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Reabilitação Teoria e Prática

Published by Editora Lestu Publishing Company, 2022-07-14 19:31:45

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Associação reabilitar e responsabilidade social É constituída por um micro-ônibus, um caminhão baú e uma carreta com equipamentos especializados, e composta por uma equipe multiprofissional que avalia o paciente, verifica as medidas e prepara os moldes para a fabricação dos produtos ortopédicos. Em seguida, após os trâmites legais de autorização, a equipe retorna ao município para entregar as peças prontas e fazer os devidos ajustes e orientações. Sua forma de atuação permite o acesso a lugares remotos e descentraliza os serviços oferecidos pela Oficina Ortopédica do CEIR. Além dos serviços referidos, o CEIR conta com um Centro de Diagnóstico, que oferece exames por imagem e bioquímicos. Realiza exames tais como tomografia computadorizada, ressonância magnética, radiografia e ultrassonografia; além de exames neurológicos, pneumológicos e urológicos e laboratoriais. Os usuários têm acesso aos serviços do Centro de Diagnóstico através de marcações via SUS, planos de saúde, convênios e particulares. O centro dispõe de médicos especialistas; biomédico; tecnólogos em Radiologia; técnicos de laboratório e equipe de Enfermagem; além da equipe administrativa. Tem um modelo de gestão que prioriza padrões de qualidade, aliados a um acolhimento humanizado. Proteção ao Meio Ambiente A Associação Reabilitar na busca pela proteção ao meio ambiente começou a implementar juntamente com outros parceiros, ações para reduzir o impacto ambiental do desmatamento e da poluição. Assim como parte de suas ações de Responsabilidade Social, a entidade realiza periodicamente, o plantio de árvores nativas da capital piauiense em locais como a margem do Rio Poti e o setor de Esportes da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Segundo Silva (2009), a Responsabilidade Social anda de mãos dadas com o conceito de desenvolvimento sustentável. Uma atitude responsável em relação ao ambiente e à sociedade, não só garante a não escassez de recursos, mas também amplia o conceito de uma escala mais ampla de atuação da empresa. Com a intenção de promover a preservação do meio ambiente local, a Associação Reabilitar, em parceria com o Projeto Margens Sustentáveis, da Rede Pense Bem Piauí já ajudou a plantar cerca de 400 mudas em diversos pontos da Capital. Tal ação contribui para amenizar a temperatura da cidade, através de um projeto de rearborização; e também contribui com uma cultura de preservação do meio ambiente. 51

Reabilitação: teoria e prática Incentivo à cultura e leitura: Projeto Abrindo os Olhos para Enxergar o Mundo O Projeto Abrindo os Olhos para Enxergar o Mundo utiliza multimeios para fazer a leitura do mundo através de um exemplo de vida que quebra paradigmas, vence fronteiras e desperta o conhecimento. Consiste em uma exposição de talentos artísticos regionais variados, que reproduzem as crônicas escritas por um autor alfabetizado numa escola rural, nascido em uma família de 15 irmãos que venceu a apartheid social através da educação. A estrutura é montada em oito ambientes sendo: três áreas de exposição, dois espaços sensoriais, uma sala de exibição, um painel interativo, uma recepção, um espaço de leitura, convivência e palestras. Todo o projeto foi desenvolvido nos padrões de acessibilidade e inclusão. Existem visitas dirigidas aos deficientes visuais com informações em braile e atendimento em libras para os deficientes auditivos. A exposição fica aberta para visitas das escolas, e ações complementares acontecem durante o tempo de exibição tais como palestras, roda de conversa, oficinas de arte, atividades de incentivo à leitura, dinâmicas de interação, apresentações teatrais, expressão corporal e sorteio de brindes. É importante ressaltar que todas as ações utilizam as crônicas como ponto de referência. Atuação no Sistema de Transporte Eletivo O Sistema de Transporte Eletivo teve início oficialmente em 02 de maio de 2016. Tem como objetivo atender a comunidade carente, exclusivamente beneficiária do SUS e que resida na região Entre Rios, que constitui um dos Territórios de Desenvolvimento presentes no Estado do Piauí e está localizado na macrorregião Meio-Norte. Entre os setores determinantes para o seu desenvolvimento estão as áreas de comércio e serviço, principalmente na saúde e educação. O Sistema de Transporte Eletivo conta com 23 micro-ônibus com ar- condicionado, adaptados para pessoas com deficiência. Tem a capacidade de transportar diariamente até 520 pessoas residentes na Região Entre Rios do Piauí até a capital. Ao todo compreende 21 (vinte e uma) rotas que assistem 28 municípios. Cada Rota pode atender até 26 (vinte e seis) passageiros por viagem, e uma Rota pode favorecer até 02 (dois) Municípios. Assim, o Sistema de Transporte Eletivo proporciona a garantia de atendimento médico na capital Teresina e o transporte seguro dos usuários, permitindo ao beneficiário a oportunidade de realizar o seu tratamento de saúde, sem interrupções por ausência de transporte, gerando economia para o município e para o Estado, além de melhorar a qualidade de vida dessas pessoas. 52

Associação reabilitar e responsabilidade social Considerações finais O tipo de modalidade de gestão da Associação Reabilitar abordado neste capítulo otimiza recursos humanos e financeiros, além de primar pela qualidade nos procedimentos administrativos, transparência, desburocratização, descentralização de ações e informações e pela excelência no atendimento. Dessa forma, as decisões tomadas são baseadas em visões plurais, buscando sempre representar os interesses da sociedade da melhor maneira possível, primando pela transparência e pela impessoalidade. O modelo de gestão e de parceria público-privada da Associação Reabilitar com o Governo do Estado compreendendo as ações de Responsabilidade Social, pode servir de referência para outras instituições, em função da qualidade e quantidade de serviços prestados. Primando pela excelência, eficiência, eficácia e efetividade na área de saúde pública, seu sucesso se reflete também na satisfação dos usuários. Suas ações têm gerado grande impacto social, e proporcionado a promoção da saúde por meio de ações educativas que atingem público em situações de risco. Que a experiência possa vir a promover a realização de novas iniciativas como essas, visando o fortalecimento das práticas de saúde e sociais com base nas necessidades da população, contribuindo para resolver os seus problemas prioritários, e assim proporcionar transformação social. Referências bibliográficas ASHLEY et. al. (Coord.). Ética e responsabilidade social nos negócios. São Paulo: Saraiva, 2002. ASSOCIAÇÃO REABILITAR. O que somos. Teresina: Associação Reabilitar, 2021. Disponível em: https://www.reabilitar.org.br/quemsomos/ organizacao-social/. Acesso em: 09 abr. 2021. CRUZ, M.L.F. Responsabilidade social: uma questão cultural. In: Congresso Brasileiro de Sociologia, IX, 2003, Campinas: UNICAMP, 13p. MELO NETO, F. P. de; FROES, C. Gestão da responsabilidade social corporativa: o caso brasileiro – da filantropia tradicional à filantropia de alto rendimento e ao empreendedorismo social. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2001. OLIVEIRA, L. M. B. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) / Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD). Cartilha do Censo 2010 – Pessoas com Deficiência. Brasília: SDH-PR/SNPD, 2012. Disponível em: http:// 53

Reabilitação: teoria e prática www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/ cartilhacenso-2010-pessoas-com-deficienciareduzido.pdf. Acesso em 20 abr. 2021. RELATÓRIO de gestão. Associação Reabilitar: gestão por mentes e mãos, Teresina, n. 10, p. 7, jan. 2019. SILVA, K. R. T et al. Meio ambiente e responsabilidade social nas empresas. São Paulo: Unisalesiano, 2009. Disponível em: http://www.unisalesiano. edu.br/encontro2009/trabalho/aceitos/CC33723863884.pdf. Acesso em 10 mai. 2021. SGORLA, F. A Responsabilidade Social das organizações privadas: das práticas à gestão. Revista Alcance – Eletrônica, v. 16, n. 03, p. 392– 403, set/dez. 2009. 54

2 Do lugar de cuidados ao espaço em que as famílias devem ser cuidadas: nuances de olhares protetivos em um Centro de Reabilitação Izabel Herika Gomes Matias Cronemberger Ana Kelly Pereira da Silva Karina Raquel de Sampaio Lemos Islany Ribeiro de Vasconcelos Pitanga Nayanna Alves Bezerra Leal de Alencar A família, como unidade dinâmica, ao longo da história tem passado por constantes modificações, o que impossibilita olhá-la sob um único viés. Conforme assinala Mioto (1997), deve-se falar em “famílias”, observando a suas especificidades, suas particularidades, posto que as famílias diferem significativamente entre si nos diversos momentos da história humana, possuindo uma dinâmica própria que é construída de forma relacional entre seus membros e a sociedade. As transformações ocorridas na família ao longo da história demonstram as influências culturais, econômicas, políticas e sociais, num processo dinâmico de retroalimentação. A mutabilidade característica da instituição familiar incide sobre conceitos, papéis e modelos familiares construídos historicamente. Assim, a formação da família é elaborada por uma complexidade de fatores, o que leva a considerá-la como uma unidade dinâmica e heterogênea. Dessa maneira, a família não pode ser concebida como um modelo ideal e único a ser seguido, haja vista as variadas formas, assim como não é

Reabilitação: teoria e prática possível se fixar papéis a serem exercidos nas diferentes configurações, tão pouco estabelecer um único conceito para família, sob pena de estigmatizar. A reflexão sobre a categoria temática família deve considerá-la como uma unidade dinâmica, em constante transformação que reflete e também produz mudanças na sociedade. Assim possui como um pressuposto básico a sua inserção no processo histórico de reprodução do cotidiano da vida social. Compreender nas famílias as suas dificuldades, limitações, esperanças, desejos, narrativas, contradições, estratégias de sobrevivência, sonhos - tudo isso com entendimento exponenciado quando se tem um membro da família com deficiência – é um dos maiores desafios do colocar-se na perspectiva protetiva de garantir cuidados a elas, quando se tem diariamente o retraimento dos direitos. Nessa esteira é objetivo desse capítulo discutir a compreensão da categoria famílias no processo de reabilitação, suas singularidades e a necessidade de se pautar a família para além de um espaço de cuidados, mas que devem ser cuidadas. Metodologicamente se guia pelo acúmulo de experiências das profissionais assistentes sociais vivenciadas em um Centro de Reabilitação, revisão bibliográfica e documental. A quebra necessária dos padrões estereotipados: famílias espaços a serem cuidados Ao dialogar sobre a temática família, Kaloustian e Ferrari (1994) a elegem como espaço imprescindível para a garantia da assistência e da proteção integral de seus membros, independentemente da configuração familiar. É a família que oferece os suportes afetivos e, sobretudo, materiais necessários ao desenvolvimento e bem-estar dos seus componentes. Ela desempenha um papel primordial na educação formal e informal, é no seu espaço que valores éticos e morais são introduzidos e incorporados, onde se fortalecem os laços de solidariedade. De acordo com Petrini (2003) no processo de evolução histórica, a família permanece como matriz civilizatória, como condição para a humanização e para a socialização das pessoas. A família sempre foi e continuará a ser a influência mais poderosa para o desenvolvimento da personalidade e do caráter das pessoas. As diferentes configurações familiares refletem o modo como se dispõem e se inter-relacionam os membros de uma família, mantendo vínculos que excedem a relação consanguínea, mas envolvem laços afetivos e simbólicos. Assim, a compreensão atual de família não está mais atrelada necessariamente à concepção de família nuclear (composta de mãe, pai e 56

Do lugar de cuidados ao espaço em que as famílias devem ser cuidadas ... filhos, seguindo o modelo tradicional patriarcal). A noção de família tem se ampliado na medida em que procura incluir e compreender as diferentes relações entre os seus membros. Segundo Mioto (1997), família é um núcleo de pessoas que convivem em determinado lugar, durante um lapso de tempo mais ou menos longo e que se acham unidas (ou não) por laços consanguíneos. Ela tem como tarefa primordial o cuidado e a proteção de seus membros, e se encontra dialeticamente articulada com a estrutura social na qual está inserida. As várias conceituações acerca da categoria família revelam que a diversidade da constituição familiar não reflete apenas a esfera concreta (diferentes configurações), mas também está presente no campo teórico (diversos conceitos). Essa compreensão remete a uma acepção plural de família, considerando a variedade de conceitos e modelos familiares possíveis. Frente a isso, é possível observar na mesma sociedade a coexistência de diferentes configurações familiares, incluindo modelos tradicionais (pai/provedor, mãe/cuidadora e filhos), bem como formas mais contemporâneas tais como casais dividindo ou alternando os cuidados dos filhos e da organização familiar, famílias reconstituídas/recasadas, casais sem filhos, homossexuais, com filhos adotivos, homens e mulheres que assumem sozinhos a criação dos filhos, consubstanciando as chamadas famílias monoparentais, dentre outras. Diante do exposto, a temática “família” caracteriza-se por sua pluralidade de interpretações e de modos de organizações as quais se constroem num processo de interação constante entre seus membros e o contexto social, cultural e político que se engendram no curso da história. Independente da diversidade conceitual e de configuração, todas as concepções apresentadas convergem no sentido de reconhecer a importância da instituição familiar como célula mater da sociedade. Com efeito, na contemporaneidade, embora a família seja reconhecida como espaço privilegiado de proteção e cuidado de seus membros, baseada não apenas em laços consanguíneos e de parentesco, mas nas relações de afeto e cuidado, é preciso considerá-la também como um campo onde podem ocorrer tensões e violências. A exemplo de sua multiplicidade de modelos, a família também reúne contradições próprias de toda relação social. Tal compreensão remete ao pensamento de Mioto (2000) a qual argumenta que, não obstante o reconhecimento protetivo da família é preciso considerar também que “o terreno sobre o qual a família se movimenta não é o da estabilidade, mas o do conflito, o da contradição” (MIOTO, 2000, p. 219). Assim a autora adverte que a família embora seja 57

Reabilitação: teoria e prática prioritariamente espaço de cuidado, em suas relações podem também existir o conflito e a instabilidade, sejam estes influenciados por condições estruturais (social, econômica, cultural) ou não. Corroborando com o entendimento de Mioto (2000) o pensamento de Pereira (2006) a qual ressalta que a família deve ser compreendida como uma instituição social “forte e fraca”. Forte porque ela é de fato um lócus privilegiado de solidariedade, no qual os indivíduos podem encontrar refúgio contra o desamparo e a insegurança da existên- cia. (...) Mas ela também é frágil, pelo fato de não estar livre de despotismo, violências, confinamentos, desen- contros e rupturas. (PEREIRA, 2006, p. 36). Mesmo dito isso, apesar do reconhecimento da variedade de formas familiares, de acordo com Szymanski (2003) a família nuclear, heterossexual (pai, mãe e filhos) ainda é a mais idealizada socialmente e isso leva a um entendimento equivocado de que as famílias que se encontram longe ou fora desse padrão tradicional são consideradas como famílias desestruturadas. Segundo Mioto (2000), famílias desestruturadas podem ser entendidas como: categoria, ou melhor, um rótulo, que serve para desig- nar aquelas famílias que falham nas suas funções insti- tucionais. Ou seja, implica um processo de julgamento que geralmente é realizado a partir de um modelo de família (mais ou menos flexível, dependendo do ava- liador) e que pode estar relacionado a determinados aspectos da vida familiar ou a um conjunto deles. Com o aumento do consenso em relação a diversidade de arranjos familiares, o rótulo geralmente é atribuído àquelas famílias que contrariam as expectativas sociais quanto aos papéis e funções familiares. (MIOTO, 2000, p.223). Com essa explicação ficam nítidos ainda os resquícios que perduram em nossa sociedade de romantizar e padronizar a família. E não é diferente nos processos de reabilitação, que precisa do processo de cuidado, tratamento responsabilidades, adesões além das possibilidades das famílias, e quando isso não ocorre, comumente rotula-se de família desestruturada, negligente, esquecendo-se porém que a não adesão, 58

Do lugar de cuidados ao espaço em que as famílias devem ser cuidadas ... atendimentos às expectativas podem estar configuradas em muitos caminhos e aqui se apresentam dois: I) a não adesão pode estar pujante e latente às carência financeiras, de não compreensões, de sofrimentos e até mesmo de ocultar violências , II) a não acreditação no desenvolvimento do processo de reabilitação. Esses caminhos podem ser melhor traçados com cuidados e se a participação das famílias for maior, seja na escuta de suas dores, na acolhida de angústias, incompreensões, esclarecimentos com linguagem acessível, e abertura de espaço ético de confiabilidades para que outros elementos surjam, como são as situações de violências, quais sejam: domésticas, intrafamiliares, institucionais, contra a pessoa idosa, criança e adolescente e outras situações, que legitimem trabalho que garantam que as famílias sejam espaços a serem cuidados. O enviesamento desse entendimento para Cronemberger (2017) fortalece o que historicamente e ainda na contemporaneidade se experencia nas políticas sociais, nos serviços públicos e privados, nas práticas profissionais que tomam as famílias como incompletas, irregulares e geradoras de problemas sociais. As intervenções se dirigem atribuindo a elas responsabilidades exclusivas por todos os cuidados ofertados a seus componentes. Se fracassarem são culpadas por problemas diversos (emocionais, comportamentais, escolares, de conduta legal, doenças, não adesões em tratamentos) de seus membros. Construindo alguns caminhos de proteção e cuidados a famílias A família moderna ou pós-moderna, autônoma, individualizada, relacional se envolve no cuidado para garantir autonomia e desenvolvimento aos seus membros individualmente, em especial aos filhos que ganham centralidade na atenção, cuidados e educação – esse modelo é vivido pelas classes médias e abastardas. Os pobres, todavia, se organizam em modelos em que não tem espaço para as individualidades, em função da perspectiva moral da família onde todos os membros é que vivem em função da família para garantir a sobrevivência material do grupo e sua sociabilidade, laços e vínculos. Isso em tese justifica a entrada de crianças, adolescentes e mulheres no mercado de trabalho e a distribuição e redistribuição de papeis entre outros membros da família ampliada, compadrio e vizinhança, o que permite a muitos autores definir que a família dos pobres se organiza não em núcleos conjugais restritos, mas em redes de autoajuda e tem traços da família patriarcal. 59

Reabilitação: teoria e prática A família, conforme já discutido, indiferentemente do modo como é conceituada e caracterizada, é a base da sociedade, a primeira forma de socialização do indivíduo, independente do seu arranjo e local que ocupa socialmente e economicamente na sociedade. Constitui-se como lócus privilegiado para o adequado desenvolvimento humano, segundo entendimento consagrado em documentos internacionais, como observado no preâmbulo da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (20/11/1989), onde os Estados participantes declararam-se: convencidos de que a família como elemento básico da sociedade e meio natural para o crescimento e o bem- -estar de todos os seus membros e em particular das crianças, deve receber a proteção e assistência neces- sária para poder assumir plenamente suas responsabi- lidades na comunidade. A Constituição Federal (1988) dispõe no caput de seu artigo 226 que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (BRASIL, 1988, p.144). Esse mesmo documento, no artigo 227, reconhece ainda que é de responsabilidade da família, da sociedade e do Estado assegurar a crianças e adolescentes direitos universais, sugerindo por parte do legislador a existência de uma relação de coparticipação entre os diferentes atores sociais, no que tange à proteção dessa parcela vulnerável da população, embora à família recaia o foco prioritário de responsabilidades: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dig- nidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a for- ma de negligência, discriminação, exploração, violên- cia, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988, p.144). Na esteira das considerações sobre o lugar da família na garantia dos cuidados, segundo Teixeira (2009) observa-se diante do Estado democrático de direitos, uma mudança de perspectiva, uma vez que a família passa a ser vista não apenas como espaço de cuidado, mas também como demandatária e que necessita de proteção. Esta última como condição de efetivação da primeira. Contudo, o discurso acerca da responsabilidade e dever da família frente a seus membros situa-se num campo de tensões, pois estas 60

Do lugar de cuidados ao espaço em que as famílias devem ser cuidadas ... atribuições constituem-se em condições para que a família possa receber assistência, cuidados e apoio. Portanto, há condicionalidades explícitas às famílias para serem merecedoras da atenção pública, independente das vulnerabilidades que enfrentam, dos seus modelos e da incidência da pobreza. Assim, se espera o mesmo padrão de funcionamento para todas as famílias, independente do contexto histórico, cultural, econômico, de suas demandas, como é o caso de famílias que tem algum membro familiar com deficiência; o que aponta uma visão idílica, romântica e irreal das famílias. Deste modo, segundo Teixeira (2009) é fundamental compreender que, para que a família possa desenvolver suas responsabilidades e funções de cuidado e socialização de seus membros, ela precisa ter acesso aos direitos contemplados no artigo 6º da Constituição Federal de 1988 (educação, saúde, trabalho, alimentação, lazer, segurança, previdência e assistência social), legitimando as políticas sociais como direito, e sob esta ótica, comprometer o Estado enquanto agente de promoção de direitos através de políticas públicas. Com isso, evidencia-se que a impossibilidade da família em exercer sua função de provedora e cuidadora perpassa sobretudo pela efetivação da função protetiva do Estado. Dessa maneira, o não cumprimento da legislação protetora (muitas vezes relegada apenas ao plano legal), não efetivamente aplicada ao cotidiano da população, aliada a ausência de políticas públicas de apoio, de cuidados, de socialização, de ocupação do tempo livre, de profissionalização e acesso ao trabalho remete muitas famílias à condição de vulnerabilidade social, as quais nem sempre conseguem cumprir sua função provedora e protetora de seus membros, acarretando, por vezes, no aumento dos processos de adoecimento, de não acesso aos serviços públicos, de perdas de tratamento de alta complexidade – como é o caso das reabilitações à pessoas com deficiência, que exigem rotina, frequência, assiduidade por vezes até diárias. Nesse último caso de um lado tem-se a necessidade técnica de um processo de reabilitação, que demanda tempo, técnicas, de outro o empobrecimento das famílias que não conseguem cumprir os protocolos e ainda se tem o mais grave, a não reabilitação de quem precisa, sendo que a variável tempo e momento no cuidado em reabilitação são cruciais, o que pode levar atrofia e aprofundamento das sequelas. Daí a necessidade de compreensão das singularidades de cada família e possibilitar percepção macro, uma vez que atrás da perda de um tratamento de reabilitação está a ausência e garantia de serviços públicos, o que por sua vez está para além do alcance de uma instituição de reabilitação. Quanto maior a oferta de 61

Reabilitação: teoria e prática serviços públicos, mais se minimizam sequelas e mais se garante inclusão das pessoas com deficiência, quer seja de forma produtiva, social, cultural, educação ou outras. Para Cronemberger (2017), não se pode culpabilizar e penalizar principalmente as famílias vulnerabilizadas por sua “incapacidade” de proteção e o cuidado necessários a seus filhos, entendendo essa função como natural e inalienável da instituição familiar, sem oferecer condições concretas para sua garantia. Esse entendimento faz muita diferença, pois parte do olhar para as necessidades da família e como se convergem forças para garantir apoio, cuidado e proteção, inclusive legitimando o seu espaço de voz ativa nos processos. O cenário acima descrito por muitas vezes não decifrado, tem contribuído para a disseminação do estigma da culpabilização das famílias em especial daquelas que tem em seu seio uma pessoa com deficiência. A culpabilização das famílias em especial daquelas que não tem como prover todo sustento material, imaterial e de necessidades advindas de um processo como o de reabilitação, incide ainda em sua estigmatização como negligente e incapaz de desempenhar sua função de provedora e protetora de seus membros. Assim, na perspectiva de romper com a culpabilização das famílias frente a impossibilidade do exercício de suas funções de cuidadora e provedora, é mister considerar que o direito da pessoa com deficiência, não se restringe à capacidade protetiva de seu grupo familiar, mas envolve os meios disponibilizados a esta para efetivar sua função provedora, devendo ser considerada em seu contexto sociocultural, político e econômico, enquanto sujeitos de direitos historicamente conquistados (CRONEMBERGER, 2017). Na construção desse olhar temos os profissionais assistentes sociais que em seus processos de trabalho oportunizam e legitimam:I) a participação das pessoas com deficiência, suas famílias; II) garantem e legitimam suas vozes e narrativas; III) realizam permanentemente a articulação e envolvimento da rede socioassistencial, de saúde seja na atenção primária, mental, rede sociojurídica, educação, mercado de trabalho, instâncias de controle social – redes intersetoriais; IV) provocações para a ampliação da oferta de Serviços, seja na garantia dos direitos da pessoa com deficiência bem como estímulos para sua expansão; V) diálogos interdisciplinares com os profissionais envolvidos no processo de reabilitação; VI) acompanhamento no cuidado compartilhado e sobretudo no entendimento da unicidade que cada família. Esse debate 62

Do lugar de cuidados ao espaço em que as famílias devem ser cuidadas ... acima apontado é parte da experiência de trabalho de assistentes sociais em um Centro de Reabilitação Esse debate aproxima-se do que Uga (1991, p. 97), define o processo de descentralização como: [...] um processo de distribuição de poder que pressu- põe, por um lado, a redistribuição dos espaços de exer- cício de poder ou dos objetos de decisão – isto é, das atribuições inerentes a cada esfera de governo, e por outra, a redistribuição dos meios para exercitar o po- der, ou seja, os recursos humanos, físicos, etc. Por isso mesmo pode-se dizer que, na atenção as famílias, é necessário reconhecer a necessidade de uma complementaridade e afirmação de compromissos que se afastem da visão assistencialista e autoritária. A descentralização deve ter caráter de democratização e caminhar para a materialização de direitos. Descentralizar “é redistribuir o poder, de propor, decidir e fiscalizar ações” (HEINDRICH, 1999, p.82). Considerações finais É possível ponderar que a maioria das famílias exercem suas funções de proteção social de forma espontânea e guiada por laços de amor e solidariedade e que essas atividades se dão no âmbito privado, e de modo individualizado. Porém, é indispensável considerar que os problemas que as famílias enfrentam extrapolam a sua capacidade de intervenção, principalmente a pobreza e exclusão social, e constituem problemas com dimensões estruturais, demandando ações públicas de enfrentamento. Não se pode olvidar que, entre os diversos efeitos trazidos pela ótica neoliberal, está o fortalecimento da parceria Estado com a família – verdadeiro familismo, que repercute em muitos processos, incluindo os de reabilitação. O familismo é analisado por Campos e Mioto (2003) na perspectiva da baixa oferta de serviços pelo Estado, tendo, as famílias, “a responsabilidade principal pelo bem-estar social”. Acepção decorrente do modelo tradicional da família do provedor masculino, o foco da ação pública conclama à centralidade da família, para a proteção de seus membros e, diferentemente de um sistema “pró-família”, que estabelece cuidados à família para o exercício do cuidar, o familismo pauta-se na solidariedade dos membros. Reitera as funções protetoras femininas e a naturalização da família como instância responsável pela reprodução social e se expressa 63

Reabilitação: teoria e prática em graduações diferentes, conforme a desresponsabilização pública, quer pela omissão e, também, pelo compartilhamento de metas ambiciosas, diante de situações adversas e de difícil solução, com parcos investimentos públicos. Por isso mesmo defende-se o entendimento e diminuição das práticas familistas que penalizam, culpabilizam e responsabilizam as famílias, para o fortalecimento de ações, práticas protetivas que enalteçam e legitimem as famílias como lócus a ser cuidado e protegido. Referências bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. CRONEMBERGER, I. H. G. M. O processo de trabalho da/o assistente social nos serviços de acolhimento institucional no Estado do Piauí. 2017. 316f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2017. HEIDRICH, Andrea Valente. Limites e possibilidades da descentralização das políticas sociais como alternativa de participação popular: análise da experiência de Pelotas. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal de Pelotas,1999. KALOUSTIAN, S. M.; FERRARI, M. Introdução. In: KALOUSTIAN, S. M (org.). Família brasileira: a base de tudo. São Paulo: Cortez, 1994. MIOTO, R. C. T. Família e serviço social: contribuições para o debate. In: Revista Serviço Social & Sociedade, n. 55. São Paulo: Cortez, 1997, p. 114-130. _______. Cuidados sociais dirigidos à família e segmentos sociais vulneráveis. In: Capacitação em serviço social e política social; módulo 4: o trabalho do assistente social e as políticas sociais. Brasília: UNB, Centro de Educação Aberta, Continuada a Distância, 2000. _______. Para que tudo não termine como um “caso de família”: aportes para o debate sobre a violência doméstica. Katálysis. Florianópolis, v. 6, n. 1, jan./ jun. 2003, p. 96-103. ONU, Organização das Nações Unidas. Convenção Internacional para os direitos das Crianças, 1989. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/ convencao-sobre-os-direitos-da-crianca. Acesso em: 28 Jan. 2022. PEREIRA, P. A. P. Mudanças estruturais, política social e papel da família: crítica ao pluralismo de bem estar. In: SALES, M.A.; MATOS, M. C. de; LEAL, M. C. Política social, família e juventude: uma questão de direitos. São Paulo: Cortez, 2006, p.23-41. 64

Do lugar de cuidados ao espaço em que as famílias devem ser cuidadas ... PETRINI J. C. Pós-modernidade e família. Bauru: Edusc, 2003. SZYMANSKI, H. Viver em família como experiência de cuidado mútuo: desafios de um mundo de mudança. In: Serviço social & Sociedade, ano XXIII, n. 71, São Paulo: Cortez, 2002. TEIXEIRA, S. M. Família na política de assistência social: avanços e retrocessos com a marcialidade sociofamiliar. Revista de Políticas Públicas, v. 13, n. 2, 2009, p. 255-264. UGA, Maria Alice Dominguez. Descentralização e democracia: o outro lado da moeda. Planejamento e Políticas Públicas, Rio de Janeiro, n. 5, 1991. 65



3 Reabilitação/habilitação intelectual no centro integrado de reabilitação Maria Andréia da Nóbrega Marques A reabilitação é tema da saúde e dos direitos da pessoa com deficiência. Nessa perspectiva, obedece ao princípio de que todos têm o direito de desfrutar das condições necessárias para o seu pleno desenvolvimento. O objetivo da reabilitação é o desenvolvimento de potencialidades, talentos, habilidades e aptidões físicas, cognitivas, sensoriais, psicossociais, atitudinais, profissionais e artísticas que contribuam para a conquista da autonomia da pessoa com deficiência e de sua participação social em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas. O Centro Integrado de Reabilitação (CEIR) foi inaugurado em Teresina para realizar atendimentos de média e alta complexidade voltados para pessoas com deficiência no Piauí. No CEIR, de início, teve o funcionamento da Reabilitação/Habilitação Física (RHF) e, posteriormente, após habilitação da instituição pelo MS como Centro Especializado em Reabilitação (CER) III, foram implantadas a Reabilitação/Habilitação Intelectual (RHI) e a Reabilitação/Habilitação Auditiva (RHA). Esse texto tem por objetivos apresentar o processo de implantação e o funcionamento da RHI no CEIR, bem como descrever o perfil dos usuários atendidos nesse serviço de reabilitação. A reabilitação é tema da saúde e dos direitos da pessoa com deficiência. Nessa perspectiva, obedece ao princípio de que todos tem o direito de desfrutar das condições necessárias para o seu pleno desenvolvimento. Com base na Lei Brasileira de Inclusão (LBI), nº 13.146, de 06 de julho de 2015, em seu art. 2º, compreende-se pessoa com deficiência

Reabilitação: teoria e prática [...] aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obs- truir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (BRA- SIL, 2015). Também conforme essa lei, a reabilitação tem por objetivo o desenvolvimento de potencialidades, talentos, habilidades e aptidões físicas, cognitivas, sensoriais, psicossociais, atitudinais, profissionais e artísticas que contribuam para a conquista da autonomia da pessoa com deficiência e de sua participação social em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas. Quase 24% dos brasileiros possuem algum tipo de deficiência, seja visual, auditiva, motora, mental e/ou intelectual. A população total de pessoas com deficiência residentes no Brasil, identificada pelo Censo Demográfico 2010, passa de 45.606.048, sendo que 860.430 estão no Piauí. Dentre as regiões do Brasil, a maior incidência de deficiência ocorre no Nordeste, com taxa de 26,63%, e o estado do Piauí tem a taxa de 27,59%, acima dos índices nacional e da região Nordeste (IBGE, 2012). O Ministério da Saúde (MS) instituiu diretrizes e instrutivos para a implementação e implantação dos serviços de reabilitação, e para a reabilitação/habilitação das pessoas com deficiência (BRASIL, 2014; BRASIL, 2020). Conforme esses documentos e seguindo a regionalização do Sistema Único de Saúde (SUS), o usuário deve ser atendido, prioritariamente, no serviço mais próximo de sua residência, que deve dispor de estrutura física e funcional, e de equipes multiprofissionais devidamente qualificadas e capacitadas para a assistência especializada em reabilitação para pessoas com deficiência. No dia 5 de maio de 2008, o Centro Integrado de Reabilitação (CEIR) foi inaugurado em Teresina para realizar atendimentos de média e alta complexidade voltados para pessoas com deficiência no Piauí. Esse projeto foi resultado de uma ação do Governo do Estado em parceria com o Governo Federal e gerido pela Associação Reabilitar, organização social sem fins lucrativos, reconhecida como de utilidade pública e de interesse social. Os serviços do CEIR foram construídos seguindo o modelo de funcionamento da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), de São Paulo, e do Centro Estadual de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (CRER), de Goiânia, instituições parceiras e que possuem uma história de sucesso no campo da reabilitação. No CEIR, de início, teve o funcionamento da Reabilitação/Habilitação Física (RHF) e, posteriormente, 68

Reabilitação/habilitação intelectual no centro integrado de reabilitação após habilitação da instituição pelo MS como Centro Especializado em Reabilitação (CER) III, foram implantadas a Reabilitação/Habilitação Intelectual (RHI) e a Reabilitação/Habilitação Auditiva (RHA). Esse texto tem por objetivos apresentar o processo de implantação e o funcionamento da RHI no CEIR, bem como descrever o perfil dos usuários atendidos nesse serviço de reabilitação. Reabilitação/habilitação intelectual (RHI) no CEIR De acordo com Brasil (2020), os serviços de reabilitação com modalidade intelectual devem prestar atendimento e garantir linhas de cuidado em saúde nas quais sejam desenvolvidas ações voltadas à funcionalidade, à cognição, à linguagem, à sociabilidade e ao desempenho de habilidades necessárias para pessoas com deficiência intelectual e/ou com Transtorno do Espectro Autista. Entende-se por serviços de reabilitação intelectual aqueles que [...] atendem às pessoas com deficiência que têm impe- dimentos temporários ou permanentes; progressivos, regressivos ou estáveis; intermitentes ou contínuos de natureza mental e/ou intelectual, os quais, em intera- ção com diversas barreiras, podem obstruir sua parti- cipação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. (BRASIL, 2020). O serviço da Reabilitação/Habilitação Intelectual (RHI) no Centro Integrado de Reabilitação (CEIR) funciona no âmbito da Atenção Especializada da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD) no Sistema Único de Saúde (SUS), instituída pela Portaria de Consolidação nº 3/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, Anexo VI (Origem: PRT MS/GM 793/2012). As atividades desenvolvidas nesse serviço começaram no dia 24 de março de 2015 e foram organizadas de acordo com os Instrutivos de Reabilitação Auditiva, Física, Intelectual e Visual, do Ministério da Saúde (BRASIL, 2014), documento que objetiva nortear a implementação e a implantação de serviços de reabilitação e o cuidado às pessoas com deficiência. Conforme os Instrutivos de Reabilitação Auditiva, Física, Intelectual e Visual (BRASIL, 2020), a reabilitação é uma abordagem multiprofissional e interdisciplinar dos profissionais de saúde e o envolvimento direto da pessoa com deficiência, dos familiares e dos atendentes pessoais nos processos de cuidado. As ações para reabilitação devem ser estabelecidas a partir das necessidades singulares de cada indivíduo, considerando o impacto 69

Reabilitação: teoria e prática da deficiência sobre sua funcionalidade, bem como fatores emocionais, ambientais, comunicacionais, sociais e o desempenho ocupacional (BRASIL, 2020). Clínicas de Deficiência Intelectual (DI), de Síndrome de Down (DOWN)e de Transtorno do Espectro Autista (TEA) na RHI A RHI no CEIR atende a pacientes com diagnóstico de Deficiência Intelectual (DI), de Síndrome de Down (DOWN) e/ou de Transtorno do Espectro Autista (TEA), recebidos por triagem marcada via online pelo SUS no Posto de Saúde ou na Secretaria de Saúde do município. A admissão na RHI ocorre por consulta médica, em que são realizados a anamnese e o exame físico, de forma detalhada, o diagnóstico e, quando necessários, solicitados exames, realizados encaminhamentos e/ou prescrição de medicamentos ou equipamentos. Na situação, a depender da idade e do quadro clínico do paciente, este pode ser encaminhado para procedimentos da reabilitação, para outras consultas pela equipe clínica (nutrição, enfermagem, neuropediatria, fisiatria, dermatologia, urologia, cardiologia, otorrinolaringologia e ortopedia) ou para os serviços do centro de diagnóstico e da oficina ortopédica da instituição. A avaliação global é realizada pela equipe da reabilitação e com a presença do paciente e de seus familiares/responsáveis. Tem por objetivos acolher, reconhecer o perfil clínico e social atual, identificar as demandas e estabelecer o Projeto Terapêutico Singular (PTS) do paciente. O PTS é construído a partir de avaliação interdisciplinar e colaboração dos familiares/responsáveis, em que, a depender da idade e das demandas avaliadas, são estabelecidos os encaminhamentos para orientações, avaliações e/ou terapias de reabilitação. Crianças com menos de quatro anos de idade tem prioridade nos atendimentos e são direcionadas às terapias de reabilitação logo após a consulta de admissão, sem participar da avaliação global. Compõem a equipe de terapeutas da RHI profissionais de psicologia, psicopedagogia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, fisioterapia, reabilitação desportiva, musicoterapia, arterreabilitação e serviço social. Todos os pacientes admitidos na RHI recebem atendimentos individuais ou em grupo e seus familiares/responsáveis participam do curso aos pais e recebem orientações individuais. Seguindo o que foi planejado no seu PTS, cada paciente pode ser atendido em grupo de estimulação, grupo Aprender, grupo de habilidades socioemocionais, oficina de atividades 70

Reabilitação/habilitação intelectual no centro integrado de reabilitação sensoriais, grupo de reabilitação neuropsicológica, oficina de comunicação, oficina de linguagem e/ou oficina de atividades funcionais. Após concluir o PTS na RHI, recebendo alta das terapias, os pacientes são encaminhados para o Ambulatório de Certificação de Habilidades, onde são atendidas por profissional da medicina e da psicologia, recebem alta do CEIR e encaminhamentos para seu acompanhamento pela atenção básica. Clínica de Microcefalia na RHI Após a epidemia do Zika vírus, que afetou de forma grave o nordeste do Brasil, em março de 2016 dois protocolos foram publicados pelo Ministério da Saúde (MS), o de “Vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia e/ou alterações do sistema nervoso central (SNC) versão 2.1” e o protocolo de “Atenção à saúde e resposta à ocorrência de microcefalia”. Nesse último documento ficou estabelecido que crianças com microcefalia e prejuízos do desenvolvimento neuropsicomotor beneficiam-se de programa de estimulação precoce, que objetiva estimular a criança e ampliar suas competências, abordando os estímulos que interferem na sua maturação, para favorecer o desenvolvimento motor e cognitivo. Fonte: arquivo CEIR No Piauí, a partir desse protocolo de atenção à saúde e resposta à ocorrência de microcefalia, foi planejada e instituída a clínica de 71

Reabilitação: teoria e prática Microcefalia na RHI do CEIR para atender às crianças confirmadas para Síndrome Congênita associada à infecção pelo vírus Zika ou por outras síndromes causadas por sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes vírus (STORCH). Essas crianças são encaminhadas pela Maternidade Dona Evangelina Rosa, em Teresina-PI, para vagas específicas destinadas à consulta de admissão da clínica de Microcefalia. Segundo esse protocolo, a criança deve ser inserida no programa de estimulação precoce, permanecendo até os três anos de idade. O programa segue as diretrizes do Ministério da Saúde para a estimulação precoce de crianças de 0 a 3 anos, lançadas também em 2016. Em dezembro daquele ano, 70 crianças (Dados: cadastro de atendimentos do CEIR) de Teresina e outros municípios do Piauí, diagnosticadas com microcefalia, estavam participando do programa de estimulação precoce na RHI do CEIR, com atendimento individual de fisioterapia e de terapia ocupacional, Grupo de Estimulação Precoce, com atendimento de psicologia e fonoaudiologia; Curso aos Pais, ministrado pela equipe de reabilitaçã; e Grupo Acolher, conduzido por profissional da psicologia e direcionado às mães das crianças. Após completar três anos e participar do programa de estimulação precoce, por pelo menos seis meses, as crianças recebem alta desse programa e são reavaliadas quanto ao perfil, em discussão de caso por profissionais da equipe de reabilitação. A depender do seu perfil, cada criança é, então, encaminhada para outra clínica na RHI ou RHF para iniciar programa de reabilitação, ou é encaminhada para o Grupo de Orientação Continuada e para o acompanhamento pela atenção básica, com posterior alta da instituição. Orientações e Terapias por Teleatendimento na RHI As orientações e terapias na modalidade de teleatendimento na RHI foram procedimentos criados em função do momento de distanciamento e isolamento social devido à pandemia do novo coronavírus (COVID-19), em 2020, seguindo as medidas higiênico-sanitárias relacionadas à prevenção do COVID-19, preconizadas pela Organização Mundial da Saúde, pelo Governo do Estado do Piauí, pela Prefeitura Municipal de Teresina e pelo Setor de Segurança do Trabalho do CEIR, para oferecer mais segurança a todos os colaboradores, pacientes e seus familiares/responsáveis. Na RHI, foram iniciados por teleatendimento as atividades de Orientações, Grupo de Estimulação Precoce, Grupo de Estimulação Integrativa, Curso aos Pais e Grupo Intensivo de Habilidades, nas clínicas de 72

Reabilitação/habilitação intelectual no centro integrado de reabilitação DI, DOWN ou TEA; bem como Grupo de Estimulação Precoce e Grupo de Orientação Continuada, na clínica de Microcefalia. Os demais atendimentos continuaram apenas na modalidade presencial. Imagem: arquivo CEIR Para os teleatendimentos na RHI, foram adquiridos tablets, webcam com microfones, sala em plataforma virtual e equipamentos para filmagens de vídeos. Para essas atividades, os terapeutas foram treinados para a utilização da plataforma específica, para gravação e edição de vídeos, bem como para os atendimentos seguindo os novos protocolos. Perfil dos pacientes atendidos na reabilitação/habilitação intelectual no CEIR Para Reabilitação/Habilitação Intelectual (RHI) no Centro Integrado de Reabilitação (CEIR) são elegíveis crianças de até 11 anos, 11 meses e 29 dias, recebidos por Triagem Reabilitação Intelectual Infantil com: Diagnóstico de Deficiência Intelectual (DI); Diagnóstico de Síndrome de Down (DOWN); ou Diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA). Também são elegíveis crianças de até três anos, confirmadas para Síndrome Congênita associada à infecção pelo vírus Zika ou por outras 73

Reabilitação: teoria e prática síndromes causadas por sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes vírus (STORCH). Tem atendimento prioritário na RHI do CEIR as crianças com diagnóstico de DI, DOWN e/ou TEA até quatro anos de idade; e as com diagnóstico de Microcefalia, até três anos de idade. Não são elegíveis para atendimentos na RHI do CEIR, usuários que possuem diagnóstico de DI, DOWN e/ou TEA, porém com deficiência em nível grave ou profundo; que possuam diagnóstico prévio de transtornos psiquiátricos que se sobressaem ao diagnóstico elegível; e que não apresentem retaguarda de transporte e/ou retaguarda familiar ou social. Na RHI do CEIR são atendidos em média 200 pacientes ao mês, seguindo o recomendado pelo Ministério da Saúde para esse tipo de modalidade de reabilitação. Contudo, no Piauí, a demanda para reabilitação intelectual é expressiva e há carência de outras instituições que realizem esse atendimento às pessoas com DI, DOWN e/ou TEA, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em março de 2020, antes da suspensão dos atendimentos do CEIR por quatro meses, devido à pandemia do novo coronavírus (COVID-19), a RHI estava atendendo, de forma presencial, 231 pessoas (considerando números de atendidos na semana de 16 à 20 de março): 74 da clínica de DI, 35 da clínica de DOWN, 99 da clínica de TEA e 23 da clínica de Microcefalia. Dessas, 172 são residentes em Teresina e as demais em outros municípios do Piauí (Dados: cadastro de atendimentos do CEIR). Após cinco meses, em média, de suspensão das atividades de reabilitação da RHI, em agosto de 2020, os atendimentos retornaram, gradativamente, por teleatendimento ou de forma presencial, seguindo medidas higiênico-sanitárias relacionadas à prevenção do COVID-19, preconizadas pela Organização Mundial da Saúde, Governo do Estado do Piauí, Prefeitura Municipal de Teresina e Setor de Segurança do Trabalho do CEIR, além de critérios específicos da RHI, como perfil clínico, retaguarda de transporte, retaguarda familiar ou social, além das características específicas das terapias de reabilitação. Em março de 2021, um ano após o início da pandemia causada pelo COVID-19, 187 pacientes estavam recebendo os atendimentos de reabilitação na RHI do CEIR, de forma presencial e/ou por teleatendimento (considerando números de atendidos na semana de 01 a 05 de março). Desses pacientes, 50 são da clínica de DI, 38 da clínica de DOWN, 83 da clínica de TEA e 16 da clínica de Microcefalia (Dados: cadastro de atendimentos do CEIR). Vale ressaltar que muitas crianças continuaram com seus atendimentos suspensos seja por se recusar a comparecer de 74

Reabilitação/habilitação intelectual no centro integrado de reabilitação forma presencial devido às limitações impostas pela pandemia, seja por não dispor dos recursos de comunicação necessários para o teleatendimento. Considerações finais Desde 2015, a Reabilitação/Habilitação Intelectual (RHI) no Centro Integrado de Reabilitação (CEIR) funciona de acordo com as diretrizes e os instrutivos do Ministério da Saúde, atendendo, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pacientes com Deficiência Intelectual (DI), Síndrome de Down (DOWN), Transtornos do Espectro Autista (TEA) e, após 2016, crianças com diagnóstico de Síndrome Congênita associada à infecção pelo vírus Zika ou de outras síndromes causadas por sífilis, toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e herpes vírus (STORCH). O funcionamento e as atividades da RHI no CEIR tem adequações e melhoramentos atendendo às necessidades institucionais, mas também para responder às demandas de saúde da população, como exemplo da implantação da Clínica de Microcefalia devido à epidemia do Zika vírus e dos teleatendimentos durante a pandemia do COVID-19. A RHI no CEIR, em Teresina, funciona buscando atender a capacidade de 200 pacientes ao mês. Contudo, é contínua a existência de fila de espera por vaga, com um número de pacientes nessa fila bem superior ao número de vagas para atendimento nessa instituição. Devido a essa situação e considerando os direitos da pessoa com deficiência, compreende-se que há necessidade de políticas públicas para garantir o atendimento a todos que necessitam de reabilitação intelectual no Estado. Referências bibliográficas BRASIL, Lei 13.146 de 06 de julho de 2015. Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei Brasileira de Inclusão. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm. BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção a Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Instrutivos de Reabilitação Auditiva, Física, Intelectual e Visual. Ministério da Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégias. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Protocolo de atenção à saúde e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus zika [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde, 2015. BRASIL, Ministério da Saúde. Protocolo de vigilância e resposta à ocorrência de microcefalia e/ou alterações do sistema nervoso central (SNC) [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde, 2016. 75

Reabilitação: teoria e prática BRASIL, Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégias. Instrutivos de Reabilitação Auditiva, Física, Intelectual e Visual. Ministério da Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Brasília: Ministério da Saúde, 2020. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção a Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégias. Diretrizes de Atenção à Reabilitação da Pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) / Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Brasília: Ministério da Saúde, 2014. 86p.: il. ISBN 978-85-334- 2089-2. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção a Saúde. Diretrizes de estimulação precoce: crianças de zero a 3 anos com atraso no desenvolvimento neuropsicomotor / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2016. 184 p.: il. ISBN 978- 85-334-2434- 0. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico 2010. Resultados gerais da amostra. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. PIAUÍ. Decreto nº 19.076, 01 de julho de 2020, publicado no Diário Oficial da União. Anexo IV do Pacto de Retomada organizada no Piauí COVID-19 – Pro Piauí - Protocolo específico nº 009/2020. Orientações para empregadores, trabalhadores e pacientes dos serviços de psicologia: medidas de prevenção e controle da disseminação do SARS-COV-2 (COVID-19). Teresina: Secretaria de Estado da Saúde do Piauí, 2020. 76





4 Abordagem interdisciplinar no tratamento do paciente com espasticidade Francisco José Alencar Liceana Barbosa de Pádua Alves Leonardo Raphael Santos Rodrigues Josione Rêgo Ferreira Ana Patrícia de Carvalho Petillo Rodrigues Leylane Auzeni Mendes Rilzer Lopes Clara Linda Correia Lima Alencar A espasticidade pode ser definida como o aumento do tônus muscular, velocidade dependente, com exacerbação dos reflexos profundos, decorrente de lesão do neurônio motor superior, associado à hiperexcitabilidade do reflexo do estiramento e presença de fraqueza muscular. A espasticidade foi descrita pela primeira vez em 1898 por Sir Charles Sherington, o qual mostrou que ocorria uma hipertonia muscular ao descerebrar um macaco através de secção mesencefália, gerando lesão do motoneurônio superior, da via córtico retículo-bulbo-espinhal, o que resulta em aumento da resistência ao estiramento muscular, em hiperatividade e hiperreflexia. Em 1954, Tardieu propôs uma definição de espasticidade como “é um aumento nos reflexos de alongamento que poderia ser caracterizado e medido pela velocidade necessária para eliciar os reflexos”. Palisano et al., em 1997, definiu que “a espasticidade é uma desordem motora caracterizada por um aumento dependente da velocidade nos reflexos de estiramento tônico (tônus muscular) com espasmos tendinosos exagerados, resultante da hiperexcitabilidade do reflexo de estiramento, como um componente do neurônio motor. Atualmente a definição mais aceita de espasticidade é “controle sensório-

Reabilitação: teoria e prática motor desordenado, resultante de uma lesão do neurônio motor superior, apresentando-se como ativação involuntária intermitente ou sustentada dos músculos”. A nova definição é mais ampla para refletir vários sinais e sintomas sensório-motores de lesões do neurônio motor superior (por exemplo, clônus, padrões dissinérgicos durante o movimento) em oposição à definição clássica, “exagero dependente da velocidade dos reflexos de estiramento, resultante do processamento intraespinhal anormal da entrada aferente primária. Clinicamente, isso implica aumento do tônus muscular”. Está associada à redução da capacidade funcional, limitação da amplitude do movimento articular, desencadeamento de dor, aumento do gasto energético metabólico e prejuízo nas tarefas de vida diária, como: alimentação, locomoção, transferências (mobilidade) e cuidados de higiene. Pode causar contraturas, rigidez, luxações e deformidades articulares. Por outro lado, o aumento do tônus muscular pode contribuir como a estabilização articular, melhora postural, facilitação das trocas de decúbito e transferências em algumas pessoas. Etiologia A espasticidade é uma condição clínica multicausal que acomete milhões de pessoas em todo o mundo. Incidência e prevalência apresentam taxas variadas e estão intimamente relacionadas com as doenças correspondentes. Ocorre devido a lesões do sistema nervoso central (lesões anóxicas, traumáticas, vasculares, infecciosas, neoplásicas, degenerativas, dentre outras). Está presente em até 80% das pessoas com paralisia cerebral, 70% das lesões medulares, até 40% dos acidentes vasculares encefálicos e 20% dos traumatismos cranioencefálicos. Fisiopatologia Segundo Sherrington a espasticidade é associada à hiperexcitabilidade do reflexo de estiramento relacionado à perda de influências inibitórias da descida o reflexo miotático. Este achado serve como base para o entendimento da espasticidade, mas não explica todos os aspectos encontrados em situações clínicas. Babinski, em uma correlação da fisiopatologia com a clínica, considerou três tipos de estados espásticos: (1) a contratura do reflexo do tendão com hiperexcitabilidade predominante do reflexo miotático; (2) a contratura cutânea reflexa relacionada à hiperatividade dominante do reflexo polissináptico – nociceptivo durante a flexão associado ao triplo fenômeno de retirada; (3) a contratura associada ao envolvimento intramedular, certamente causada 80

Abordagem interdisciplinar no tratamento do paciente com espasticidade por modificações de interneurônios medulares inibitórios. A espasticidade não é causada apenas por um mecanismo, mas por vários, mais ou menos vinculados, associados a diferentes manifestações clínicas, levando a diferentes condutas terapêuticas médico-cirúrgicas. Apresentação clínica Está associada à redução da capacidade funcional, limitação da amplitude do movimento articular, desencadeamento de dor, aumento do gasto energético metabólico e prejuízo nas tarefas de vida diária, como: alimentação, locomoção, transferências (mobilidade) e cuidados de higiene. Pode causar contraturas, rigidez, luxações e deformidades articulares. Por outro lado, o aumento do tônus muscular pode contribuir como a estabilização articular, melhora postural, facilitação das trocas de decúbito e transferências. Portanto, é uma situação clínica a ser modulada e, não necessariamente, completamente eliminada. A espasticidade pode se manifestar clinicamente com tônus muscular aumentado (rigidez muscular), reflexos tendinosos aumentados, espasmos musculares, clônus, marcha anormal e incapacidade de dobrar membros. Os espasmos musculares são caracterizados por contrações musculares involuntárias e repentinas e são particularmente comuns na extensão do joelho e flexão do quadril. Clinicamente, o aumento do tônus muscular na espasticidade geralmente afeta músculos “antigravitacionais”. Nos membros inferiores, a espasticidade predomina nos músculos extensores, com extensão e rotação interna do quadril, extensão do joelho, com flexão plantar e inversão do pé. Há aumento do tônus nos adutores do quadril, flexores do joelho e flexores plantares e inversores do tornozelo. Nas extremidades superiores, predomina nos músculos flexores, comumente ocorre aumento do tônus nos adutores do ombro; cotovelo, punho e flexores dos dedos; e pronadores do antebraço. Ao exame físico, os membros espásticos demonstram aumento de resistência ao movimento passivo, que é mais acentuado com o aumento da amplitude e da velocidade imposta. O aumento de resistência ao estiramento passivo é maior no início do movimento e diminui com a continuação dele, caracterizando o chamado “sinal do canivete”. Gestão terapêutica A pessoa com espasticidade pode apresentar graus variados de necessidades terapêuticas que podem se modificar ao longo de seus ciclos de vida. A espasticidade não deve ser tratada somente porque ela existe, mas 81

Reabilitação: teoria e prática por ser patológica e de piora progressiva. É fundamental que o tratamento esteja diretamente ligado à condução da própria pessoa, incluindo todos os fatores pessoais e a presença de situações associadas, como comorbidades clínicas, neurológicas, ortopédicas etc. Portanto, deve-se tratar a pessoa com suas características individuais. O tratamento da espasticidade deve ser focado nas manifestações clínicas apresentadas, além do real potencial de promoção de deformidades. Neste cenário, o manejo bem-sucedido da espasticidade é medido pela redução do tônus muscular, pelas melhoras funcional e da qualidade de vida. Portanto, para os pacientes funcionais, o objetivo primário deve ser melhora da função e parar ou prevenir deformidades; para os demais, melhora global da qualidade de vida, como redução de dor e melhora de postura. O combate à espasticidade é parte de um plano de tratamento global que se estende por vários anos, devendo ser adaptado para as necessidades presentes com atenção de suas manifestações futuras. Quando se trata de criança, para selecionar o melhor tratamento, o momento ideal e qual intervenção realizar, deve-se agir agora focando no estado futuro de possíveis agravamentos musculoesqueléticas e suas consequências adversas. A melhor forma de tomada de decisão é através de uma avaliação global, multidisciplinar, constituída por médicos e terapeutas, serviço social, além das participações do paciente e da família. Para isto, exige-se uma equipe multiprofissional e, preferencialmente, com abordagem interdisciplinar, com interesse, conhecimento científico e capacidade profissional, além da participação do paciente e da família, respeitando as diferentes situações e as necessidades individuais, objetivando oferecer todos os meios terapêuticos disponíveis e oportunizar melhor qualidade de vida. Nosso serviço conta com atendimentos específicos para condução dos pacientes com espasticidade formado por médicos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, além de oficina ortopédica para confecção de órteses e adaptação de meios auxiliares de locomoção. Durante a avaliação global multiprofissional, onde são vistas as condições clínicas, neurológicas, dentro do contexto sócio- econômico do paciente, é feito um plano terapêutico singular. As opções terapêuticas podem ser de efeito sistêmico, local, temporárias ou permanentes. Medicamentos orais, injetáveis, procedimentos neurocirúrgicos e/ou ortopédicos, bem como terapias físicas, devem ser disponibilizados neste manejo. Disponibilizar os variados meios terapêuticos, no tempo de forma adequadas, promove os melhores resultados. 82

Abordagem interdisciplinar no tratamento do paciente com espasticidade É fundamental o acompanhamento da pessoa em todos os seus ciclos de vida, pois as necessidades terapêuticas vão se modificando no transcorrer do tempo. Como exemplo, quando é feito uso da toxina botu- línica, o paciente é reavaliado após quarenta e cinco dias visando analisar a resposta obtida e reposicionamento do plano terapêutico, podendo ser manutenção nesta modalidade terapêutico ou inserido em procedimentos de caráter permanente, como neurocirúrgicos e ortopédicos. Quando a equipe avalia e decide pela indicação de procedimentos neurocirúrgicos, como implante de bombas eletrônicas para uso de baclofeno intratecal, ri- zotomia dorsal seletiva ou neurotomias, o paciente é encaminhado para o atendimento hospitalar e depois inserido em novo plano de reabilitação para atingir os novos objetivos traçados. Portanto, deve-se conduzir a pes- soa com espasticidade na sua integralidade e ao longo do tempo. Avaliação da espasticidade A avaliação da espasticidade tem como principal objetivo traçar um planejamento terapêutico e posteriormente mensurar a eficácia deste tratamento. Além disso, examina os prejuízos que a espasticidade causa na funcionalidade e qualidade de vida do paciente, prevendo o risco de complicações. Deve ser constituída por uma anamnese completa, exame físico detalhado e aplicações de escalas. Várias destas são utilizadas, sendo a sua escolha baseada na etiologia e na faixa etária do paciente. Para avaliação de um paciente com espasticidade, deve-se considerar as circunstâncias em que os indivíduos serão testados, tais como a hora do dia, tipo de atividade antes do teste, temperatura ambiente, estado emocional, saúde geral (como infecção do trato urinário, constipação, dor, fadiga), uso de drogas, roupas e a posição de teste, ou seja, vários fatores não controlados podem contribuir para a variabilidade da avaliação. Um exame físico detalhado deve ser composto por reflexo osteotendíneo (Tabela 1), amplitude de movimento, força (Tabela 2), clônus (Tabela 3), espasmos (Tabela 4) e padrão de marcha. Estes fatores são importantes para que se possa avaliar os níveis de liberação piramidal e as cadeias musculares que possam estar afetadas. A amplitude de movimento é registrada através da goniometria, detectando assim a existência de algum encurtamento que pode interferir no resultado das escalas aplicadas e também ser um parâmetro para avaliar a melhora com o tratamento. Outro aspecto a ser observado é a funcionalidade através do questionamento de suas atividades de vida diária, podendo utilizar escalas funcionais, principalmente, escalas de rápida aplicação como Gross Motor Function Classification System (GMFCS) e Sistema de Classificação Manual (MACS) na Paralisia Cerebral e Escala de automatismo medular de Lyon 83

Reabilitação: teoria e prática (Tabela 5) na lesão medular. Uso de órteses e meios auxiliares devem ser sempre questionados. Todas essas dimensões são importantes para que seja traçado o objetivo do planejamento terapêutico. Este deve ser acompanhado com a aplicação, juntamente com a família, da Goal Attainment Scaling– GAS (Tabela 6) na reavaliação e, assim, facilitar o planejamento dos tratamentos subsequentes. A avaliação quantitativa da espasticidade é importante para verificar o potencial do tratamento, mas, embora a espasticidade seja facilmente reconhecida, não é facilmente mensurável. As escalas clínicas mais utilizadas são a Escala de Ashworth (EA) e Escala de Ashworth Modificada (EAM – Tabela 7), sendo utilizadas em vários estudos, pois são escalas fáceis e rápidas de ser aplicadas e não necessitarem de um instrumento para isto. Porém, as mesmas têm suas limitações, quando avaliado a confiabilidade entre examinadores, principalmente, em membros inferiores, tendo uma melhor confiabilidade na aplicação com o mesmo avaliador. Existem vários métodos que possibilitam avaliar a espasticidade, devendo ser utilizados aqueles em que o examinador tem mais experiência e conhecimento da técnica. Alguns destes não são práticos para serem utilizados no dia a dia do consultório clínico. Um exemplo é a Eletromiografia de Superfície (EMGs) que se torna interessante quando há necessidade de um planejamento para um procedimento mais invasivo como a Rizotomia Dorsal Seletiva. Na atualidade, uma forma de registrar as evoluções do paciente é através de vídeo-documentação que se realizada de forma padronizada, proporciona a comparação em reavaliações futuras. Outro método é oportunizar o momento de um procedimento sob sedação para complementar o exame físico com a goniometria sob sedação, com isso diferenciar se a amplitude de movimento reduzida é secundária ao encurtamento tendíneo ou à espasticidade. Estes serão melhor detalhados em uma secção mais adiante deste capítulo, onde se descreverá o Protocolo de Avaliação Neurofuncional com Teste sob Sedação Associado à Aplicação de Toxina Botulínica e o Protocolo Multidisciplinar na Rizotomia Dorsal Seletiva. A espasticidade afeta a vida do paciente em diversos aspectos, desde alteração estrutural do corpo à perda de uma funcionalidade. Uma avaliação estruturada e padronizada facilita o preenchimento da Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF) que poderá ser utilizada como uma ferramenta para identificar os fatores de barreira e acompanhar a evolução do paciente na reabilitação. Necessita-se, assim, de uma avaliação completa e detalhada para programar as intervenções e reavaliar seus efeitos. 84

Abordagem interdisciplinar no tratamento do paciente com espasticidade Tabela 1. Escore Reflexo de Estiramento 0 Ausente 1 Hiporreflexia 2 Normal 3 Hiperreflexia 4 Clônus esgotável (3 a 4 repetições) 5 Clônus inesgotável Tabela 2. Escala Força Muscular do Conselho de Pesquisa Médica 0 Contração muscular ausente 1 Contração muscular visível sem movimento articular 2 Movimento articular sem ação da gravidade 3 Movimento articular com ação da gravidade 4- Movimento articular com ação da gravidade e resistência mínima 4 Movimento articular com ação da gravidade e resistência leve 4+ Movimento articular com ação da gravidade e resistência moderada 5 Movimento articular com ação da gravidade e resistência máxima Tabela 3. Escore Clônus 0 Ausente 1 Não sustentado 2 Sustentado 3 Espontâneo Tabela 4. Escore Espamos 0 Ausente 1 Espasmos leves na estimulação 2 Espasmos raros, menos de 1 por hora 3 Espasmos infrequentes, mais de 1 por hora 4 Espasmos frequentes, mais de 10 vezes por hora 85

Reabilitação: teoria e prática Tabela 5. Escala de Automatismo da Universidade de Lyon 0 Ausência de automatismo 1 Automatismos infrequentes ou de mínima intesidade desencadeados pela movimentação sem alteração da postura ou função. 2 Automatismos frequentes ou de moderada intensidade, espontâneos ou frente à movimentação, mas não prejudicam postura ou função. 3 Automatismos muito frequentes ou de intensidade grave que prejudicam postura e acordam o paciente à noite. 4 Automatismos constantes que impedem postura correta. Pontuação Tabela 6. Goal Attainment Scale (GAS) -2 -1 Nível de conquista de resultados 0 Muito menos que o esperado +1 Pouco menos que o esperado +2 Grau esperado de resultados Um pouco mais que o esperado Muito mais que o esperado Tabela 7. Escala Modificada de Ashworth 0 Normal 1 Leve aumento do tônus muscular, manifestado por tensão momentânea ou mínima resistência no final da amplitude de movimento articular, quando a região é movida em extensão ou flexão. 1+ Leve aumento do tônus muscular, manifestado por tensão abrupta, seguida de resistência mínima em menos da metade da amplitude de movimento articular restante. 2 Aumento mais marcante do tônus muscular, durante a maior parte da amplitude de movimento articular, mas a região é movida facilmente. 3 Considerável aumento do tônus muscular, o movimento passivo é difícil. 4 Parte afetada rígida em flexão ou extensão. 86

Abordagem interdisciplinar no tratamento do paciente com espasticidade Intervenções terapêuticas No manejo da espasticidade um plano de tratamento deve idealmente ser construído de acordo com a extensão e a gravidade das alterações funcionais observadas na avaliação clínica multidisciplinar; e visa maximizar a função ativa, facilitar os cuidados diários e minimizar problemas secundários, como dor, subluxação e contraturas articulares. Neste sentido existem diversas intervenções terapêuticas, que podem ser agrupadas em: terapias físicas, tratamentos farmacológicos e procedimentos cirúrgicos. As terapias físicas serão discutidas detalhadamente em outra seção, porque representam a base do plano terapêutico da espasticidade, a partir da qual tratamentos farmacológicos e procedimentos cirúrgicos poderão também ser adotados. Tratamento Farmacológico Atualmente existem diversos fármacos disponíveis para tratamento da espasticidade, que permitem escolher entre diferentes vias de administração, como: cutânea, oral, intramuscular e intratecal. A adequada escolha terapêutica depende do conhecimento da eficácia clínica, dos mecanismos de ação, dos efeitos colaterais e das limitações de cada fármaco, por isso, descreveremos abaixo nossa prática diária no manejo da espasticidade com o uso de fármacos orais, toxina botulínica e baclofeno intratecal. Fármacos orais Os fármacos com administração oral tendem a ser a primeira escolha no tratamento da espasticidade generalizada, porque tem baixo custo e são facilmente administrados ao paciente, porém sua ação sistêmica pode promover efeitos colaterais significativos limitando o alcance da dose alvo. Como regra geral, as doses devem ser aumentadas gradativamente enquanto se observa a melhora clínica ou efeitos colaterais significativos; se necessário, dois ou mais fármacos orais podem ser associados para potencialização do efeito terapêutico. Diazepam: é um fármaco da classe dos benzodiazepínicos eficaz para redução da espasticidade com efeito inibitório na medula espinhal e nos níveis supraespinhais. O diazepam é o fármaco mais antigo e o mais utilizado dentro do arsenal terapêutico da espasticidade, mas outros benzodiazepínicos também são utilizados em menor escala. Sua ação é mediada pelo ácido γ-aminobutírico (GABA) através de receptores GABAA, resultando em inibição pré-sináptica e redução dos reflexos mono e polissinápticos da medula espinhal. Sua atuação na formação reticular 87

Reabilitação: teoria e prática promove um efeito sedativo indesejável para o manejo da espasticidade, por isso, a terapia deve ser iniciada como uma baixa dose noturna para facilitar a adaptação do paciente; a dose diária eficaz para o paciente adulto está entre 30 e 60 mg em doses divididas, enquanto a dose pediátrica deve ser calculada de acordo com o peso, variando entre 0,8 a 0,14 mg/kg/dia. Os benzodiazepínicos têm muitos efeitos colaterais como: sedação, ataxia, hiper salivação, constipação e retenção urinária; além disso, sua suspensão abrupta pode causar crise de abstinência. Estes efeitos indesejados desencorajam seu uso prolongado. Baclofeno: é um fármaco estruturalmente análogo ao GABA, capaz de reduzir significativamente a espasticidade e melhorar os movimentos passivos e ativos. Ele atua nos receptores GABAB das lâminas I-IV da medula espinhal, onde terminam as fibras sensoriais primárias, inibindo a liberação de neurotransmissores excitatórios e promovendo a inibição pré-sináptica dos reflexos mono e polissinápticos da medula espinhal. Infelizmente, a barreira hematoencefálica é eficiente em impedir a ação de cerca de 99% da dose total administrada oralmente, sendo necessário doses elevadas para obtenção da melhora clínica. A terapia é iniciada como uma baixa dose que deve ser aumentada semanalmente; a dose diária eficaz para o paciente adulto está entre 40 e 80mg em doses divididas, enquanto a dose pediátrica deve ser calculada de acordo com o peso, variando entre 20 e 40mg ao dia. Os efeitos colaterais do baclofeno incluem: sedação, confusão, tontura, ataxia, fraqueza, náusea, hipotensão e parestesias. Sua descontinuação abrupta pode causar sinais e sintomas de abstinência, como: alucinações, confusão, convulsões e hipertermia. Tizanidina: é um agonista adrenérgico alfa-2 de ação central, tão eficaz quanto o diazepam e o baclofeno para redução da espasticidade. Ela atua na medula e nos níveis supramedulares impedindo a liberação de aminoácidos excitatórios, como glutamato e aspartato. Além disso, promove efeito antinociceptivo pela liberação de substância P na medula espinhal, reduzindo a percepção dolorosa que está associada à espasticidade. A tizanidina tem excelente absorção após administração oral; o tratamento geralmente é iniciado em dose única noturna entre 2 a 4mg, e as doses são aumentadas gradativamente até o máximo de 36 mg/dia em doses divididas. Os efeitos colaterais incluem: hipotensão, sedação, astenia, boca seca, tontura, alucinação e hepatotoxicidade. Toxina botulínica As neurotoxinas botulínicas são produzidas por bactérias anaeróbicas Gram positivas do gênero Clostridium, e atuam bloqueando 88

Abordagem interdisciplinar no tratamento do paciente com espasticidade a transmissão neuromuscular. São o tratamento de escolha para a espasticidade localizada, e podem auxiliar no tratamento da espasticidade generalizada. O impulso nervoso é transmitido do neurônio motor para o músculo pela liberação do neurotransmissor acetilcolina (ACH) na sinapse neuromuscular. A toxina botulínica causa paralisia localizada e temporária ao ser injetada no músculo, porque atua impedindo a liberação deste neurotransmissor. A ausência de ACH na sinapse neuromuscular suprime a afinidade dos receptores nicotínicos da membrana pós-sináptica das fibras musculares, promovendo a remoção destes receptores e o bloqueio da neurotransmissão. No entanto, nos primeiros dias após a injeção da toxina botulínica tem início o processo de remodelação sináptica, que levará a síntese de novos receptores para retomada do funcionamento sináptico. Esse processo explica o efeito reversível de uma injeção de toxina botulínica, com retorno da função muscular à linha de base geralmente após 3 a 5 meses. A toxina botulínica está disponível para uso em diversas formulações (Botox, Dysport, Neurobloc, Xeomin, etc.), cujas unidades de concentração não seguem uma padronização internacional, dificultando o cálculo de equivalência de doses. As diferentes preparações compartilham um perfil de segurança semelhante. Os efeitos colaterais são raros e, na maioria das vezes, transitórios, como: síndromes de pseudoinfluenza, erupções cutâneas, cólicas, dores ou hematomas no local da injeção. Após injeções repetidas, a atrofia transitória do músculo é possível. No entanto, não há evidência de miopatia de longo prazo ou diminuição persistente da força muscular. As contra-indicações são: miastenia gravis, síndrome de Lambert- Eaton, esclerose lateral amiotrófica, uso de anticoagulantes, gravidez e lactação e obstrução respiratória importante. As doses a serem utilizadas dependem do peso do paciente, do número de músculos tratados, da gravidade da espasticidade, do tamanho do músculo e do tipo de toxina botulínica. A dose pode ser máxima em caso de espasticidade acentuada, ou mínima em caso de habilidades motoras ativas. A dose total máxima recomendada para crianças é de 20 unidades/Kg para Botox e 300 unidades/sessão para Dysport; em adultos é recomendado 500 unidades/sessão para Botox e 1.500 unidades/sessão para Dysport. No caso da primeira injeção e principalmente em pacientes com comorbidades, são recomendadas doses iniciais mais baixas: para Botox, de 3 a 8 unidades/Kg sem exceder 300 unidades/sessão; para Dysport, 10 a 20 unidades/Kg sem exceder 1.000 unidades/sessão. A adequada técnica de injeção intramuscular da toxina botulínica depende de treinamento e prática constantes. A localização dos músculos 89

Reabilitação: teoria e prática pode ser realizada por palpação, ou com auxílio de instrumentos como eletromiografia e ultrassom, principalmente em crianças, permitindo uma identificação não invasiva dos músculos e estruturas circundantes. As injeções são repetidas 3 a 4 vezes por ano durante vários anos, dependendo dos benefícios e tolerância do paciente, mantendo-se constante discussão sobre as doses e a escolha dos músculos em cada sessão. Se o resultado funcional for insuficiente, outra terapia deve ser considerada. Baclofeno intratecal A eficácia do baclofeno oral tem sido limitada por seus efeitos colaterais; em função de sua baixa lipossolubilidade somente 1% da dose oral é transportada através da barreira hematoencefálica. Em contraste, a administração espinhal intratecal de dose mínima de baclofeno pode contornar esta barreira, resultando em menor incidência de efeitos colaterais e maior redução da espasticidade. O baclofeno intratecal é um tratamento eficaz para a espasticidade generalizada, sobretudo em pacientes adultos com paraparesia ou tetraparesia espástica. A meia- vida do baclofeno intratecal no líquido cefalorraquidiano é de cerca de 5 horas, sendo necessária uma bomba de infusão contínua para obtenção de uma resposta clínica satisfatória. Previamente a implantação da bomba de infusão contínua, é realizado um teste farmacológico com um bolus de 50mcg de baclofeno administrado por punção lombar, seguido de avaliações frequentes do tônus muscular durante 6 a 8 horas; após se observar redução da espasticidade, o paciente é submetido a implantação de bomba de infusão contínua através de um cateter de infusão espinhal intratecal tunelizado sob a pele. De um modo geral, a ponta do cateter pode ser posicionada no nível vertebral C7 a T2 para controle do tônus muscular dos membros superiores, ou no nível vertebral T8 a T12 para controle do tônus muscular dos membros inferiores. Após a implantação da bomba, é útil submeter o paciente a uma avaliação física multidisciplinar antes de receber alta hospitalar, considerando que uma dose estável de baclofeno intratecal normalmente é alcançada entre 6 a 9 meses após a implantação da bomba de infusão. Assim como acontece com outros dispositivos implantados, complicações da administração intratecal de baclofeno são possíveis, e podem ser secundárias a complicações cirúrgicas, erro humano ou complicações relacionadas ao dispositivo. As taxas de infecção relacionadas a cirurgia variam, mas podem ser de cerca de 5%. Overdose foi relatada, secundária a erros humanos na programação ou procedimentos de reabastecimento da bomba. Dependendo do grau de sobredosagem, 90

Abordagem interdisciplinar no tratamento do paciente com espasticidade podem ocorrer supressão respiratória e alterações reversíveis de consciência. Também foram relatados problemas técnicos relacionados ao sistema de infusão, a maioria envolve quebra ou desconexão do cateter. A falha da bomba pode levar à suspensão súbita da medicação, causando sinais e sintomas de retirada, como: piora da espasticidade, alucinação, hipertermia, confusão e convulsões. Procedimentos cirúrgicos Pacientes que apresentam espasticidade leve a moderada podem ser adequadamente tratados por métodos conservadores, como: terapias físicas, uso de fármacos orais e injeções de toxina botulínica. No entanto, um número substancial de pacientes com espasticidade acentuada será resistente a essas intervenções conservadoras, e terá maior benefício com o tratamento cirúrgico da espasticidade, através de técnicas como a rizotomia dorsal seletiva e as neurotomias. Além disso, a espasticidade acentuada leva ao surgimento de encurtamentos músculo-ligamentares, deformidades articulares e alterações estruturais da coluna vertebral, sendo frequentemente necessário a realização de cirurgias ortopédicas corretivas. Rizotomia dorsal seletiva A rizotomia dorsal seletiva (RDS) é historicamente reconhecida como técnica cirúrgica para tratamento da espasticidade dos membros inferiores de crianças com paralisia cerebral, através da secção parcial de raízes espinhais dorsais lombossacras, com consequente relaxamento muscular pela redução da estimulação sensitiva periférica conduzida à medula espinhal por estas raízes disfuncionais. A primeira RDS foi realizada há mais de um século, quando foi concebida como uma série de laminectomias das vértebras L1, L2, L3, L4, L5 e S1 para exposição e secção completa das respectivas raízes dorsais, levando a imediata redução da espasticidade de pacientes com paraplegia espástica, no entanto, a falta de seletividade na secção das raízes dorsais e a ocorrência de diversas complicações pós-operatórias levaram ao abandono deste procedimento por mais de meio século. Nas últimas décadas, houve significativos avanços na técnica cirúrgica, e a RDS tornou-se o tratamento mais eficiente para redução da espasticidade generalizada, tendo eficácia superior ao uso de diazepam oral, toxina botulínica e baclofeno intratecal, quando é necessário um relaxamento muscular amplo e permanente. Na técnica cirúrgica desenvolvida por Warwick Peacock (1986) a RDS lombar é realizada através da laminotomia das vértebras L2 a L5 com 91

Reabilitação: teoria e prática laminectomia das vértebras S1 e S2, com identificação das raízes espinhais por meio de visualização direta em seus respectivos forames espinhais. Infelizmente, alguns estudos associaram esta técnica de RDS com aumento na incidência de deformidades da coluna espinhal. Em 1991, Park e Jonhston reintroduziram a RDS lombar com acesso cirúrgico ao nível do cone medular. Nesta técnica, os autores realizam laminectomia das vértebras L1 ou L2, para acessar as raízes espinhais da cauda equina. E utilizam a monitorização neurofisiológica intra-operatória para identificar o nível segmentar de cada raiz, por meio de diferenças existentes nos parâmetros neurofisiológicos dessas delicadas raízes. Esses autores, também aprimoraram o processo intra-operatório de quantificação das alterações de excitabilidade das raízes espinhais dorsais, propondo uma escala de classificação para a resposta motora reflexa que facilitou a tomada de decisão durante a cirurgia. Nesta abordagem cirúrgica menos invasiva, a incidência de deformidades da coluna espinhal foi comparável à história natural de crianças com paralisia cerebral espástica que receberam apenas cuidados ambulatoriais. Um estudo multicêntrico realizado na Inglaterra por Peacock e colaboradores (2018), confirmou os resultados de estudos anteriores sobre o benefício da RDS lombar para a deambulação de crianças com paralisia cerebral espástica. Os resultados deste estudo serviram de base para a implementação de uma política pública de oferta desta cirurgia pelo Serviço Nacional de Saúde da Inglaterra para crianças com paralisia cerebral espástica, com GMFCS níveis II e III, com idade entre 3 a 9 anos. Publicações recentes apoiam a escolha da RDS lombar para o tratamento de crianças com paralisia cerebral espástica não deambuladoras, com GMFCS níveis IV e V; sendo observado maior redução da espasticidade e ganho funcional com RDS lombar quando comparado ao uso de baclofeno intratecal. Também foi observado redução da dor, facilitação dos cuidados diários e melhora na qualidade de vida dessas crianças após a RDS lombar. Pelo exposto, consideramos a RDS lombar como o tratamento definitivo da espasticidade generalizada em crianças com paralisia cerebral espástica; cientes que em crianças com GMFCS níveis IV e V, o objetivo terapêutico não está associado à melhora da marcha, como ocorre em crianças com GMFCS níveis II e III, mas visa reduzir a espasticidade difusa, diminuir a dor e prevenir deformidades da coluna vertebral, entre outros distúrbios musculoesqueléticos; resultando em maior conforto na realização dos cuidados diários e na melhoria da qualidade de vida dessas crianças e de seus cuidadores. Existem poucos relatos sobre o uso da RDS em pacientes adultos com espasticidade nos membros inferiores oriunda de condições patológicas 92

Abordagem interdisciplinar no tratamento do paciente com espasticidade diversas da paralisia cerebral, sendo a esclerose múltipla o diagnóstico mais frequente. Ainda mais raro é o uso de RDS do segmento cervical para tratamento da espasticidade dos membros superiores, independente da causa da espasticidade, apesar de alguns estudos terem mostrado melhora significativa da espasticidade e funcionalidade dos membros superiores nos pacientes submetidos a esta cirurgia. Consideramos a RDS lombar e a RDS cervical como o tratamento definitivo da espasticidade em pacientes adultos com hemiparesia, paraparesia ou tetraparesia espástica; quando são preenchidos os critérios de eleição da avaliação neurofuncional pré-operatória. Neurotomias As neurotomias são indicadas para tratamento da espasticidade localizada acentuada, quando as injeções de toxina botulínica perdem sua eficácia. A neurotomia consiste na secção parcial de um ou vários ramos motores de um determinado nervo que inerva um ou mais músculos com espasticidade acentuada. A cirurgia deve ser realizada de forma que a hipertonia excessiva seja reduzida sem comprometimento das funções motoras e sensoriais daquele nervo. Para isso, os ramos motores devem ser dissecados e separados do tronco nervoso principal, e seccionados em cerca de 50 a 80% de sua área transversa. No membro inferior, a neurotomia obturatória é indicada para espasticidade dos músculos adutores, a neurotomia dos isquiotibiais para espasticidade dos músculos flexores do joelho, a neurotomia tibial para espasticidade dos músculos flexores plantares, a neurotomia fibular para a espasticidade dos músculos extensores do hálux, e a neurotomia femoral para a espasticidade dos músculos extensores do joelho. No membro superior, a neurotomia dos nervos peitoral maior e redondo maior é indicada para espasticidade dos músculos rotadores internos do ombro, a neurotomia do nervo musculocutâneo para espasticidade dos flexores do cotovelo, e a neurotomia dos nervos mediano e ulnar para espasticidade dos pronadores e flexores do punho e dedos. Cirurgias ortopédicas Ascirurgiasortopédicassãoindicadasparacorreçãodedeformidades estruturais promovidas pela espasticidade, como: encurtamentos músculo-ligamentares, alterações articulares e deformidades ósseas. Existem diferentes técnicas cirúrgicas para tratamento destas sequelas. O encurtamento da unidade músculo-tendão pode ser corrigido por tenotomia simples, que melhora a extensão articular sem preservar a função 93

Reabilitação: teoria e prática da unidade músculo-tendão; ou tenotomia de alongamento, que permite preservação funcional parcial desta unidade. A cirurgia de transferência de tendão tem como objetivo corrigir o desalinhamento articular promovido pelo desequilíbrio muscular. Quando realizado com preservação da função muscular, um tendão é anexado a outro músculo ou tendão para restaurar a ação muscular deficiente; também pode ser realizado sem preservação funcional, quando o tendão é fixado a um osso ou ligamento com o objetivo de estabilização ou fixação. As osteotomias visam corrigir deformidades ósseas causadas pelo crescimento patológico ou para tratamento de articulações rígidas. As cirurgias articulares (artroplastia, artrodese, artrólise, etc.) são indicadas quando as deformidades ósseas não podem ser corrigidas por cirurgias de tendão ou pela osteotomia. Terapias Físicas O controle motor se desenvolve a partir de um conjunto complexo de processos neurais, físicos e comportamentais que governam a postura e o movimento. É definido como a habilidade de regular ou direcionar os mecanismos essenciais do movimento. Durante muito tempo acreditou-se que a lesão cerebral seria permanente, com pouco reparo e recuperação cerebral limitando o controle motor, porém nos dias atuais é possível verificar a influência do processo plástico na reabilitação do controle motor. A fisioterapia neurofuncional e terapia ocupacional objetivam a modificação do movimento ou o aumento da capacidade de se mover, visando a funcionalidade e o desempenho ocupacional humano, através de estratégias terapêuticas que se baseiam em frequência, quantidade, intensidade e qualidade. Pacientes submetidos a tratamento farmacológico, aplicação de toxina botulínica, baclofeno intratecal, rizotomia dorsal seletiva, neurotomias e cirurgias ortopédicas, como tratamento da espasticidade, precisam estar inseridos num programa de reabilitação com planejamento terapêutico singular centrado nas suas necessidades. Nas crianças e adolescentes onde o objetivo terapêutico inclui melhora da função motora específica, melhora da habilidade de realizar componentes motores de tarefas funcionais, aumento de grau de independência e participação social, além do envolvimento familiar, a cinesioterapia motora intensiva é fortemente recomendada. No adulto, visa-se à recuperação funcional com a reabilitação voltada para o reaprendizado motor, objetivando o retorno da sua funcionalidade e desempenho ocupacional, assim como a reinserção social e profissional. Desta forma,um programa intensivo de tratamento, utilizando combinação de técnicas específicas de reabilitação, 94

Abordagem interdisciplinar no tratamento do paciente com espasticidade objetiva acelerar e otimizar os ganhos previstos nos aspectos qualitativos da mobilidade, funcionalidade, autonomia e independência do paciente, melhorando seu padrão de movimento, eficiência da mobilidade, prevenindo a aquisição de deformidades e alterações músculo-esqueléticas futuras. A seguir, alguns protocolos para o manejo multidisciplinar integrado das terapias físicas associadas às intervenções terapêuticas já apresentadas anteriormente serão apresentados: Protocolo de avaliação neurofuncional com teste sob sedação associada à aplicação de toxina botulínica Diante da complexidade para mensuração da espasticidade em nível ambulatorial e diversas variáveis já apresentadas, concomitante a aplicação de toxina botulínica em ambiente de centro cirúrgico, realizamos a avaliação do paciente sob efeito de anestesia geral inalatória. A aplicação do teste requer fluxo padronizado que envolve componentes psicológico, social, clínico e multidisiciplinar. O trabalho de orientação da família para realização do procedimento se caracteriza como crucial, porquanto o surgimento de uma conduta resolutiva é uma possibilidade advinda do resultado do teste. Tal procedimento traz possibilidades de indicação de condutas neurocirúrgicas, como a rizotomia dorsal seletiva (lombar e/ ou cervical), implante de bomba de baclofenointratecal e neurotomias e, quando se averigua retrações musculotendíneas e outras comorbidades ortopédicas, encaminha-se o paciente para a avaliação da área, possibilitando maior discussão sobre o caso clínico em questão. Com paciente em vigília, descreve-se o plano terapêutico inicialmente proposto ambulatorialmente, com os grupos musculares alvo e suas respectivas doses de toxina botulínica. O fisioterapeuta neurofuncional e/ou terapeuta ocupacional avalia o tônus muscular através da escala de Ashworth modificada para mensurar espasticidade. Em seguida, o paciente é submetido à anestesia geral inalatória, com repetição da medida anterior. Restrições observadas na amplitude de movimento articular são quantificadas por técnica padronizada com goniômetro e vídeo- documentação. Desse modo, é possível ter maior clareza das contribuições neurais e não neurais da espasticidade e seu impacto funcional em cada indivíduo naquele momento, e fornecer parâmetros para manutenção do tratamento conservador e/ou indicação de outras intervenções neurocirúrgicas e ortopédicas. A aplicação de toxina botulínica é realizada pelo médico, com auxílio do terapeuta na localização dos músculos alvo por anatomia palpatória, movimentação articular passiva e em alguns casos uso de neuroestimulador ou ultrassom cinesiológico. 95

Reabilitação: teoria e prática Os pacientes submetidos a aplicação são inseridos em programa de reabilitação, recebem cartilha com orientações para realização de exercícios domiciliares, prescrição de órteses e outros dispositivos auxiliares. Após dois meses são reavaliados pela mesma equipe, repetindo-se os instrumentos utilizados na fase pré aplicação como medida de resultados para nova tomada de decisão a continuidade no tratamento, mudança de conduta e/ ou alta por objetivos e metas alcançadas. Protocolo multidisciplinar na rizotomia dorsal seletiva Baseados nos princípios da abordagem interdisciplinar para análise quantitativa e qualitativa do impacto funcional da espasticidade e suas repercussões clínicas, na estrutura e função, bem como atividades e participação dos indivíduos, apresentamos a seguir as fases pré, intra e pós- operatória da rizotomia dorsal seletiva. Rizotomia dorsal seletiva lombar e cervical na paralisia cerebral O paciente é submetido à avaliação neurofuncional com o uso do Gross Motor Function Classification System (GMFCS), Gross Motor Function Measure (GMFM), Escala de Ashworth Modificada, Manual Ability Classification System (MACS), Inventário de Avaliação Pediátrica de Incapacidade (PEDI), Pediatric Motor Activity Log (PMAL), análise biomecânica do movimento e/ou marcha e realização de estudo por eletromiografia de superfície (EMGs) de membros. Em pacientes com níveis I, II e III, faz-se também testes de mobilidade funcional e equilíbrio dinâmico Timed Up and Go e teste de caminhada de 6 minutos. Tal avaliação objetiva a caracterização funcional do comprometimento motor pré-operatório para compor o planejamento do percentual de secção das radículas a serem seccionadas na fase intra- operatória, e posteriormente na determinação da eficácia dos tratamentos aplicados (cirúrgico e reabilitação física) e/ou na indicação de tratamentos adicionais, como exemplo, as intervenções ortopédicas. Durante a cirurgia, o fisioterapeuta neurofuncional realiza o teste sob sedação, já descrito anteriormente, e avaliação da resposta de contração muscular comportamental, através da palpação dos grupos musculares relacionados aos níveis medulares, e análise dos movimentos das articulações durante a fase de estimulação para radiculotomia, associado ao procedimento de monitorização neurofisiológica intra-operatória, realizado pelo médico neurofisiologista, fornecendo ao neurocirurgião o parâmetro clínico-funcional para tomada de decisões durante o ato cirúrgico. Nessa fase, são utilizados os parâmetros já estratificados do impacto funcional da 96

Abordagem interdisciplinar no tratamento do paciente com espasticidade espasticidade na fase pré-operatória, com o percentual de secção que cada nível medular necessita, conectando o procedimento com a individualidade de cada paciente, caracterizando a seletividade funcional. A partir do 2° dia de pós-operatório, realiza-se visita ao paciente para orientar seus cuidadores quanto ao seu deslocamento, uso de órteses, cuidados básicos e documentações audiovisuais. Em pacientes que realizaram rizotomia dorsal seletiva lombar, no 7° dia iniciam-se os atendimentos de fisioterapia e terapia ocupacional ambulatorial. Para aqueles que realizaram rizotomia dorsal seletiva cervical, o protocolo de reabilitação tem início no 15° dia. Durante a primeira semana, realiza-se o treino para reaprendizado de atividades motoras antes realizadas, como rolar, arrastar, engatinhar, ficar de pé e em 4 apoios (para pacientes GMFCS níveis I, II e III), assim como rolar e arrastar (em níveis GMFCS IV e V). A partir da segunda semana, realiza-se a neuroestimulação funcional com feedback bioelétrico, associada ao exercício ativo ou ativo assistido e à função, pilates adaptado, integração sensorial, treino em esteira com e/ou sem suporte parcial de peso, treino de qualidade de movimentos e orientação quanto ao uso de parapódio diário. Aprimoramento e/ ou estimulação da função manual, coordenação bimanual e treino de habilidades específicas como as que envolvem as atividades básicas da vida diária, para serem realizadas pelo próprio paciente e/ou cuidador, assim como a realização de adaptações para promover qualidade de vida de ambos. O protocolo de reabilitação pós rizotomia dorsal seletiva lombar é composto por 25 atendimentos de fisioterapia neurofuncional e 10 atendimentos de terapia ocupacional, cada atendimento tendo uma hora de duração. No protocolo de reabilitação pós rizotomia dorsal seletiva cervical, o paciente é submetido a 25 atendimentos de terapia ocupacional e 10 de fisioterapia neurofuncional. Vale ressaltar que estes protocolos podem ser adaptados de acordo com a necessidade de cada paciente, respeitando sua individualidade. Concluído o protocolo, orienta-se o seguimento em reabilitação. Rizotomia dorsal seletiva em pacientes hemiparéticos adultos Em pacientes com lesão encefálica adquirida, no procedimento de rizotomia dorsal seletiva, seja ele cervical ou lombar, o mesmo é submetido à avaliação neurofuncional com o uso da Escala de Ashworth Modificada, Fulg Meyer, Motor Activy Log – MAL, Teste de Função Motora de Wolf, Medida de Independência Funcional – MIF, Questionário de Qualidade de 97

Reabilitação: teoria e prática Vida – SF-36, análise biomecânica do movimento e/ou marcha e realização de estudo por eletromiografia de superfície (EMGs) de membros. A avaliação objetiva a caracterização funcional do comprometimento motor pré-operatório para compor o planejamento do percentual de secção das radículas a serem seccionadas na fase intra- operatória, e posteriormente na determinação da eficácia dos tratamentos aplicados (cirúrgico e reabilitação física) e/ou na indicação de tratamentos adicionais, como exemplo, as intervenções ortopédicas. Da mesma forma que acontece nas cirurgias com o público infantil, nesta o fisioterapeuta neurofuncional também realiza o teste sob sedação e avaliação da resposta de contração muscular comportamental, associado ao procedimento de monitorização neurofisiológica intra-operatória, realizado pelo médico neurofisiologista. Acontece igualmente as fases de visita hospitalar com orientações e posteriormente o processo de reabilitação intensiva, dentre elas, terapia com espelho e terapia de restrição e indução do movimento. Considerações finais A abordagem da espasticidade em um centro de reabilitação é complexa e multifatorial. A organização em uma equipe interdisciplinar especializada facilita a decisão de qual o melhor tratamento da espasticidade para cada paciente em cada momento da evolução de seus quadros clínico, dentre todas as possibilidades disponíveis atualmente. Referências bibliográficas ABBOTT, R. Complications with selective posterior rhizotomy. Pediatric Neurosurgery, 1992. AGRAWAL et al. The role of selective dorsal rhizotomy in the management of post-traumatic spasticity: systematic review. Neurosurgical Review, 2020. AQUILINA, K.; GRAHAM, D.; WIMALASUNDERA, N. Selective dorsal rhizotomy: an old treatment re-emerging. Arch Dis Child, n. 100, v. 8, p.798- 802, 2015. BIERING-SØRENSEN, F.; NIELSEN, J. B.; KLINGE, K. Spasticity-assessment: a review. Spinal Cord, n. 44, v. 12, p. 708-22, 2006. BLUMENFELD, H. Neuroanatomy through clinical cases. v. 2. Sunderland: Sinauer Associates, 2002. BUIZER et al. Effect of continuous intrathecal baclofen therapy in children: a systematic review. Dev Med Child Neurol, v. 61, p. 128–134, 2019. 98

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