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Reabilitação Teoria e Prática

Published by Editora Lestu Publishing Company, 2022-07-14 19:31:45

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29 Transtorno do espectro autista Náira Julieta Alves da Fonseca Autismo vem da palavra grega autos, que significa “eu mesmo”, exprime a noção de próprio, de si próprio. Trata-se de um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por dificuldades persistentes na interação social, comunicação e presença de padrões restritos e repetitivos. A primeira descrição clássica do autismo ocorreu em 1943, quando Dr. Leo Kanner descreveu crianças que tinham em comum o isolamento extremo desde muito cedo na vida e obsessão por rotinas não aceitando mudanças. Em 1944, depois de um ano da descrição de Kanner, Hans Asperger descreveu casos com comportamentos semelhantes, mas com capacidade intelectual normal ou superior. Em 1952, a Associação Americana de Psiquiatria, pela primeira vez, publicou o Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DMS-I), com a finalidade de padronizar a nomenclatura e os critérios diagnósticos dos transtornos mentais. Sintomas autísticos foram classificados dentro da esquizofrenia infantil e não como uma entidade com diagnóstico próprio. Em 1980, no DMS-III, o autismo foi finalmente reconhecido como uma nova classe de transtornos do desenvolvimento, denominada transtornos invasivos do desenvolvimento (TID). Em 1994, DMS-IV trouxe novos critérios na definição de autismo, assim como das várias condições candidatas a serem incluídas na categoria TID. Era subdividida em cinco condições separadas: 1. transtorno autístico; 2. síndrome de Asperger; 3. síndrome de Rett; 4. transtorno desintegrativo da infância; 5. transtorno global ou invasivo do desenvolvimento sem outra especificação.

Reabilitação: teoria e prática Finalmente, em 2013, o DMS-5 propôs uma nova classificação onde o termo transtorno do espectro autista (TEA), foi sugerido com termo único que inclui as várias condições anteriormente diagnosticadas de forma separada. A maior diferença da nova classificação do DMS-5 em relação ao DMS-4 foi que a classificação atual unificou e simplificou os critérios na tentativa de facilitar o diagnóstico. Além disso, a tríade anteriormente necessária para o diagnóstico de TEA passou a conter apenas dois critérios: dificuldades sociais e de comunicação e comportamentos repetitivos, fixos e intensos (Quadro 1). Quadro 1: Modificações dos critérios diagnósticos do transtorno de espectro autista. DMS-4-R (tríade) DMS-5 (díade) 1. Prejuízo na interação social 1. Déficit na comunicação social e na interação social 2. Prejuízo quantitativo na comunicação 2. Padrão restritivo e repetitivo de 3. Padrão restrito, repetitivo e comportamento, interesse de comportamentos estereotipados interesse de e atividades ou atividades comportamentos e atividades Fonte: MONTENEGRO, CELERI & CASELLA (2018). Epidemiologia A frequência de pessoas com diagnóstico do transtorno do espectro autista vem aumentando de forma constante desde a realização do primeiro estudo epidemiológico publicado em 1966, por Victor Lotter. No estudo, identificou-se que 4,1 a cada 10.000 indivíduos no Reino Unido tinham TEA. Parte desse aumento provavelmente é resultado de mudanças nos critérios diagnósticos, que se tornaram mais abrangentes ao longo das últimas décadas. Outro aspecto importante é o fato de que até recentemente muitas pessoas com TEA e deficiência intelectual recebiam apenas o diagnóstico da segunda condição. Embora não seja possível excluir que esse aumento possa acontecer por um incremento em fatores de risco, ele provavelmente também é causado pela melhor conscientização, reconhecimento sobre a condição e documentação do diagnóstico. Considerando-se todos esses fatores, permanece a questão se também houve um aumento real de pessoas com TEA, ou se apenas mais pessoas com a condição passaram a ser identificadas. 402

Transtorno do espectro autista Pesquisas mais atuais, com análise de estudos populacionais de grande escala, apontam para a frequência do autismo duas a três vezes maior no sexo masculino, independentemente do nível intelectual. Etiologia O conhecimento da influência genética sobre o TEA alcançou um estado de paradoxo: há evidência importante de hereditariedade, porém com limitada detecção de genes e modos de transmissão envolvidos. As primeiras evidências de que há uma base genética no TEA surgiram pela observação da recorrência familiar e concordância entre gêmeos. Há um risco entre 2% e 8% de recorrência entre irmãos, uma concordância de 60% em gêmeos homozigóticos e de 10% em dizigóticos. Hoje está claro que múltiplos genes estão envolvidos no TEA. Estudos envolvendo genoma, citogenética e avaliação de genes candidatos mostram que tanto genes comuns (presentes em > 5% da população em geral) quanto variações genéticas raras, mutações e variantes genéticas transmitidas pelos pais estão associadas ao TEA. Atualmente, o maior foco das pesquisas é a identificação de interações específicas entre genes e o ambiente, já que as taxas de concordância entre gêmeos monozigóticos não são de 100%. Evidências de estudos neurofisiológicos e de neuroimagem funcional, neuroimagem estrutural, genética molecular e processamento de informações tem levantado a hipótese de que o TEA está associado a alterações nas redes neuronais. A ressonância magnética funcional tem identificado que uma série de regiões do cérebro, incluindo córtex pré- frontal medial, sulco temporal superior, junção temporoparietal, amígdala e giro fusiforme estão hipoativas em indivíduos com TEA durante tarefas nas quais percepção e cognição sociais são usadas. Vários fatores de riscos associados ao TEA tem sido identificados, entretanto, nenhum deles isoladamente se provou necessário e suficiente para causar a condição. No quadro 2, estão resumidos os fatores de risco ambientais para o TEA. Há diversas alterações genéticas que podem estar associadas com TEA como parte de sua expressão, como: síndrome do X frágil, síndrome de Rett, síndrome de Down, fenilcetonúria, esclerose tuberosa, neurofibromatose, distrofia muscular de Duchenne e síndrome de Angelman. Além disso, é importante ressaltar que não há evidências científicas de que vacinas ou componente de vacinas possam ser uma das causas do TEA. Outra hipótese descartada como possível causa de TEA é a falta de expressão de afetividade pelos pais (mito das “mães e pais geladeiras”). 403

Reabilitação: teoria e prática Quadro 2: Fatores de risco ambientais para o transtorno do espectro autista. Pré-natais Peri e neonatais - Idade parental avançada - Apresentação fetal anômola - Diabetes gestacional - Sofrimento fetal - Sangramento materno - Apgar baixo no 5º minuto - Gestação múltipla - Prematuridade - Primeiro filho - Pequeno para idade gestacional - Infecção materna - Peso do nascimento < 1500g -Exposiçãoaoácidovalpróico,àtalidomida, - Malformações congênitas ao misoprostol, a antidepressivos - Aspiração meconial - Hiperbilirrubinemia - Sangramento materno Fonte: RODRIGUES & VILANOVA (2017). Quadro clínico Na maioria dos casos, as manifestações do espectro autista aparecem em crianças que apresentaram um desenvolvimento neuropsicomotor normal até então, e que se tornam gradativamente pouco responsivas às pessoas. Algumas crianças, já no primeiro ano de vida, demonstram mais interesse nos objetos que nas pessoas e, quando os pais fazem brincadeiras de esconder ou sorrir, podem não demonstrar muita reação. Com frequência, os pais relatam retrospectivamente que o bebê dormia longas horas, era excessivamente calmo ou chorava muito sem consolo, rejeitando por vezes, o aconchego do colo dos pais, pouca responsividade do olhar durante a amamentação e não se voltavam para sons, ruídos ou vozes do ambiente. O comprometimento da comunicação pode, nos casos graves, significar ausência de fala em crianças não verbais e que não são capazes de usar outras formas de comunicação, não apontam, não gesticulam. Quando estas crianças necessitam de algo que não conseguem pegar sozinhas, fazem uso útil das pessoas, pegando-as pelo braço para abrir uma porta, alcançar um objeto, por exemplo. Por outro lado, como se trata de um espectro, a criança pode não ter atrasado para iniciar a fala, pode até falar bastante, mas nem sempre com coerência e na maior parte das vezes utiliza ecolalias tardias, decoradas dos desenhos ou dos programas de TV. As crianças autistas costumam ter uma fala pedante, com alteração de prosódia, utilizam de jargões e tem dificuldade para iniciar e manter um diálogo estruturado e com sequência lógica. 404

Transtorno do espectro autista Os interesses restritos e estereotipados variam muito de acordo com a intensidade e a frequência. Pioram quando as crianças ficam isoladas, quando estão muito excitadas e quando são contrariadas. Observa-se dificuldade de manifestação de repertório amplo e global de comportamentos e interesses. Em crianças de baixo funcionamento (que apresentam déficit intelectual simultaneamente), pode-se observar movimentos repetitivos como de balançar do tronco e mãos (chamados de flapping), além do uso não funcional de objetos e brinquedos (preferência por objetos que rodam, brincadeiras estereotipadas, como usar um boneco como carro). Nos casos de alto funcionamento (inteligência normal ou superior), observa- se interesses altamente limitados, específicos e restritos por temas pouco usuais, como astronomia, trens, datas históricas e dinossauros. As crianças são capazes de falar sobre tais assuntos específicos durante horas, com riqueza de detalhes, independentemente do interesse do interlocutor. Essas crianças não conseguem expressar de forma conveniente os seus sentimentos, desejos, pensamentos e aflições em um contexto social apropriado. São literais, costumam ter dificuldade em compreender palavras no sentido conotativo, piadas ou ‘’ler nas entrelinhas’’ o que está sendo dito por outro interlocutor. A comunicação não verbal também está prejudicada, ou seja, contato visual, gestos, expressões faciais e posturas com funções comunicativas não são expressas ou interpretadas de forma adequada. Outra característica marcante nas pessoas autistas é a dificuldade em lidar com mudanças de rotina, mesmo que aquelas mais simples, como horário do jantar ou um caminho alternativo para escola. Diante disto, estas crianças costumam ter rotinas fixas e inflexíveis e observa-se irritabilidade ou rompantes de raiva quando ocorrem mudanças das mesmas. Observa-se frequentemente como queixa dos familiares que estas crianças apresentam seletividade alimentar, como por exemplo, rejeitam alimentos com determinadas texturas, aceitam beber somente suco de uma determinada cor e sempre almoçam exatamente a mesma coisa todos os dias. Essas crianças costumam apresentar uma hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais, como sons, luzes, texturas ou cheiros. Essa característica diagnóstica foi introduzida no DMS-5, com observação de que muitas crianças se irritam com determinados sons agudos, não consegue pisar na areia, não aceitam manusear massinha de modelar, cheiram os alimentos antes de comer ou demonstram fascinação extrema por luzes e cores. No que concerne às dificuldades na socialização, observa-se que as crianças com TEA tem maior restrição à interação com seus pares, 405

Reabilitação: teoria e prática preferindo os adultos, crianças maiores ou brincar sozinhas. Autistas mais comprometidos, podem apresentar comportamentos inadequados em público como despir-se, masturbar-se, choros, gritos e risos imotivados. Já os menos comprometidos, tem como principal fonte de preocupação os sintomas como dificuldade em desenvolver empatia, compreensão social e interações recíprocas, que parecem ser os déficits nucleares do autismo. Muitas são desajeitados em atividades físicas e costumam priorizar atividades intelectuais. Em todas as situações, ocorrem diferentes graus de gravidade de sintomatologia, de tal maneira que quadros mais leves são confundidos pelos familiares e até pelos profissionais, que os percebem como se fossem crianças tímidas, retraídas ou tristes. Diagnóstico A despeito dos progressos em exames complementares, o diagnóstico continua essencialmente clínico, realizado por meio de observação direta do comportamento e dos atrasos presentes e entrevista com os pais e responsáveis. Em 2013, é lançado o DMS-5, no qual houve importante modificação na estrutura dos grupos de sinais e sintomas presentes no TEA e que determinam o seu diagnóstico. A primeira grande mudança foi a exclusão do critério envolvendo atraso ou ausência de linguagem expressiva. A outra mudança na classificação foi a criação de dois grandes domínios de prejuízo, sendo um na esfera do déficit de comunicação social e o outro do comportamento e interesses restritos/repetitivos. A síndrome de Asperger não é mais considerada uma situação separada. O quadro 3, apresenta os critérios diagnósticos segundo o DMS-5: A avaliação destes pacientes deve incluir a história do desenvolvimento neuropsicomotor, antecedentes gestacionais, perinatais e neonatais, características do sono, hábitos alimentares, investigação de possíveis comorbidades (convulsões, hiperatividade, impulsividade, auto e heteroagressividade e doenças gastrointestinais), antecedentes familiares Quadro 3: Critérios diagnósticos para transtorno do espectro autista, segundo DMS-5 A. Déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos, conforme manifestado pelo que segue, atualmente ou por história prévia. 1. Déficits na reciprocidade socioemocional, variando, por exemplo, de abordagem social anormal e dificuldade para estabelecer uma conversa normal a compartilhamento reduzido de interesses, emoções ou afeto, a dificuldade para iniciar ou responder a interações sociais. 406

Transtorno do espectro autista  2. Déficits nos comportamentos comunicativos não verbais usados para interação social, variando, por exemplo, de comunicação verbal e não verbal pouco integrada a anormalidade no contato visual e linguagem corporal ou déficits na compreensão e uso gestos, a ausência total de expressões faciais e comunicação não verbal.   3. Déficits para desenvolver, manter e compreender relacionamentos, variando, por exemplo, de dificuldade em ajustar o comportamento para se adequar a contextos sociais diversos a dificuldade em compartilhar brincadeiras imaginativas ou em fazer amigos, a ausência de interesse por pares. Especificar a gravidade atual: A gravidade baseia-se em prejuízos na comunicação social e em padrões restritos ou repetitivos de comportamento B. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, conforme manifestado por pelo menos dois dos seguintes, atualmente ou por história prévia (os exemplos são apenas ilustrativos, e não exaustivos; ver o texto):   1. Movimentos motores, uso de objetos ou fala estereotipados ou repetitivos (p. ex., estereotipias motoras simples, alinhar brinquedos ou girar objetos, ecolalia, frases idiossincráticas).   2. Insistência nas mesmas coisas, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento verbal ou não verbal (p. ex., sofrimento extremo em relação a pequenas mudanças, dificuldades com transições, padrões rígidos de pensamento, rituais de saudação, necessidade de fazer o mesmo caminho ou ingerir os mesmos alimentos diariamente).   3. Interesses fixos e altamente restritos que são anormais em intensidade ou foco (p. ex., forte apego a ou preocupação com objetos incomuns, interesses excessivamente circunscritos ou perseverativos).   4. Hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente (p. ex., indiferença aparente a dor/temperatura, reação contrária a sons ou texturas específicas, cheirar ou tocar objetos de forma excessiva, fascinação visual por luzes ou movimento). Especificar a gravidade atual: A gravidade baseia-se em prejuízos na comunicação social e em padrões restritos ou repetitivos de comportamento C. Os sintomas devem estar presentes precocemente no período do desenvolvimento (mas podem não se tornar plenamente manifestos até que as demandas sociais excedam as capacidades limitadas ou podem ser mascarados por estratégias aprendidas mais tarde na vida). D. Os sintomas causam prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo no presente. E. Essas perturbações não são mais bem explicadas por deficiência intelectual (transtorno do desenvolvimento intelectual) ou por atraso global do desenvolvimento. Deficiência intelectual ou transtorno do espectro autista costumam ser comórbidos; para fazer 407

Reabilitação: teoria e prática o diagnóstico da comorbidade de transtorno do espectro autista e deficiência intelectual, a comunicação social deve estar abaixo do esperado para o nível geral do desenvolvimento. Nota: Indivíduos com um diagnóstico do DSM-IV bem estabelecido de transtorno autista, transtorno de Asperger ou transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação devem receber o diagnóstico de transtorno do espectro autista. Indivíduos com déficits acentuados na comunicação social, cujos sintomas, porém, não atendam, de outra forma, critérios de transtorno do espectro autista, devem ser avaliados em relação a transtorno da comunicação social (pragmática). Especificar se: Com ou sem comprometimento intelectual concomitante Com ou sem comprometimento da linguagem concomitante Associado a alguma condição médica ou genética conhecida ou a fator ambiental Associado a outro transtorno do neurodesenvolvimento, mental ou comportamental com catatonia Fonte: AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (2013). (presença de parentes com TEA, deficiência intelectual, atraso de fala, síndromes genéticas e outras questões de saúde mental). Professores e outros cuidadores podem trazer informações adicionais muito importantes e devem ser contadas. Além disso, vídeos caseiros podem auxiliar o avaliador a constatar comportamentos pouco frequentes ou que já não estão mais presentes. A observação direta e entrevista da criança é imprescindível para o diagnóstico do TEA. Ao pensar na criança, temos, obrigatoriamente, a história subjetiva, tomada a partir de seu depoimento, o que demanda o conhecimento da linguagem e do universo infantil em seus diferentes momentos do desenvolvimento. Deve-se realizar exame neurológico completo e o exame físico com objetivo de identificar a presença de traços dismórficos característicos de doenças genéticas, alterações cutâneas sugestivas de esclerose tuberosa e neurofibromatose. Também é necessário realizar avaliação da audição, fala e linguagem. A solicitação de tomografia computadorizada e/ou ressonância magnética de encéfalo, de forma rotineira, deve ser desencorajada e somente realizada na vigência de uma razão clínica específica. Embora a prevalência de epilepsia seja maior em crianças com TEA que em relação à população normal, o eletroencefalograma (EEG) deve ser realizado somente quando houver indícios de epilepsia. A pesquisa de erro inato do metabolismo deve ser realizada somente na presença de sinais clínicos sugestivos, como letargia, vômitos cíclicos, regressão 408

Transtorno do espectro autista do desenvolvimento neuropsicomotor, epilepsia precoce, características dimórficas e deficiência intelectual. Tratamento Tratamento não farmacológico O tratamento da criança com TEA é multidisciplinar e o plano de intervenção terapêutico deve ser individualizado considerando as necessidades de cada paciente. Deve-se avaliar o repertório comportamental da criança e comparar com o que seria esperado para idade e então definir as metas que a criança precisa alcançar. É importante que a equipe multidisciplinar esteja alinhada e trabalhe em parceria. A intervenção deve ser feita na clínica, na casa e na escola da criança. Todas as pessoas do convívio precisam ser orientadas. São necessárias muitas horas de intervenção. A estimulação ideal para o autismo é de 15 a 40 horas semanais. Para isso ocorrer, os pais são orientados por profissionais especializados para dar continuidade aos estímulos em casa e também é importante que a escola estimule adequadamente estas crianças. As intervenções multidisciplinares são: - Terapia fonoaudiológica; - Terapia ocupacional; - Terapia psicológica; - Terapia psicopedagógica; - Musicoterapia; - Arteterapia; - Hidroterapia; - Técnicas de modificação do comportamento; - Programas educacionais e/ou de trabalho. Os efeitos da intervenção devem ser avaliados regularmente com intervalo de 3 a 6 meses com foco em habilidades sociais, comunicativas, adaptativas e organizacionais. Tratamento farmacológico O uso de medicamentos para pacientes com TEA está indicado para tratamento de sintomas frequentes e intensos, com impacto negativo nas atividades básicas da vida diária e impedimento de adesão às intervenções propostas. Existem, no entanto, indicações específicas como em situações de comorbidades clínicas ou psiquiátricas, assim como em quadros inespecíficos com agitação e hiperatividade. Com frequência, 409

Reabilitação: teoria e prática estes pacientes podem apresentar piora de tais sintomas e neste momento a avaliação clínica é importante na tentativa de determinar a causa das alterações para ser realizada a intervenção farmacológica com maior segurança e eficácia. Antipsicóticos Seu uso para controle de irritabilidade, agressividade, agitação, estereotipias e comportamentos repetitivos tem sido cada vez mais frequente, apesar dos seus efeitos colaterais. Antipsicóticos atípicos ou de segunda geração, são considerados atualmente medicação de primeira linha, sendo os mais estudados a Risperidona e o Aripiprazol. Deve-se iniciar o uso da Risperidona com doses baixas 0,25 ou 0,5mg/dia, com doses máximas de 3-4 mg/dia, com a maioria dos indivíduos respondendo a dose entre 1-2 mg/dia. Os efeitos colaterais são ganho de peso, sedação, enurese, efeitos extrapiramidais e aumento da prolactina (geralmente este aumento é assintomático, não limitando, necessariamente, a continuidade da prescrição). O Haloperidol é um antipsicótico típico e é muito eficaz no controle de sintomas de irritabilidade e agressividade com doses entre 0,25- 4mg/dia. Apresenta perfil de efeito colateral menos favorável do que antipsicóticos atípicos, sendo os principais distonia e discinesias Antiepilépticos Os quadros de epilepsia são bastante prevalentes no TEA, em torno de 30%, com dois picos de incidência (um na infância e outro na adolescência). Alguns fatores de risco estão relacionados com a maior incidência de epilepsia nas crianças autistas como a presença de DI, o gênero feminino e a síndrome genética associada ao TEA. Não existe nenhum esquema especial para o tratamento de quadros epilépticos no autismo, por isso são utilizados os mesmos esquemas de antiepilépticos adotados para crianças e adolescentes com epilepsia primária. Além disso, os anticonvulsivantes são muito utilizados como opção terapêutica nos pacientes que apresentam distúrbios de humor associado ao TEA. Psicoestimulantes O transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) ocorre em cerca de 37 a 85% das crianças com TEA, sendo considerada a comorbidade mais frequente. Os psicoestimulantes têm sido utilizados com o objetivo de melhorar a capacidade atencional e o controle da 410

Transtorno do espectro autista hiperatividade e impulsividade. Observa-se que estas medicações tem menor eficácia nos pacientes com TEA e TDAH do que nos pacientes com TDAH isolado. Além disso, alguns efeitos colaterais (irritabilidade, depressão e isolamento social) são mais frequentes quando existe a comorbidade TEA/ TDAH. A medicação de primeira escolha é o metilfenidato e como opção terapêutica a lisdexanfetamina. Manejo dos distúrbios do sono Os transtornos do sono ocorrem com alta prevalência no TEA, em torno de 40- 86% dos pacientes. Frequentemente estes pacientes apresentam queixa de dificuldade para iniciar e manter o sono durante a noite e parassonias. Em avaliações objetivas (polissonografia), observa-se que crianças com TEA apresentam alterações da arquitetura do sono com menor tempo total de sono e menor sono REM. A principal consequência relacionada à presença de transtornos do sono no TEA é a piora dos comportamentos autísticos - estereotipias e comportamentos repetitivos. Sendo assim, é importante o tratamento dos transtornos do sono para o controle dos sintomas autísticos, evitando regressão dos progressos obtidos e piora do padrão sintomático. O tratamento envolve intervenções comportamentais para regularizar o ritmo circadiano, com rotina e higiene do sono, e funcionou em mais de 70% dos casos estudados. Nos casos em que tais medidas não foram suficientes, o uso de medicação pode ser considerado, sendo as principais drogas a Melatonina (doses de 1-3mg administrada 30 minutos antes do horário de dormir) e Clonidina (doses entre 0,1 a 0,2mg/dia). O uso de psicofármacos deve ser considerado pensando-se no custo- benefício, ressaltando-se que o uso de medicação associado à intervenção multidisciplinar e à orientação dos pais é sempre mais eficaz que uso apenas da medicação. Considerações finais O transtorno do espectro autista é uma condição clínica que determina prejuízos globais ao indivíduo e comprometem, dependendo da gravidade clínica, o desenvolvimento de habilidades, a capacidade de interação social, a comunicação e a autonomia, por isso exigem avaliações e intervenção multidisciplinar especializada. As intervenções psicológicas, pedagógicas, psicomotoras, fonoaudiólogas e terapia ocupacional, além de outras abordagens terapêuticas devem ser individualizadas e iniciadas o mais precocemente possível, de forma integrada com objetivos de curto, médio e longo prazos. 411

Reabilitação: teoria e prática Também é fundamental que essas abordagens estejam embasadas em técnicas que apresentem maior nível de evidência e que elas sejam implementadas tão logo os diagnósticos clínicos e das comorbidades médicas e psiquiátricas forem realizados. Por essa razão, a avaliação médica é fundamental em todo o período de seguimento dos pacientes. O tratamento farmacológico não será necessário em muitas situações, mas, quando adequadamente indicado, deve ser realizado com cautela, controlando sintomas-alvo e monitorando efeitos adversos. É imprescindível o acompanhamento desses pacientes por equipe multidisciplinar integrada e articulada que deverá sempre contemplar suporte, orientação e, frequentemente, envolvimento dos familiares e educadores no processo terapêutico. Referências bibliográficas AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and statistical manual of mental disorder. 4. ed. Washington, DC: American Psychiatric Press, 2000. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5. ed. Arlington, VA: American Psychiatric Publishing, 2013. ASSUMPÇÃO JÚNIOR, F. B. Semiologia na infância e na adolescência. Rio de Janeiro: Atheneu, 2017. BAILEY, Anthony et al. Autism as a strongly genetic disorder: evidence from a British twin study. Psychological medicine, v. 25, n. 1, p. 63-77, 1995. BOARATI, M. A.; PANTANO, T.; SCIVOLETTO, S. Psiquiatria da infância e adolescência: cuidado multidisciplinar. São Paulo: Manole, 2016. GAIATO, M. S. O. S. Autismo: 2. ed. São Paulo: nVersos, 2019. KANNER, Leo et al. Autistic disturbances of affective contact. Nervous child, v. 2, n. 3, p. 217-250, 1943. LAI, M.; LOMBARDO, M.; BARON-COHEN, S. Autism. Lancet, v. 6736, p. 1-15, 2013. LOTTER, Victor. Epidemiology of autistic conditions in young children. Social psychiatry, v. 1, n. 3, p. 124-135, 1966. MONTENEGRO, M. A.; CELERI, E. H. R. V.; CASELLA, E. B. Transtorno do espectro autista-TEA: manual prático de diagnóstico e tratamento. Rio de Janeiro: Thieme, 2018. 412

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30 O trabalho da psicologia na habilitação/ reabilitação de pacientes com transtorno do espectro autista Leila Maria Almeida Rocha Natália Lima Carvalho Vidal O Transtorno do Espectro Autista (TEA) tem início precoce e por suas próprias características exige intervenção o mais rápido possível para potencializar habilidades e minimizar dificuldades. Manifesta-se com sinais que vão desde os mais simples aos mais graves e requer análise particular em cada indivíduo. Essas manifestações seguem critérios diagnósticos estabelecidos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-5, destacando déficits de interação social e de comunicação e interesses restritos e repetitivos que serão detalhados a seguir. O objetivo do capítulo é mostrar o trabalho da Psicologia no processo de Habilitação/Reabilitação de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), e para isto serão compartilhadas experiências, além de conceitos teóricos sobre estimulação precoce das funções cognitivas. Transtorno do Espectro Autista O Transtorno do Espectro Autista (TEA) vem sendo vastamente estudado e é compreendido como condição neurobiológica de início precoce e causas multifatoriais que envolvem dificuldades observadas na comunicação social

Reabilitação: teoria e prática e padrões restritos e repetitivos de comportamento. Os sinais de alerta são observados no período do desenvolvimento, ainda nos primeiros três anos de vida e vão se manifestando de acordo com a idade cronológica e as demandas sociais vivenciadas. Essas manifestações podem causar prejuízos significativos no funcionamento social e profissional, abrangendo áreas da vida da pessoa com TEA. O DSM-5, dispõe sobre os critérios diagnósticos 1 e 2 no TEA. Critério 1: - déficits de interação social e de comunicação. Critério 2: - interesses restritos e repetitivos exibidos por pelo menos dois dos seguintes: comportamentos motores ou verbais estereotipados; comportamentos sensoriais incomuns; aderência excessiva às rotinas; padrões de comportamentos ritualizados e restritos. (American Psychiatric Association, 2014). De acordo com o DSM-5 o déficit na reciprocidade sócio-emocional e dificuldade para estabelecer uma conversa são presentes, manifestando- se por interesse reduzido em abordagem social, dificultando as relações sociais, assim como déficits nos comportamentos comunicativos não verbais usados para interação social. Desenvolver, manter e compreender relacionamentos é algo que fica prejudicado se não houver um trabalho de estimulação que promova o ajuste destes comportamentos no contexto das dificuldades. No segundo critério pontuado no DSM-5 além da presença de movimentos motores, observa-se fala repetitiva, chamada de ecolalia. As ecolalias podem ser imediatas ou tardias. Observa-se ainda um padrão de insistência nas mesmas coisas, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento verbal ou não verbal que podem gerar sofrimento diante de situações. Interesses restritos e hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse incomum por aspectos sensoriais do ambiente, como indiferença aparente à dor/temperatura, reação contrária a sons ou texturas específicas, cheirar ou tocar objetos Tabela 1: Níveis de gravidade para o transtorno do espectro autista Nível de gravidade Comunicação social Comportamento restrito e Nível 1 - Leve As pessoas com nível leve de repetitivo ao autismo, em relação à interação e Em relação comunicação social, apresentam prejuízos mas não necessitam de comportamento, apresentam tanto suporte. Tem dificuldade nas interações sociais, respostas dificuldade para trocar de atípicas e pouco interesse em se relacionar com o outro.  atividade, independência limitada para autocuidado, organização e planejamento. 416

O trabalho da psicologia na habilitação/reabilitação de pacientes ... Nível de gravidade Comunicação social Comportamento restrito e Nível 1 - Leve As pessoas com nível leve de repetitivo ao Nível 2 - Moderado autismo, em relação à interação e Em relação comunicação social, apresentam Nível 3 - Severo prejuízos mas não necessitam de comportamento, apresentam tanto suporte. Tem dificuldade nas interações sociais, respostas dificuldade para trocar de atípicas e pouco interesse em se relacionar com o outro.  atividade, independência As pessoas com nível moderado limitada para autocuidado, de autismo, em relação à interação e comunicação organização e planejamento. social, necessitam de suporte substancial, apresentando déficits Em relação ao na conversação e dificuldades nas interações sociais, as quais, muitas comportamento podem vezes, precisam ser mediadas. As pessoas com nível severo apresentar dificuldade de autismo, em relação à em mudar de ambientes, interação e comunicação social, desviar o foco ou a atenção, necessitam de muito suporte, necessitando suporte em pois apresentam prejuízos graves muitos momentos. nas interações sociais e pouca Em relação ao comportamento, apresentam resposta a aberturas sociais.  dificuldade extrema com mudanças e necessitam suporte muito substancial para realizar as tarefas do dia a dia, incluindo as de autocuidado e higiene pessoal. Fonte: DSM-5 (2014). de forma excessiva, fascinação visual por luzes ou movimento. (American Psychiatric Association, 2014). Intervenção precoce: avaliação e estimulação no TEA Na proposta de trabalho do setor de Reabilitação/Habilitação Intelectual com pessoas com o Transtorno do Espectro Autista, há uma preocupação em avaliar as funções preservadas, assim como os déficits instalados com o objetivo de montar estratégias que possam atender as demandas dos pacientes de forma planejada, ou seja, através de protocolos que envolvam desde a avaliação à intervenção propriamente dita. Assim começa a primeira providência, seguindo um caminho que leva 417

Reabilitação: teoria e prática imediatamente às melhores estratégias de estimulação das habilidades no TEA. O momento da avaliação também é o momento da conscientização por parte das famílias. É neste momento que as famílias percebem os comprometimentos do paciente e a necessidade de estimulação para melhor prognóstico, mesmo sabendo que este depende de diversos fatores, como idade e início do tratamento, potencial intelectual, grau do autismo e outros. Quanto mais cedo a criança for estimulada, maior é a chance de desenvolvimento do seu potencial intelectual, da comunicação e repertório linguístico, repertório comportamental e social, melhorando o prognóstico. Na avaliação são utilizadas escalas, entrevista com os responsáveis, observação sistemática do brincar livre, e linha de base para perceber necessidade e delimitar objetivos. A escala utilizada é a Escala de Vineland que avalia o comportamento adaptativo desde o nascimento até a idade adulta. Os conteúdos da escala de Vineland estão organizados em quatro grandes domínios que se subdividem em subdomínios: Comunicação – Receptiva, Expressiva e Escrita; Autonomia – Pessoal, Doméstica e Comunitária; Socialização – Relações Interpessoais, Lazer e Regras Sociais; Função Motora – Fina e Global e o Comportamento. A sua aplicabilidade é ampla, justificando sua utilização sempre que necessária avaliação da funcionalidade do sujeito. Através desta escala é possível avaliar o comportamento adaptativo de indivíduos e fazer um rastreio destas habilidades. A entrevista psicológica permite perceber demandas do cotidiano familiar, escolar e compõe a avaliação, assim como o delineamento da linha de base, ou seja, a avaliação do repertório inicial do paciente para conhecer o indivíduo e suas potencialidades. Após avaliação, metas são definidas com o objetivo de trabalhar a independência, desenvolver a comunicação e tornar o comportamento social mais aceitável e os objetivos são ligados à  generalização dos comportamentos aprendidos, funcionalidade e adequação à idade, a médio prazo. Cada habilidade a ser aprendida é divida em pequenos passos, ensinada com ajuda e reforçadores que poderão, gradualmente, ser eliminados. Esta é a ocasião em que são definidos os comportamentos a ser ensinados e os instrumentos a utilizar. A proposta de trabalho baseia-se nos princípios da ABA (Análise do Comportamento Aplicada) que tem o objetivo estimular comportamentos funcionais e fortalecer as habilidades existentes, além de modelar aquelas 418

O trabalho da psicologia na habilitação/reabilitação de pacientes ... que ainda não foram desenvolvidas de forma que o indivíduo aprenda a interagir com a sociedade, estendendo o atendimento a todos os ambientes em que a criança vive. Como forma de potencializar a evolução do paciente é realizado o treino dos pais para assistência com orientação familiar que é um procedimento vinculado às terapias, pois as necessidades da criança com TEA não estão restritas apenas a ela, abrangem a família também. É fundamental que os pais saibam como lidar com os problemas e dificuldades dos filhos no ambiente doméstico. Psicologia na Habilitação/Reabilitação O trabalho desenvolvido na Reabilitação/Habilitação Intelectual das crianças com o Transtorno do Espectro Autista acontece por meio de grupos com o objetivo de estimular as funções globais desse público. Os atendimentos contam com atividades estruturadas desenvolvidas por profissionais da Psicologia, da Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional para a estimulação de funções sensório-motoras cognitivas, sócio-emocionais e linguagem. Nesse capítulo destaca-se o trabalho da Psicologia em dois grupos específicos, Estimulação Precoce e de Estimulação Integrativa. Nos grupos o atendimento é realizado uma vez por semana em dois horários de 40 minutos, como crianças na mesma faixa etária por um período de seis meses, podendo haver encaminhamentos para outros procedimentos a depender da demanda de cada paciente. Pessim e Fonseca (2015) afirmam que a importância de inserir a criança no grupo não é rotular a criança, mas sim, diminuir e/ou extinguir vários comportamentos autísticos, reduzir as incertezas, as dúvidas, oferecer orientações à família com intuito de melhorar qualidade de vida e independência. A intervenção precoce só traz benefícios no curso do autismo, tanto em nível social, comunicativo e educacional. Na reabilitação/habilitação a Psicologia tem uma função importante e atua de forma a estimular a interação social; a atenção e o brincar compartilhado; o contato visual; inserção da agenda de rotina (pistas visuais e repetição); trabalhar regras e limites, tempo de espera; maximizar os comportamentos adequados; minimizar os comportamentos inadequados; estimular a compreensão e execução de comandos simples; o reconhecimento do eu e esquema corporal; identificação e expressão das emoções; estimular independência e autonomia; estimular os processos psicológicos básicos (atenção, concentração, memória, percepção); trabalhar as alterações comportamentais (não saber brincar de faz de conta, 419

Reabilitação: teoria e prática padrões repetitivos de comportamentos, ter muitas “manias” e apresentar intenso interesse por algo específico), dessensibilização de estímulos sensoriais, uso de reforçadores, planejamento motor e generalização de estímulos. Após as avaliações, é traçado o plano de intervenção para os atendimentos, levando em consideração a forma em grupo e/ou individual e respeitando as especificidades de cada pessoa envolvida. As atividades possuem caráter terapêutico, afetivo e social e são realizadas através de recurso lúdico como: jogos, brinquedos, livros, materiais de expediente e outros confeccionados pelos próprios terapeutas para estimular além das áreas descritas acima, o repertório verbal, social e afetivo, tendo como foco o ajuste dos comportamentos mal adaptativos. A abordagem utilizada para o atendimento às crianças, baseia-se nos princípios da ABA (Análise do Comportamento Aplicada) que é um termo científico do Behaviorismo que observa, analisa e explica a associação entre o ambiente, o comportamento humano e a aprendizagem. Aprendemos através de associações e nosso comportamento é “modificado” através de consequências. Segundo Sindman (1995), comportamento é tudo o que o indivíduo faz: ações, sentimentos, pensamentos, sensações, interação com os outros. A ABA tem o objetivo de estimular comportamentos funcionais e fortalecer as habilidades existentes, além de modelar aquelas que ainda não foram desenvolvidas de forma que o indivíduo aprenda a interagir com a sociedade, estendendo as estratégias a todos os ambientes em que a criança vive. O tratamento ABA envolve o ensino intensivo e individualizado das habilidades necessárias para que o indivíduo possa adquirir independência e a melhor qualidade de vida possível. As habilidades ensinadas são: comportamentos sociais (contato visual e comunicação funcional); comportamentos acadêmicos (pré-requisitos para leitura, escrita e matemática) e atividades da vida diária. Paralelo ao atendimento com as crianças são realizadas orientações aos cuidadores, acompanhantes e/ou familiares quanto às atividades que podem ser desenvolvidas em ambiente domiciliar com o propósito de dar continuidade à estimulação. Psicologia e família na reabilitação A família representa a primeira instituição onde a criança tem acesso ao meio social, constituindo um importante espaço de socialização. A participação dos pais e dos familiares é considerada um elemento essencial nos programas de intervenção para crianças com autismo. O pressuposto 420

O trabalho da psicologia na habilitação/reabilitação de pacientes ... básico do treinamento comportamental dos pais, é que o comportamento das crianças é aprendido e mantido através de reforço dentro do contexto familiar, e que os pais podem ser ensinados a mudar essas contingências para promover e reforçar o comportamento adequado. De acordo com Cunha (2013) a criança depende dos familiares, enquanto membros sociais mais competentes e provedores de cuidados básicos necessários à satisfação de suas necessidades, exercendo uma enorme influência no desenvolvimento e crescimento dessa criança. Nos grupos desta pesquisa, a família é inserida recebendo treinamento parental para participar de forma efetiva no grupo, além de recebem orientações no sentido de dar continuidade à estimulação nos outros ambientes da criança. Pesquisas revelam que quando há o envolvimento e participação da família na intervenção precoce da criança, os efeitos são mais favoráveis, garantindo a continuidade do tratamento em casa. Desta forma entende- se que a intervenção precoce é muito mais efetiva se a família for um elemento ativo na prática do tratamento. Estudos de estimulação que incluíram o envolvimento dos pais indicaram um resultado mais positivo no desenvolvimento da criança com atraso no desenvolvimento, do que aqueles que não envolvem os pais. Del Prette e Del Prette (2011) destacam que a competência social na infância vem sendo vista como um dos fatores de produção para uma trajetória de desenvolvimento satisfatória, porque aumenta a capacidade da criança para lidar com situações adversas e estressantes, despertando o senso de humor, empatia, comunicação, resolução de problemas, autonomia e comportamentos direcionados a metas previamente estabelecidas. A estimulação em pacientes com TEA deve iniciar o mais precoce possível, pois aumenta as chances do desenvolvimento das habilidades, minimizando os déficits. Nos dois primeiros anos de vida é quando ocorre o maior desenvolvimento do cérebro, sendo fundamentais as experiências pelas quais a criança passa nesse período, tornando-se necessário proporcionar o mais cedo possível a estimulação. Keinert et al (2017) reforçam que mesmo em se tratando de suspeita de Transtorno do Espectro Autista, a estimulação deve iniciar precocemente pois quanto mais cedo for iniciada a intervenção, maiores as oportunidades de desenvolvimento da criança, e caso a suspeita diagnóstica não se confirme, a criança terá recebido uma estimulação mais intensa e isso não a prejudicará, apenas trabalhará algumas de suas habilidades de maneira mais específica. 421

Reabilitação: teoria e prática A estimulação precoce é indicada como uma forma de potencializar habilidades cognitivas, aumentar a interação da criança com o ambiente, ajustar padrões de comportamentos o que favorece respostas motoras próximas ao padrão da normalidade e prevenindo a aprendizagem de padrões atípicos de movimento e postura. Antunes (2011) destaca a importância da estimulação cognitiva pontuando a satisfação de quem a propõe. O argumento do autor vem confirmar o desejo e a motivação da equipe multidisciplinar do grupo de estimulação TEA que trabalha para planejar, elaborar e executar estratégias que possam favorecer a estimulação das funções globais da criança com muito envolvimento e satisfação. A Reabilitação/Habilitação Intelectual da crianças com o Transtorno do Espectro Autista, acontece por meio de grupos com o objetivo de estimular as funções globais da criança. O grupo para estimulação precoce tem como objetivo de atender crianças com idade de 0 a 4 anos, oferecer estímulos para favorecer seu melhor potencial de desenvolvimento, e orientar cuidadores, acompanhantes e/ou familiares quanto às atividades que podem ser desenvolvidas para estimular as crianças em casa. O grupo funciona por meio de terapia com atividades estruturadas desenvolvidas por profissionais da psicologia, da fonoaudiologia e terapia Figura 1: Estimulação da percepção de objetos. Fonte: Arquivo pessoal. 422

O trabalho da psicologia na habilitação/reabilitação de pacientes ... Figura 2: Socialização. Fonte: Arquivo pessoal. Figura 3: (A) Regras; (B) Rotinas; (C) Emoções. Fonte: Arquivo pessoal. Fonte: Arquivo pessoal. 423

Reabilitação: teoria e prática Figura 4: Brincar compartilhado. Fonte: Arquivo pessoal. Fonte: Arquivo pessoal. ocupacional com crianças para estimulação de funções sensório-motoras cognitivas e sócio-emocionais (Figuras 1 a 4). A importância da continuidade da estimulação precoce Além de grupos de estimulação precoce, as crianças tem a oportunidade de participar de outros grupos, à medida que a idade avança, seu melhor potencial de desenvolvimento é favorecido. Nesse Figura 5: (A) Regras no jogo; (B) Socialização e criatividade. Fonte: Arquivo pessoal. Fonte: Arquivo pessoal. 424

O trabalho da psicologia na habilitação/reabilitação de pacientes ... procedimento mantem-se as orientações aos cuidadores, acompanhantes e/ou familiares sobre as atividades que podem ser desenvolvidas para estimular as crianças (Figura 5). Relato de experiência O Grupo de Estimulação integrativa apresentado nesse capítulo é composto por três crianças na faixa etária entre 6 e 8 anos com Transtorno do Espectro Autista, apresentando dificuldades na socialização, nos comportamentos e na comunicação verbal. Durante seis meses, trabalha- se com o intuito de estimular estas habilidades. Para a estimulação cognitiva dessas foram utilizados protocolos para a organização das atividades. As terapias acontecem semanalmente com dois horários, sendo cada um com 40 minutos de duração com o objetivo de contemplar a estimulação cognitiva, sensorial, motora, social, repertório linguístico e comportamental. O trabalho da psicologia tem grande importância na estimulação das funções cognitivas das crianças. As atividades realizadas no grupo contemplaram a estimulação das capacidades cognitivas, sensoriais, sociais, afetivas e psicomotoras. As capacidades cognitivas das crianças foram estimuladas por meio de recursos, brinquedos e jogos para favorecer o desenvolvimento da memória, da atenção, da criatividade, da expressão, da elaboração de um pensamento, do repertório verbal, social e afetivo, além de focar o ajuste dos comportamentos mal adaptativos (Figuras 6 e 7). Antunes (2011) considera cognição o ato de adquirir um conhecimento, a faculdade da capacidade do aprender. Estimular a cognição expressa ajudar pensamentos, aguçar memórias, perceber emoções. Nossa área cog- nitiva, em última análise, significa tudo quanto somos no que se refere a nosso pensamentos, lembranças, percepções, emoções, saberes e linguagem (ANTUNES, 2011 p. 21). De acordo com a avaliação inicial, as crianças necessitaram de estimulação das funções globais tendo em vista as demandas pontuadas pela família. A partir dos dados obtidos na avaliação buscou-se estimular de forma sistemática todas as funções globais. Ao final do grupo foi realizada avaliação através da escala de Vineland com o intuito de perceber a evolução de cada criança e oferecer feedback ao pais. 425

Reabilitação: teoria e prática Figura 6: (A) Estimulando atenção e foco; (B) Estimulando motricidade fina. Fonte: Arquivo pessoal. Figura 7: (A) Estimulação sensorial; (B) Brincar compartilhado. Fonte: Arquivo pessoal. Escandell; Batllori (2015) destacam a importância de estimular as capacidades gerais na criança, de forma igualmente dignas, procurando fazer com que elas se desenvolvam harmonicamente. Dentre estas capacidades destacam-se: Capacidades sensoriais se referem ao desenvolvimento dos sentidos; Capacidades psicomotoras envolvem a aprendizagem e o aperfeiçoamento dos movimentos; Capacidades cognitivas envolvem o desenvolvimento da atenção, memória, criatividade, raciocínio; Capacidades sociais envolvem o relacionamento com outras pessoas, com o meio, com as normas sociais; 426

O trabalho da psicologia na habilitação/reabilitação de pacientes ... Capacidades afetivas levarão a criança a se expressar de modo espontâneo, minimizando tensões e aumentando a autonomia. Considerações finais Para que o trabalho seja efetivo, a equipe multiprofissional deve atuar em parceria com as famílias, para que a estimulação tenha continuidade em outros ambientes além do centro de reabilitação. Orientação aos familiares é uma das ações importantes do protocolo de estimulação e através disso podem ser realizados ajustes na rotina da criança, mudanças em relação ao manejo dos pais com a criança, o que é ponto de partida importante na reabilitação da criança com TEA. O trabalho da psicologia na estimulação cognitiva, com ênfase na intervenção precoce contribui para minimizar déficits e potencializar as habilidades da criança com TEA, tornando-se necessária a continuidade dessas intervenções. Referências bibliográficas ANTUNES, Celso. Guia para estimulação do cérebro infantil: do nascimento aos 3 anos. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. CUNHA, Eugênio. Autismo na escola: um jeito diferente de aprender, um jeito diferente de ensinar – ideias e práticas pedagógicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2013. DEL PRETTE, Zilda A. P.; DEL PRETTE, Almir. Psicologia das habilidades sociais na infância: teoria e prática. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION - APA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5 [Recurso eletrônico]. Tradução de M. I. C. Nascimento. 5. ed. Porto Alegre, RS: Artmed, 2014. ESCADELL, Victor; BATLLORI, Jorge. 150 Jogos para estimulação infantil: atividades para ajudar no desenvolvimento de crianças de 0 a 3 anos. 2 ed. Rio de Janeiro: Ciranda Cultural, 2015. KEINERT, M. Helena Jansen de Melo. Transtorno do espectro autista: tutorial para atividades do dia a dia. Curitiba: Editora Íthala, 2017. SIDMAN, M. Coerção e suas implicações. Campinas: Editorial Psy, 1995. PESSIM, L. E; FONSECA, B. C. R. Transtornos do espectro autista: importância e dificuldade do diagnóstico precoce. Rev. Científica Eletrônica (FAEF), v. 3, n. 14, p. 7-28, 2015. 427



31 Psicologia e psicopedagogia na habilitação/reabilitação de pessoas com transtorno do espectro autista Natália Lima Carvalho Vidal Lucineide Borges Cavalcante Santos Natália de Souza Silva Ligia Damasceno Cronemberger Neiva O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é definido de acordo com o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders DSM-V (APA, 2014) como “transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por dificuldades de interação social, comunicação e comportamentos repetitivos e restritivos”. Compromete o desenvolvimento normal de uma criança e geralmente se manifesta antes do terceiro ano de vida. Nessa perspectiva o objetivo deste capítulo é analisar a importância exercida pela Psicologia e Psicopedagogia na Habilitação/Reabilitação de crianças com TEA em um centro de reabilitação. O trabalho da Psicologia e da Psicopedagogia, realizado em grupo de pacientes, tem por finalidade desenvolver potencialidades cognitivas, pedagógicas, sensório-motoras, perceptivas, emocionais e simbólicas, orientar a família sobre a importância de estender a estimulação em outros ambientes da criança, bem como a inclusão escolar. Habilitação/Reabilitação intelectual no TEA O Centro de Controle de Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos lançou um documento em 2020 atualizando a prevalência de casos de Transtorno do Espectro Autista. Segundo o documento, a prevalência de

Reabilitação: teoria e prática autistas no mundo é de 1 para 54 nascidos vivos (JUNIOR, 2020). Esse dado expressivo remete a necessidade de uma maior atenção a programas ou intervenções voltados para assistência e reabilitação precoce do autista. No Brasil, as Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo foram criadas para orientar equipes multiprofissionais no cuidado à saúde do indivíduo e sua família (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013). De acordo com essas diretrizes o termo habilitar seria mais adequado, uma vez que a finalidade do tratamento com TEA é torná-lo hábil para desenvolver potenciais próprios do desenvolvimento. O objetivo da Habilitação/Reabilitação deve ser pautado na ampliação das capacidades funcionais do indivíduo, como: participação e desempenho em atividades sociais cotidianas, autonomia para mobilidade, capacidade de autocuidado e de trabalho, uso de recursos pessoais e sociais e na qualidade de vida e comunicação. Batista (2012), compreende a reabilitação como um processo dinâmico e global orientado para a recuperação física e psicológica do indivíduo com deficiência, tendo como objetivo a sua reintegração social. Não há, entretanto, um tratamento de reabilitação específico voltado para o TEA, o que existe são métodos e abordagens diversos que minimizam as dificuldades causadas pelo transtorno. Em um centro de reabilitação, o TEA deve ser assistido por uma equipe multidisciplinar e em uma dessas intervenções realizadas em serviço de referência há contribuições da Psicologia e Psicopedagogia, como o procedimento específico denominado atendimento em Grupo Aprender. Intervenções da Psicologia e Psicopedagogia com o TEA em um Centro de Reabilitação A atuação conjunta da Psicologia e da Psicopedagogia dentro de um procedimento de Habilitação/Reabilitação Intelectual tem como objetivo avaliar o desempenho funcional da criança e trabalhar as demandas específicas do processo de aprendizagem que podem influenciar ou interferir na inclusão e adaptação escolar. Os profissionais supracitados trabalham os efeitos de déficits no desenvolvimento global de forma que a criança encontre meios para aprimorar sua capacidade cognitiva, socioemocional, autonomia e funcionalidade, bem como prepará-la para inclusão escolar/educacional, auxiliando no seu repertório de habilidades. Vale destacar que as famílias também participam do atendimento, observando os profissionais e sendo orientadas quanto aos objetivos das atividades propostas e manejo adequado para estimulação em ambiente domiciliar. 430

Psicologia e psicopedagogia na habilitação/reabilitação de pacientes ... Fig 1: Participação da família no atendimento. Fig 2: Parceria Terapeutas/Família. Fonte: arquivo pessoal. Fonte: arquivo pessoal. De acordo com Mello, Andrade, Ho et al (2013), as intervenções na Habilitação/ Reabilitação do TEA devem acontecer de modo multidisciplinar e interdisciplinar, abrangendo vários profissionais, dentre estes, da Psicopedagogia e Psicologia. Nestas intervenções, considera-se a especificidade de cada criança, pois o próprio transtorno se manifesta de diferentes maneiras e níveis de dificuldade, sendo por isso conhecido como espectro. Os atendimentos são grupais, tendo no máximo 4 crianças com TEA, divididos por faixa etária que variam em idade de 4 a 10 anos. É realizado uma vez por semana para cada grupo, cada sessão com 80 minutos de duração por um período de seis meses. No início os terapeutas aplicam instrumentos de avaliação com os responsáveis e posteriormente com os pacientes. A primeira a ser aplicada é a Avaliação da Função na Escola (SFA) para observar o desempenho da criança com relação ao comportamento e conclusão de tarefas, memória e compreensão. Em seguida realiza-se a aplicação da Avaliação de Linha de Base para verificar como está o desenvolvimento do paciente e que aspectos devem ser trabalhados para que o mesmo adquira as habilidades necessárias, sempre respeitando suas limitações. O objetivo desta avaliação é dar subsídios para que os profissionais envolvidos planejem a intervenção a partir do conhecimento do repertório inicial de cada criança, para ao final do procedimento compará-la apenas com ela mesma, com o seu desempenho antes e depois do grupo. Nesta avaliação são observados os aspectos relacionados ao contato visual, imitação motora, seguimento de instruções, linguagem expressiva e receptiva. Paralelo aos atendimentos, é realizado também orientação escolar com a finalidade de orientar a família e/ou escola quanto aos domínios de cognição, linguagem e sociabilidade, além dos aspectos emocionais, 431

Reabilitação: teoria e prática comportamentais e pedagógicos. Isso ocorre quando a família e/ou escola relatam dificuldade no manejo com o aluno autista. Os profissionais em conjunto convidam a escola e a família traçar estratégias de intervenção a ser utilizadas em sala de aula e/ou ambiente familiar. Na Habilitação/Reabilitação intelectual de uma criança com TEA, as intervenções objetivam diminuir prejuízos nas funções cognitivas, sociais e comportamentais, favorecendo a aprendizagem como um todo. Conforme Gomes (2014), a aprendizagem escolar, por exemplo, é base para favorecer outras competências, tal como a autonomia da criança. Nesse sentido, a Psicopedagogia e Psicologia são áreas que podem contribuir com esse público, sendo Psicopedagogia na abordagem da relação de aspectos pedagógicos, afetivos e cognitivos, estabelecendo a forma mais adequada de introduzir os conhecimentos, trabalhando a aprendizagem humana (esquema corporal, noção espacial, temporal, pensamento simbólico, imitação, raciocínio lógico matemático, atenção/ concentração, memória, planejamento, execução, dentre outros), além de investigar o porquê da criança não estar aprendendo e fazer orientações aos familiares e/ou escola sobre como proceder (ROSSATO, 2014). Já a Psicologia contribui com o lidar das emoções e comportamentos sociais tornando a criança autista melhor estruturada emocionalmente e organizada (SANTOS, 2008). A Psicologia, dentre as suas atribuições, estimula os processos psicológicos básicos (atenção, concentração, memória, percepção), as alterações comportamentais, maximizando os comportamentos adequados e minimizando os inadequados, bem como padrões repetitivos, balizando-se na Análise Aplicada do Comportamento (ABA). ABA é uma área de conhecimento que desenvolve pesquisas e aplicações a partir dos princípios básicos da Ciência da Análise do Comportamento, que observa, analisa e explica a associação entre o ambiente, o comportamento humano e a aprendizagem. Conforme aponta Camargo e Rispoli (2013, p.12), “aprendemos através de associações e nosso comportamento é ‘modificado’ através de consequências. Elas surgem por influência genética e/ou ambiental e mudam por influência ambiental (consequências).” Nesse sentido, o comportamento depende do que acontece antes e depois dele mesmo, e as consequências oriundas tendem a alterar a probabilidade de ocorrência futura do mesmo comportamento. Assim, a aplicação de ABA desenvolve habilidades novas através de práticas intensas e reforço direcionado, para que o indivíduo possa adquirir independência e a melhor qualidade de vida possível. Para tal, são trabalhados os comportamentos socialmente relevantes: atenção 432

Psicologia e psicopedagogia na habilitação/reabilitação de pacientes ... compartilhada; contato visual; seguimento de regras; habilidades para engajar-se em atividades com o outro e de ficar sob controle do outro; flexibilidade e resolução de conflitos. Relato de experiência Após a avaliação da SFA e da Linha de Base, são traçados as estratégias de atendimento levando em consideração o trabalho em grupo e a especificidade de cada paciente, sempre embasado na ABA. A metodologia utilizada pelos profissionais em destaque, tem como base o Teacch (Treatment and Education of Autistc and Related Communication Handcapped Children), programa psicoeducacional que tem por finalidade organizar a vida da pessoa com autismo nos ambientes e em seu entorno, bem como o desenvolvimento da comunicação e da independência por meio da educação, estruturando fisicamente o ambiente de aprendizado, de acordo com o nível de compreensão do mesmo, ajudando-o a encontrar meios facilitadores para o seu processo de adaptação e aprendizado. As atividades acontecem em uma sala estruturada, com poucos estímulos, utilizando-se informações visuais através de um quadro de rotina, que serve para a estruturação do tempo uma vez que a criança com TEA se distrai facilmente e/ou tem dificuldade em compreender conceitos abstratos, dispondo-se de todo o recurso de forma organizada e na ordem que vai ser trabalhada. A sala é equipada com espelho, mesas e cadeiras adaptadas, um armário onde são guardados e previamente selecionados os materiais utilizados em cada sessão. Figura 3: Sala de atendimento. Fonte: arquivo pessoal. 433

Reabilitação: teoria e prática Figura 4: Atendimento estruturado Fonte: arquivo pessoal. Figura 5: Conceitos pedagógicos Fonte: arquivo pessoal. 434

Psicologia e psicopedagogia na habilitação/reabilitação de pacientes ... Figura 6: Simulando atividades no concreto. Fonte: arquivo pessoal. Figura 7: Confeccionando a atividade Fonte: arquivo pessoal. 435

Reabilitação: teoria e prática Figura 8: Atividade de mesa Fonte: arquivo pessoal. Figura 9: Contação de história Fonte: arquivo pessoal. 436

Psicologia e psicopedagogia na habilitação/reabilitação de pacientes ... As atividades tem caráter educacional pedagógico, cognitivo, emocional e de socialização. Utilizam-se pranchas de estimulação, músicas e jogos que trabalham conceitos pedagógicos, compreensão e execução de comandos, contação de histórias, imaginação, faz-de-conta, regras e limites, tempo de espera, limiar de frustração, processos criativos, rotina, além de orientação familiar e escolar. Os recursos vão desde materiais adquiridos em lojas, bem como confeccionados pelos terapeutas. Ao final do grupo em estudo os pacientes são reavaliados para considerar a necessidade de novos encaminhamentos. Essa reavaliação inclui a reaplicação da escala SFA, observações sistemáticas das terapeutas e relatos da família. É necessário destacar que a evolução percebida nos pacientes é possível devido ao trabalho em equipe interdisciplinar e ao engajamento da família. Análise da experiência Os pontos positivos da intervenção são: melhor desempenho nas habilidades acadêmicas, sociais e emocionais. Existem também alguns entraves que dificultam a aprendizagem e aprimoramento de habilidades nas crianças com TEA, tais como: dificuldade motora, de comunicação e/ou déficit intelectual associado, ou mesmo a dificuldade da família em aceitar o diagnóstico aliado à superproteção, o que dificulta na realização das atividades planejadas e executadas nos atendimentos, não oportunizando aquisição de habilidades e consequentemente autonomia e independência da criança. De acordo Del Prette (2001), a aprendizagem favorece o desenvolvimento do indivíduo e tem início no núcleo familiar, daí a importância de trabalhar a função desse contexto. No que tange à área educacional, tem-se a dificuldade na liberação de professores para o comparecimento ao procedimento de Orientação Escolar, ficando a cargo muitas vezes da família levar as informações quanto ao manejo e recursos à escola, sem a adesão necessária da instituição de Educação. Em contrapartida, quando as orientações fornecidas pelas terapeutas são discutidas e/ou aceitas, percebe-se maior evolução do paciente. Diante disto, na maior parte das vezes quando há engajamento familiar e escolar, é possível aumentar as potencialidades da criança nos diversos ambientes sociais; e quando não há o empenho família/escola, a evolução fica aquém do esperado. O objetivo da Habilitação/Reabilitação com o TEA deve ser pautado na ampliação das capacidades funcionais do indivíduo. Atualmente, a literatura científica aponta vários métodos com o objetivo de desenvolver a autonomia e comportamentos funcionais para a convivência na sociedade 437

Reabilitação: teoria e prática (ONZI; GOMES 2015). Apesar de se ter avançado nos métodos/técnicas de intervenção com o TEA, ainda é preciso desenvolver estratégias para o alcance efetivo. A prática conjunta dos profissionais de Psicologia e Psicopedagogia apontam para a excelência na construção de um trabalho eficaz no desenvolvimento das habilidades do paciente com TEA, pois essa ação interdisciplinar favorece a generalização e desempenho em outros contextos da vida da criança. Figura 10: Uso de Pranchas (metodo Teacch). Fonte: arquivo pessoal. Essa afirmação pode ser corroborada a partir de discussão teórica embasada na literatura, em observações diretas e indiretas do comportamento da criança, reaplicação dos instrumentos avaliativos, bem como os relatos da escola e da família. Relato de uma das mães: “Meu filho tinha 1 ano e 4 meses de idade no momento do diagnóstico, feito um mês após observarmos regressão de habilidades adquiridas (fala, comunicação e interação). Até então apresentava um desenvolvimento dentro do esperado para a idade e tínhamos como parâmetro a irmã, de então 5 anos, típica. A busca por conhecimentos em meios virtuais trouxeram mais dúvidas que certezas, devido ao 438

Psicologia e psicopedagogia na habilitação/reabilitação de pacientes ... volume e diversidade de informações. Embora recorrente a fala que a intervenção precoce era importante, não sabíamos exatamente como fazer. Nesse período de busca, ele iniciou terapias de forma intensiva e a equipe que o acompanhava nos disse que ele não tinha pré-requisito para vivências em grupos. Esta informação foi recebida com estranheza e descontentamento, uma vez que entendemos que o ser humano é um ser social e, independente da condição, precisa de vivências com seus pares. Fomos informados que no centro de reabilitação iniciariam atendimentos a crianças com diagnóstico de TEA e que o mesmo correria em pequenos grupos terapêuticos, com a participação dos pais, crianças e terapeutas com distintas habilitações. O centro possui credibilidade e é referência como local de reabilitação e, claro, recebemos com grande alegria a notícia; participamos de todo o processo para que meu filho se tornasse paciente da instituição. Inicialmente fizemos um curso de formação com os outros pais, com todos os profissionais que fariam o atendimento, o que permitiu elucidar dúvidas, conhecer a importância de cada profissional e sobre a atuação de cada um. De fato, as vivências no Grupo Aprender e nos posteriores a ele, foi um grande divisor de água em nossas vidas: aprendemos na prática e sob o olhar atento da equipe, como a família pode e deve atuar em parceria com os profissionais para o pleno desenvolvimento da criança. Percebemos que meu filho não só podia, mas que precisava estar com os pares e que esta mediação e redirecionamentos eram importantes para minimizar déficits de interação, comum em pessoas dentro do TEA. Ah, as vivências que tivemos nos grupos são memoráveis e foram fundamentais para ele, pois eram contextualizadas e temáticas. Tudo muito organizado, planejado e feito com carinho para que os pais atuassem como mediadores e continuassem o trabalho de estimulação em casa. Foi nos atendimentos com a Psicóloga e Psicopedagoga que meu filho teve seu primeiro caderno, fez os primeiros traçados, teve seus primeiros amigos... foi lá que compartilhamos angústias, que trocamos experiências, que enxergamos que ele poderia muito e no seu tempo...a ansiedade para que ele alcançasse os marcadores de desenvolvimento para a idade cronológica esvaneceu...não porque tenhamos desistido, pelo contrário, superamos o luto, fomos acolhidos enquanto família e os profissionais que fazem o centro de reabilitação nos fizeram enxergar três armas eficazes para lutar: o amor, respeito e o conhecimento. Verificamos que intervenções, vivências em grupo com outras crianças, aproximação de outras famílias com crianças tendo o mesmo diagnóstico, etc. foram fundamentais e somaram para que o meu filho desenvolvesse habilidades. Ressalto a importância da Psicologia e Psicopedagogia na vida dele, que mediante as atividades propostas e orientação parental permitiram que iniciássemos a compreensão do universo neuro diverso, introduziram as primeiras alternativas pedagógicas voltadas para a inclusão escolar, respeitando o tempo, a condição de criança neuro diversa e com inúmeras limitações comportamentais, sensoriais, de comunicação e interação, 439

Reabilitação: teoria e prática mas que podia sim aprender, e isso tem sido feito com paciência, amor, adaptações, respeito e por profissionais de diferentes áreas que contribuem indubitavelmente para o seu desenvolvimento.” Figura 11 – Criança e família participando Fonte: arquivo pessoal. Figura 12 – Mãe e filho interagindo na atividade Fonte: arquivo pessoal. 440

Psicologia e psicopedagogia na habilitação/reabilitação de pacientes ... Considerações finais O referente relato de experiência apresenta a contribuição dos profissionais de Psicologia e Psicopedagogia na Habilitação/Reabilitação do Autismo, em um centro de reabilitação. A Psicopedagogia aborda a relação de aspectos pedagógicos, afetivos e cognitivos, estabelecendo a forma mais adequada de introduzir os conhecimentos e trabalhando a aprendizagem humana. A Psicologia, dentre as suas atribuições, estimula os processos psicológicos básicos (atenção, concentração, memória, percepção), as alterações comportamentais, maximizando os comportamentos adequados e minimizando os inadequados, bem como padrões repetitivos. A participação ativa da família é fundamental para o desenvolvimento do TEA no processo de Habilitação/Reabilitação. Referências bibliográficas AMERICAN PSYCHIATRY ASSOCIATION (APA). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais-DSM-V. Porto Alegre: Artmed, 2014. BATISTA, Cristina Abranches Mota. Deficiência, autismo e psicanálise: a peste. Revista de Psicanálise e Sociedade e Filosofia, v. 04, n. 02, 2012. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE, SECRETARIA DE ATENÇÃO À SAÚDE. Diretrizes de atenção à reabilitação da pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). Brasília: Ministério da Saúde, 2013. CAMARGO, Síglia Pimentel Höher; RISPOLI, Mandy. Análise do comportamento aplicada como intervenção para o autismo: definição, características e pressupostos filosóficos. Revista Educação Especial, v. 26, n. 47, p. 639-650, 2013. DOI: https://doi.org/10.5902/1984686X9694. DEL PRETTE, A.; DEL PRETTE, Z. A. P. Psicologia das relações interpessoais: vivências para o trabalho em grupo. Petrópolis: Vozes, 2001. GOMES, Rosana Carvalho; NUNES, Débora R. P. Interações comunicativas entre uma professora e um aluno com autismo na escola comum: uma proposta de intervenção. Educação e Pesquisa, v. 40, n. 1, p. 143-161, 2014. JUNIOR, F. P. Prevalência de Autismo nos Estados Unidos sobe 10%: agora é 1 para 54. Canal Autismo, 2020. Disponível em: https://www.canalautismo. com.br/destaque/prevalencia-de-autismo-nos-eua-sobe-10-agora-e-1- para-54/. Acesso em: 01 mar. 2021. MELLO, A. M. S. R. et al. Retratos do autismo no Brasil. São Paulo: Gráfica da AMA, 2013. 441

Reabilitação: teoria e prática ONZI, F. Z.; GOMES, R. F. Transtorno do espectro autista: a importância do diagnóstico e reabilitação. Caderno Pedagógico, Lajeado, v. 12, n. 3, pp. 188-199, 2015. ROSSATO, R. O papel do psicopedagogo no tratamento de autistas. 2014. Disponível em: http://www.paisfilhoseescola.com.br/o-papel- psicopedagogotratamento-de-autistas/. Acesso em: 01 abr. 2021. SANTOS, Ana Maria Tarcitano. Autismo: desafio na alfabetização e no convívio escolar. Centro de Referências em Distúrbios de Aprendizagem. São Paulo: CRDA, 2008. 442

32 Estimulação de habilidades funcionais no transtorno do espectro autista Eduardo Ewerton Sousa Vianna Transtorno do Espectro Autista (TEA) é transtorno do neurodesenvolvimento infantil caracterizado por dificuldades na interação social, comunicação, comportamentos repetitivos e interesses restritos, podendo apresentar também sensibilidades sensoriais (FONTES, 2014), e muito variado. Existem autistas com elevado grau de desenvolvimento intelectual e sociabilidade e outros que apresentam um quadro de deficiência intelectual acentuada e insociabilidade (BEZERRA, 2018). Para Aarons Gittens (1992), o conjunto de características que definem os indivíduos autistas segundo a primeira descrição feita por Kanner em 1943, são: incapacidade para desenvolver relações com os outros indivíduos, atraso na aquisição da linguagem, uso não comunicativo da linguagem verbal (mesmo depois do seu desenvolvimento), ecolalia, jogo repetitivo, estereotipado, manutenção de rotinas repetitivas, isolamento extremo, boa memória de repetição e aparência física normal. Posteriormente, Kanner reduziu esse conjunto de características a dois aspectos principais, sendo estes a manutenção do “sameness” em crianças com rotinas repetitivas e isolamento extremo (PEREIRA,1999). De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2019), 70 milhões de pessoas em todo o mundo são autistas, com maior incidência no sexo masculino. As causas ainda não são determinadas, porém, estudos apontam que diversos fatores tornam uma criança mais propensa a ter o TEA, dentre os quais destacam-se fatores genéticos e ambientais.

Reabilitação: teoria e prática O tratamento deve ser feito por uma equipe multi e interdisciplinar, incluindo especialidades médicas como pediatra, neurologia, psicólogo, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, assistente social, pedagogo, fisioterapeuta e outros.. A família é a base do tratamento e deve ter envolvimento total com o mesmo. Este trabalho, para ser bem sucedido, necessita do empenho e dedicação e qualificação dos profissionais envolvidos (FIALHO, 2015). A Análise do Comportamento Aplicada (ABA) é uma abordagem da psicologia que é utilizada para compreensão do comportamento e vem sendo amplamente aplicada no atendimento de pessoas com autismo, sendo uma forma de intervenção porque trabalha comportamentos alvo da criança, por exemplo, a imitação, o que não envolve, necessariamente a fala; nesse sentido é desenvolvido um programa estruturado de intervenção, como o Treino de Tentativa Discreta (DTT) (RODRIGUES, 2017). A meta do ensino é que o aprendizado adquirido na sessão, seja generalizado, para situações cotidianas, como as de casa e da escola. Um bom programa de ABA sempre inclui a generalização do aprendizado. À medida que a criança progride pode tornar-se capaz de aprender de forma geral e também de aprender incidentalmente, o que significa simplesmente assimilar linguagem, conceitos ou habilidades que não são ensinadas (BEZERRA, 2018). O DTT tem como base a decomposição de comportamentos com o propósito de ensinar seus componentes de forma isolada. O procedimento consiste em apresentações repetidas de um número pré-determinado de tentativas, com cada tentativa definida com base em uma contingência de três termos. Normalmente, uma tentativa inicia-se quando o terapeuta/ aplicador disponibiliza os materiais necessários, obtém a atenção do aprendiz e apresenta uma instrução ou uma pergunta (antecedente). São concedidos ao aprendiz alguns segundos para emitir o comportamento- alvo (resposta), e, finalmente, o terapeuta/aplicador reforça ou corrige a resposta/ausência de resposta do aprendiz (consequência) a depender de como este responde à instrução (SMITH, 2001). Após manejar as consequências, um intervalo entre tentativas de alguns segundos sinaliza o encerramento da tentativa até o terapeuta/ aplicador reiniciar o procedimento ao manejar os antecedentes, iniciando uma próxima tentativa. O DTT se caracteriza por um procedimento de ensino no qual o terapeuta/aplicador tem um grande controle sobre a situação de ensino, estando em condições de manipular variáveis importantes para favorecer a aprendizagem de novos comportamentos por parte do aprendiz (GHEZZY, 2007). 444

Estimulação de habilidades funcionais no transtorno do espectro autista Para Broun (2009) duas das principais dificuldades motoras apresentadas por autistas são: hipotonia (baixo tônus e força muscular) e apraxia (prejuízo na habilidade de executar movimentos hábeis, apesar de possuir a habilidade física e o desejo de executar). Tendo em vista essa dificuldade comumente encontrada na população diagnosticada com TEA, é fundamental que, na terapia individualizada, seja aplicado um programa de treino de habilidades motoras finas. A motricidade fina refere-se à capacidade de controlar um conjunto de atividades de movimento de certos segmentos do corpo, com emprego de força mínima, com capacidade de controlar os músculos pequenos do corpo (ROSA NETO, 2002; GALLAHUE; OZMUN; GOODWAY, 2013). Canfield (1981) afirma que a motricidade fina envolve a coordenação óculo-manual e requer um alto grau de precisão no movimento para o desempenho da habilidade específica, num grande nível de realização, como por exemplo, cortar papel, pegar no lápis, escovar os dentes, pentear o cabelo, abrir e fechar o zíper. São movimentos que para serem realizados necessitam da capacidade de controlar os músculos pequenos do corpo, necessitando, portanto, de uma sequência de desenvolvimento dos grandes grupos musculares para os pequenos. Segundo Harrow (1988), é através dessas tarefas cotidianas que a criança começa a ter mais habilidade ao executar tais movimentos corriqueiros. Contudo, a criança precisa de estímulo na exploração de tarefas para vivenciar habilidades, das mais simples às mais complexas. Um programa de treino de habilidades motoras fina tem como objetivo ensinar habilidades relacionadas à coordenação motora, destreza, controle de força e propriocepção, que são pré-requisitos para o aprendizado de futuros movimentos necessários, para atividades de vida diária como, cortar alimentos, montar um prato, amarrar o cadarço, dobrar roupas. Dito isto, a participação em programas estruturados de intervenção ABA focados na estimulação de habilidades motoras finas tem o potencial de promover independência à criança, considerando o que ela tem condições de fazer sozinha, mesmo que com dificuldade, e aquilo que há necessidade de auxílio. Metodologia Este capítulo organiza-se como um estudo de caso de caráter qualitativo, para descrever e compreender acontecimentos e contextos complexos e nos quais estão envolvidos vários fatores (LAKATOS, 2006). 445

Reabilitação: teoria e prática Para tanto, o objetivo é avaliar habilidade funcional de autocuidado de criança diagnosticada com TEA, antes e após participação em programa estruturado de intervenção ABA baseado em Treino de Tentativa Discreta (DTT) em uma dala de treino de atividades da vida diária (área de cômodos que simula os espaços de quarto e sala, cozinha e banheiro de uma casa, onde são executadas atividades para habilitação e reabilitação de habilidades funcionais de autocuidado, mobilidade e função social). Foi aplicado Inventário Pediátrico de Disfunção(PEDI). A partir das informações coletadas, foi elaborado um programa estruturado de intervenção ABA baseado em Treino de Tentativa Discreta (DTT) planejado de forma individualizada a ser executado 12 sessões agendadas de 40 minutos de duração com frequência semanal. Em cada sessão foi executado o registro escrito descrevendo a participação do sujeito da pesquisa em um diário de campo. Abaixo estão descritos os instrumentos da avaliação: Entrevista: As características do caso apresentado nesta foram retiradas a partir da entrevista aos pais. A entrevista constitui uma técnica alternativa para se coletar dados não documentados sobre determinado tema. É uma técnica de interação social, uma forma de diálogo assimétrico, em que uma das partes busca obter dados, e a outra se apresenta como fonte de informação (LAKATOS, 1996). 2. Inventário de Avaliação Pediátrica de Incapacidade (PEDI): O teste PEDI é composto por três partes: Parte I: avalia as habilidades funcionais da criança. Parte II: informa sobre a quantidade de ajuda ou assistência do cuidador que a criança recebe para desempenhar as atividades. Parte III: documenta as modificações do ambiente necessárias para o desempenho de tarefas. Cada parte anteriormente citada inclui três áreas de desempenho: autocuidado, mobilidade e função social. Este estudo utilizou apenas a parte: I – Habilidades Funcionais na área de autocuidado. A parte I consiste em 73 itens agrupados em cinco tarefas básicas de autocuidado: alimentação, banho, vestir, higiene pessoal e uso do banheiro. Cada item é avaliado com escore 0 (zero), se a criança não for capaz de desempenhar a atividade; ou 1 (um), se ela for capaz de desempenhar a atividade ou a mesma já fizer parte do seu repertório funcional. Cada escala do teste fornece um escore total/bruto, que é o resultado da pontuação dos itens da mesma. Após a obtenção do escore total/bruto, este é convertido em escore normativo e escore contínuo, através de tabela contida no manual do inventário. 446

Estimulação de habilidades funcionais no transtorno do espectro autista O escore padronizado normativo informa sobre o desempenho esperado de crianças de mesma faixa etária com desenvolvimento normal. Em cada grupo etário, um escore normativo entre 30 e 70 é considerado dentro da normalidade; valores inferiores a 30 demonstram atraso ou desempenho inferior; e um escore normativo de 50 corresponde ao escore médio esperado pelo grupo. O escore normativo não deve ser utilizado para crianças com idade inferior ou superior aos limites etários compreendidos pelo inventário. O escore contínuo fornece informações sobre o nível de capacidade da criança, não se considerando a faixa etária da mesma, podendo então ser utilizado para analisar o perfil de crianças com idade cronológica superior ao limite compreendido pelo teste PEDI. Após a transformação dos escores, são traçados mapas de itens de acordo com o manual, que apresenta um detalhamento do escore contínuo obtido pela criança ilustrando os itens (na parte de habilidades funcionais) ou os escores, que fazem parte do repertório funcional da criança bem como aqueles que não fazem. Em cada mapa, os itens são dispostos hierarquicamente de 0 a 100. Uma vez traçado o escore contínuo obtido pela criança no mapa, com a respectiva banda de erro padrão, todos os itens ou pontuações que estiverem localizados à esquerda desse intervalo apresentam uma complexidade menor do que o desempenho mostrado pela criança. Os itens que cruzam o intervalo apresentam nível de complexidade semelhante; por fim, os itens dispostos à direita do traçado no mapa apresentam complexidade relativa superior ao nível de desempenho apresentado pela criança e, consequentemente, não são esperados que compunham o repertório funcional da mesma. 3. Diário de Campo: Segundo Falkembach (1987), diário de campo é um instrumento de anotação, um caderno com espaço suficiente para anotações, comentários e reflexões para uso individual do investigador em seu dia a dia. Nele se anotam todas as observações de fatos concretos, fenômenos sociais, acontecimentos, relações verificadas, experiências pessoais do investigador, suas reflexões e comentários. É o relato escrito daquilo que o investigador ouve, vê, experiência e pensa no decurso da coleta de dados (BOGDAN & BIKLEN, 1994). 447

Reabilitação: teoria e prática Apresentação do Caso Criança, gênero feminino, quatro anos de idade, com diagnóstico de TEA realizado por neuropediatra e encaminhado para equipe multiprofissional. O paciente reside com os pais e casal de irmãos. A mãe e o pai trabalham o dia todo. Entre as queixas encontradas estavam: dificuldade de interação social, manipulação de objetos e utensílios e de concentração na execução de tarefas. Após aplicação do PEDI a paciente iniciou participação na Oficina de atividades funcionais conduzida por terapeuta ocupacional executando as seguintes atividades: Atividade: Fichas no Cofre O terapeuta apresentou à criança e mostrou o recurso, antes de começar o treino a criança recebeu instruções de como deveria proceder a brincadeira. Ela teria que colocar fichas em 3 cofres: ficha azul no cofre azul, ficha amarela no cofre amarelo e ficha vermelha no cofre vermelho. Inicialmente a criança apresentou dificuldades na coordenação motora fina, então foi realizada ajuda total, o terapeuta segurou a mão da criança para executar a tarefa. Além disso, sua falta de atenção e concentração dificultava a compreensão das dicas verbais e exemplos físicos fornecidos pelo terapeuta. A dificuldade de resolução de problemas fazia com que ao menor esforço a mesma desistisse de novas tentativas. Nas tentativas seguintes o terapeuta diminui o nível de assistência e o paciente recebeu um elogio como reforçador. Foram utilizadas dicas visuais para manter a atenção da criança as etapas da tarefa que melhoraram seu planejamento (colocar fichas nos cofres de cores correspondentes) e concentração (selecionar fichas e abrir e fechar cada cofre de forma ordenada). A atividade teve duração de 40 minutos, e o paciente demonstrou melhor concentração, interação e avanços com a precisão de movimentos motores mais refinados. Atividade: Servindo alimentos e líquidos Foi mostrado à criança travessas, pratos, copos, talheres e litros plásticos ao lado de recipientes contendo sementes, barbantes, farinha e água. A criança explorou os utensílios domésticos e teve contato com os demais materiais. Em seguida foi demonstrada a função das travessas e talheres com a utilização de conteúdos como sementes, barbantes, farinha e água. Inicialmente a criança apresentou dificuldades na coordenação motora fina, então foi realizada ajuda total, o terapeuta segurou a mão da criança para executar a atividade envolvendo servir materiais sólidos das travessas para os pratos e dos líquidos dos recipientes para os copos. A falta 448

Estimulação de habilidades funcionais no transtorno do espectro autista de atenção e concentração dificultava a compreensão das dicas verbais e exemplos físicos fornecidos pelo terapeuta. Por vezes a criança se distraia com o brilho emitido por superfícies reflexivas ou o barulho causado pelo choque entre talher e travessa metálica. Nas tentativas seguintes o terapeuta diminui o nível de assistência e o paciente recebeu um elogio como reforçador. Foram utilizadas dicas visuais para manter a atenção da criança nas etapas da tarefa que melhoraram seu planejamento (selecionar o tipo de talher em correspondência o que deveria ser servido) e concentração (servir materiais sólidos e depois servir os líquidos de forma ordenada). A atividade teve duração de 40 minutos, destes a paciente demonstrou melhor concentração, interação e avanços com a precisão de movimentos motores mais refinados. Resultados Tabela 1: Transformação do escore bruto em escore normativo (pré-programa) para escala de habilidades funcionais de autocuidado Idade Habilidades Funcionais 4 anos 3 meses Escore Bruto Escore Contínuo Erro Padrão e 27 dias 38,79 2.56 18 (<46) O estudo foi constituído pela avaliação pré-programa e pós- programa de Lara, paciente do sexo feminino com diagnóstico de TEA de 4 anos, 3 meses e 27 dias de idade cronológica. Na escala de Habilidades Funcionais de autocuidado (TAB. 1), a paciente obteve em avaliação pré-programa escore bruto de 18 (ou seja, <46), que remete ao escore normativo abaixo de 10 (Tabela 1). Como abordado anteriormente, escores normativos inferiores a 30 demonstram atraso ou desenvolvimento inferior ao esperado para crianças com desenvolvimento normal e da mesma faixa etária. Tabela 2: Pontuação (pré-programa) obtida em relação ao escore máximo em cada área de desempenho das habilidades funcionais de autocuidado Criança Alimentação Higiene Pessoal Banho Vestir Toalete (Máximo 14) (Máximo 19) (Máximo 5) (Máximo 20) (Máximo 15) ESCORE TOTAL OBTIDO Lara 7 6 00 4 449

Reabilitação: teoria e prática Considerando a pontuação obtida em relação ao máximo possível em cada parte do questionário de habilidades funcionais, a partir do escore bruto fornecido (Tabela 2), é possível analisar em qual atividade o desempenho funcional está mais comprometido. Todas as habilidades funcionais apresentam déficit em seu desempenho, dentre elas, a menos comprometida foi a de alimentação Os mapas de itens apresentados neste caso mostram o escore Figura 1: Mapa de Habilidades Funcionais de Autocuidado (pré-programa) Fonte: MANCINI, (2005). contínuo obtido pela criança, com o respectivo erro padrão. No mapa de Habilidades Funcionais/Autocuidado (Figura 1), foram assinalados os itens que não faziam parte do repertório funcional da criança e que se localizavam no seu nível de desempenho ou à esquerda dele. Área de Autocuidado Habilidades Funcionais A análise do conteúdo dos mapas de itens informa que, nas habilidades funcionais de autocuidado, o impacto da condição de TEA para a criança (do caso) se manifestou principalmente no desempenho de atividades de vestuário e banho, uma vez que se observa maior número de itens não incorporados ao repertório de habilidades da criança, que se localizam à esquerda do desempenho da mesma, sendo já esperado para o repertório funcional da criança por ser de menor complexidade. 450


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