronéis. Cansada da luta insana, sem glória, a que todos se entregavam para amanhecer cada dia mais pobres, enquanto alguns conseguiam enriquecer a todos os dias. (EVARISTO, 2017, p. 30). Afetando assim, sua dignidade enquanto ser humano simplesmente pelo fato de serem negros abolidos da escravidão propriamente dita, inseridos em outros sistemas de escravidão que lhes era imposto devido a condição social e a falta de opção para seguir e contemplar a liberdade que outrora só foi instituída no papel, mas que os leva a outras situações desiguais e humilhantes, permeada por grupos distintos e resistentes. Para Ponciá, era preciso desbravar novos mundos, no caso, a cidade grande, em busca de novas oportunidades: “Ela acreditava que poderia traçar outros caminhos, inventar uma vida nova”. (EVARISTO, 2017, p. 30). Ponciá e sua família, em especial seu pai e seu irmão trabalhavam na roça: “A mãe da soleira da porta abençoava o filho e desejava em voz alta que eles seguissem a caminhada com Deus.” (EVARISTO, 2017, p.25). Submissos e manipulados pela classe dominante, sujeitos a condições limitadas de crescimento (se é que existiam), funcionando assim como máquinas, exercendo atividades na pesada labuta, quase não ficavam em casa com a família, de modo que: Ponciá Vicêncio se lembrava pouco do pai. O homem não parava em casa. Vivia constantemente no trabalho da roça, nas terras dos brancos. Nem tempo para ficar com a mulher e os filhos o homem tinha. Quando não era tempo de semear, era o tempo de colheita, e ele passava o tempo todo lá na fazenda. (EVARISTO, 2017, p.16). . E desse modo se configurava a relação familiar relativa ao trabalho e a condição subserviente que se instalava naquele contexto social baseado numa hegemonia preponderante, por meio de direitos negados, desconfortos e repressão do sujeito em virtude da sua condição subalterna, sendo que: A reprodução da força de trabalho requer não apenas uma reprodução de suas habilidades, mas também e ao mesmo tempo, uma reprodução de sua submissão à ideologia dominante por parte dos trabalhadores, e uma produtividade de manipular a ideologia dominante corretamente por parte dos agentes de exploração e repressão, de modo que eles também venham prover preponderância da classe dominante [...] (SPIVAK, 2010, p.33). 492
Anais A obra mostra justamente este caráter de exibir a “reprodução da força do trabalho” e principalmente daqueles de classes mais baixas (classes minoritárias), que não se resume apenas ao trabalho no aspecto rural, mas também no aspecto urbano, consequência da “desterritorialização do indivíduo”, a partir das funções e profissões desempenhadas no setor urbano, como por exemplo, o serviço das empregadas domésticas, muitas vezes caracterizado pela falta de letramento, decorrente do analfabetismo dos que vivem em regiões periféricas, como se deu com Ponciá ao mudar-se para a cidade em busca da mudança de vida, mas, infelizmente continuou em sua subalternidade por meio de sua classe enquanto negra e iletrada, já que o território onde ela vivia era evocado por outros saberes considerados necessários, excluindo ou diminuindo a necessidade do ato de ler, pois para os que habitavam aquele povoado: O importante na roça era conhecer as fases da lua, o tempo do plantio e de colheita, o tempo das águas e das secas. A garrafada para o mal da pele, do estomago, do intestino e para as excelências das mulheres. Saber a benzedura para o cobreiro, para o osso quebrado ou rendido, para o vento virado das crianças. O saber na roça difere em tudo do da cidade. (EVARISTO, 2017, p.25). Criando uma falsa necessidade preexistente de outros saberes, como o da leitura. Rareava a sua importância nos povoados e comunidade de negros escravos. Poucos indivíduos tinham o conhecimento das letras, e quando tinham, apresentavam as suas defasagens, ora conheciam apenas as letras, ora formavam poucas palavras e em pouquíssimos casos liam estruturas maiores. Com Ponciá, a situação não difere, a mesma aprendeu a desasnar por meio da presença de alguns missionários que andavam por aquela localidade com o objetivo de montar pequenas escolas e ensinar o povo a ler. E assim se fez, com o consentimento de sua mãe a menina buscou o conhecimento das letras: Ponciá Vicêncio vencia as dificuldades. Aprendeu o abecedário, conhecia as letras em qualquer lugar. Quando o pai chegava, ficavam juntos lendo as letras na cartilha. Enquanto o saber do pai, em matéria de leitura, se estacionara no reconhecer das letras, o da menina ia além. Começou a formar as sílabas e, quando já estava formando as palavras, a missão acabou. (EVARISTO, 2017, p. 26). A moça acreditava que: “Haveria, sim, de traçar o seu destino.” (EVARISTO, 2017, p.33), mesmo sabendo de outros exemplos negativos acerca dos que ousaram sair do 493
Anais povoado para viver na cidade, de modo que: “A vida se tornava pior do que na roça.” (EVARISTO, 2017, p. 33). Ponciá exerce um papel subalterno, no contexto da obra, além de fazer parte de um grupo minoritário, a qual passava por incompreensíveis batalhas sociais, desafios de quem “Chegou ali sem eira nem beira”. (EVARISTO, 2017, p. 59) em busca da tão sonhada mudança de vida e da legitimação de suas lutas, por meio do trabalho. Assim como Ponciá, Luandi, irmão da protagonista também se aventurou na cidade grande, sem saber ler, apenas com a coragem de trabalhar e conhecer o novo, de mostrar ao povoado quando voltasse que o negro também tem suas possibilidades de crescimento, de encontrar ou de redescobrir seu lugar no mundo. Ao chegar à cidade ele conseguiu trabalho na parte da limpeza na delegacia local e aos poucos ia aprendendo a escrever seu nome e a ler algumas palavras. Mesmo assim, tanto para Ponciá quanto para seu irmão: A vida escrava continuava até os dias de hoje. Sim, ela era escrava também. Escrava de uma condição de vida que se repetia. Escrava do desespero, da falta de esperança, da impossibilidade de travar novas batalhas, de organizar novos quilombos, de inventar outra e nova vida. (EVARISTO, 2017, p.72). Eles percebiam, que, mesmo não morando mais no vilarejo e não mais cultivando a terra eles continuavam submissos ao poderio hegemônico dos brancos que eram caracterizados como seus patrões. Viviam a subalternidade urbana e percebendo que para viver na cidade é importante muito mais que saber escrever o nome: Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso ajudar construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia. (EVARISTO, 2017, p.110). Percebe-se, então, a marginalização do indivíduo por meio da linha tênue entre passado e futuro, marcados pelo sentimento de subalternidade advindo de outras gerações e que se permeava na geração de Ponciá e de seu irmão, mesmo com a tentativa de uma nova perspectiva de vida, saindo da localidade em que foram criados juntos aos seus familiares e perseguidos pela ausência do ato de ouvir/ serem ouvidos e percebidos em contextos outros, marcados pela subserviência, extrema injustiça e desamparo social. Portanto, a partir da obra de Conceição Evaristo, podemos observar a condição humana e subalterna do indivíduo e os territórios por onde ele habita ou perpassa, os locais de fala e se é que este indivíduo caracterizado como subalterno consegue falar e ser ouvido, 494
Anais pondo em questão a valorização ou a desvalorização do mesmo, onde ele pode ou não habitar a partir de seus saberes e de sua cultura, por meio da diversidade cultural existente, que integra a expressiva pluralidade discursiva de grupos subalternos. De maneira análoga ao que acontece na obra de Evaristo (2017) a literatura brasileira contemporânea no que diz respeito ao universo dos produtores de textos literários sejam eles homens ou mulheres, existe um “território contestado” Dalcastagnè (2012) que precisa ser democratizado para atender as necessidades sociais dos indivíduos serem ouvidos e representados por sua própria fala, mesmo que para isso o indivíduo tenha de agir a partir da diferença com vistas a legitimação discursiva. Vale ressaltar, que Evaristo mesmo conseguindo publicar suas obras na contemporaneidade, “Isso não quer dizer que esses espaços sejam valorados da mesma forma”. Dalcastagnè (2012).Evaristo, no decorrer da sua história de mulher, negra e escritora percebe as dificuldades enfrentadas no ato da representação escrita, quando esta foge à regra de estereótipos implantados na identidade nacional, “...quando diferentes grupos sociais procuram se apropriar de seus recursos, ” [...], por meio da “busca de espaço – e de poder, o poder de falar com legitimidade ou de legitimar aquele que fala”. (DALCASTAGNÈ, 2012, p.7). De modo, que temos em nossa literatura brasileira contemporânea uma grande parte das publicações feita por homens, “o perfil do escritor brasileiro. Ele é homem branco, aproximando-se ou já entrando na meia idade, com diploma superior, morando no eixo Rio- São Paulo.” Dalcastagnè (2012, p.162), enquanto que suas criações, suas personagens são representadas da seguinte forma: “Os brancos somam quase quatro quintos das personagens, com uma frequência mais de dez vezes maior que a categoria seguinte (negros) ”Dalcastagnè (2012, p.173), caracterizando o monopólio no ato de escrever sobre si e sobre o outro, influenciando a caracterização de suas personagens, criando um ato constrangedor na tentativa de representar o outro, resultando inclusive numa atitude repressora, de modo que a literatura é um espaço que pode ser habitado por todos, para que haja interação entre os saberes e culturas, universo plural ao qual todos devem de acordo com a suas lutas se autorrepresentarem, pois veem o mundo cada qual a seu modo: Assim, mulheres e homens, trabalhadores e patrões, velhos e moços, negros e brancos, portadores ou não de deficiências, moradores do campo e da cidade, homossexuais e heterossexuais vão ver e expressar o mundo de diferentes maneiras. (DALCASTAGNÈ, 2012, p.20). 495
Anais Reproduzindo, assim o deslocamento da classe proletária, e todo o seu movimento de independência histórica no ato da fala e seus espaços de representação, criando novas possibilidades por meio do campo literário, “Quebrando o silencio dos marginalizados”, Dalcastagnè (2012, p.17). Promovendo a autenticidade discursiva daqueles que necessitam ser ouvidos, excluindo a superioridade entre “o intelectual e a massa”. Voltando à obra de Evaristo, tratando do “representar-se” o campo literário contemporâneo tem uma de suas características voltadas para “autora/autor e obra”, referenciadas pela mistura entre escritor (a) e personagem, contemplando sua existência a de sua criação “confundindo ficção e realidade” Dalcastagnè (2012, p.106), como acontece na relação entre Conceição Evaristo e Ponciá Vicêncio (criador x criatura), como afirma em seu prefácio: Às vezes, não poucas, o choro da personagem se confundia com o meu, no ato da escrita. Por isso, quando uma leitora ou um leitor vem me dizer do engasgo que sente, ao ler determinadas passagens do livro, apenas respondo que o engasgo é nosso. A nossa afinidade (Ponciá e eu) é tão grande, que, apesar de nossas histórias diferenciadas, muitas vezes meu nome é trocado pelo dela. Recebo o nome da personagem, de bom grado. Na con(fusão) já me pediram autógrafo, me abordando carinhosamente por Ponciá Evaristo e distraída quase assinei, como se eu fosse a moça, ou como se a moça fosse eu. (EVARISTO, 2017, p. 7- 8). Diferentemente do que ocorre na tradição literária, pois o indivíduo narrador “[...] não nos daria espaço para questionamentos. Até porque, sua presença no texto não estava em questão. ” Dalcastagnè (2012, p.93), confirmando assim, a diferenciação entre tradição x modernidade, refletida na contemporaneidade por meio da atitude narrativa de representar a realidade da sua classe. Onde os negros têm de falar sobre si, os brancos sobre eles mesmos e assim por diante, cada qual com a sua peculiaridade, credibilizando o ato da fala, demarcando a identidade de sua classe, “que penetram no texto para se justificar diante de suas criaturas” Dalcastagnè (2012, p.109) como acontece na obra em estudo, quando a personagem e a escritora se misturam, para compor a existência de uma classe. Percebemos que os dados a respeito da postura feminina no campo das letras, no caminho da escrita, travam uma luta constante por espaços para discutir a importância e a valorização escrita de minorias. A literatura contemporânea deixa desejar a notabilidade de narradoras e personagens em posições privilegiadas, tirando-as apenas do aspecto 496
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