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ANAIS COLINT Definitivo

Published by biblioteca, 2022-11-14 14:14:28

Description: ANAIS COLINT Definitivo

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Anais prescruta duas possibilidades: a justaposição da literalidade como um estado transitório da palavra, utilizado em situações de imediaticidade; a batalha vicejante para que o universo da criação literária possa ser um rio caudaloso, onde a compreensão seja atravessada por leituras outras, dinâmicas simbólicas sinestésicas, tornando plenitude o que é apenas interlocução. Nosso hábito preguiçoso é generalizar. Vamos descobrir que, assim como o átomo – uma vez aberto – contém um universo, do mesmo modo, se nos demorarmos amorosamente no interior de uma frase, encontraremos em cada palavra e em cada sílaba ressonâncias que nunca são duas vezes iguais. (BROOK, 2019, p. 15). Será essa proposição um absurdo desmedido, fruto de uma mente alucinada que não respeita o já consagrado? Será a mera conjectura de um diletante que deseja uma importância que não possui? Precisamos, verdadeiramente, de uma preocupação que aparenta uma desimportância utilitária para o desenrolar da vida cotidiana? E, mesmo que todas essas questões sejam superadas, como é possível essa libertação sem cairmos na desorganização sistemática das comunicações? Mergulhando em correnteza acalentadora Comecemos a entrada nesse rio pela proposição de que a literalidade é um estado transitório dos discursos. Podemos afirmar, sem corrermos o risco de uma armadilha analítica, que o pergolado sentido literal das palavras, mesmo em seu estado mais congelante, admite em seu bojo mais de uma possibilidade de significado. Basta pensarmos que muitas palavras são polissêmicas. Em verdade, todas as palavras possuem potencial polissêmico. A polissemia das palavras é um fenômeno muito fluido… As diversas acepções das palavras vêm e vão, de acordo com as dinâmicas culturais da sociedade... “Uma mesma palavra pode receber diferentes acepções em função do contexto, e algumas dessas acepções podem se congelar em sentidos polissêmicos” (MOURA, 2008, p. 187). A polissemia das palavras permite-nos arriscar um mergulho, talvez blasfemo, para afirmar que mesmo no universo da literalidade, as palavras podem ter mais de um significado, relacionado ao contexto da construção discursiva. Isso reforça a essência metafórica de todas as palavras e nos brinda com uma literalidade mais alargada, pois pertencente a um fenômeno de perene reconstrução simbólica. 147

Anais Se pensarmos o discurso como o espaço onde os sentidos se produzem, reverberando o que já foi sócio e linguisticamente reiterado, e, ao mesmo tempo, revertendo, estendendo ou até mesmo desconstruindo essas reiterações, num jogo articulatório entre a cognição, a língua e o uso, podemos tratar a metáfora como um fenômeno que evidencia essa complexa teia que forma e é formada por novos (mas nunca totalmente inéditos) e velhos (mas sempre muito vivos) sentidos. (VEREZA, 2010, p. 211). Para desfazer o nó que parece estar nos envolvendo nessa construção discursiva meio caótica, reforçando, ainda, o caráter necessariamente padronizador – será? – do sentido literal das palavras, substituiremos esse conceito pelas ideias de sentido imediato e de sentido consagrado, ambos navegando na pretensa calmaria da dominância dos significados discursivos. O sentido imediato é aquele que pede pouca mediação. Ao ouvirmos – ou lermos – uma palavra, conseguimos criar sentido para ela sem a necessidade de muitas associações mentais, permitindo-nos uma construção de significação muito rápida. O sentido consagrado é aquele que já recebeu uma validação pública, seja na ordem histórica, seja na ordem social ou qualquer outra ordem que qualquer leitora ou leitor possa imaginar. A palavra já faz parte do nosso arcabouço imaginário, pois os possíveis sentidos são plantados, numa escala industrial, em nossas referências discursivas. Pela possibilidade plural do literal, conforme fartamente martelado à guisa de um diletante nietzschiano, assim como pelo quadro pintado em cores vivas da metaforicidade imanente nas palavras, não falamos mais em sentidos das palavras, mas em estados de sentidos que as palavras podem assumir nas diversas construções discursivas. A ideia de estados de sentidos coloca a palavra em um fluir permanente, trazendo uma possibilidade mais dinâmica do uso das palavras. O mergulho nesse rio é cada vez mais profundo e nos coloca diante de um relativamente assustador – e, por isso mesmo, maravilhoso – vazio de controle, deixando-nos à deriva nessa água... “O vazio é um desafio desconfortável para o diretor e para o escritor, bem como para o ator. Pode um espaço ser deixado aberto, para além de tudo o que a gente pensa, acredita e deseja afirmar” (BROOK, 2019, p. 46). Nesse espaço aberto, que em verdade é o fluir constante das águas, vamos nadar nos estados de sentidos, cada qual com sua força de correnteza, proporcionando possibilidades múltiplas de mergulhos. E todos esses estados de sentidos têm na metáfora a sua essência primeva, sendo que a intensificação ou o abrandamento da emanação metafórica de cada palavra e de cada discurso localizam cada um deles. Vale ressaltar que usamos os estados de sentidos tanto para referenciar palavras (entes travessos basilares para as construções discursivas), como para os discursos (reunião desses entes para agenciamentos de 148

Anais elaborações), pois ambas as presenças podem ser atravessadas por esses estados. Da mesma forma, esses estados estão presentes tanto no ato da construção dos discursos como no ato da fruição, sendo todas as pessoas agentes comuns de produção desses estados. As palavras são notas musicais para os conceitos, mas os próprios conceitos são hieróglifos para certas sensações que retornam sempre, sãs ou em grupo, como grupos de sensações. Não basta para a compreensão mútua usar as palavras, é preciso adequá-las para aquela determinada espécie de acontecimentos interiores, enfim é necessária uma experiência comum. (NIETZSCHE, 2001, p. 208). O estado pré-metafórico de sentidos é aquele no qual a palavra é usada em seu sentido imediato ou consagrado. Mesmo quando tratamos das condições polissêmicas da palavra. É um estado onde a produção de sentidos está atrelada ao coletivo, ao chamado senso comum, aos padrões culturais. É um estado de águas calmas, onde o mergulho não se faz necessário e podemos lidar brandamente com as palavras, molhando-nos apenas para que se estabeleça a sensação de unidade úmida entre pessoas. É nesse estado em que se encontra a maioria dos eventos de comunicação do nosso cotidiano. O estado pré-metafórico lida com a chamada criatividade primária. É uma criatividade que não passa por uma mediação individual. A pessoa lida diretamente com os padrões. Importante dizermos que a criatividade primária não representa nenhuma espécie de criatividade menor ou menos importante. Apenas refere-se ao ato criativo – pois é disso que tratamos na produção de discursos – que consegue produzir sentido com uma mediação. E essa mediação, de forma geral, atende a um padrão estabelecido, uma vez que a significação imediata ou consagrada é a primeira a nos chegar. Ficamos satisfeitos, boiando na calmaria de uma correnteza delicada, quase inexistente. E esse boiar nos deixa aconchegados em nosso território de segurança, que partilhamos social e culturalmente. A forma visível é cavada pela escrita, arada pelas palavras que agem sobre ela do interior e, conjurando a presença imóvel, ambígua, sem nome, fazem emergir a rede das significações que a batizam, a determinam, a fixam no universo dos discursos. (FOUCAULT, 1988, p. 23). Adentrando a uma correnteza um pouco mais forte, mas ainda com os pés no fundo do rio, brincamos com o estado metafórico de sentidos, aquele no qual a palavra é usada de forma a possibilitar a entrada em outros universos de sentidos. Com isso, a construção de sentidos é mais individualizada, escapando do senso comum. No entanto, não é uma 149

Anais construção totalmente livre, pois há uma linha tênue, difusa que liga esse processo de construção aos sentidos imediatos ou consagrados. Nadamos em polissemias, catacreses e metonímias, numa coreografia pleonasticamente hiperbólica, que nos enchem de ares eufemistas e antitéticos. Um nadar um pouco mais despreocupado e, talvez, um pouco mais irresponsável. No entanto, um nadar dançante que nos leva a outra dimensão de possibilidades discursivas. O estado metafórico lida com a chamada criatividade secundária ou relacional. O sentido não vem sozinho. Ele é tecido em uma trama de conexões, que se relacionam para a construção de sentidos. Porém, essa trama é limitada pelo sentido imediato ou consagrado. Podemos colocar os pés no fundo do rio no momento em que quisermos, como raízes a nos manterem em uma margem de segurança bastante apaziguadora. E essa segurança nos leva ao risco de alguns mergulhos. Mais uma vez, a criatividade secundária não tem nenhum caráter seletivo, mostrando que o ato criativo precisa de, pelo menos, duas mediações para alguma construção de sentido. Essa segunda medição possui um caráter mais individualizado, mesmo que ainda tenha alguma relação, mesmo que tênue, com os sentidos imediatos ou consagrados. Os processos de comunicação cotidiana, pelos quais fincamos os pés nas margens da pré-metáfora, algumas vezes apelam ao estado metafórico, seja por reivindicar, mesmo que sem intenção, a polissemia de algumas palavras, seja pela intenção de dar uma marca mais pessoal aos discursos, mesmo que essa intenção seja inconsciente. Também no estado metafórico podemos abrir as portas da criação literária, o que não significa que essa porta já não estivesse aberta no estado pré-metafórico. Entretanto, é no universo das analogias, espaço próprio das metáforas, que a criação literária mergulha sua exuberante presença. E as analogias são galhos entrelaçados que, ao mesmo tempo em que se deixam balançar ao vento, mantêm-se ligados aos troncos e às raízes... “O espaço das analogias é, no fundo, um espaço de irradiação. Por todos os lados, o homem é por ele envolvido; mas esse mesmo homem, inversamente, transmite as semelhanças que recebe do mundo” (FOUCAULT, 1999, p. 31). Mergulhando sem medo e nos deixando levar pela correnteza mais potente, dancemos o estado pós-metafórico de sentidos, aquele no qual a palavra é usada de forma completamente livre, sem nenhum pressuposto a mediar o processo de construção de sentidos. A estruturação do discurso não segue nenhum padrão e qualquer tentativa de abordagem a partir dos sentidos imediatos ou consagrados é inócua. O discurso é de tal 150

Anais forma aberto que a relação com ele se estabelece em outras bases, impossíveis de serem pré- elaboradas. Cada operação discursiva é única, movida por impulsos que ultrapassam a consciência de si mesmos. Não existe nenhuma necessidade comunicativa, apenas o desejo expressivo, sem ponto de partida, nem porto de chegada, nem caminho estabelecido de jornada. Apenas o fluxo discursivo, movido por pulsões incontroláveis que só querem existir no partilhar simbólico das experiências. Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 24). O estado pós-metafórico lida com a chamada criatividade terciária ou rizomática. O sentido não vem de lugar nenhum. O processo de construção de sentido é de tal forma individualizado, que mesmo uma única pessoa pode ir para direções completamente diferentes a cada contato com o texto ou mesmo durante um único processo. Além disso, esse sentido construído se dilui completamente quando tenta sentar-se no trono da consciência, pois o seu lugar sobrevivente é justamente o fluxo rizomático do desejo... “Deixarão que vocês vivam e falem, com a condição de impedir qualquer saída. Quando um rizoma é fechado, arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque é sempre por rizoma que o desejo se move e produz” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 23). A dificuldade – além da contradição – em explicar o estado pós-metafórico faz com que exaltemos a sonoridade, o colorido e as inúmeras possibilidades sinestésicas das palavras. Enquanto brindamos com os pés fincados no leito discursivo da margem pré- metafórica, bem como enquanto nadamos mansamente nas águas ajoelhadas da metáfora, lidaremos com as palavras e os discursos de forma consciente, sempre em busca de uma pretensa comunicação, que em verdade, na maioria das vezes, serve apenas como reprodução superficial e padronizada de experiências que, ao vestirem falsamente a roupagem da individualidade, criam ainda uma ilusória ideia de comunhão, pois o compartilhamento se dá justamente no esvaziar das individualidades presentes. Mergulhemos, então, na correnteza texturizada da pós-metáfora, onde os nossos pés não servem de suporte, pois não alcançamos o fundo controlável dos discursos. Resta-nos, com isso, o abandono aos sabores e aromas da experiência discursiva plena, para sentirmos 151

Anais o paroxismo da partilha vivencial! “Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível” (FOUCAULT, 1996, p. 5). A comunicação cotidiana – talvez – não permite esse correr solto das águas, essa livre manifestação rizomática dos discursos, pois ela se alimenta mais da compreensão de mensagens do que do compartilhar de experiências. E essa compreensão precisa ser a mais imediata possível e a mais padronizada, em nome da evolução dinâmica do cotidiano. Existem alguns espaços para as manifestações metafóricas, mesmo que parcos e pouco frequentes. O que propomos, a partir dessa constatação, é que os processos literários possam agenciar esses mergulhos. O universo da criação literária não pode ser contaminado pela padronização e pelo imediatismo de mensagens prontas. Tanto as pessoas que escrevem como as pessoas que leem (ou as pessoas que falam e as que escutam, em processos literários desenhados na oralidade), devem permitir-se o movimento pelos estados de sentidos, numa travessia constante desse rio discursivo, a fim de aproveitar sempre o melhor que essas águas podem oferecer. Encerramento metapropositivo A imagem de um rio, aqui desenhada talvez com contornos difusos, foi a maneira encontrada para unir forma e conteúdo em uma dança fluída, sinuosa e, por isso mesmo, mais viva. As duas margens igualmente pré-metafóricas e sua única correnteza central pós- metafórica eliminam a possibilidade de uma abordagem sequencial e evolutiva dos estados de sentidos, abordagem essa totalmente desproposital em relação ao que pretendemos enquanto proposição. Queremos sentir todas as águas, desde as mais calmas até as mais caudalosas e, mais do que isso, queremos nadar em todas elas, atravessando esse rio e sendo atravessados por ele para, no abandono ao fluxo maravilhoso das dinâmicas – essas sim permanentes – dos discursos, possamos experimentar a plenitude das experiências discursivas. Que essas águas, turbulentas e tranquilas, nos venham em forma de criações literárias mais livres, já que sonhar com esses mergulhos em processos de comunicação cotidiana seria mais um delírio utópico desse pretenso proponente! Que consigamos, ao menos nas experiências literárias, seja na condição de autoria, seja na condição de leitura, mergulhar sem medo! 152

Anais Quando deixamos o nosso discurso seguir livre a sua dinâmica essencial, naturalmente ele vai atravessar os diversos estados de sentidos, sem nenhuma direção definida e sem um sentido único. O que precisamos é nos deixar levar por essa dinâmica, sem medo e sem freio, mergulhando assim nas águas correntes dos discursos, banhando-nos na plenitude da experiência. Não existe uma fórmula, mas existe o princípio de abertura a essas dinâmicas, que chamamos de princípio travesso (duplo sentido da palavra) ... “Você pode sentir que começou a permitir que as coisas cheguem até você, que cessou de perguntar o que elas significam e que, enquanto aprendeu a permitir que elas apareçam, você se torna parte delas” (GUMBRECHT, 2016, p. 39). OS LAGOS REFERENCIAIS: BROOK, Peter. Na ponta da língua: reflexões sobre linguagem e sentido. São Paulo: Edições Sesc, 2019. 95 p. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1995. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1995. 94 p. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. 79 p. _______. Isto não é um cachimbo. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1988. 90 p. _______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1999. 541 p. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Serenidade, presença e poesia. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2016. 179 p. LIMA, Paula Lenz Costa. Metáfora e Linguagem. In: FELTES, H.P.M. (Org.) Produção de sentido: estudos transdisciplinares. Caxias do Sul: Annablume, Nova Prova, Educs, 2003. p. 155-180. MANGUEL, Alberto. O leitor como metáfora: a torre e a traça. São Paulo: Edições Sesc, 2017. 147 p. MARCUSCHI, Luiz Antônio. 2000. A Propósito da Metáfora. Revista de Estudos Linguísticos, Belo Horizonte, v.9, n.1, 2000. p. 71-89. DOI:10.17851/2237-2083.9.1.31-70. MOURA, Heronides. Desfazendo dicotomias em torno da metáfora. Revista de Estudos Linguísticos, Belo Horizonte, v. 16, n. 1, p. 179-200, jan./jun. 2008. DOI: 10.17851/2237- 2083.16.1.179-200 NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal ou prelúdio de uma filosofia do futuro. Curitiba: Editora Hemus,2001. 230 p. 153

Anais VEREZA, Solange C. O lócus da metáfora: linguagem, pensamento e discurso. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras e Cognição, n. 41, p. 199-212, 2010. 154

O INSÓLITO FICCIONAL EM BORGES: UM ESTUDO SOBRE O MILAGRE SECRETO E A CRENÇA NO SOBRENATURAL Mariany Lopes ALMEIDA (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)1 Elizete Albina FERREIRA (Pontifícia Universidade Católica de Goiás)2 RESUMO Jaromir Hladik é um escritor judeu preso e acusado de algo impossível de fugir: ser judeu em terras alemãs nazistas. O escritor, que desafia a lógica temporal em suas obras, agora é o protagonista de sonhos que perturbam a racionalidade do tempo e da existência do sobrenatural. Em sua última súplica, Hladik pede um ano de vida ao divino, porém, o que ganha são apenas dois minutos. O evento narrado no conto parece claro e sem maiores questões, mas, em suas entrelinhas, podemos notar o nascimento de uma hesitação: qual o tempo real concedido ao escritor? Um ano? ou dois minutos? Nestas condições, propõe-se um estudo sobre o insólito presente no conto O milagre secreto, da coletânea de contos Ficções (1944), do escritor Jorge Luis Borges, sob a perspectiva da literatura fantástica e seus subgêneros. Segundo Tzvetan Todorov (2010), em Introdução à Literatura Fantástica, o 1 Aluna de graduação em Letras – língua portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás, professora do Programa de Pós- Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. E-mail: [email protected] 155

Anais insólito se constrói enquanto uma qualidade do fantástico-estranho, levando o leitor a acreditar na presença de leis que fogem da naturalidade dentro da narrativa. Dessa forma, será necessário utilizar como suporte teórico autores que se debruçaram sobre o estudo do fantástico, porque entende-se que os estudos ligados à Literatura Fantástica e seus diversos subgêneros são imprescindíveis para compreender a riqueza da obra de Borges. Esta discussão se organizará em duas partes: a primeira de cunho teórico e descritivo, apresentando as teorias que fundamentam a pesquisa e, no segundo momento, o foco será discutir como tais teorias podem ser encontradas na narrativa ficcional de Borges. Palavras-chave: Literatura Fantástica. Insólito. Jorge Luis Borges. Sobrenatural. ABSTRACT Jaromir Hladik is a Jewish writer jailed and accused of something impossible to escape: being a Jew in Nazi German lands. The writer, who challenges temporal logic in his works, is now the protagonist of dreams that deranges rationality of time existence of the supernatural. The event narrated in the tale seems clear and without major questions, but in the subtext, we can notice the birth of a hesitation. In these conditions, it is proposed a study on the uncommon present in the short story The secret miracle, from the collection of short stories Fictions (1944), by the writer Jorge Luis Borges, from the perspective of fantastic literature and its subgenres. According to Tzvetan Todorov (2010), in Introduction to Fantastic Literature, the unusual is constructed as a quality of the fantastic-strange, leading the reader to believe in the presence of laws that are beyond natural within the narrative. Therefore, it is necessary to use as theoretical support authors who focused on the study of the fantastic, because it is given for granted that studies related to Fantastic Literature and its various subgenres are essential to understand the richness of Borges' work. This discussion will be organized in two parts: the first it is a theoretical descriptive nature, presenting the theories that underlie the research and, in the second moment, the focus will be to discuss how such theories can be found in Borges' fictional narrative. KEYWORDS: Fantastic Literature. Unusual. Jorge Luis Borges. Supernatural. Considerações iniciais É da natureza humana tender a acreditar em seres ou explicações que fogem da naturalidade na qual estamos inseridos. Podemos perceber no decorrer da historiografia diversas manifestações de crenças no sobrenatural: a Grécia trouxe uma vasta contribuição com mitos em deuses com poderes que regem a Humanidade; o povo cristão, por acreditar em um Deus único e soberano que, sozinho, criou todo o universo e os que nele habita; na idade média, acreditou-se em seres humanos bruxos capazes de concretizar magias através de barganhas feitas com seres ilógicos. Não obstante, essa crença em coisas que extrapolam o meio ao qual vivemos refletiu na Literatura. Tzvetan Todorov (2010, p. 30) afirma que estamos no âmago do fantástico na 156

Anais medida em que nos deparamos com personagens ou eventos que não têm explicação familiar. Desta forma, analisaremos o conto “O Milagre Secreto” a partir da perspectiva fantástica e da sua relação com o insólito ficcional. O insólito ficcional é um subgênero – ainda em discussão quanto a sua categorização – e é a expressão de eventos anormais ou irregulares dentro da narrativa. Se o insólito não decorre normalmente da ordem regular das coisas, senão que é aquilo que não é característico ou próprio de acontecer, bem como não é peculiar nem presumível nem provável, pode ser equiparado ao sobrenatural e ao extraordinário, ou seja, àquilo que foge do usual ou do previsto, que é fora do comum, não é regular, é raro, excepcional, estranho, esquisito, inacreditável, inabitual, inusual, imprevisto, maravilhoso. (GARCIA, 20014, p. 20). Assim, o insólito se liga à literatura fantástica na medida em que ambos são formas de estruturar eventos mundanos sobre-humanos ou sobrenaturais. O caráter insólito do fantástico nasce no seio do fantástico-estranho. Em outras palavras, podemos observar na teoria de Todorov duas formas de tentar explicar um acontecimento fantástico: o estranho e o maravilhoso. O fantástico nasce na hesitação, tanto do personagem, quanto do leitor, é um aspecto da narrativa em que não se sabe ou não se pode explicar algum evento, e é enfraquecido no momento em que se busca a sua justificativa: para uma narrativa que envereda para o (sobre)natural – para aquilo que está além da percepção daquele mundo natural –, estamos no território do que Todorov chamou de maravilhoso. Mas, quando se consegue chegar a uma conclusão aceitável, mesmo que talvez essa conclusão não tenha uma explicação, o que se tem é um acontecimento estranho. Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão de sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas por nós. (TODOROV, 2010, p. 30). Dessa forma, investigaremos de que forma o milagre concedido a Jaromir Hladik se relaciona com o fantástico e o seu caráter insólito. 157

Anais Aproximações e distanciamentos entre o fantástico e o insólito ficcional na obra borgiana Jorge Luis Borges ficou conhecido como um grande autor de Literatura Fantástica do século XX. Ao lado de outros autores hispano-americanos, se destacou como mestre do conto e do fantástico segundo David Roas (2014). O conto, como declara Roas em “A ameaça do Fantástico”, é por si só um lugar propício para a manifestação do fantástico, porque é uma narrativa relativamente curta e que, muitas vezes, termina de forma abrupta e aberta. Todorov diz que “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (TODOROV, 2010, p. 30- 31). Assim, nota-se que o fantástico é, sobretudo, uma hesitação, um momento em que o personagem e o leitor experenciam algo que até então não tem explicação. O Milagre Secreto integra a coletânea de contos Ficções, publicado em 1944 pelo escritor argentino Jorge Luis Borges. Borges é conhecido como um grande nome da Literatura Fantástica do século XX. Para Italo Calvino, um dos aspectos que chama a atenção para a escrita de Borges é a sua forma de narrar, posto “[...] que inventou a si mesmo como narrador.” (CALVINO, 1990, p. 63) A ideia de Borges foi fingir que o livro que desejava escrever já havia sido escrito por um outro. Um hipotético autor desconhecido, que escrevia em outra língua e pertencia a outra cultura – e assim comentar, resumir, resenhar esse livro hipotético. [...] O que mais me interessa ressaltar é a maneira como Borges consegue suas aberturas para o infinito sem o menor congestionamento, graças ao mais cristalino, sóbrio e arejado dos estilos. (CALVINO, 1990, p. 63). O escritor deste conto de Borges não gostava de seus livros publicados e queria começar uma nova forma de escrever através de seu livro em construção cujo título seria “Os inimigos”: Esse drama observava as unidades de tempo, de lugar e de ação; transcorria em Hradcany, na biblioteca do barão de Roemerstadt, numa das últimas tardes do século XIX. Na primeira cena do primeiro ato, um desconhecido visita Roemerstadt. (Um relógio bate as sete, uma veemência de último sol exalta as vidraças, o ar traz uma apaixonada e reconhecível música húngara.). (BORGES, 2007, p. 139). 158

Anais Em O milagre secreto, Borges nos apresenta Jaromir Hladik, um homem judeu que tem por ofício a escrita. Narrado em 1939, na Alemanha nazista, o conto discorre sobre a prisão desse homem, o crime: ser judeu, e a sua condenação seria a morte por fuzilamento. Ao se ver sem saída ou perspectiva, o que resta a Hladik é imaginar de mil formas a sua própria morte. “Em vão repetiu para si mesmo que o ato simples e geral de morrer era o temível, não as circunstâncias concretas. Não se cansava de imaginar essas circunstâncias: absurdamente procurava esgotar todas as variantes (BORGES, 2007, p. 137). Dessa forma, percebe-se que, antes de sofrer pelas mãos que lhe tirariam a vida, Hladik sofre pelo ato de perder a vida. O que lhe era caro – a vitalidade – ia ser arrancada. O medo da morte – e de tudo que não sabemos que vem com ela – era o que tirava o sono do condenado. Para o cristianismo, a morte é senão a coroação, para aqueles que creem, da vida eterna, uma vida tranquila e uma paz que transcende todo e qualquer entendimento. Mas, para o materialismo3, ela é apenas o fim, não marca mais que o fim da vida, é o vazio. Esses múltiplos caminhos e especulações acerca da morte e do tempo percorrem o imaginário de Jaromir Hladik e também a própria narrativa do conto, que discorre muito acerca da brevidade da vida e a relatividade do tempo. Há, na mitologia grega, dois deuses que tomam conta do tempo: Cronos e Kairós. Cronos é um titã, filho de Gaia, que é a terra, e Urano, e é a personificação do tempo dos homens, portanto, do tempo cronológico e linear. Dessa forma, não há como fugir de Cronos, pois ele é o dono do tempo – é o próprio tempo. Em contrapartida, existe Kairós, que tem uma concepção de tempo diferente. Kairós não segue o tempo linearmente, mas um tempo específico, fora da temporalidade cronológica, por isso, é conhecido como o “tempo de Deus” na Teologia. Podemos ver passagens na Bíblia Sagrada que discorrem sobre o tempo de Deus: “[...] Não se esqueçam disto: para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos como um dia” (2Pe, 3,8)4. Assim, em sua última súplica, Hladik pede um ano de vida ao Ser divino, porém, o que ganha são apenas dois minutos do ponto de vista de Cronos. O evento narrado no conto parece claro e sem 3 O materialismo rejeita a ideia de coisas que fogem do que é material, físico, palpável. “Segundo Fernandes (1984) o materialismo histórico-dialético designa um conjunto de doutrinas filosóficas que, ao rejeitar a existência de um princípio espiritual, liga toda a realidade à matéria e às suas modificações. É uma tese do marxismo, segundo a qual o modo de produção da vida material condiciona o conjunto da vida social, política e espiritual” (FERNANDES, 1984 apud ALVES, 2010) 4 BÍBLIA, 2 Pedro. Português. In: Bíblia Sagrada: Nova Versão Transformadora. São Paulo: Mundo Cristão, 2016. p. 1550-1553. 159

Anais maiores questões, mas, em suas entrelinhas, podemos notar o nascimento de uma hesitação: qual o tempo real concedido ao escritor? um ano? ou dois minutos? Temos duas concepções para entender o que aconteceu a Hladik: de alguma forma, até então desconhecida, o escritor conseguiu um ano como solicitado – ou até mais, já que do ponto de vista de Kairós o tempo passa de forma diferente –; ou o que aconteceu não passou de uma ilusão vivida pelo condenado e, de certa forma, pelo leitor do conto. No dia 19 de março de 1939, Jaromir Hladik é preso. Sua sentença de morte foi fixada para o dia 29 de março, às 9h. Em primeira instância, temos o personagem escritor, que não consegue terminar de escrever seu romance, cujo título é “Os inimigos”. Assim, na prisão, faz uma súplica a Deus. Se de algum modo eu existo, se não sou uma de tuas repetições e erratas, existo como autor d’Os Inimigos. Para pôr termo a este drama, que pode me justificar e te justificar, necessito um ano a mais. Concede-me esses dias, tu, a Quem pertencem os séculos e o tempo. (BORGES, 2007, p. 141). Jaromir Hladik parece acreditar em um ser capaz de modificar a temporalidade dos homens, e é nessa crença a que ele se agarra em seus últimos dias, a fim de conseguir terminar seu trabalho. Na sua última noite, dia 28 de março, o escritor sonha com uma biblioteca, e o que ele procurava no meio das grandes prateleiras era apenas uma coisa: Deus. E, nessa busca, tem sua oração concedida através da voz de um ser que ele não vê, mas que responde alto e bom som: “Uma voz ubíqua disse-lhe: “o tempo de seu trabalho foi concedido”. Aqui Hladik despertou.” (Borges, 2007, p. 141). Se buscarmos na Bíblia Sagrada, perceberemos que há vários versículos que narram uma voz – deduzida por quem a ouve como a do próprio Deus, que fala de algum lugar, mas que não tem corpo: “Depois do terremoto houve fogo, mas o Senhor não estava no fogo. E, depois do fogo, veio um suave sussurro. Quando Elias o ouviu, cobriu o rosto com a capa, saiu e ficou na entrada da caverna. E uma voz disse: “O que você faz aqui, Elias?”.” (1Re, 19, 12-13).3 Dessa forma, no dia 29 de março, momentos antes da execução de Hladik, algo acontece no quartel que deixa o mundo congelado. 3 BÍBLIA, 1 Reis. Português. In: Bíblia Sagrada: Nova Versão Transformadora. São Paulo: Mundo Cristão, 2016. p. 430-472. 160

Anais Uma pesada gota de chuva roçou uma de suas têmporas e rolou lentamente por sua face; o sargento vociferou a ordem final. O universo físico deteve-se. As armas convergiam sobre Hladik, mas os homens que iam matá-lo permaneciam imóveis. O braço do sargento eternizava um gesto inacabado. Numa laje do pátio uma abelha projetava uma sombra fixa. O vento cessara, como num quadro. Hladik ensaiou um grito, uma sílaba, um torcimento da mão. Compreendeu que estava paralisado. Não lhe chegava nem o mais tênue rumor do mundo estagnado. [...] adormeceu, depois de um tempo indeterminado. Quando despertou, o mundo continuava imóvel e surdo. (BORGES, 2007, p. 142-143). Podemos observar que algo atípico ocorre nesse momento, algo insólito. O insólito se caracteriza como algo que foge das leis que regem o sistema vigente, portanto, é uma anormalidade dentro da narrativa. O que se tem, afinal, é uma imprecisão do que realmente aconteceu no conto, visto que o tempo cronológico volta após o momento em que Jaromir consegue terminar seu romance pendente: “pôs fim ao seu drama: já não lhe faltava resolver senão um epíteto. Encontrou-o; a gota d’água resvalou em sua face. Iniciou um grito enlouquecido, mexeu o rosto, a quádrupla o derrubou. Jaromir Hladik morreu no dia 29 de março, às nove horas e dois minutos da manhã.” (BORGES, 2007, p. 144). Se considerarmos que o evento ocorrido não passou de um tipo de alucinação por parte do protagonista, o que se conclui é que reina o tempo cronológico, assim, de alguma forma desconhecida, houve um evento insólito, daí a intervenção de Kairós e do tempo de Deus, o homem foi visitado por um Ser que está além da linha tênue do relógio, que o transporta para um dimensão onde o tempo é medido de forma diferente, assim, horas podem se comprimir a segundos ou vice-versa porque não se tem precisão cronológica. Entramos no que Todorov vai chamar de estranho puro. Para o teórico, Obras que pertencem a este gênero, relatam-se acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que são, de uma maneira ou de outra, incríveis, extraordinários, chocantes, singulares, inquietantes, insólitos e que, por esta razão, provocam na personagem e no leitor reação semelhante àquelas que os textos fantásticos nos tornaram familiar. A descrição é, como vemos, ampla e imprecisa [...]. (TODOROV, 2010, p. 53). Aqui temos um problema em mãos: parece não haver explicação para o que acontece a Jaromir Hladik “pelas leis da razão” (TODOROV, 2010, p. 53), como Todorov afirma acima. 161

Anais Assim, não é definitivo e assertivo dizer que o evento pertence ao gênero estranho puro. Portanto, passemos a observá-lo de outra forma: fantástico-maravilhoso. O fantástico-maravilhoso é uma outra instância da Literatura Fantástica. Nele, os acontecimentos fantásticos acabam na aceitação do sobrenatural dentro da narrativa. No fantástico-maravilhoso, ou em outros termos, na classe das narrativas que se apresentam como fantásticas e que terminam por uma aceitação do sobrenatural. Estas são as narrativas mais próximas do fantástico puro, pois este, pelo próprio fato de permanecer sem explicação, não-racionalizado, sugere-nos realmente a existência do sobrenatural. O limite entre os dois será então incerto; entretanto, a presença ou a ausência de certos detalhes permitirá sempre decidir. (TODOROV, 2010, p. 58). Logo, parece lógico concluir que o milagre secreto que foi concedido a Jaromir Hladik por uma espécie de entidade que se assemelha ao Deus narrado na Bíblia – que fala e que ouve os que nele creem –, seja um evento que se assenta no fantástico puro, porque permanece sem explicação já que não nos é fornecido no conto formas que possam comprovar o que de fato aconteceu, além da última frase que o encerra: “Jaromir Hladik morreu no dia 29 de março, às nove horas e dois minutos da manhã” (BORGES, 2007, p. 144). Mas há ainda um outro olhar sobre a obra. Umberto Eco, em seu livro Obra Aberta, argumenta sobre as possiblidades que o autor deixa a cargo do leitor ao ler a obra e reescrevê-la, no sentido da interpretação. [...] uma obra de arte é um objeto produzido por um autor que organiza uma seção de efeitos comunicativos de modo que cada possível fruidor possa recompreender (através do jogo de respostas à configuração de efeitos sentida como estímulo pela sensibilidade e pela inteligência) a mencionada obra, a forma originária imaginada pelo autor. Nesse sentido, o autor produz uma forma acabada em si, desejando que a forma em questão seja compreendida e fruída tal como a produziu; todavia, no ato de reação à teia dos estímulos e de compreensão de suas relações, cada fruidor traz uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendencias, preconceitos pessoais, de modo que a compreensão da forma originária se verifica segundo uma determinada perspectiva individual. No fundo, a forma torna- se esteticamente válida na medida em que pode ser vista e compreendida segundo multíplices perspectivas, manifestando riqueza de· aspectos e ressonâncias, sem jamais deixar de ser ela própria. (ECO, 1991, p. 40). O leitor é um coautor da obra tendo em vista que a lê e a enxerga a partir de suas vivências, crenças, pré-conceitos. Assim, para um leitor cético, é provável que o evento 162

Anais ocorrido seja estranho, insólito, mas que apresenta uma explicação: o homem teve um momento de perda de consciência e percepção da realidade, por exemplo. Mas há possibilidade para um olhar mais fantástico, daí a crença no sobrenatural e em algo que foge às leis naturais que regem o mundo no qual a estória se passa. Portanto, a participação do leitor é indispensável dentro da literatura fantástica, porque pressupõe-se a sua contribuição em acatar eventos que distorcem a realidade natural, o que faz com que ele os aceite mais facilmente do que em outros gêneros literários, mesmo que isso exija que o leitor burle as suas próprias crenças, já que, dentro da narrativa fantástica, “a participação do leitor é fundamental para a existência do fantástico, porque o leitor precisa contrastar a história narrada com o fato real extratextual para considerá-lo como relato fantástico.” (ROAS, 2014, p. 26). Considerações finais O fantástico nos inquieta porque, segundo David Roas (2014), é uma “subversão do nosso mundo”. No entanto, o autor argumenta que a simples presença de elementos sobrenaturais não garante o elemento fantástico na narrativa, contudo, o fantástico precisa do sobrenatural para que possa existir. “O fantástico situa o leitor diante do sobrenatural com o propósito de levá-lo a perder sua segurança diante do mundo real” (ROAS, 2014, p. 25). O cenário narrado em “O milagre secreto” nos é familiar porque se passa em um momento histórico: a Alemanha nazista e a perseguição aos judeus, isso faz com que os eventos do conto sejam aceitos como verdadeiros pelo leitor, mas há o evento insólito que confunde e distorce a realidade. Em seu livro “Os inimigos”, Hladik pretendia discutir, em forma versada, sobre “as unidades de tempo, lugar e ação” (BORGES, 20107, p. 139). Seu enredo soa familiar com a própria realidade insólita vivida pelo escritor. Borges parece fazer um jogo de realidade e ficção misturando realidades: primeiro Jaromir Hladik enquanto escritor; em seguida uma segunda camada, em que se situa a realidade de seu livro em construção; e uma terceira, na qual Borges infere a invasão da segunda dentro da primeira. O resultado que se tem é uma estória passível de diversas análises e conclusões, mas nenhuma parece sustentar-se por tanto tempo – uma contribuição do fantástico. 163

Anais REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Álvaro Marcel. O método materialista histórico dialético: alguns apontamentos sobre a subjetividade. Revista de Psicologia da UNESP, São Paulo, v. 9, p. 1-13, 16 mai. 2018 1984-9044. Disponível em: https://seer.assis.unesp.br/index.php/psicologia/article/view/422/400. Acesso em: 07 jul. 2022. BORGES, Jorge L. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. CALVINO, Italo. Rapidez. In: _______. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 43-67. ECO, Umberto. Poética da obra aberta. In: Obra Aberta. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991. p. 37-66. GARCÍA, Flavio (org.). A Banalização do insólito: questões de gênero literário: mecanismos de construção narrativa. 1 ed. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007. Disponível em: https://www.dialogarts.uerj.br/admin/arquivos_tfc_literatura/livro_insolito.pdf. Acesso em: 23 abr. 2022. ROAS, David. A Ameaça do fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Unesp, 2014. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. 164

OS SALÕES LITERÁRIOS NA FRANÇA MODERNA: memória e cultura na Paris do Séc. XVIII José Barroso de OLIVEIRA FILHO (UESPI)1 Raimunda Celestina Mendes da SILVA (UESPI)2 RESUMO No século das luzes (XVIII), a França vivia uma intensa efervescência cultural e grande insatisfação com as injustiças na sociedade, sob os poderes do regime monárquico. Com isso, impõe-se o impetuoso desejo de iluminar mentes a independer dos poderes vigentes do antigo regime. Com mais vigor, os salões literários encontros para leituras, debates, declamação pública de versos, poemas e canções entre aristocratas e burgueses. A participação das mulheres nessas reuniões de sociabilidade e atitudes sustentava a existência dos salões franceses. Uma aristocracia ociosa, uma classe média ambiciosa, uma vida intelectual ativa, a densidade social de um grande centro urbano, tradições sociáveis e um certo feminismo aristocrático dava o tom de inconformação do momento. Facilmente percebe-se a riqueza memorialística existente nesses espaços de memórias, individual e coletiva - os salões literários de Paris nesse período da história, que não desapareceu em 1789, com a revolução francesa. Dessas proposições preliminares, tem-se que o objetivo desse estudo é demonstrar os rastros históricos de memória na sociedade parisiense a partir da participação ativa de homens e mulheres nesses lugares de recreação, estudos e debates. 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras pela Universidade Estadual do Paiuí – UESPI. E-mail: [email protected] 2 Doutora em Letras pela PUCRS, professora da graduação e do PPGL da Universidade Estadual do Piauí – UESPI. E-mail: [email protected] 165

Anais Para tanto, alguns teóricos auxiliaram na composição da pesquisa, em que se destacam Maurice Halbwachs (2003), Gaston Bachelard (1993), Ecléa Bosi (2003), Aleida Assmann (2011), dentre outros. Acredita-se, assim, que este estudo se faz cabível nas discussões sobre literatura e memória. A partir deste estudo, pôde-se observar que os salões literários de Paris podem ser compreendidos como um momento que gerou registros do comportamento, pensamento e produção intelectual que caracterizou a identidade de grupos sociais que movimentavam a antiga Paris durante o séc. XVIII. Logo, esses salões hoje trazem uma representação memorialística que narra um terminado período de efervescência cultural na Paris do séc. XVIII. Palavras-chave: Memória; Cultura; Salões Literários; Paris; Séc. XVIII. ABSTRACT In the century of enlightenment (XVIII), France was experiencing an intense cultural effervescence and great dissatisfaction with the injustices in society, under the powers of the monarchic regime. With this, the impetuous desire to enlighten minds independent of the prevailing powers of the old regime is imposed. With more vigor, the literary salons meet for readings, debates, public recitation of verses, poems and songs between aristocrats and bourgeois. The participation of women in these meetings of sociability and attitudes supported the existence of French salons. An idle aristocracy, an ambitious middle class, an active intellectual life, the social density of a large urban center, sociable traditions and a certain aristocratic feminism set the tone of nonconformity of the moment. It is easy to see the memorial richness existing in these spaces of memories, individual and collective - the literary salons of Paris in that period of history, which did not disappear in 1789, with the French revolution. From these preliminary propositions, the objective of this study is to demonstrate the historical traces of memory in Parisian society from the active participation of men and women in these places of recreation, studies and debates. To this end, some theorists helped in the composition of the research, in which Maurice Halbwachs (2003), Gaston Bachelard (1993), Ecléa Bosi (2003), Aleida Assmann (2011) stand out, among others. It is believed, therefore, that this study is appropriate in discussions about literature and memory. From this study, it was possible to observe that the literary salons of Paris can be understood as a moment that generated records of behavior, thought and intellectual production that characterized the identity of social groups that moved the old Paris during the 19th century. XVIII. Therefore, these halls today bring a memorialistic representation that narrates a finished period of cultural effervescence in Paris in the 19th century. XVIII. KEYWORDS: Memory; Culture; Literary Halls; Paris; Century XVIII. INTRODUÇÃO A memória desempenha um papel fundamental na construção da subjetividade e se configura como um campo propício à conservação das lembranças mais impactantes, individuais e ou coletivas, como foi a história da sociedade parisiense do século XVIII sob a tutela do antigo regime monárquico. Para (BOSI, 2003, p. 53), “A memória é, sim, um trabalho 166

Anais sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo.” Nesse sentido, o presente estudo objetiva demonstrar os rastros históricos de memória na sociedade parisiense a partir da participação ativa de homens e mulheres nos lugares de recreação, estudos e debates. Os salões literários desse período contribuíram para suscitar, nos convidados e frequentadores desses espaços, debates que giravam em torno da grande insatisfação advinda das injustiças sociais do poder monárquico. Evocando esses espaços de sociabilidade e debates que carregam memórias da cidade de Paris, leva-se à confirmação de Assmann (2011, p.317-318), que aponta as palavras de Cícero3, ao relacionar os locais, e seu potencial de memória: Grande é a força da memória que reside no interior dos locais – a frase de Cícero pode servir de impulso para quem se questiona a respeito de uma força específica da memória e do poder dos locais. O grande teórico da mnemotécnica romana tinha uma noção clara do significado dos locais para a construção da memória. [...] O próprio Cícero cumpriu a passagem dos lugares da memória para os locais de recordação, segundo sua própria experiência, que as impressões captadas em um cenário histórico “são mais vivas e atenciosas” que outras assimiladas por ouvir falar [...] Toma-se aqui os salões parisienses como “locais” de memórias, estes, de invenção italiana do século XVI, que floresceu na França ao longo dos séculos XVII e XVIII. A palavra “salão” apareceu pela primeira vez na França em 1664 (da palavra italiana salone, ela própria de sala, o grande salão de recepção das mansões italianas). O primeiro salão de renome na França foi o Hôtel de Rambouillet, não muito longe do Palais du Louvre, em Paris, administrado por sua anfitriã, a romana Catherine de Vivonne, marquesa de Rambouillet (1588-1665), de 1607 até sua morte. No primeiro e renomado salão Catherine de Vivone estabeleceu regras de etiqueta que se assemelhavam aos códigos anteriores da cavalaria italiana. Regras que se replicaram nos salões parisienses, fazendo valer as práticas culturais de “refinamento francês”, que, mesmo sofrendo alterações, são mantidas até os dias atuais. Cafés, restaurantes e, principalmente, os salões literários eram frequentados essencialmente pela elite burguesa e pelos intelectuais da época para conversar, estreitar laços, jogar, discutir política, fumar, jantar, ler jornais e recitar poemas. Esses eventos 3 Estadista, orador e filósofo romano, Marco Túlio Cícero nasceu no ano 106 a.C. em Arpino, Itália, e morreu em 43 a.C. em Formia, Itália. Cícero é considerado o primeiro romano que chegou aos principais postos do governo com base na sua eloquência e no mérito que obteve nas suas funções de magistrado civil. É um dos maiores oradores e pensadores políticos romanos. 167

Anais ocorriam em ambientes reservados, em casas privadas, que na concepção memorialística Bachelarleana seria “algo fechado [que] deve guardar as lembranças, conservando-lhe seus valores de imagens” (BACHELARD, 1993, p.25). Para Bachelard (1993, p. 26), a casa “abriga o devaneio [...] protege o sonhador [...] permite sonhar em paz”, configurando-se como “uma das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem”. Em suas discussões assevera que “é graças à casa que um grande número de nossas lembranças está guardado” (BACHELARD, 1993, p. 27). Assim, na investigação de Bachelard, vê-se que nesses espaços de vivências e de sentido, há um elemento a mais no recôndito desses ambientes privados, a ser lembrado pelos ocupantes da casa, a grande sala, ou salão, especialmente ornamentado para esses encontros de estudos e debates. É importante lembrar, no entanto, que segundo Antoine Lilti, (2005), nos séculos XVII e XVIII, a palavra “salão” “não nomeava as reuniões, mas designava somente a peça da casa – a grande sala, para os convidados, a qual se impunha progressivamente nas casas urbanas desse período”, onde a arte da conversação e sociabilidade atribuída aos franceses progredira nos salões do século XVIII. A partir do estudo teórico mencionado, pôde-se observar que os salões literários de Paris podem ser compreendidos como um momento que gerou registros do comportamento, pensamento e produção intelectual que caracterizou a identidade de grupos sociais que movimentavam a antiga Paris durante o séc. XVIII. Logo, esses salões hoje trazem uma representação memorialística que narra um determinado período de efervescência cultural na Paris do séc. XVIII. OS SALÕES LITERÁRIOS DE PARIS: lugares de memória Nas vivências dos salões literários parisienses, era bastante necessário e imprescindível, haver, além dos assuntos, da programação, a presença de um anfitrião que recebesse os convidados e que de alguma forma os selecionava para estarem ali presentes ‘fisicamente’, um tipo de “cicerone”, ou seja, um mediador, pessoa que conduzia os visitantes. A prática de receber bem nesses encontros era levada a sério e, com efeito, evidenciava-se não somente a opulência e glamour nesses espaços literários, como a mobília, a decoração exuberante, etiqueta, bons modos, como também assentia sentido especial à presença dos participantes, convidados ilustres, geralmente intelectuais, pessoas de classe social alta, 168

Anais como se vê nos salões da França no século XVII, prática que perpassou séculos, alcançando os séculos XVIII, XIX e os dias atuais. Nessas residências particulares, ambientes repletos de significados e com aura própria, damas inspiradoras, donas de salão conduziam e propiciavam aos visitantes, convidados e frequentadores, espontânea atividade criadora do espírito, gerando momentos de rica fruição, reflexão e de argumentação. Ali se formava a opinião pública e se iniciava a contestação ao poder monárquico e eclesiástico, sobretudo com relação à vida na urbe francesa. Nesse contexto, essas casas apresentam-se como um espaço de memória, pois trazem marcas do passado. Como dito por Bachelard (1993, p.26), a casa “abriga o devaneio [...] protege o sonhador [...] permite sonhar em paz”; sentimentos de acolhimento e subjetividades percebidos em Marcel Prust (2018) quando o príncipe Luís Napoleão, incansável [...] expressava pela centésima vez diante de alguns íntimos, no salão da rua de Berri, seu desejo de ingressar no exército, sua tia, a princesa Mathilde, desolada com essa vocação que lhe roubaria o mais amado dos seus sobrinhos, exclamou, dirigindo-se aos presentes: - Vejam só que obstinação! – Mas, infeliz, só porque tiveste um militar na família, isso não é motivo!... Ter um militar na família! Reconhecemos ser difícil lembrar com menos ênfase seu parentesco com Napoleão I. (PROUST, 2018, p.25). Sobre isso, Ecléa Bosi (2003) destaca que as memórias pertencentes aos seres humanos privilegiam os questionamentos, sonhos e desejos que permeiam o seu íntimo, refletem os aspectos subjetivos e estão em constante diálogo com as ações desse indivíduo na sociedade. De acordo com a estudiosa, pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando com as percepções imediatas, como também empurra, “decola” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva, ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora. (BOSI, 2003, p. 36). Percebe-se que na condução e vivências no espaço dos salões parisienses alocados em residências particulares, existem marcas de um lugar de memória que causam ressonâncias subjetivas surpreendentes do passado, triste ou agradável. Se agradável, adoçam a vida e deseja-se segurá-la pelo braço, como se vê em Proust (2018) no salão da princesa Mathilde, em que diz: 169

Anais Quando se pensa que esse salão [...] foi um dos centros literários da segunda metade do século XIX; que Mérimée, Flaubert, Goncourt, Sainte-Beuve vieram ali todos os dias, com verdadeira intimidade, com uma familiaridade tão completa que a princesa chegava a convidá-los a almoçar de improviso; que eles não tinham segredos literários para com ela e ela não tinha reservas principescas para com eles; que ela lhes prestou favores até o fim – não somente favores cotidianos (Sainte-Beuve dizia: “Sua casa é uma espécie de ministérios das graças”), mas favores de grande repercussão, daqueles que põe fim a perseguições, dissipam preconceitos, facilitam o trabalho, auxiliam no sucesso, adoçam a vida, mudam um destino. (PROUST, 2018, p.30). As expressões, “vieram ali todos os dias, com verdadeira intimidade” e “Sua casa é uma espécie de ministérios das graças”, confirmam o que diz Halbwachs sobre a importância do espaço familiar, o primeiro que se tem contato, de modo que os membros da família acabam fazendo parte da memória dos indivíduos que ali residem, em que ensinamentos são transmitidos, caracterizando aquilo que o autor denominou de memória coletiva. Evidencia-se, também a importância da memória coletiva ao afirmar que “nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós” (HALBWACHS, 2006, p. 30). Destaca-se que Halbwachs não desconsidera a existência da memória individual, mas declara que em interação com o social, a memória do indivíduo está atrelada a diferentes contextos e a vários participantes. Quando os acontecimentos são partilhados pelo grupo, a memória deixa de ser individual para tornar-se uma memória coletiva. Assim, a memória do indivíduo é constituída pelas memórias dos diversos grupos de que ele participa e é influenciado. Os salões literários de Paris, portanto, podem ser compreendidos como um momento que se gerou registros do comportamento, pensamento e produção intelectual que caracterizou a identidade de grupos sociais que movimentavam a antiga Paris durante o séc. XVIII. Logo, compreende-se que os salões literários parisienses canonizaram mansões que iam desde as glamourosas organizações internas dos casarões, até o impecável comportamento da alta classe durante os encontros. Hoje, esses casarões, não possuem mais a função de moradia de seus primeiros donos, mas são lugares de memória, ecoam rastros históricos e reminiscentes que narram um período da antiga Paris durante um período em que as mulheres passaram a emergir na sociedade impondo sua voz ao lado de pensadores do sexo masculino, seus cônjuges e intelectuais. 170

Anais A SOCIABILIDADE FEMININA NOS SALÕES DE PARIS NO SÉC. XVIII Segundo Rivière (2004), na década de 1990, consolidou-se na França a definição de sociabilidade como o conjunto das relações dos indivíduos na sociedade, considerando tanto as particularidades do sujeito e do contexto no qual ele se encontra, quanto às estruturas que ajudam a moldá-lo como ser social. Percebe-se que “A partir de relações concretas entre os indivíduos, [...] a análise da rede oferece os meios para pensar a sociabilidade por ela mesma, conferindo-lhe um valor explicativo para um conjunto variado de comportamentos sociais” (RIVIÈRE, 2004, p. 229). Pode-se afirmar que a sociabilidade é resultado do convívio entre seres que pretendem estabelecer vínculos e estreitar laços. Nesse sentido, vê-se o esforço das mulheres parisienses para a construção desses laços, colocando-se na sociedade. Observa-se esse engajamento em Arendt (1994) na narrativa biográfica de Rahel Varnhagen, na qual ela constrói-se a si mesma num movimento seguido por outras mulheres ao longo do século XVIII, tão ou mais famosas do que ela. Refiro-me à sociabilidade dos salões e à importância das relações de amizade para os homens, mas especialmente para as mulheres que desejavam mais do que o enaltecimento da maternidade e a condescendência das convenções sociais. [...] foi no seu salão que as relações de amizade se consolidaram e novas foram estabelecidas. Através das amizades Rahel conseguiu criar um lugar para si não no sentido burguês e intimista, mas no sentido iluminista de um indivíduo social, dotado de personalidade, charme, “espírito” e conhecimento. [...] manejava bem os requisitos necessários para a vida social, sendo capaz de agregar com sua inteligência e personalidade, pessoas bastante diferentes ao seu redor; de estabelecer um espaço de conversação franca, de atualização, de trocas culturais e também do prazer de estar juntos. (ARENDT, 1994, p.25). No viés aqui considerado, a sociabilidade feminina nos salões de Paris, salienta-se que estes eram instituições fundamentais para a vida literária dos séculos XVII e XVIII, organizados por mulheres proeminentes, que passaram a ser o centro da vida no salão e como reguladoras poderiam selecionar seus convidados e decidir os assuntos dessas reuniões sociais. Dentre outros salões do século XVIII, que também atraiam pessoas para trocas culturais, aponta-se neste estudo quatro renomados salões e suas respectivas salonnières, 171

Anais que geravam admiração e atraiam personalidades: 1. Madame Geoffrin (1699‒1777) – Marie Thérèse Rodet Geoffrin, seu salão era frequentado por grandes filósofos e enciclopedistas de seu tempo, tendo sido representativo para a sociedade iluminista. 2. Madame Necker (1737‒ 1794) – Suzanne Curchod, Franco-Suíça era conhecida como Madame Necker, mas também por possuir o salão mais frequentado no Ancien Régime. 3. Madame de Staël (1766‒1817) – Anne Louise Germaine, importante mulher no iluminismo francês. Escritora e romancista, influenciou politicamente seu zeitgeist. 4.Contessa Maffei (1814‒1886) – Clara Maffei, exerceu papel importante de mecenas e seu salão recebeu grandes personalidades como seu amigo pessoal, Balzac. Esses encontros de pessoas letradas eram comumente chamados de círculos, sociedades ou academias (quando se tratava de uma), sendo que o termo “salão” tomou o sentido que hoje utilizamos somente no início do século XIX. Porém, é importante deixar bem clara a diferença que havia entre os salões e as academias, porque destas as mulheres estavam excluídas. Os encontros de homens e mulheres letrados que hoje chamamos de salões literários tinham o objetivo de proporcionar a leitura coletiva de textos literários, científicos ou filosóficos e a conversação amigável sobre os temas que essas leituras suscitavam. Normalmente eles tinham um dia fixo da semana para acontecer, como, por exemplo, aos sábados na residência de Madeleine de Scudéry e, às quartas-feiras, na de Madame de Sablé. Disseminados depois da experiência famosa e bem sucedida de Catherine de Vivonne- Savelli, a Marquesa de Rambouillet, os salões foram espaços que colocaram em evidência as mulheres sábias, onde puderam romper barreiras ao seu crescimento intelectual e desenvolver a sua capacidade crítica, formular opiniões e debater os temas do conhecimento de igual para igual com os homens. Os temas desses encontros giravam em torno de tópicos sociais, políticos literários. Compartilhavam-se pontos de vista e opiniões sobre o que essas leituras tratavam. Nessas discussões, igualmente interrogavam-se e colocavam em xeque a cultura parisiense institucionalizada do antigo regime; arraigada, cristalizada, impeditiva, prejudicando a participação das mulheres no cenário cultural em diferentes instâncias sociais, nas práticas culturais e representações coletivas. Nesse sentido, Dena Goodmann (1989, p.333) aponta que ao criarem os salões, havia nas salonnières o anseio “o objetivo inicial e principal por trás dos salões era o de satisfazer as necessidades educacionais autodeterminadas das mulheres que os iniciaram\". Para essas mulheres, o salão era um substituto socialmente 172

Anais aceitável para a educação formal que lhes era negada, porquanto reduzia a marginalização das mulheres nesse quesito. As limitações para as mulheres no acesso à educação, eram consideráveis na sociedade, pois “a distância entre a leitura e a escrita era ainda maior do que para os homens, porque segundo os padrões culturais vigentes, escrever poderia significar um aprendizado inútil para elas, além de perigoso” (ZECHLINSKI, ano, 2012 página 32). Em relação a estas questões de disparidade cultural, no caso das mulheres, as diferenças em relação aos homens no acesso à educação e aos bens culturais levaram Peter Burke (1999) a concluir que as mulheres nobres formavam um grupo intermediário entre a elite, à qual pertenciam socialmente, e a não-elite, à qual pertenciam culturalmente. A opinião de Peter Burke (1999, p.385) converge com a de Anne E. Duggan Por toda parte um vão estava se formando, que separava aqueles que possuíam capital financeiro e cultural daqueles que não possuíam. Mulheres da classe alta se encontravam nos dois lados do vão. Financeiramente separadas das mulheres e homens das outras “classes”, elas, no entanto, se encontravam às vezes do outro lado dos trilhos no que se referia ao capital cultural, para não mencionar direitos legais. “Os trilhos” (“the tracks”), na expressão utilizada em inglês, é uma referência a um delimitador social, pois moram do outro lado dos trilhos dos trens as pessoas de condição social mais baixa, evidenciando divisão de classes e forte conotação de caráter econômico. A memória cultural atua, portanto, preservando a herança simbólica institucionalizada, à qual os indivíduos recorrem para construir suas próprias identidades e para se afirmarem como parte de um grupo. Isso é possível porque o ato de rememorar envolve aspectos normativos, de modo que, \"se você quer pertencer a uma comunidade, deve seguir as regras de como lembrar e do que lembrar\". Assim, as mulheres das classes mais privilegiadas, para alcançarem um nível cultural mais alto, tornando-se leitoras, possuidoras de livros e, mais ainda, para serem escritoras, deveriam somar à sua superioridade de classe outras vantagens pessoais, como ter, por exemplo, um pai humanista e preocupado com a sua educação. O estudo de Sara Gwyneth Ross sobre a República Veneziana mostra como era importante para uma mulher ser apoiada por uma figura masculina que acreditasse em seu potencial intelectual, para que ela pudesse entrar nos círculos de conhecimento. Madeleine de Scudéry foi a primeira mulher a receber uma pensão real como escritora e muito de seu sucesso deveu-se justamente à sua habilidade em fazer amizades 173

Anais com homens influentes, como Valentin Conrart, um dos fundadores da Academia Francesa que prestavam serviços ao poder real e depois disso se tornavam conhecidos pelo público. Assim, os homens de letras, para obterem sucesso, dependiam não só do seu talento, mas também de uma rede de relações pessoais que compunha a orquestra da república das letras. Dessa forma, as instituições da vida literária, como as academias e os salões literários, passaram a ter uma importância fundamental no panorama do mundo da crítica e da palavra escrita na sociedade francesa do Antigo Regime. Acresce que, chama atenção de quem aprofunda-se no estudo em questão, sentir o esforço empreendido pelas mulheres parisienses do século das luzes, para colocarem-se na sociedade e poder mostrar o quanto são capazes; e que, para além do enaltecimento da maternidade, condescendência das convenções sociais, de boas esposas e boas donas de casa, também questionarem seu lugar social; de elaborar e expressar suas próprias ideias e de serem filósofas, escritoras, atrizes de teatro, artistas plásticas; enfim, conseguir visibilidade, criar um lugar para si na vida social, sendo capazes de agregar com sua inteligência e personalidade, pessoas e estabelecer espaço de conversação e de leitura. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo teve como objetivo demonstrar os rastros históricos de memória na sociedade parisiense a partir da participação ativa de homens e mulheres nesses lugares de recreação, estudos e debates por meio de um estudo de cunho bibliográfico, considerou-se a contribuição teórica de Maurice Halbwachs, Bachelard, Ecléa Bosi, Aleida Assmann, que discutem a teoria sobre a memória como representação coletiva de um determinado grupo social. Pôde-se compreender que Halbwachs (2003), estudioso do conceito de memória coletiva, que esta permanece coletiva e nos são lembradas por outros ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós” (HALBWACHS, 2006, p. 30); ou seja, depende da ausência ou presença de outros que se constituem como grupos de referência. Bachelard (1993), investiga, o estudo das imagens poéticas do espaço, enfatizando sobre a representatividade da casa, que “é graças à casa que um grande número de nossas lembranças está guardado” (BACHELARD, 1993, p. 27). 174

Anais Bosi (2003), pesquisadora da memória social destaca que as memórias pertencentes aos seres humanos [...] refletem os aspectos subjetivos e estão em constante diálogo com as ações desse indivíduo na sociedade, e que “A memória aparece como força subjetiva, ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 2003, p. 36), Aleida Assmann (2011), por sua vez concentra-se em estudos de antropologia cultural, memória cultural e comunicativa. A partir do estudo teórico mencionado, pôde-se observar que os salões literários de Paris podem ser compreendidos como um momento que gerou registros do comportamento, pensamento e produção intelectual que caracterizou a identidade de grupos sociais que movimentavam a antiga Paris durante o séc. XVIII. Logo, esses salões hoje trazem uma representação memorialística que narra um determinado período de efervescência cultural na Paris do séc. XVIII. Ademais, a participação das mulheres nos salões, embora alguns julgarem ações de frivolidades, outros defendem, visto que nos eventos as mulheres organizavam a agenda, os debates e estabeleciam contatos com pessoas que poderiam ajudar seu escritor protegido, indicar a obra dele e facilitar o encontro com indivíduos influentes. Proust (2018, p.30) comenta que, “A princesa não senta mais. Vai de um a outro, recebendo os recém-chegados, misturando-se a cada grupo, tendo para cada um uma palavra particular, pessoal, que fará com que, mais tarde, ao chegar em casa, cada um acredite ter sido o centro das atenções da noite”. As mulheres não apenas intermediavam reflexões e publicações, mas também escreviam livros; porém, ao contrário dos homens, elas não possuíam apoio para a publicação de livros e, quando dispunham de uma produção própria, enfrentavam desafios maiores para se tornarem parte do meio intelectual. Naturalmente, a maneira sensível, autônoma e inteligente que as mulheres ricas do século XVIII encontraram para ver seus anseios realizados, deu-se, abrindo suas casas, e como dito por Bachelard, (1993, p.26) a casa “abriga o devaneio [...] protege o sonhador [...] permite sonhar em paz”. Sonho conquistado pelas salonnières parisienses por meio de espaços de sociabilidades, os salões literários por elas abertos em suas residências. Este estudo, em momento algum propôs-se em esgotar a temática aqui abordada. Outras pesquisas serão bem-vindas ao apesentar contextos socioculturais que deram início as manifestações de insatisfações que passaram a ser assuntos nos salões literários. Trabalhar a participação de grandes nomes da intelectualidade parisiense do séc. XVIII que 175

Anais contribuíram para o acontecimento dos salões literários também se faz de grande valia para os estudos acadêmicos. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Rahel, a vida de uma judia alemã na época do Romantismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 25. ASSMANN, A. Espaços de recordações: formas e transformações da memória cultural. São Paulo: editora Unicamp, 2011. BACHELAR, Gaston. A poética do espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993. BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. Tradução Denise Bottmann. 2ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1999. 385p DUGGAN, Anne E. Salonnières, furies and fairies: the politics of gender and cultural change in absolutist France. Newark: University of Delaware Press, 2005. 288p GOODMAN, Dena. Salões de Iluminismo: The Cprevalência de Feminino e PhisóficoAmbições. Estudos do século XVIII, vol. 22, nº 3, Edição Especial:Orevolução Francesa em Cultura. (Primavera, 1989), pp. 329-350. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006, p. 306. LILTI, Antoine. Le monde des salons. Sociabilité et mondanité à Paris au XVIIIe siècle. Paris: Fayard, 2005. 568p. p. 9 LILTI, Antoine. Sociabilité et mondanité: Les hommes de lettres dans les salons parisiens au XVIII e siècle, French Historical Studies, vol. 28, No. 3 (verão de 2005), p. 415-445 NORA, Pierre. Entre mémoire et histoire: la problématique des lieux. IN Pierre NORA (org). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, [1984]. Vol 1 La République. pp. VII a XLII. p. XXIV. KAMMEN, Michael. Mystic chords of memory. The transformation of tradition in american culture. New York: Vintage Books, 199 RIVIÈRE, Carole Anne. La specificité française de la construction sociologique du concept de sociabilité. Réseaux: Communication, Technologie, Société, Paris, v. 123, n. 1, 2004, pp. 207-231. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-rESEAUX1-2004-1- page- 207.htm>. Acesso em: 22 set. 2018. 176

Anais PROUST, Marcel. Salões de Paris. São Paulo: Editora Carambaia, 2018. ROSS, Sarah Gwyneth. Her father’s daughter: Cassandra Fedele, woman humanist of the Venetian Republic. Studies across Disciplines in the Humanities and Social Sciences 2. Helsinki, Helsinki Collegium for Advanced Studies, pp. 204-222, s.d. ZECHLINSKI, Beatriz Polidori. Três autoras francesas e a cultura escrita no século XVII gênero e sociabilidades. Beatriz Polidori Zechlinski. - Curitiba, 2312. 229 f. Tese (Doutorado Ciências Humanas, Letras e Artes) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012. 177

A CRÍTICA DIALÓGICA DA ESCOLA DE GENEBRA Carolina Rangel SILVA (Universidade de São Paulo)1 RESUMO O trabalho aborda a importância que o estabelecimento de um diálogo entre filosofia e literatura possui para a crítica literária, tomando como referência a crítica concebida pela Escola de Genebra. A perspectiva adotada retoma o questionamento acerca das determinações formais do saber e das diferentes concepções de verdade estabelecidas durante a história das ideias. Nesse sentido, as reflexões remetem à relação transacional entre os modos de apreensão poético e filosófico da realidade a partir da noção de subjetividade implicada na crítica literária do grupo em questão. A particularidade formal da crítica produzida pela Escola torna possível reconhecer o campo de atuação delineado durante a leitura da obra literária, ao evidenciar a posição do sujeito em relação à experiência fornecida pelo texto. Tal posição não consolida uma definição categórica e conceitual do sujeito, pois a atuação da consciência crítica não assume uma concepção essencialmente positiva ou poética da linguagem. Em se tratando do viés crítico abordado, o lugar do sujeito para a Escola de Genebra não se define categoricamente, mas evoca a relação dialógica entre a poesia e a filosofia que, em relação à ideia central do simpósio, coaduna com o pensamento de Benedito Nunes sobre o tema. Assim, o trabalho busca apresentar o sujeito como o lugar central onde a transação entre a filosofia e a poesia se torna possível. Palavras-chave: Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário. ABSTRACT This production broaches the importance that the stablishment of a dialogue between philosophy and literature has for literary criticism, taking as reference the criticism 1 Doutora em Letras – Área: Estudos Linguísticos, Literários e tradutológicos em Francês. Universidade de São Paulo. [email protected] 178

Anais conceived by the Geneve School. The perspective adopted resumes the questions about the formal determinations of knowledge and the diferente conceptions of truth established during the history of ideas. In this sense, the reflections refer to the transactional relationship between the poetic and philosophical apprehension of reality from notion of subjectivity implied in the literary criticism of the group in question. The formal particularity of criticism produced by the School makes it possible to recognize the space of action autlined during the Reading of literary work, by highlighting the subject´s position in relation to the experience provided by the text. Such a position does not consolidate a categorical and conceptual definition of the subject, since the performance of critical consciousness does not assume na essentially positive or poetic conception of language. In terms of the critical approach addressed, the place of subject for Geneva School is not categorically defined, but evokes the dialogic relationship between poetry and philosophy that, in relation to the central idea of this symposium, is in line with the thought of Benedito Nunes about the subject. Thus, the work seeks to presente the subject as the central place where the transaction between philosophy and poetry becomes possible. KEYWORDS: Criticism, poetry, philosophy, epistemology, Geneva School. O recorte que proponho aqui tem como objetivo expor o caráter necessário que possui o diálogo entre a filosofia e a literatura para a reflexão crítica-literária da Escola de Genebra. Cumpre dizer que o papel fundamental desempenhado por esse diálogo não é algo difícil de ser reconhecido durante a leitura dos textos produzidos pelos autores desse grupo. Ao contrário disso, a aproximação entre a filosofia e a literatura aparece de forma explícita na obra de cada um dos críticos que participam desse conjunto. Tendo em vista o foco central do presente seminário2, achamos por bem iniciar nossa reflexão a partir de um texto de Marcel Raymond que aborda diretamente nosso tema. Trata-se de um texto inicialmente apresentado pelo crítico em Strasbourg, em uma conferência realizada no ano de 1963 e publicado no ano seguinte, em Genebra, com pouquíssimas alterações. Nesse texto, cujo título é Cultura aberta e linguagem poética, Marcel Raymond reflete acerca da situação em que se encontra a cultura literária naquele momento, bem como sobre o tipo de fundamentação teórica que está por trás do valor conferido à linguagem poética e, consequentemente, ao conhecimento que envolve esse tipo de produção. Com efeito, a crítica literária da Escola de Genebra tem como princípio fundamental a consciência do sujeito a respeito das determinações que lhe são impostas pela situação presente. A consciência a respeito do contexto atual que envolve a produção crítica literária da Escola de Genebra é tão essencial para a reflexão de Marcel Raymond que Jean Starobinski a 2 Texto apresentado originalmente no simpósio Literatura e Filosofia:diálogos multifacetados – viagem, memória e subjetividade 179

Anais descreve como uma forma de resistência fundamental. Devemos ter em mente a radicalidade dessa resistência, uma vez que Starobinsky frequentou o curso ministrado por Marcel Raymond na Universidade de Genebra entre os anos 1934 e 1942, período este que coincide com as conquistas nazistas e com o estado francês de Vichy. Nesse sentido, o vínculo entre a elaboração teórica e a atualidade da consciência definia a direção opositiva da práxis crítica. Conforme recorda Starobinski, Marcel Raymond fazia seus alunos compreenderem a necessidade de abordar a obra literária a partir da consciência posicionada no instante presente ou, para melhor dizer, a partir do momento histórico em que suas existências estavam situadas3. De fato, podemos reconhecer o caráter imprescindível que esse posicionamento possui na produção de Marcel Raymond através da forma como ele fundamenta sua reflexão crítica no exame da situação em que os estudos literários se encontram no momento histórico em que a conferência se realiza em Strasbourg. Sendo assim, tanto a particularidade da situação, quanto as limitações teóricas que ela implica são apresentadas no texto supracitado a partir da seguinte reflexão: Acontece que os representantes da cultura que chamaremos de literária, em sentido amplo (sendo a literatura inseparável das disciplinas filosóficas e históricas), sofrem hoje um complexo de inferioridade. Segue-se que uma primeira tentação os espera, que eu gostaria de evitar: a de bancar o perdedor, de dobrar o joelho diante do que parece óbvio: a saber, que nós, literatos, somos arrastados por um maremoto, ultrapassados pelo evento, e que nossas preocupações, nossas opções fundamentais são anacrônicas. (RAYMOND, 1964, p.253).4 O trecho em questão possui elementos que são essenciais para a compreensão da peculiaridade da crítica literária concebida pelos autores desse grupo. Como dissemos antes, entendemos que essa peculiaridade passa precisamente pelo estabelecimento de um diálogo entre a filosofia e a literatura. Comecemos nossa análise por aquilo que o crítico considera um perigo a ser evitado: a tentação de assumir o comportamento de um sujeito que admite ter sido engolido pela onda dos acontecimentos, ou ainda, “ultrapassado” pelo evento. A primeira coisa que chama nossa atenção é a maneira como o autor adverte sobre o erro a ser evitado por meio da utilização de metáforas. O uso desse tipo de linguagem para descrever 3 Cf. 3 Starobinski, Jean. Les Aproches du Sens: Essais sur la critique. Gèneve: La Dogana, 2013 p.311 4 Salvo indicações contrárias, as traduções são de nossa autoria. 180

Anais a condição atual da crítica literária exigiria um trabalho de interpretação bastante cuidadoso por parte do leitor, tornando-o atento aos detalhes mais caprichoso do estilo empregado. No entanto, o próprio crítico se apressa em explicitar de modo inequívoco o sentido de suas palavras ao relacionar o arrebatamento da onda ao caráter anacrônico do objeto e das escolhas que envolvem a reflexão crítica-literária. Com efeito, como afirma o crítico genebrino, Jean Starobinski, diante da diversidade de caminhos possíveis para desvendar uma obra literária, pode-se afirmar que “(...) toda crítica implica uma escolha” (STAROBINSKI, 2013, p. 33). Nesse sentido, a afirmação de Starobinski aponta para o epicentro do maremoto antecipado por Raymond: a insegurança que acompanha a escolha a ser feita pelo crítico, tendo em vista a especificidade do seu objeto e o método de análise que precisa adotar para validar o conhecimento que a obra literária possibilita alcançar. A tentação que Marcel Raymond deseja evitar se refere à atitude do crítico diante da zona de instabilidade que a própria forma literária institui. O foco da escolha aqui não é tanto a opção pelo método x ou y, mas a direção que o procedimento adotado estabelece. O que está em jogo é a decisão de ficar no espaço literário ou adotar um procedimento seguro para escapar da instabilidade do terreno no qual a literatura se assenta. Para compreendermos as causas dessa instabilidade, teríamos que considerar o processo de origem e formação da crítica enquanto gênero literário, bem como os obstáculos que envolvem a consolidação do domínio literário como centro produtor de conhecimento. Desse modo, o risco que envolve a cultura literária correlaciona diversos elementos que historicamente institucionalizaram um modelo específico de conhecimento. Infelizmente não dispomos de tempo hábil para esmiuçar cada um desses fatores, por isso convém apenas esclarecer que se trata de um modelo comprometido com a tradição da ciência positivista. Com efeito, a primeira tentação, à qual Raymond se refere é a de utilizar a estrutura formal dos métodos científicos e a linguagem conceitual que lhe é característica como esteio para a atuação da crítica literária. E de fato, quando a produção literária é integrada à ordem cientificista, o crítico passa a dispor de uma lógica mecânica capaz de controlar objetivamente o desenvolvimento da análise, pois submete a obra às determinações exatas do domínio escolhido. Contudo, as condições necessárias para controlar a experiência literária de modo a garantir a estabilidade formal do objeto não se baseia em uma relação “fraternal”, ou para melhor dizer, em uma relação entre iguais. Pelo contrário, as relações que caracterizam o compromisso entre a atuação da crítica e a estrutura positivista do 181

Anais conhecimento cientifico impõem critérios que reduzem a expressão literária a mero auxiliar, obrigando o crítico a assumir pressupostos e objetivos alheios a sua matéria para orientar a interpretação do texto. Não é à toa que Marcel Raymond descreve a assimilação dos métodos científicos como um ato de submissão por parte do crítico que assume o papel de perdedor e dobra os joelhos diante do que parece óbvio, a saber, que a instabilidade literária foi transposta pela eficiência cientifica. Na prática, os críticos da Escola de Genebra apontam o preço cobrado da literatura pela segurança da lógica positivista quando examinam o que acontece com a crítica literária que assenta sua produção nos campos vizinhos que constituem o território da ciência. Lembremos que, nesse momento, estamos pensando no campo das ciências humanas. Como mostra uma análise de Jean Starobinski a respeito desse tema, a sociologia, ciência das estruturas da vida social; psicologia, ciência da personalidade, linguística, ciência da linguagem, cada um poderia incluir obras literárias no campo de sua pesquisa. A dificuldade que ronda essa inclusão é a obrigação que se impõe aos críticos de voltar para a escola e de modo a se formarem linguistas, sociólogos ou psicólogos. Em outras palavras, segundo a posição expressa pelo crítico da Escola de Genebra, a crítica literária, nos casos citados por ele, deixa de ser crítica literária para ser uma crítica sociológica, crítica psicológica, crítica linguística etc. Por esse motivo a Escola de Genebra coloca a exigência de refletir sobre as condições necessárias para a prática de uma reflexão verdadeiramente comprometida com o caráter literário do conhecimento produzido por ela. Retornando ao texto de Marcel Raymond, que serve de fundamento para nossa apresentação, se por um lado a submissão à lógica cientificista acaba por suplantar o caráter literário da crítica, por outro lado é impossível ignorar as transformações operadas durante o desenvolvimento histórico da ciência moderna sobre a própria concepção de saber. Nesse sentido, como afirma o autor, é preciso evitar ainda “uma segunda tentação, compensadora da primeira, seria a da orgulhosa e vã retaliação: a ciência, ou nova ciência, Leva o mundo à ruína; só nós saberemos, se ele deve ser salvo!” (RAYMOND, 1964, p.254) Evitamos assim um erro comum àqueles que conferem aos críticos da Escola de Genebra um sentimento de total aversão a qualquer procedimento vinculado às ciências ou a preocupações que remetem à história das ideias. Ao contrário disso os críticos do grupo reconhecem que a negação de todo arcabouço cientifico para instaurar uma espécie de conhecimento literário puro implicaria a completa autonomia da reflexão em relação a todos os métodos e parâmetros que fossem alheios à forma literária. E como o próprio Raymond 182

Anais afirma, o fato é que hoje uma cultura literária que pretende extrair toda a sua substância de seus próprios recursos e ser autossuficiente, dificilmente é concebível. Dessa maneira, levando-se em conta as condições que pautam a prática dos estudos literários, torna-se patente, para a Escola de Genebra, que o estabelecimento de um diálogo com outras formas de saber é essencial. Contudo, é preciso considerar que dentre as condições que envolvem um diálogo real, é fundamental que haja o reconhecimento mútuo entre as partes que o estabelecem. Com isso queremos dizer que é preciso encontrar um meio para suprimir qualquer tipo de hierarquia entre as diferentes formas de saber envolvidas. Como dissemos há pouco, a Escola de Genebra não ignora as transformações históricas pelas quais passou o modo de enunciação do saber ou procedimentos reconhecidos para a obtenção do conhecimento verdadeiro. Tanto as consequências de tais transformações, quanto a necessidade de superar as limitações impostas por elas são consideradas no texto de Raymond, quando o autor afirma o seguinte: A necessidade de um diálogo entre estudiosos e literatos é essencial, ainda que esse diálogo, solvente, se torne curto, ainda que a dificuldade de encontrar uma linguagem comum, capaz de quebrar uma dupla surdez, pareça quase intransponível. (RAYMOND, 1964, p. 254). Desse modo, é a partir do reconhecimento dos limites, que a crítica literária manifesta o desejo de sobrepuja-los. Como disse Marcel Raymond, o caminho para isso não é o da retaliação, mas o do diálogo. A dificuldade de estabelecer o tipo de relação necessária para a troca dialógica, por sua vez, exige a criação de um espaço transacional por parte do crítico. Nesse sentido, os críticos da Escola de Genebra enxergam no trabalho a ser desenvolvido pela consciência do leitor o mesmo sopro, a mesma inspiração que possui a obra literária. Apesar da dificuldade que existe em encontrar este meio comum o crítico reconhece que há espaços onde a possibilidade de interlocução é maior. Nessa apresentação vamos nos restringir àquele apontado por Raymond como o mais natural: a filosofia. Devido ao tempo reduzido que dispomos aqui, iremos apenas indicar o caminho adotado pelo crítico no texto em questão, destacando que o diálogo entre a literatura e a filosofia atua como um elemento de identificação para a formação e integração dos componentes da Escola de Genebra. Devemos destacar também que os modos como cada um dos críticos atuam para composição de tal espaço não são idênticos, nem estão subordinados a um quadro estático normativo. 183

Anais No nosso caso, após enunciar a necessidade de encontrar uma linguagem comum suficiente para interromper a dupla incapacidade de escuta que essas duas esferas do saber demonstram uma em relação à outra, o caminho adotado por Raymond não supõe a aplicação de sinais norteadores ou a identificação de referência conceituais que visem esclarecer, iluminar de modo inequívoco o sentido da produção literária. Pelo contrário, ao invés de buscar iluminar mutuamente essas duas esferas do saber, o crítico empurra o leitor para a zona obscura que as duas possuem em comum. Verdadeiramente, a realização do diálogo proposto por Raymond depende de oferecer à reflexão do leitor não o fato literário que a luz da ciência ou da história evidencia, mas sim a parte poética do objeto literário que ainda falta iluminar. Em poucas palavras, podemos dizer que é através da perturbação do desejo de esclarecimento filosófico que a crítica literária da Escola de Genebra se constituí.Para colocar em outros termos, não é sobre o que já foi iluminado pela ciência ou pela filosofia que os críticos da Escola de Genebra concentram sua abordagem, mas para aquilo que ainda não tem, nem nunca terá lugar à luz do saber positivo instituído. Por fim, o que os críticos da Escola de Genebra fazem é precisamente restaurar a atualidade da obra literária ao acolher juízos intraduzíveis e não conceituais que normalmente são descartados pelas instâncias produtoras de conhecimento. Sendo assim, voltemos à citação inicial, retirada do texto de Marcel Raymond apontada no princípio desse trabalho: “Acontece que os representantes da cultura que chamaremos de literária, em sentido amplo (sendo a literatura inseparável das disciplinas filosóficas e históricas), sofrem hoje um complexo de inferioridade” (RAYMOND, 1964, p.253). Desse modo, nosso texto teve início nessa sensação reprimida, um afeto que toma os representantes da cultura literária: o complexo de inferioridade que experimenta o autor moderno. Nessa perspectiva, Benedito Nunes possui um texto que pode nos ajudar a compreender uma crítica literária, como a da Escola de Genebra, instaurada a partir da impotência da expressão humana e do conflito ético que daí deriva. Em relação à contraposição entre a filosofia e a poesia, Nunes confere à literatura “a verdade essencial relativa à ação humana, a verdade do ethos, de que a filosofia não pode falar. Mas pode a filosofia, ironicamente, sem omitir-se, falar dessa sua impossibilidade (...)” (NUNES, 2011, p. 17). Com efeito, os críticos da Escola de Genebra não limitam suas reflexões à impossibilidade de enunciação apontada pela própria expressão filosófica, mas obrigam a filosofia a escutar no seu próprio silêncio o que eco longínquo da linguagem literária. 184

Anais REFERENCIAS NUNES, Benedito. Poesia e filosofia: uma transa. A Palo Seco-Escritos de Filosofia e Literatura, v. 3, n. 3, 2011. RAYMOND, Marcel. Vérité et poésie: études littéraires. Suisse: Editions de la Baconnière, 1964. STAROBINSKI, Jean. Les aproches du sens: essais sur la critique. Gèneve: La Dogana, 2013. 185

A VIDA LITERÁRIA NA “NOVA ATENAS BRASILEIRA”: TRAJETÓRIAS NEGRAS DE NASCIMENTO MORAES E ASTOLFO MARQUES Patricia Raquel Lobato Durans CARDOSO1 (UFSC) RESUMO A historiografia literária de Brito Broca (2005), mais próxima da crônica jornalístico- literária, que visa pensar a vida pessoal e interpessoal dos escritores com seus grupos e redes sociais, suas dissonâncias e assonâncias, e, além disso, destacar figuras que foram esquecidas pela crítica e cânones literários, é muito valiosa para a literatura enquanto ramo do conhecimento, uma vez que retira a auréola de seres divinos dos escritores, iluminados e escolhidos, posicionando-os como realmente são – homens e mulheres de seu tempo –, sujeitos social e historicamente determinados. Nessa perspectiva, o presente artigo tem o objetivo de colocar em destaque dois intelectuais negros maranhenses, José Nascimento Moraes e Raul Astolfo Marques, ambos do final do século XIX, pensando-os como iniciadores de uma literatura afro-brasileira (DUARTE, 2014), porém desenvolvida por meio de articulações e posições diferentes que reverberam tanto nos seus textos quanto em seus lugares ideológicos ou lugares de fala, assim como permitem vislumbrar o campo intelectual (BOURDIEU, 2010) ou vida literária do que se convencionou chamar na historiografia maranhense de Ciclo Neo-ateniense. As análises concentram-se principalmente nas suas trajetórias intelectuais, nas suas atuações jornalísticas e nas suas principais obras: Vencidos e Degenerados, de Nascimento Moraes, e A nova Aurora, de Astolfo Marques. 1 Doutoranda do programa de Pós-Graduação em Literatura. E-mail: [email protected] 186

Anais Palavras-chave: Literatura maranhense. Intelectuais negros. Nascimento Moraes. Astolfo Marques. Literatura afro-brasileira. ABSTRACT The literary historiography of Brito Broca (2005), closer to the journalistic-literary chronicle, which aims to think about the personal and interpersonal life of writers with their groups and social networks, their dissonances and assonance and, in addition, highlight figures that were forgotten by critics and literary canons, is very valuable for literature as a branch of knowledge, since it strips the writers of the halo of divine, enlightened and chosen beings and positions them as they really are - men and women of their time – socially and historically determined subjects. In this perspective, this article aims to highlight two black intellectuals from Maranhão - José Nascimento Moraes and Raul Astolfo Marques - from the late 19th century, thinking as initiators of an Afro-Brazilian literature (DUARTE, 2014), but developed by through different articulations and positions, which reverberate both in their texts and in their ideological places or places of speech, as well as allowing a glimpse of the intellectual field (BOURDIEU, 2010) or literary life of what is conventionally called in the historiography of Maranhão Neo-athenian Cycle. The analyzes focus mainly on his intellectual trajectories, his journalistic performances and his main works: Vencidos e Degenerados, by Nascimento Moraes and A nova Aurora, by Astolfo Marques. Keywords: Literature from Maranhão. Black intellectuals. Nascimento Mores. Astolfo Marques. Afro-Brazilian Literature. Broca (2005) salienta que o campo literário, assim como todo campo intelectual, não é povoado só com textos, mas por redes de sociabilidade, incluindo o afetivo e o ideológico, que se interpenetram. Ao contrário do que se pode pensar, mesmo estando situado em um mundo de inteligência, no qual, teoricamente, os indivíduos reprimiriam suas emoções a serviço da razão, de acordo com Sirinelli (2010), as relações de atração, amizade, hostilidade, rivalidade, ruptura, briga e rancor desempenham papel decisivo, assim como as fofocas, as intrigas, os boatos, as polêmicas. De certa forma, Broca (2005) antecipa discussões que vão se dá de forma mais profunda e sistemática a partir da década de 1970, quando, conforme Culler (2016), a teoria literária passa a se preocupar não só com questões puramente de natureza literária, mas com uma massa de textos teóricos sobre coisas que são importantes à literatura e que vão desembocar em todas as mudanças que se tem atualmente nessa área de conhecimento. Nessa perspectiva, este artigo, fruto de uma comunicação, tem o objetivo de colocar em destaque dois intelectuais negros do final do século XIX, pensando-os como precursores de uma literatura afro-brasileira a partir de atuações regionais no que a historiografia maranhense chama de “Ciclo ou Fase Neoateniense”. Esse termo é escrito aqui entre aspas 187

Anais para indicar que se trata atualmente de uma classificação historiográfica discutível e que tais autores encaixados nesse período não representavam uma homogeneidade. Para entendermos melhor a vida literária do Maranhão no século XIX, é preciso dizer que a historiografia tradicional local (LOBO, 2008; CARVALHO, 1912; MEIRELES, 1955; MORAES, 1977) afirma que a literatura maranhense teve três grandes ciclos ou fases no século XIX. Para esses pesquisadores, antes desse século e do advento do Romantismo não existia o que se pode chamar de literatura maranhense, mas literatura sobre o Maranhão. A partir do regresso de uma elite econômica e intelectual que estudou em Coimbra e a instituição da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, começou a aparecer uma vida intelectual maranhense. Em termos literários, isso se deu com a aparição das obras de escritores que foram se inserindo no chamado “Grupo Maranhense”, cujo início foi em 1832 com a publicação de Hino à tarde, de Odorico Mendes. Devido à vida literária intensa nesse período e com a monumentalização da cidade, a criação de órgãos de publicação e circulação de escritos e o sucesso literário de escritores do calibre de Gonçalves Dias, João Lisboa, dentre outros, a capital maranhense recebeu o título de Atenas Brasileira. Para resumir esse acontecimento, Corrêa (1993, p. 29) coloca que “a mitologia da Atenas brasileira correlacionou o principium sapientiae grego ao papel desempenhado pelo Grupo Maranhense no desafio de responder às exigências constitutivas de uma cultura brasileira”. Aí está o primeiro ciclo. O segundo ciclo nasce com uma literatura realista/naturalista e se configura pelo esvaziamento intelectual do Maranhão, uma vez que esse ciclo foi constituído por maranhenses estudantes da Faculdade de Direito de Recife e se caracterizou por escritores que construíram suas trajetórias fora da sua terra natal. Por esse motivo, essa geração é chamada de “Grupo dos Emigrados”. Não há um consenso na historiografia no que diz respeito ao marco inicial desse grupo, mas o seu início se dá no final da década de 1860. O motivo da saída desses intelectuais foi a divergência de ideias entre a população tradicional e os intelectuais liberais. Nesse grupo está Arthur Azevedo, Aluísio Azevedo, Graça Aranha, Coelho Neto, Raimundo Corrêa, etc. A partir desse esvaziamento literário interno, que via o Maranhão sem seus cérebros mais brilhantes, nasceu o terceiro grupo da literatura maranhense, com a publicação de Frutos Selvagens, de Inácio Xavier de Carvalho, em 1893. Esse grupo de intelectuais queria reativar a literatura maranhense feita em sua terra e se inspirava na primeira geração para isso. Como coloca Broca (2005), urgia restabelecer a supremacia intelectual da decantada 188

Anais Atenas Brasileira. No entanto, não só intelectualmente falando, as condições materiais já não eram as mesmas devido à forte instabilidade econômica e política no final do século XIX. Com essa herança de reviver o passado, mas, ao mesmo tempo, uma pecha, eles se autodenominaram de Os novos atenienses, mas foram considerados pelos historiadores de “Grupo Decadentista”. É nesse ciclo que tem Antonio Lobo como grande líder e no qual estão incluídos os dois literatos objeto de nossa reflexão – José do Nascimento Moraes e Raul Astolfo Marques. Prefere-se, porém, afirmar que ambos são contemporâneos a dizer que fazem parte do mesmo ciclo, pois, como vai ser possível perceber, suas posições literárias e ideológicas, às vezes, desenvolvem-se em orientações divergentes. Os dois intelectuais têm uma origem muito parecida. Ambos são de origem humilde e tiveram que batalhar para conseguir uma educação que lhes permitissem transitar no meio intelectual de sua época. Nascimento Moraes nasceu em São Luís do Maranhão em 19 de março de 1882, e faleceu em 21 de fevereiro de 1958, na mesma cidade. Era filho de Manoel do Nascimento Moraes, negro, analfabeto, sapateiro e ex-combatente da guerra do Paraguai, e de Maria Catarina Vitória, ex-escrava e feirante. Teve uma educação formal difícil, alcançando o curso preparatório para o Liceu Maranhense e uma passagem pela Academia Militar, por isso grande parte dessa formação deveu-se ao seu autodidatismo. Tornou-se professor de Geografia do Liceu Maranhense, e de Português e Geografia na Escola Normal e em várias outras escolas particulares do Maranhão. Igualmente, Astolfo Marques nasceu em São Luís do Maranhão em 11 de abril de 1876 e faleceu na mesma cidade, em 28 de maio de 1918. Acredita-se que sua mãe era uma escrava alforriada chamada Delfina Maria da Conceição Marques. Não há registro de pai em sua vida. Astolfo Marques tinha mais seis irmãos. Depois de exercer várias profissões, ajudando sua mãe a entregar roupas e levando recados, seu primeiro emprego regular foi de servente na Biblioteca Pública, onde pôde, com seu autodidatismo, obter instrução por meio da leitura e desenvolver suas experiências literárias entre a limpeza e arrumação dos livros, já que essas tarefas faziam parte de suas funções na casa. Mais tarde, após deixar o emprego de servente, ocupou vários cargos públicos, como Secretário Interino da Instrução Pública e do Liceu Maranhense (FUNDAÇÃO, 1976). Apesar de mais velho, Marques morreu muito mais jovem que Moraes, que pôde desenvolver mais sua escrita e sua posição política. Desde muito jovem e exercendo diferentes funções, Moraes colaborou em vários jornais, como: Diário de São Luís, A campanha, O Maranhão, A pátria, O jornal, A tribuna, A hora, Diário do Norte, O globo, Correio 189

Anais da tarde, A imprensa, Regeneração, Notícias, Diário do Maranhão, Atenas, Correio da manhã e O imparcial. Teve como pseudônimos Braz Sereno, Sussuarana, João Sem Terra, Zé Maranhense, João Ventura, Valério Santiago e Junius Viactor. Suas obras publicadas foram: Puxos e repuxos (1910), uma compilação de seus textos em ocasião da polêmica com Antônio Lobo; Vencidos e degenerados (1915), romance; Neurose do medo (1923), crítica política que analisa o governo de Raul Machado; Os contos de Valério Santiago (1972), publicação póstuma que reúne contos escritos na década de 1940 para a Revista Atenas, suplemento literário do jornal O imparcial. Escreveu também folhetins, dentre os quais contabilizam-se os seguintes: Amor Original e Mestre André, entre outros, publicados no jornal A campanha. Marques teve uma escrita literária menor no sentido de quantidade. Colaborou em vários periódicos da imprensa maranhense, como Revista do Norte, Diário Oficial, Diário do Maranhão, Os Novos, Pacotilha, O Jornal. Foi correspondente do Jornal do Comércio de Caxias; O Norte, de Barra do Corda; O Comércio, de Teresina, dentre uma lista infindável. Fundou a Oficina dos Novos e o periódico Os novos, em 1900, juntamente com Francisco Serra e João Gomes. Foi jornalista e tradutor, contista e ensaísta. Seus livros publicados foram: Natal, de 1908, livro de cinco contos que mostra quadros da cena festiva dessa data comemorativa; A vida maranhense, outro livro de contos, de 1905, que trata de cenas relacionadas ao cotidiano de festas maranhenses; A nova aurora, novela maranhense que trata principalmente do período relacionado à Proclamação da República, de 1913; e o livro de esboço político, intitulado Dr. Luís Domingues, de 1910, que, como o nome indica, trata-se de uma crítica política sobre o citado governador. Ambos se integraram às agremiações literárias de sua época e, durante algum tempo, foram colegas e contemporâneos nessas agremiações. Na Oficina dos Novos, Nascimento Moraes foi o primeiro presidente e Astolfo Marques assumiu o papel de fundador, secretário, tesoureiro, presidente; ambos colaboraram com o jornal dessa instituição denominado Os novos. No entanto, Moraes rompeu com a Oficina e criou uma outra agremiação chamada Renascença Literária, que tinha como periódico A Renascença. Astolfo Marques manteve-se naquela agremiação até seu encerrammento. Essas e várias agremiações literárias alicerçaram o caminho para a criação da Academia Maranhense de Letras, em 1908, da qual consta como fundador Marques em um grupo de doze intelectuais. Para ele foi instituída a Cadeira nº 10, patrocinada por Henriques Leal. Diferente de Marques, Moraes, mesmo tendo essa elástica produção, só entrou para o grupo dos imortais em 1935, ocupando a cadeira 11, cujo patrono foi João Lisboa, e, por duas vezes, presidiu a instituição. 190

Anais É bem provável que a diferença nesse percurso de reconhecimento e consagração tenha a ver com a questão racial e, principalmente, com a postura em relação a essa temática. Ambos eram negros em uma sociedade racista, de abolição recente e preconceituosa, mas a forma como desenhavam as suas posições e trajetórias intelectuais negras eram bastante diferentes. Moraes tinha uma crítica afiada. Ousou em ser crítico literário ao longo de sua vida, sem poupar a ninguém. Na prosa jornalística, tornou-se a voz de denúncia dos problemas sociais e contra as injustiças, mantendo-se atuante nas cinco primeiras décadas do século XX. Como professor, tinha grande preocupação com a educação pública e os métodos de ensino, por isso seus artigos tinham um caráter pedagógico, com a finalidade de instruir o povo, praticando, por meio do jornalismo, seu ofício de mestre. Condenava o analfabetismo, sugeria a reforma da educação brasileira e afirmava que a educação era o principal fator de mudança da realidade brasileira nos seus artigos. Defendia uma educação revolucionária, uma revolução que partisse do povo, a partir de sua própria realidade (MORAES, 1982). Seu engajamento às suas posições ideológicas firmes lhe rendeu uma série de consequências. Uma delas foi o rompimento com o grupo que fundaria a Academia Maranhense de Letras, que tinha Antonio Lobo como seu principal articulador. A partir daí começou a sofrer uma série de ataques na imprensa de sua época, inclusive com manifestações racistas, numa polêmica que durou alguns anos no cenário maranhense e que deixou de discutir aspectos formais de obras literárias para atingir pessoalmente cada lado de sua disputa. Lobo externalizava todo o racismo daquela sociedade, afirmando ser de uma raça caucásia e superior, e, de todas as formas, inferiorizando racialmente e intelectualmente o adversário. No dia 30 de julho de 1910, Galliza, o pseudônimo de Lobo, atacou Valério Santiago, pseudônimo de Moraes: O negro é sempre isto: ou tem talento Ou não tem raciocínio e é peru; Ou Patrocínio é, ou é jumento; Ou Luiz Gama, ou tu. […] A prevenção, porém, fazer-te quero agora E com ela bem sei que te desbanco: Si o publicares, meto-te a espora E o relho cru, até ficares branco. (GALLIZA, 1910, p. 2). 191

Anais Moraes tentou continuar o debate no nível da crítica e da historiografia, mas em diversos momentos teve que se defender e tratar sobre a sua negritude. Abriu seu artigo do dia 01 de agosto de 1910 com um parêntese para responder aos insultos que havia lhe feito: Negro! Eis aí o insulto, a palavra com que eles pensam que nos esmagam, que nos reduzem a última expressão! Que não diriam se fossemos brancos da ilha, ou mesmo caboclo! Negro! É o grito de terror, de medo e de ódio, é o grito do vencido, do nulo, do inabilitado que não pode discutir e nem sabe fazer o que todo mundo sabe - insultar! Negro! Repetem tomados pela cólera, possuídos por uma idiota indignação! […] Estamos satisfeitíssimos com esta amostra que deram do seu elevado preparo e grandeza intelectual e moral! Na verdade, é digno de nota, que um homem talentoso e de muito saber escreva versos ameaçando de chicote, relho cru, etc. o adversário!!!... Nada mais edificante, majestoso e eloquente, para quem brilha como estrela de primeira grandeza literária, para quem guia espíritos de moços inexperiente que lhe seguem as lições!!!... (MORAES, 1910, p.10). Em outro momento, mais uma vez, Moraes se levantou contra Lobo no sentido de mostrar a sua ancestralidade e reverter os ataques racistas que vinha sofrendo: Um TIPO DE RAÇA CAUCÁSIA NO MARANHÃO!!![…] Lobo literato, Lobo “chefe de uma intelectualidade”, diz pela imprensa que só o branco é capaz das grandes empresas! Grita que só os brancos são superiores! Nega, assim, o “colosso” toda uma história literária! Nega, na sua inconsciência os extraordinários monumentos da literatura e cultura brasileira! Nega André Rebouças, Tobias Barreto, Basílio da Gama. Laurindo Rabello, Luiz Gama, Ferreira de Menezes, Carlos Gomes, José Maurício, José do Patrocínio, Gonçalves Dias, Guimarães Passos, João de Deus, do Redo, João Gronwell, Aluisio, Americo, Arthur Azevedo, Cruz e Sousa, Hemeterio dos Santos, Sergio Martinho, Joaquim e. do Nascimento. Hermenegildo A. da Encarnação, Euclides da Cunha, Eduardo Ribeiro, Th. Vaz, Jonas da Silva, José Verissimo, Indio do Brasil, Silvio Romero, Alves de Miranda e tantíssimos outros que não podemos agora enumerar. Mas para achatar Lobo bastaria citar Gonçalves Dias, à custa de quem ele tem feito muitos discursos. Lobo terá perdido de todo a razão? Estaria Lobo completamente desequilibrado para escrever que só é superior o “branco”? O Lobo caucásio estará tomando gosto com a sociedade maranhense, com os homens cultos de nosso meio? Nem os próprios brancos te louvarão a injustiça! (MORAES, 1910, p.21). Diante desses insultos, questiona-se onde estaria Astolfo Marques nesse momento? O que teria sentido vendo um homem negro, assim como ele, sofrer toda essa humilhação? E que tal humilhação vinha de seu grande amigo Antonio Lobo? Em meio a tantos que foram 192

Anais chamados ou citados na polêmica e que quiseram se retratar, Marques foi o único que permaneceu indiferente, mesmo quando afirmaram que ele era inferior a Nascimento Moraes e que só era reconhecido porque era da panelinha de Lobo. Não entrou na conversa. Não escreveu nem para Lobo, nem para Nascimento. Permaneceu neutro, mesmo já tendo sido elogiado pelos dois que estavam na polêmica. Assim era a escrita de Astolfo Marques. Uma escrita que queria parecer neutra, principalmente no que concerne às questões raciais. Enfatiza-se o parecer, porque Astolfo não deixava de tratar sobre as questões mais urgentes de sua época, como instabilidade política, problemas da República, escravidão, abolição e questões raciais, mas esses temas apareciam no detalhe, ou seja, muito mais nos textos literários do que nos artigos jornalísticos. No que diz respeito às polêmicas, o seu nome não estava registrado nessas estruturas de sociabilidade e não se tem notícia de seu rompimento com Antonio Lobo. Este, por sua vez, no final de sua vida, rompeu com todos os seus amigos, morrendo na mais completa solidão. Enfim, o perfil de Astolfo era de uma aparente não implicação ideológica. Mesmo vivendo na época em que vivia, ao contrário de Marques, Moraes tinha uma escrita combativa e autoafroidentificada, sendo hoje reconhecido como um literato afro- brasileiro. No caso de Marques, não foi até agora reivindicado um lugar na literatura afro- brasileira para esse intelectual. Será que o contexto social, político, individual em que se encontrava não dava margem para expressar o seu pertencimento racial? Será que a sua sobrevivência enquanto escritor dependia do apagamento de sua identidade negra? Marques não tinha essa escrita combativa, porém suas obras literárias não se furtavam em discutir essas questões de uma maneira menos explícita e menos categórica. Podemos perceber isso por meio de seus romances. Em Vencidos e Degenerados, publicado em 1915, Moraes constrói uma São Luís negra, com personagens negros que se envolvem politicamente para produzir melhores contextos de vida para si e para os outros, mas são perseguidos por isso, ou mesmo vencidos e degenerados, como o próprio título já expressa. A trama se desenvolve a partir de datas históricas que delimitam seu início e fim: o dia da abolição da escravatura no dia 13 de maio de 1888, às oito horas da manhã, e a Proclamação da República em 15 de novembro de 1900 (primeiro aniversário da data). A história se passa em São Luís, capital maranhense. A escolha dessas duas datas é simbólica e permite estabelecer entre elas uma relação de causalidade. Contudo, é importante perceber que a consecução dos fatos revela uma quebra de expectativa em relação aos tons das duas comemorações, pois a festa da abolição é uma festa 193

Anais popular, alegre, do povo humilde, dos oprimidos, dos negros, enfim, uma festa de esperança; já a festa da República era apenas uma solenidade esvaziada de sentido, burocrática, elitista, uma festa que frustrava o povo, que se manifestava por meio de insultos àqueles ares que eram republicanos, mas não democráticos (MORAES, 1968). Percebe-se explicitamente uma decepção com a República por meio de uma denúncia em relação à não concretização dos ideais sonhados com o regime político estabelecido. Essa discussão em torno dos mesmos fatos históricos se apresenta no romance de Marques, A nova Aurora, publicado em 1913 – uma república elitista e uma abolição popular -, porém a São Luís negra de Marques é harmonizada com cenas que estão relacionadas ao modo como a elite maranhense encarava tais fatos acontecidos. Na verdade, visões contraditórias mantinham a cena equilibrada para que não se pudesse notar o tratamento do tema da negritude. Isso se pode observar quando não se tem explicitamente uma tomada de posição política, uma vez que a República era criticada, mas depois harmonizada com a ideia de esperança, o que não ocorre em Moraes. Presta-se homenagem tanto aos republicanos quanto aos monarquistas nas duas dedicatórias do livro. A própria abolição começa sendo narrada como um problema para a economia, destacando, inclusive, uma indenização para os donos de escravos e, mais tarde, sendo exaltada como regeneração social e grande dinamizadora da economia maranhense que se tornava industrial. Ao mesmo tempo que o texto exalta nomes como Eusébio de Queiroz, José do Patrocínio e outros abolicionistas, coloca ao lado deles a Princesa Isabel, destacando-a sempre como “A Redentora”, sem que se possa perceber se se trata de uma menção irônica ou não. Ao mesmo tempo em que o texto oferece grande destaque ao fuzilamento de homens negros por se rebelarem contra a República, acredita no conceito histórico republicano. Em meio a tudo isso, todas essas fricções, contrastes ou contradições do texto, elementos que estão na sua própria tessitura, extrapolam para o âmbito estético e se consolidam por meio da dificuldade de se definir o próprio gênero literário, classificado em sua capa como “novela maranhense”. Em muitos momentos, o texto se constrói mesmo enquanto conteúdo não ficcional, tendo sido antes publicado em partes como artigos de jornais. O título já expressa uma doçura e uma noção de esperança que torna o texto menos pesado e mais camuflado, embora o autor não se furte em narrar assuntos importantes para a época. A escolha por essas questões e não por outras, ainda que sejam menos problemáticas, já sugere um nível de comprometimento com os problemas de sua sociedade 194

Anais maranhense e brasileira, produzindo uma atitude ética que coloca a escrita de Marques como possibilidade de reflexão sobre diversas temáticas, dentre elas a questão racial. Isso está presente nas obras dos dois literatos, porém, enquanto Moraes dá visibilidade à questão racial, a escrita de Marques mergulha num jogo de visibilidade-invisibilidade das relações raciais que estão imbricadas em sua condição social e racial. Cada um descobriu a seu modo como jogar o jogo, ou seja, a identificar as estratégias que lhes permitiram atuar como literatos/intelectuais na sociedade maranhense nos primórdios da Primeira República. Enquanto Moraes explicita a sua literatura negra, Marques a guarda nas estruturas mais profundas de interpretação. Enquanto Moraes usa tanto o jornalismo quanto a literatura para a denúncia, Marques prefere escondê-la por meio da sensibilidade do molde literário. Para a época, esse segundo modo era uma literatura possível, mas não menos literatura afro-brasileira do que a primeira. Marques e Moraes são duas trajetórias negras e maranhenses que seguiram caminhos diferentes na luta antirracista. REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. BROCA, Brito. A Vida literária no Brasil – 1900. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, Academia Brasileira de Letras, 2005. CARVALHO, Antônio dos Reis. A literatura maranhense. In: Biblioteca Internacional de Obras Célebres. Rio de Janeiro: Sociedade Internacional, 1912. v. 20. p. 9737-9754. CORRÊA, Rossini. Formação social do Maranhão: o presente de uma arqueologia. São Luís: SIOGE, 1993. CULLER, Jonathan. Teoria Literária hoje. In: CECHINEL, André (Org.). O lugar da teoria literária. Florianópolis: EdUFSC, 2016, p. 83-100. DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI. Rio de Janeiro: Pallas, 2014. GALLIZA, G. Intervenção pacífica. Pacotilha, São Luís, ano XXX, n. 178, 30 jul. 1910. p. 2. LOBO, Antonio. Os novos atenienses. 3. ed. São Luís: AML/EDUEMA, 2008. MARQUES, Astolfo. A nova Aurora. São Luís, MA: Tipogravura Teixeira, 1913. MEIRELES, Mário Martins. Panorama da literatura maranhense. São Luís: Imprensa Oficial, 1955. 195

Anais MORAES, Jomar. Apontamentos de literatura maranhense. 2. ed. São Luís: SIOGE, 1977. MORAES, Nascimento. Puxos e repuxos. São Luís: Typographia do Jornal dos Artistas, 1910. MORAES, Nascimento. Vencidos e degenerados. 2. ed. São Luís: Edições Nascimento Moraes, 1968. MORAES, Nascimento. Neurose do medo e 100 artigos. São Luís: SECMA/Civilização Brasileira, 1982. SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÈMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: FGV, 2010. p. 231-269. 196


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