Important Announcement
PubHTML5 Scheduled Server Maintenance on (GMT) Sunday, June 26th, 2:00 am - 8:00 am.
PubHTML5 site will be inoperative during the times indicated!

Home Explore ANAIS COLINT Definitivo

ANAIS COLINT Definitivo

Published by biblioteca, 2022-11-14 14:14:28

Description: ANAIS COLINT Definitivo

Search

Read the Text Version

Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e II Colóquio Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades

1ª edição: 2022. Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Estadual do Maranhão (EdUEMA). A reprodução integral ou parcial do texto poderá ser feita mediante a autorização da EdUema e consentimento de seus respectivos autores. Direitos reservados desta edição: Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). \"Os conteúdos dos artigos publicados são de total responsabilidade dos autores e autoras.\" Capa Conselho Editorial - Continuação Rafael Albuquerque Costa Ana Lucia Abreu Silva Ana Lúcia Cunha Duarte Diagramação Cynthia Carvalho Martins Edson Rodrigues Cavalcante Eduardo Aurélio Barros Aguiar Emanoel Cesar Pires de Assis Divisão de Editoração Emanoel Gomes de Moura Jeanne Ferreira de Sousa da Silva Fabíola Oliveira Aguiar Helciane de Fátima Abreu Araújo Editor Responsável Helidacy Maria Muniz Corrêa Jeanne Ferreira de Sousa da Silva Jackson Ronie Sá da Silva José Roberto Pereira de Sousa Design Editorial José Sampaio de Mattos Jr Ferdinan Silva de Sousa Luiz Carlos Araújo dos Santos Marcelo Cheche Galves Revisão do volume Marcos Aurélio Saquet Profa. Dra. Maria Aracy Bonfim Maria Medianeira de Souza Maria Claudene Barros Conselho Editorial Rosa Elizabeth Acevedo Marin Alan Kardec Gomes Pachêco Filho Wilma Peres Costa FICHA CATALOGRÁFICA Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C695a I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária. II Colóquio Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades (I e II: 2022: São Luís - MA) Anais: I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e II Colóquio Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades / Algemira de Macêdo Mendes, José Henrique de Paula Borralho, Josenildo Campos Brussio, Maria Aracy Bonfim e Silvana Maria Pantoja dos Santos (Orgs.). São Luís: EdUEMA, 2022. 615 p.; online. ISBN: 978-85-8227-276-3. 1. Literatura. 2. Teoria Literária. 3. Crítica Literária. 4. Memória. 5. Subjetividades. 5. Identidade. I. Autora (es). II. Título. III. Localidade. CDD: 869.2 Indices para catálogos sistemáticos: Literatura: Teoria e Crítica Literária

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO – UEMA GOVERNADOR DO ESTADO Carlos Orleans Brandão Júnior REITOR Prof. Dr. Gustavo Pereira da Costa VICE-REITOR Prof. Dr. Walter Canales Sant’ana PRÓ-REITOR DE GESTÃO DE PESSOAS – PROGEP Prof. Dr. José Rômulo Travassos da Silva PRÓ-REITOR DE PLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO – PROPLAD Prof. Dr. Antonio Roberto Coelho Serra PRÓ-REITORA DE GRADUAÇÃO - PROG Profa. Dra. Fabíola de Jesus Soares Santana PRÓ-REITORA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO - PPG Profa. Dra. Rita de Maria Seabra Nogueira PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO E ASSUNTOS ESTUDANTIS - PROEXAE Prof. Dr. Paulo Henrique Aragão Catunda PRÓ-REITORA DE INFRAESTRUTURA – PROINFRA Profa. Dra. Fabiola Hesketh de Oliveira DIRETORA DO CENTRO DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS – CECEN Profa. Dra. Maria Goretti Cavalcante de Carvalho COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS - UEMA Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho VICE-COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO LETRAS – UEMA Prof. Dr. Emanoel César Pires de Assis

Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades REALIZAÇÃO Programa de Pós-Graduação em Letras da UEMA – PPGL/UEMA COMISSÃO ORGANIZADORA Profa. Dra. Algemira de Macêdo Mendes Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho Prof. Dr. Josenildo Campos Brussio Profa. Dra. Maria Aracy Bonfim Profa. Dra. Silvana Maria Pantoja dos Santos COMISSÃO CIENTÍFICA Profa. Dra. Adriana Aparecida De Figueiredo Fiuza (UEL/UNIOESTE) Profa. Dra. Alexandra Santos Pinheiro (UFGD) Profa. Dra. Algemira de M. Mendes (UESPI /UEMA) Profa. Dra. Ana Mafalda Leite – Universidade de Lisboa Prof. Dr. André Rezende Benatti - UEMS/UFMS Prof. Dr. Carlos André Pinheiro – UFPI Profa. Dra. Elisabete da Silva Barbosa - UEBA Prof. Dr. Elter Manuel Carlos – Universidade de Cabo Verde Profa. Dra. Lucilene Machado Garcia Arf - UFMS Profa. Dra. Joana Darc Rodrigues da Costa - CESTI/UEMA Prof. Dr. Jorge Fernando Jairoce – Universidade Pedagógica de Maputo Prof. Dr. José Henrique de Paula Borralho - UEMA Prof. Dr. Josenildo Campos Brussio - UFMA Profa. Dra. Márcia Manir Miguel Feitosa – UFMA Profa. Dra. Maria Aracy Bonfim -UFMA Profa. Dra. Maristela Kirst de L Girola – UNISINOS Profa. Dra. Marta Francisco de Oliveira - UFMS Prof. Dr. Roberto Francavilla – Universidade de Genova Prof. Dr. Sidney Barbosa - UnB Profa. Dra. Silvana Maria Pantoja dos Santos – UEMA/UESPI Profa. Dra. Tereza Maria Alfredo Manjate – Universidade Eduardo Mondlane – Maputo

Apresentação Os anais do I COLÓQUIO INTERNACIONAL DE TEORIA E CRÍTICA LITERÁRIA e o II COLÓQUIO NACIONAL DE LITERATURA, MEMÓRIA E SUBJETIVIDADE: DESLOCAMENTOS E IDENTIDADES, eventos realizados pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UEMA, em parceria com os Programas de Pós-Graduação do Brasil e do exterior: UESPI, PROCAD/Amazônia/CAPES/PGCult/UFMA, UEMA e UESB, Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viseu-Portugal, Universidade Temple, dentre outros. Nesta edição, reuniu investigações voltadas às teorias e críticas literárias, aos conceitos de cultura, memória e identidade. Buscamos pensar as interfaces entre deslocamentos e identidades no contexto da sociedade contemporânea, por meio de subjetividades, a partir do fazer estético. O evento aconteceu de 07 a 09 de junho de 2022. Tivemos apresentações, debates, conferências, mesas redondas e simpósios. Devido ao COVID-19, o evento ocorreu de forma on-line através da plataforma DOITY/ https://doity.com.br/colintcrilit22. A Organização.

Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades Sumário LITERATURA, INSÓLITO FICCIONAL E IMAGINÁRIO: RELATOS DE 9 PESQUISAS, DESAFIOS E PERSPECTIVA 21 Carlos Ribeiro CALDAS FILHO (PUC-Minas) 31 Josenildo Campos BRUSSIO (UFMA) MEMÓRIAS DE UMA GAROTA ESCOLHIDA POR UMA DOENÇA ESPECIAL: O AUTO LUTO NA OBRA UM LITRO DE LÁGRIMAS, DE AYA KITO Atos Daniel Pereira da SILVA (UESPI) O FLÂNEUR, O MITO E O OUTRO MUNDO POSSÍVEL, EM DESEJO DE KIANDA, DE PEPETELA Adriano Guedes CARNEIRO (UFF) LITERATURAS AFRICANAS PÓS-COLONIAIS: TENSÕES ENTRE AS VISÕES 40 DE MUNDO DO COLONIZADOR E DO COLONIZADO NAS ESTÉTICAS DE LUANDINO VIEIRA, GERMANO ALMEIDA E MIA COUTO Samira Pinto ALMEIDA (IFRO) ENTRE A IDENTIDADE NACIONAL E A CONDIÇÃO FEMININA: BREVE 48 ANÁLISE COMPARATIVA DAS OBRAS DE NOÉMIA DE SOUSA, 57 CONCEIÇÃO LIMA E ANA PAULA TAVARES Samira Pinto ALMEIDA (IFRO) 70 79 O ROMANCE NÃO ESTÁ MORTO: A METAFÍSICA NIVOLESCA 92 UNAMUNIANA COMO RESPOSTA À DESUMANIZAÇÃO DA ARTE DE 102 GASSET Walter Pinto de OLIVEIRA NETO (UFMA) Márcia Manir Miguel FEITOSA (UFMA) MEDEIA: A ESSÊNCIA DO FEMININO Brenda Lima dos SANTOS (UFC) Yls Rabelo CÂMARA (UFC) O GRITO E A DOR DOS EXCLUÍDOS NAS BATALHAS DE POESIA (SLAM POETRY): UMA ANÁLISE DA PERFORMANCE DA TRAVESTI BIXARTE Rian Lucas da SILVA (IFPB) Hermano de França RODRIGUES (UFPB) AS AVENTURAS DE BAMBOLINA: LITERATURA INFANTIL E LEITURA DE IMAGENS EM CONTEXTO DE ESCOLA PÚBLICA Júlio César Lima FERNANDES (UNICAP) André Luiz de ARAÚJO (UNICAP) ASSOMBRAÇÃO: A CONFIGURAÇÃO DA IMAGEM DO CASARÃO DO MARECHAL RONDON NO ASSENTAMENTO ANTÔNIO CONSELHEIRO Maria Madalena da Silva DIAS (UNEMAT/PPGEL)

Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades A PALAVRA POÉTICA EM FERREIRA GULLAR E IRAIDE DA SILVA 113 MARTINS: uma análise memorialística na literatura e cultura popular maranhense 128 Luís Fernando Lima CAMELO (UFMA) 142 Rubenil da Silva OLIVEIRA (UFMA) 155 “A CIDADE ME VIGIA”: EXPERIÊNCIAS DO URBANO EM OS 165 CLANDESTINOS DE FERNANDO NAMORA Karina Frez CURSINO (UFF) 178 186 FOI UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA: O MERGULHO DA PALAVRA 197 LIBERTA 210 Roman LOPES (Univesp) 218 O INSÓLITO FICCIONAL EM BORGES: UM ESTUDO SOBRE O MILAGRE 230 SECRETO E A CRENÇA NO SOBRENATURAL Mariany Lopes ALMEIDA (PUC Goiás) Elizete Albina FERREIRA (PUC Goiás) OS SALÕES LITERÁRIOS NA FRANÇA MODERNA: memória e cultura na Paris do Séc. XVIII José Barroso de OLIVEIRA FILHO (UESPI) Raimunda Celestina Mendes da SILVA (UESPI) A CRÍTICA DIALÓGICA DA ESCOLA DE GENEBRA Carolina Rangel SILVA (USP) A VIDA LITERÁRIA NA “NOVA ATENAS BRASILEIRA”: TRAJETÓRIAS NEGRAS DE NASCIMENTO MORAES E ASTOLFO MARQUES Patricia Raquel Lobato Durans CARDOSO (UFSC) ASTERIX E O FANTÁSTICO: ENTRE HISTORIOGRAFIA E SUBVERSÃO Rafael Silva FOUTO (UFSC) AS VISITAS DO DR. VALDEZ PELO VIÉS PSICANALÍTICO: RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E PSICANÁLISE Nelsilene dos Santos SILVA (UEPB) Reginaldo Oliveira da SILVA (UEPB) HISTÓRIA LITERÁRIA, MODERNISMOS E A TEMÁTICA DO INSÓLITO Joachin de Melo AZEVEDO NETO (UPE/Campus Petrolina) GUIMARÃES ROSA, MACHADO DE ASSIS E MARCOS FÁBIO BELO MATOS E AS MEMÓRIAS AMOROSAS UNIVERSAIS Evandro Abreu Figueiredo FILHO (UEMA) Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA)

Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades SÍMBOLOS ATRÁS DA PORTA: UMA REFLEXÃO SIMBÓLICA E 243 PSICANALÍTICA SOBRE O QUE ESTÁ DO LADO DE DENTRO 256 Dayanna Roberta Costa da ROCHA (UEPA) 270 Izabelly Reis LOUREIRO (UEPA) 283 Raphael Bessa FERREIRA (UEPA) 293 305 ESPAÇO NARRATIVO: O INSÓLITO E A VISIBILIDADE NOS CONTOS DE 317 LYGIA FAGUNDES TELLES E EDGAR ALLAN POE 329 Mariluz Marçolla Ferreira AVRECHACK (PUC-SP) 338 UM ENTRE-LUGAR DE ENUNCIAÇÃO NA NARRATIVA CONTEMPORÂNEA: SORRIA, VOCÊ ESTÁ NA ROCINHA Josivânia da Cruz VILELA (UEPB) Wanderlan ALVES (Orientador – UEPB) A MEMÓRIA COMO MEDIADORA PARA A RESISTÊNCIA CONTRA O RACISMO ESTRUTURAL: UMA EVOCAÇÃO SUBJETIVA EM “PONCIÁ VICÊNCIO’’, DE CONCEIÇÃO EVARISTO Adrielly da Silva GOMES (UNICAP) André Luís de ARAÚJO (UNICAP) PELOS CAMINHOS DA MEMÓRIA E DA HISTÓRIA NO POEMA CANTO À CIDADE DE SÃO LUÍS DE ARLETE NOGUEIRA DA CRUZ Luis Claudio dos Santos FERREIRA FILHO (UEMA) Luzilene Nunes de SOUSA (UEMA) Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA) AUTOBIOGRAFIA E CONSTRUÇÃO DO NARRADOR EM CAZUZA Erika Maria Albuquerque SOUSA (UEMA) Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA) A MENINA SEM PALAVRA: O SILENCIAMENTO E A CRÍTICA PÓS- COLONIAL EM MIA COUTO João Batista TEIXEIRA (FMB) Renata Martins de LEMOS (FMB) DESENVOLVIMENTO DA ORALIDADE E DA CRITICIDADE NOS ANOS FINAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL: O GÊNERO PODCAST NA SALA DE AULA Giovanna Silva da SILVA (UEPA) Raphael Bessa FERREIRA (UEPA) REFLEXÕES SOBRE O CORPO FEMININO NA LITERATURA PORTUGUESA NO ROMANCE OS TRÊS CASAMENTOS DE CAMILLA S. DE ROSA LOBATO DE FARIA Michelle Thalyta C. A. PEREIRA (UEPB/GIELLus) Erica Dayana Monteiro CAVALCANTE (UEPB/PPGLI)

Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades A VISÃO DO FEMININO NAS POESIAS CONTEMPORÂNEAS DE ANGÉLICA 349 FREITAS Bianca Socorro Salomão SANTIAGO (UEPA/PPGELL) Raphael Bessa FERREIRA (UEPA/PPGELL) CONSCIÊNCIA E CORPO DESALINHADO: O FANTÁSTICO E O INSÓLITO 358 NO CONTO SONO, DE HARUKI MURAKAMI 368 Vitor Yukio Ivasse ALVES (PUC Goiás) 376 Elizete Albina FERREIRA (PUC Goiás) 388 ESCRITA DE SI, ESCRITA DO OUTRO: A TENSÃO ENTRE AUTOFICÇÃO E 401 ESCREVIVÊNCIA NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO 414 Caroline da Conceição Barbosa da PURIFICAÇÃO (UFBA) 423 Luciene Almeida de AZEVEDO (UFBA) PELOS BECOS DA MEMÓRIA: CONTRAPONTOS ENTRE A MORTE DO AUTOR E A ESCREVIVÊNCIA Caroline SERGEL (Unioeste) Mariana Elizabeth Ceris Burtett GUDINO (Unioeste) Valdeci Batista de Melo OLIVEIRA (Unioeste) ORALIDADE EM CAZUZA: MEMÓRIA CULTURAL MARANHENSE Valéria de Carvalho SANTOS (UEMA) Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA) CAZUZA: PASSADO, MEMÓRIA E RECONSTRUÇÃO Êmile Raquel Soares de SOUSA (UEMA) Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA) ESCRITOS URBANOS E LITERATURA: A MEMÓRIA FEMININA RETRATADA EM QUARTO DE DESPEJO Tainá Dias de CASTRO (UFV) Hugo Martins GOMES (UFV) A LITERATURA E OS “NOVOS” MEIOS DE COTEJAR ESTILO: UM ESTUDO ESTILOMÉTRICO COM FANFARRAS (1882), DE TEÓFILO DIAS Ana Paula Nunes de SOUSA (UFSC) MEMÓRIA E CIDADE: UMA LEITURA DA OBRA O CHAMADO DA NOITE, 434 DE CARLOS RIBEIRO 443 Vanessa Mayara Cavalcante OLIVEIRA (UEMA) Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA/UESPI) AUTOFICÇÃO: A ESCRITA DE SI EM DIVÓRCIO, DE RICARDO LÍSIAS Thauana Mara de Carvalho SILVA (UFT) Rejane de Souza FERREIRA (UFT)

Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades A CIDADE DE SÃO LUÍS E OS PERCURSOS MEMORIALÍSTICOS EM 455 QUATROCENTONA CÓDIGO DE POSTURAS & IMPOSTURAS LÍRICAS DA CIDADE DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO (2021), DE LUÍS AUGUSTO CASSAS Ana Caroline Nascimento OLIVEIRA (UEMA) Silvana Maria Pantoja dos SANTOS (UEMA/UESPI) MEMÓRIA E ESPAÇO CABO-VERDIANO: IMPACTOS NA FORMAÇÃO DA 466 IDENTIDADE DOS SUJEITOS MARGINALIZADOS 480 Igor Luid de Souza OLIVEIRA (UFMA/PGLB/CCEL) 489 502 FILOSOFIA E LITERATURA: TEMPO E MEMÓRIA EM INGLÊS DE SOUSA 513 Messias Lisboa GONÇALVES (UFPA) Antônio Máximo FERRAZ (UFPA) 538 552 A SUBALTERNIDADE FEMININA NA OBRA PONCIÁ VICÊNCIO, DE 563 CONCEIÇÃO EVARISTO Erica Dayana Monteiro CAVALCANTE (UEPB/PPGLI) Michelle Thalyta C. A. PEREIRA (UEPB/GIELLus) ENTRE AS PATAS DO LOBO: LIBERDADE E/OU APRISIONAMENTO FEMININO EM “A COMPANHIA DOS LOBOS” Mirian Lúcia FERREIRA (UFCAT) O RACISMO RETRATADO NA NARRATIVA ÚRSULA DE MARIA FIRMINA DOS REIS E NO CONTO MARIA DE CONCEIÇÃO EVARISTO Welliton dos Anjos BARBOSA (UESPI) Antonio Vinícius da Silva NASCIMENTO (UESPI) Debora Keyte Rodrigues LIMA (UESPI) Jailma Santana SILVA (UESPI) Luana Clenilda de SOUSA (UESPI) Maria Aurilene de SOUSA (UESPI) Mariza de Moura Machado GUIMARÃES (UESPI) Mônica Maria Feitosa Braga GENTIL (UESPI) A PRESENÇA DO INSÓLITO NA FICÇÃO MARANHENSE/CAXIENSE: DUAS MULHERES DE TERRAMOR Aerlys Pinheiro do SANTOS (UEMA) Solange Santana Guimarães MORAIS (UEMA) VITORIA E CHICA DA SILVA: PERSONAGENS HISTÓRICAS E LITERÁRIAS NO BRASIL COLÔNIA Jade Mariam Carvalho SILVA (UFDPar) Sávio Roberto Fonsêca de FREITAS (UFPB) SIGNIFICADOS JUSTAPOSTOS: UMA ANÁLISE A RESPEITO DAS ESCOLHAS TERMINOLÓGICAS UTILIZADAS POR REINA ROFFÉ NA OBRA AVES EXÓTICAS Marta Mickaele Almeida ARRUDA (UEPB) Maria Luana Caminha VALOIS (UFPE)

Anais do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do II Colóquio Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: Deslocamentos e Identidades INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES: IDENTIDADE REFLETIDA NO 574 ESPELHO DA LÁGRIMA 588 Gisele Silva OLIVEIRA (UFSC) 599 LITERATURA CONTEMPORÂNEA MARANHENSE DE AUTORIA FEMININA: DECOLONIZANDO A MATRIZ COLONIAL DE PODER EM QUEM É ESSA MULHER? (2018), DE MILENA CARVALHO Thais Nascimento da SILVA (UFMA/CNPq-IC) Cristiane Navarrete TOLOMEI (PGLB/PGCULT/UFMA) DECOLONIZANDO A MATRIZ COLONIAL DE PODER EM A CASA DO SENTIDO VERMELHO (2013) DE JORGEANA BRAGA Jocileide Silva SOUSA (UFMA/CNPq-IC) Cristiane Navarrete TOLOMEI (PGLB/PGCULT/UFMA)

LITERATURA, INSÓLITO FICCIONAL E IMAGINÁRIO: relatos de pesquisas, desafios e perspectiva Carlos Ribeiro CALDAS FILHO (PUC-Minas)1 Josenildo Campos BRUSSIO (UFMA)2 RESUMO O presente texto apresenta relatos de pesquisas realizadas no campo da literatura do insólito em suas múltiplas faces com o fantástico, o estranho, o maravilhoso, o horror, o suspense e o ficcional. Trata-se de um artigo teórico-expositivo, de caráter descritivo-bibliográfico, dividido em duas partes: na primeira, retratamos o plano teórico-conceitual sobre a literatura do fantástico e do insólito ficcional nas discussões de de Tzvetan Todorov (2010), Irène Bessière (2009) e Filipe Furtado (2009), sem refutar as contribuições de Ítalo Calvino (2009), Flávio Garcia (2007), Remo Ceserani (2006), Marisa Gama-Khalil (2013), David Roas (2014), entre outros; na segunda, realizamos uma síntese das principais propostas e inovações teóricas e críticas sobre o campo do insólito ficcional apresentadas no simpósio temático Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e II Encontro Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: 1 Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), em seu Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião. Research Associate (\"Pesquisador Associado\") do Departamento de Teologia e Religião da University of Pretoria (Universidade de Pretoria), África do Sul. Líder do Grupo de Pesquisa GPPRA - Grupo de Pesquisa sobre Protestantismo, Religião e Arte - certificado junto ao CNPq. 2 Professor Associado II do Curso de Licenciatura em Ciências Humanas/Sociologia do Centro de Ciências de São Bernardo, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLetras-UEMA), da Universidade Estadual do Maranhão. Líder do LEI (Laboratórios de Estudos do Imaginário) da UFMA/São Bernardo. E-mail: [email protected]. 9

Anais deslocamentos e identidades, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Estadual do Maranhão, nos dias 08, 09 e 10 de junho de 2022. Como resultados, temos que os relatos apresentados e discutidos no simpósio trazem desafios e novas possibilidades para os estudos do fantástico e do insólito ficcional, que eclodem em novas perspectivas, olhares inovadores, diálogos interdisciplinares e rupturas crítico-teórico- epistemológicas. Palavras-chave: Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário. ABSTRACT The present text presents reports of research carried out in the field of literature of the unusual in its multiple faces with the fantastic, the strange, the wonderful, the horror, the suspense and the fictional. This is a theoretical-expository article, with a descriptive- bibliographic character, divided into two parts: in the first, we portray the theoretical- conceptual plan on the literature of the fantastic and the fictional unusual in the discussions of de Tzvetan Todorov (2010), Irène Bessière (2009) and Filipe Furtado (2009), without refuting the contributions of Ítalo Calvino (2009), Flávio Garcia (2007), Remo Ceserani (2006), Marisa Gama-Khalil (2013), David Roas (2014), among others ; in the second, we carry out a synthesis of the main theoretical and critical proposals and innovations about the field of the fictional unusual presented at the thematic symposium Literature, Fictional and Imaginary Unusual of the I International Colloquium of Literary Theory and Criticism and II National Meeting of Literature, Memory and Subjectivity: displacements and identities, promoted by the Postgraduate Program in Letters, of the State University of Maranhão, on June 08, 09 and 10, 2022. As a result, we have that the reports presented and discussed at the symposium bring challenges and new possibilities for the studies of the fantastic and the fictional unusual, which emerge in new perspectives, innovative perspectives, interdisciplinary dialogues and critical-theoretical-epistemological ruptures. KEYWORDS: Literature, Unusual Fiction and Imaginary. PROLEGÔMENOS (IN)SÓLITOS A literatura fantástica é um campo de investigação que tem se destacado cada vez mais nos estudos literários, dessa maneira, diversos caminhos têm sido delineados por teóricos nacionais e internacionais. No presente estudo, destacaremos a linha do fantástico enquanto gênero literário, do estranho e do maravilhoso, proposta por Todorov (2010) e a linha que adota o fantástico como um modo literário, proposta por Irène Bessière (2009), posteriormente entendida como ficção do meta-empírico, pelo pesquisador português Filipe Furtado (2009). No plano metodológico, trata-se de um artigo teórico-expositivo, de caráter descritivo-bibliográfico, dividido em duas partes. Na primeira, retratamos o plano teórico- conceitual sobre a literatura do fantástico e do insólito ficcional nas discussões de Tzvetan 10

Anais Todorov (2010), Irène Bessière (2009) e Filipe Furtado (2009), sem refutar as contribuições de Ítalo Calvino (2009), Flávio Garcia (2007), Remo Ceserani (2006), Marisa Gama-Khalil (2013), David Roas (2014), entre outros. Na segunda parte da pesquisa, realizamos uma síntese das principais propostas e inovações teóricas e críticas sobre o campo do insólito ficcional apresentadas no simpósio temático Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário do I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e II Encontro Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: deslocamentos e identidades, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Estadual do Maranhão, nos dias 08, 09 e 10 de junho de 2022. Vale ressaltar que o presente texto não se propõe a apresentar uma proposta teórico- metodológica inovadora para a literatura fantástica, tampouco uma nova sistematização sobre os estudos do fantástico; outrora, demonstra as escolhas e caminhos teórico- metodológicos dos autores para adentrar no labirinto (CALVINO, 2009) da literatura do fantástico. Dito isto, pretendemos fazer um convite ao mundo do maravilhoso, do estranho, do insólito ficcional, do fantástico a partir da experiência do evento e dos relatos que trazemos dos debates que têm sido travados em torno do tema na atualidade, com as suas diversas vertentes teóricas a partir das abordagens tecidas nos últimos anos por pesquisadores brasileiros e internacionais. REVISÃO DE LITERATURA: o insólito ficcional O cerne do presente estudo está constituído pelos conceitos sobre o fantástico do teórico búlgaro Tzvetan Todorov, presentes na obra Introdução à literatura fantástica (2010), pelos conceitos de Irène Bessière em seu artigo O relato fantástico: forma mista do caso e da adivinha (2009); e pelo conceito de Fantástico (MODO) (2009), do crítico português Filipe Furtado; além das contribuições de estudiosos como Ítalo Calvino (2009), Flávio Garcia (2007), Remo Ceserani (2006), Marisa Gama-Khalil (2013), David Roas (2014), entre outros. Um passeio pela Introdução à Literatura Fantástica, de Tzvetan Todorov (2010) é um percurso essencial para um mergulho reflexivo sobre as bases teóricas para a compreensão da literatura fantástica. Rigoroso com a questão do método, o teórico búlgaro traduz a sua preocupação com a escolha de um método científico que dê conta de observar o fenômeno – 11

Anais o fantástico – e descrevê-lo, sem se preocupar com a quantidade de ocorrências ou dedução de leis universais a partir desses fenômenos em obras literárias, mas com a coerência lógica da teoria que lhe dê consistência. Nesta esteira, Todorov (2010) visa descobrir “uma regra que funcione através de vários textos e nos permita lhes aplicar o nome de ‘obras fantásticas’ e não o que cada um deles tem de específico”. Daí a escolha de Northrop Frye como base epistemológica e teórica para pensar as questões complexas sobre as teorizações dos gêneros literários e apresentar o seu plano de trabalho para a literatura fantástica. Agora bem, como sabemos, a literatura existe em tanto esforço por dizer o que a linguagem corrente não pode dizer. Por esta razão, a crítica (a melhor) tende sempre a converter-se em literatura; só é possível falar do que faz a literatura fazendo literatura. A literatura pode constituir-se e subsistir somente a partir desta diferença com a linguagem corrente. A literatura enuncia o que só ela pode enunciar. Quando o crítico haja dito tudo sobre um texto literário, não haverá ainda dito nada; pois a definição mesma da literatura implica não poder falar dela (TODOROV, 2010, p. 14). No exceto acima, Todorov (2010) ratifica a prolixidade em definir, categorizar, classificar os gêneros literários, dada a amplitude das sistematizações, mas admite que só é possível se fazer uma crítica à literatura “fazendo literatura”. Segundo Calvino (2014), “seja como for, todas as “realidades” e as “fantasias” só podem tomar forma através da escrita, na qual exterioridade e interioridade, mundo e ego, experiência e fantasia aparecem compostos pela mesma matéria verbal” (p. 84). Definir o fantástico não é tarefa fácil, primeiro porque o desafio se intensifica quando se pretende compreender o que se entende por “sobrenatural”, que para Todorov (2010), “ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são, ou o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade, e então esta realidade está regida por leis que desconhecemos” (p. 15). Seguindo essa linha, Filipe Furtado (2009) afirma que o sobrenatural se caracteriza pela impossibilidade de comprovar de modo universalmente válido a sua existência no mundo conhecido. Para o italiano Remo Ceserani (2006), assim como para Furtado (2009), os elementos sobrenaturais são na narrativa fantástica uma de suas características mais expressivas, isso porque dela surge com mais ou menos intensidade a relação e o envolvimento do leitor com a história. 12

Anais Todorov (2010) aponta que, desde o século XIX, o tema já havia sido tratado por diversos autores e correntes (francesa, alemã, inglesa), e destaca as iniciativas do filósofo e místico russo Vladimir Soloviov que define o fantástico como “um fenômeno estranho que pode ser explicado de duas maneiras, por tipos de causas naturais e sobrenaturais. A possibilidade de vacilar entre ambas cria o efeito fantástico” (p. 16) e pelo autor inglês especializado em histórias de fantasmas, Montague Rhodes James, como “uma porta de saída para uma explicação natural, , mas teria que adicionar que esta porta deve ser o bastante estreita como para que não possa ser utilizada” (p. 16), além da concepção alemã de Olga Reimann que afirma: “O herói sente em forma contínua e perceptível a contradição entre os dois mundos, o do real e o do fantástico, e ele mesmo se assombra ante as coisas extraordinárias que o rodeiam” (idem). Para o teórico búlgaro, o fantástico caracteriza-se pela hesitação, vacilação comum ao leitor e ao personagem, que devem decidir se o que percebem provém ou não da “realidade”. Dessa maneira, o gênero fantástico “mais que ser um gênero autônomo, parece situar-se no limite de dois gêneros: o maravilhoso e o estranho” (TODOROV, 2010, p. 24), resultando em novos subgêneros literários como o fantástico-maravilhoso e o fantástico-estranho. Apesar da densidade dos argumentos de Todorov para uma teoria do gênero fantástico, há autores que versam outra linha de pensamento, como Filipe Furtado (2009), David Roas (2014) e Irène Bessière (2009). Filipe Furtado (2009) postula o meta-empírico como um modo que abarca uma heterogeneidade de textos e gêneros por intermédio de um fator que lhes é comum: o sobrenatural, integrando o conto de fadas, o gótico, o maravilhoso, o estranho, a ficção científica e outras modalidades e o insólito ficcional. Neste ponto, opõe-se a Todorov ampliando o entendimento do que vem a ser o campo da ficção insólita que pode abranger tanto o sobrenatural “quanto outras que, não o sendo, também podem parecer insólitas e, eventualmente, assustadoras” (FURTADO, 2009, p. 2). Para o teórico português, “todas elas, com efeito, partilham um traço comum: o de se manterem inexplicáveis na época de produção do texto devido a insuficiência de meios de percepção, a desconhecimento dos seus princípios ordenadores ou a não terem, afinal, existência objectiva” (idem). Gama-Khalil (2013) observa que, para os dois teóricos, Todorov e Furtado, “no fantástico, ocorre a permanência da hesitação/ambiguidade. Portanto, mesmo contrariando a visão todoroviana de hesitação, Furtado chega a conclusões muitíssimo similares a ela” (GAMA-KHALIL, 2013, p. 23). E continua: “A diferença que ele estabelece é a de que a 13

Anais permanência da ambiguidade é uma questão interna à narrativa, ao passo que, para Todorov, a hesitação estaria também condicionada à recepção do acontecimento insólito (GAMA- KHALIL, 2013, p. 24). O escritor e crítico literário David Roas também discorda de Todorov sobre o critério basilar da hesitação como caracterização do fantástico. Para o teórico espanhol, “não se trata simplesmente de introduzir um elemento impossível (sobrenatural) em mundo parecido ao nosso” (ROAS, 2014, p. 97), mas provocar no receptor o escândalo racional “diante da possibilidade de que suas convicções sobre a realidade deixem de funcionar” (idem). Para Roas (2014), o fantástico causa uma transgressão da realidade, ele atua entre irrompendo os limites das fronteiras do intransponível, provocando o estranhamento do real, consequentemente, desencadeando o ameaçador, o incompreensível, o medo, a inquietude, por fim, essa ameaça, essa transgressão se traduz no efeito fundamental do fantástico. Outra perspectiva crítica a obra todoroviana é apresentada pela pesquisadora Irène Bessière, que propõe o fantástico como um modo literário, e não um gênero. Para a teórica francesa, o fantástico não é senão um dos métodos da imaginação, cuja fenomenologia semântica se relaciona tanto com a mitografia quanto com o religioso e a psicologia normal e patológica, e que, a partir disso, não se distingue daquelas manifestações aberrantes do imaginário ou de suas expressões codificadas na tradição popular. O fantástico pode ser assim tratado como a descrição de certas atitudes mentais” (BESSIÈRE, 2009, p. 186). Como se vê, para Bessière, o fantástico não define uma qualidade atual de objetos ou de seres existentes, nem constitui uma categoria ou um gênero literário, mas supõe uma lógica narrativa que é tanto formal quanto temática e que, surpreendente ou arbitrária para o leitor, reflete, sob o jogo aparente da invenção pura, as metamorfoses culturais da razão e do imaginário coletivo (2009, p. 186). Apesar do engessamento genológico de Todorov em relação ao fantástico, de maneira que a simples alteração na construção narrativa pode mudar o gênero que se realiza; para Bessière, a simples manifestação do insólito e da incerteza na narrativa garantem a realização do fantástico. Mesmo discordando neste ponto, ambas as teorias (Todorov e Bessière) têm em comum o insólito, pois é necessária a manifestação, no plano narrativo, de algo que fuja às regras convencionais da racionalidade própria do senso comum (GARCIA, 2011). 14

Anais No Brasil, merece destaque, a trajetória desenvolvida pelo pesquisador fluminense Flávio Garcia frente ao Seminário Permanente de Estudos Literários, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (SePEL.UERJ), que iniciou em 2007, na Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo (campus da UERJ), com os Painéis Reflexões sobre o insólito na narrativa ficcional, atividades acadêmicas que resultaram na promoção de grandes eventos nacionais e internacionais em torno do tema como os Encontros Nacionais O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional, surgidos em 2009, no Instituto de Letras (ILE) da UERJ, e o I Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional, cuja segunda edição se deu em 2014, igualmente com pesquisadores de diferentes universidades brasileiras, portuguesas e estrangeiras. Em 2011, grupos de pesquisa certificados junto ao Diretório de Grupos do CNPq e pesquisadores isolados, representando seus programas de pós-graduação e dando visibilidade aos projetos individuais, reuniram-se para criar, junto à ANPOLL, o Grupo de Trabalho “Vertentes do Insólito Ficcional” que, tendo por objeto o “insólito”, conforme a perspectiva teórica adotada e segundo as tendências da tradição crítica, congraça estudos acerca das diferentes vertentes do fantástico, que podem ser identificados nos seguintes modos, gêneros ou subgêneros: Fantástico, Maravilhoso, Estranho, Sobrenatural, Absurdo, Realismo-Fantástico, Realismo-Mágico, Realismo-Maravilhoso, Realismo-Animista, Ficção Científica, Romance Policial, Romance de Mistério, Horror, Terror, Pavor (GARCIA, 2015, p. 9). Outro guia de estudos para os temas do fantástico é a obra A literatura fantástica: caminhos teóricos, da pesquisadora Ana Luiza Silva Camarani (2014), que nos oferece um quadro dos principais teóricos sobre a literatura fantástica. Sua obra nos apresenta, na primeira parte, “Reflexões teóricas e críticas precursoras”, o precursor teórico, Charles Nodier e as reflexões de Guy de Maupassant; em seguida, a autora apresenta as ideias de Pierre George-Castex que, no início da segunda metade do século XX, reativa os estudos teóricos, críticos e histórico literários sobre essa modalidade literária. Na segunda parte do estudo, sobre os “Textos fundadores”, focaliza os textos teórico- críticos iniciadores, considerando as reflexões de Vax, Caillois, Todorov, Bellemin-Noël e Bessière, dos quais procura assinalar as ideias que julga mais pertinentes. Na terceira parte, “A evolução da teoria”, busca apontar alguns críticos que, a partir dos textos iniciadores reavaliam as propostas ali contidas, trazendo sua contribuição para a definição e compreensão do fantástico literário: Finné, Furtado, Malrieux, Tritter, Ceserani, Viegnes e 15

Anais Roas. Por fim, na quarta parte, dedica-se à “Teoria e crítica no Brasil”, com os textos de Paes e Rodrigues, que datam dos anos 80 do século passado. Como se vê, a literatura fantástica é um vasto campo de estudos, com diversas abordagens teóricas no Brasil e pelo mundo. Mas não se pode negar que desponta como um gênero (TODOROV, 2010) ou modo (BESSIÈRE, 2009) literário profícuo e prolixo que ainda proverá muitos debates e discussões no campo da teoria e crítica literárias. PESQUISAS SOBRE O INSÓLITO FICCIONAL NO I COLÓQUIO INTERNACIONAL DE TEORIA E CRÍTICA LITERÁRIA E II ENCONTRO NACIONAL DE LITERATURA, MEMÓRIA E SUBJETIVIDADE: DESLOCAMENTOS E IDENTIDADES As discussões travadas no evento nos chamaram atenção para o desenvolvimento dos estudos relacionados ao campo do fantástico. Muito trabalhos apresentados no Simpósio Temático 6 Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário, realizado neste I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e II Encontro Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: deslocamentos e identidades refletiram a diversidade das pesquisas em torno da literatura fantástica no Brasil, visto que contamos com a participação de pesquisadores de todos os cantos do país. O Simpósio Temático 6 Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário foi organizado com previsão para submissão de, no máximo, 12 trabalhos e tivemos a boa surpresa de 21 trabalhos inscritos. Os trabalhos foram divididos em dois blocos, durante dois dias de apresentação, dia 08/06 (11 trabalhos) e 09/06 (10 trabalhos). Houve a ausência de alguns participantes de maneira que ocorrem 7 apresentações no dia 08/07 e 6 apresentações no dia 09/06, totalizando 13 trabalhos apresentados no simpósio temático. No primeiro dia, foram apresentados os seguintes temas: 1 - O INSÓLITO FICCIONAL NO CONTO \"RUMO AO OCIDENTE\", DE PRIMO LEVI, apresentado por Thiago Felício Barbosa Pereira; 2 - O INSÓLITO FICCIONAL EM BORGES: UM ESTUDO SOBRE O MILAGRE SECRETO E A CRENÇA NO SOBRENATURAL, apresentado por Mariany Lopes Almeida, Elizete Albina Ferreira; 3 - ESPAÇO NARRATIVO: O INSÓLITO E A VISIBILIDADE NOS CONTOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES E EDGAR ALLAN POE, apresentado por Mariluz Marçolla Ferreira Avrechack, Maria José Pereira Gordo Palo ; 4 - ASTERIX E O FANTÁSTICO: ENTRE HISTORIOGRAFIA E SUBVERSÃO, apresentado por Rafael Silva Fouto; 5 - HISTÓRIA LITERÁRIA, MODERNISMOS E A TEMÁTICA DO INSÓLITO, apresentado por Joachin de Melo 16

Anais Azevedo Neto; 6 - FOI UM RIO QUE PASSOU EM MINHA VIDA: O MERGULHO DA PALAVRA LIBERTA, apresentado por Roman Lopes; 7 - AS AVENTURAS DE BAMBOLINA - LITERATURA INFANTIL E LEITURA DE IMAGENS, apresentado por Júlio César Lima Fernandes, André Luís de Araújo. No segundo dia, prosseguimos com as apresentações: 8 - CONSCIÊNCIA E CORPO DESALINHADO: O FANTÁSTICO E O INSÓLITO NO CONTO “SONO”, DE HARUKI MURAKAMI, apresentado por Vitor Yukio Ivasse Alves, Elizete Albina Ferreira; 9 - COUP D'OEIL CIENTÍFICO: UMA ANÁLISE DAS NARRATIVAS DE BERILO NEVES À LUZ DO MARAVILHOSO- CIENTÍFICO, apresentado por Irismar Lustosa Rocha, Daniel Castelo Branco Ciarlini; 10 - AMÉRICA LATINA É O QUINTAL: UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE A SOLIDÃO A PARTIR DA REPRESENTAÇÃO DA PERSONAGEM ÚRSULA EM CEM ANOS DE SOLIDÃO, DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ, apresentado por Fábio Júnior Vieira da Silva; 11 - O SI-MESMO COMO OUTRO EM EXCERTOS SELECIONADOS DE EDWARD LEAR E QORPO-SANTO, apresentado por Fernanda Marques Granato; 12 - INSÓLITAS METAMORFOSES NA LITERATURA: O FANTÁSTICO EM “AÇUDE”, DE ROBERTO BELTRÃO, apresentado por Ivson Bruno da Silva; 13 - “PRECISO ESCONDER O QUÃO DURO É O ABRAÇO DE FERRO DA DOR”: OS ESTÁGIOS DO LUTO VIVENCIADOS POR WANDA MAXIMOFF NA SÉRIE WANDAVISION (2021), apresentado por Vitor Hugo Sousa Oliveira, Renata Cristina da Cunha). Os debates realizados no Simpósio Temático 6 Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário nos apontaram que os temas do fantástico, do insólito ficcional caminham por novas perspectivas interdisciplinares. Muitos trabalhos utilizaram como base teórica- referencial os textos de Tzvetan Todorov (2010), Irène Bessière, David Roas (2014), Flávio Garcia (2007), Filipe Furtado (2009), entre outros; e teceram diálogos com a psicanálise de Freud, as fenomenologias das imagens poéticas de Gaston Bachelard, as estruturas antropológicas do imaginário de Gilbert Durand, a geografia humanista fenomenológica de Yi Fu Tuan, o duplo de Otto Rank e Edgar Morin, só para citar algumas das abordagens que sustentaram as teses apresentadas. Por isso, a proposta do simpósio temático trilhou uma abertura entre a literatura e fantástico, sem abrir mão da intersecção entre o fantástico e o imaginário. Para Calvino (1990), Balzac teria sido um dos primeiros escritores a tratar as questões do fantástico, ao citar que “Para todas essas singularidades, o idioma de hoje só encontra uma palavra: é indefinível.” (p. 82), aproximando-as do campo do imaginário: “Admirável expressão, que resume toda a literatura fantástica; ela diz tudo o que escapa às percepções precárias de 17

Anais nosso espírito; e quando a colocais sob os olhos de um leitor, ele se vê lançado no espaço imaginário...” (p. 82). Vemos em Balzac a dificuldade em situar, pelas palavras, o universo que caracterizamos como literatura fantástica. A palavra “indefinível” conduz a esfera do “indizível”, aquilo que não podemos nomear, por desconhecimento ou incapacidade linguística, mas que possui existência própria no espaço-tempo. Para Maciel (2013), “esses elementos insólitos não possuem ligação fixa ou verdadeira com a realidade e são responsáveis por despertar o imaginário do leitor, fazendo com que ele sinta a estranheza dos fatos e ao mesmo tempo não busque reminiscências na realidade para explicá-los” (p. 43). Como dissemos na seção anterior, a relação entre o imaginário e o fantástico é estreita, uma linha tênue, conforme aparece nas palavras de Todorov: “ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação” (2010, p. 15), ou de Bessière: “o fantástico não é senão um dos métodos da imaginação (2009, p. 186), enfim, temos a concretização desse efeito. CONSIDERAÇÕES CREPUSCULARES SOBRE O INSÓLITO FICCIONAL O campo do insólito ficcional, do fantástico, do maravilhoso, é um terreno arenoso ou um mar de surpresas, como bem atesta Calvino (2009), “o prazer do fantástico está no desenvolvimento de uma lógica cujas regras, cujos pontos de partida ou cujas soluções reservam surpresas” (p. 154), recheado de complexidades e tensões entre o real e o sobrenatural, o estranho e o maravilhoso, o imaginário e os duplos existentes na ficção literária. O I Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e II Encontro Nacional de Literatura, Memória e Subjetividade: deslocamentos e identidades com o Simpósio Temático Literatura, Insólito Ficcional e Imaginário, demonstrou-nos o quanto o tema ainda instiga diversos pesquisadores no Brasil e no mundo para discutirem sobre a temática. Sabemos que a literatura fantástica reflete a crise generalizada de valores que a contemporaneidade vive, produto ficcional de um imaginário pós-moderno, que se traduz em fenômenos sobrenaturais ou meta-empíricos, que foi, pouco a pouco, saindo da marginalidade e ganhando espaço tanto na produção ficcional quanto nas formulações teóricas e na crítica que sobre eles se desenvolve. Para o professor Flávio Garcia (2011), 18

Anais “pensar o fantástico, já no século XXI, obriga a repensar as categorias, em sentido lato, que de sua literatura participam” (p. 8). Por essa, razão entendemos que as discussões sobre o fantástico ou insólito ficcional são emergentes e ainda terão muito a nos oferecer neste início de milênio. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BESSIÈRE, Irène. O relato fantástico: forma mista do caso e da adivinha. In: Revista Fronteiraz, vol. 3, nº 3, Setembro/2009. [p. 185 – 202]. CALVINO, Ítalo. Definições de Território: o fantástico. In: Assunto Encerrado – discursos sobre literatura e sociedade. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 153-154. __________. Rapidez. In: Seis Propostas Para o Próximo Milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 43-67. CAMARANI, Ana Luiza Silva. A literatura fantástica: caminhos teóricos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. CESERANI, Remo. O fantástico. Trad. Nilton Tripadalli. Curitiba: Ed. UFPR, 2006. FURTADO, F. Fantástico: modo. In: CEIA, C.(Coord.). E-Dicionário de Termos Literários (EDTL). Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2009. Disponível em https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/fantastico-modo. Acesso em 16 de abr. de 2021. GAMA-KHALIL. A literatura fantástica: gênero ou modo? In: Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários, Volume 26, Dezembro, 2013, p. 18 -31, ISSN 1678-2054. GARCÍA, Flavio (org.). A Banalização do Insólito: questões de gênero literário: mecanismos de construção narrativa. 1 ed. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007. ISBN: 978-85- 86837-27-2. Disponível em: https://www.dialogarts.uerj.br/admin/arquivos_tfc_literatura/livro_insolito.pdf. Acesso em: 23 abr. 2022. __________. A CONSTRUÇÃO DO INSÓLITO FICCIONAL E SUA LEITURA LITERÁRIA: procedimentos instrucionais da narrativa. In: I Congresso Nacional de Linguagens e Representações: Linguagens e Leituras, UESC - Ilhéus – BA, 14 a 17 de outubro, 2009. GARCIA, Flavio; PINTO, Marcello de Oliveira. Caderno de resumos e programação - Vertentes do fantástico no Brasil: tendências da ficção e da crítica - VI Encontro Nacional O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional / XIV Painel Reflexões sobre o insólito na narrativa ficcional. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2015. GARCIA, Flavio; BATALHA, Maria Cristina; MICHELLI, Regina Silva (org.) Vertentes teóricas e ficcionais do insólito - Comunicações em Simpósios e Livres I Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional / IV Encontro Nacional O Insólito como Questão na 19

Anais Narrativa Ficcional / XI Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2013. MACIEL, Lilian Lima. A BOLSA AMARELA COMO ESPAÇO DE IRRUPÇÃO DO INSÓLITO. IN: GARCIA, Flávio; BATALHA, Maria Cristina; MICHELLI, Regina Silva (org.). Vertentes teóricas e ficcionais do insólito – Comunicações em Simpósios e Livres I Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional / IV Encontro Nacional O Insólito como Questão na Narrativa Ficcional / XI Painel Reflexões sobre o Insólito na narrativa ficcional. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2013. / ISBN 978-85-8199-015-6. ROAS, David. A Ameaça do Fantástico: aproximações teóricas. São Paulo: Unesp, 2014. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010. 20

MEMÓRIAS DE UMA GAROTA ESCOLHIDA POR UMA DOENÇA ESPECIAL: O AUTO LUTO NA OBRA UM LITRO DE LÁGRIMAS, DE AYA KITO Atos Daniel Pereira da SILVA (UESPI)1 RESUMO Este trabalho pretende analisar, diante uma perspectiva psicanalítica literária, o luto antecipado — também conhecido como auto luto — vivenciado por Aya Kito em sua obra Um litro de lágrimas (2013), evidenciando os processos psíquicos no trabalho de luto diante da perspectiva da perda iminente da própria vida após a descoberta de uma doença incurável. Para tal, aborda-se o conceito de auto luto de RANDO (1986) e fases do luto de KUBLER-ROSS (2008) mantendo um diálogo teórico literário entre os escritos de AYA KITO (2013) e as ideias dos autores. A partir da seleção de trechos da obra foram levantadas quatro categorias de análise: o diagnóstico da doença – o modo como Aya vivencia esta situação; negação – o ser lidando com o tempo após o diagnóstico de uma doença incurável; barganha – ideia de morte e o possível amparo religioso desta vivência; aceitação – conformismo com a doença. Diante disso, constou-se que Aya passa pelas fases do luto, que são compreendidas por negação, revolta, barganha e aceitação, possibilitando uma compreensão do fenômeno investigado, assim, desvelou-se a experiência do auto luto como uma preparação para o enfrentamento da sua morte, com toda a complexidade envolvida nesta vivência. 1 Mestrando em Letras – UESPI, bolsista CAPES, [email protected] 21

Anais Palavras-chave: Auto luto, Fases do luto, Memória. ABSTRACT This work intends to analyze, from a literary psychoanalytic perspective, the anticipated mourning — also known as self mourning — experienced by Aya Kito in her work A Liter of Tears (2013), highlighting the psychic processes in mourning work in the face of the perspective of imminent loss. of life itself after the discovery of an incurable disease. To this end, the concept of self-mourning by RANDO (1986) and stages of mourning by KUBLER- ROSS (2008) are approached, maintaining a theoretical literary dialogue between the writings of AYA KITO (2013) and the authors' ideas. From the selection of excerpts from the work, four categories of analysis were raised: the diagnosis of the disease – the way Aya experiences this situation; denial – being dealing with time after the diagnosis of an incurable disease; bargaining – idea of death and the possible religious support of this experience; acceptance – conformism to the disease. Therefore, it was found that Aya goes through the stages of mourning, which are understood as denial, revolt, bargaining and acceptance, enabling an understanding of the phenomenon investigated, thus, the experience of self- mourning was revealed as a preparation for facing the his death, with all the complexity involved in this experience. KEYWORDS: Anticipatory grief, Stages of grief, Memory. LÁGRIMAS E O AUTO LUTO Ao longo da história, a morte foi um evento social fundador da humanidade. Em cada cultura, entendida como um universo de símbolos e significados que permitem aos sujeitos de um grupo interpretar suas experiências e orientar suas ações, os ritos fúnebres facilitaram a integração da morte, a transformação dos sobreviventes e o continuem da vida humana. No ano de 1962 nascia no Japão à garota Aya Kito. Ela tinha uma vida comum, até que na adolescência, especificamente aos quinze anos, descobre que possui uma doença incurável, que vai atrofiando seu corpo e lhe tirando os movimentos. Tal doença tem o nome de degenração espinicerelebar, que é compreendida como: Uma doença hereditária autossômica recessiva, descoberta por Nicholaus Friedreich, em 1863, que acomete principalmente a medula espinhal e o cerebelo, levando ao aparecimento de sintomas como dificuldade motora, inicialmente em membros inferiores, distúrbios de equilíbrio, dificuldades de marcha, assinergias e ataxia. Trata-se de uma doença lentamente progressiva e sem cura. (PINHEIRO, 2012, p. 144). 22

Anais A partir do diagnóstico, a mãe de Aya aconselha que ela registre um diário para o médico saber como conjuntura o dia-a-dia dela e observar o quanto a doença comprometia a vida da garota. Contudo Aya foi além, começou a externar seus pensamentos, o que a consternava e o que pensava e sonhava para o futuro. Seu diário intitulado um litro de lágrimas (2013) foi publicado no Japão em 1986, dois anos antes de Aya deixar o plano material. Kito travou uma dura batalha contra a doença por mais de dez anos e embora da desmedida dor que teve de aguentar, jamais perdeu a esperança, como corroborado no seu diário. Na maior parte das vezes, o autor de um diário é um narrador solitário que descreve suas vivências e experiências apenas para si mesmo (BORTOLAZZO, 2010). Mas no caso de Aya, ela transforma lágrimas em textos que tocam muitos corações: Tantas vezes você se perguntou: por qual motivo derramei tantas lágrimas? E hoje eu posso responder a você minha filha. Suas lágrimas se transformaram em palavras que acalmam muitos corações. Elas foram capazes de notar que não estão sozinhas. Você não está mais chorando por aí não é mesmo Aya? (KITO, 2013, p. 133). O luto não é só quando alguém morre e sofremos por isso. Toda perda de algo que estimávamos é um luto. Logo, um diagnóstico de uma doença degenerativa traz consigo o estigma de uma condenação á morte. Por isso, os pacientes com tais doenças passam por todos os estágios do processo de luto antes mesmo de falecerem. O luto antecipatório — também conhecido como auto luto — é um fenômeno cuja conceituação foi elaborada pelo psiquiatra alemão Erich Lindemann e cuja descoberta ocorreu no período da Segunda Grande Guerra ao observar as esposas dos soldados que, ao retornarem da guerra, estes tinham dificuldades de inclusão ao seu núcleo familiar, visto que suas esposas realizavam um processo de elaboração como se, realmente, eles tivessem morrido (FONSECA, 2012). Nesse caso, elas aceitavam a morte antes de ela, de fato, acontecer. Segundo o psiquiatra, este processo se desenvolve em função da separação a qual indica ou uma ameaça ou um perigo real do membro vir a falecer e não em função da morte em si; por isso, há um pressentimento de sua finitude. O processo de elaboração da morte é realizado a partir de cinco estágios de maneira sucessiva e com possibilidade de variação. Conforme a psiquiatra Kübler-Ross (2008), o enlutamento inicia na fase de negação e termina com a aceitação, entre estas duas, há a barganha e a revolta. No processo de luto antecipatório, estes estágios seguem a mesma 23

Anais dinâmica proposta por Kübler-Ross, no entanto, existe um estágio adicional que não há no luto normal: a esperança. (ALDRICH, 1974 apud FONSCESA, 2012). Rando (1986) refere-se ao luto antecipado como um conjunto de processos desencadeados pelo paciente de uma crescente ameaça de perda é um processo de luto sobre aspectos psicossociais vivenciados pelo paciente, no período entre o diagnóstico e a morte. luto antecipatório pode ser entendido como o tipo de luto que antecede a perda real e apresenta as mesmas características e sintomas dos estágios iniciais do luto normal. É muito importante entender a diferença entre o luto, que é um fenômeno natural e faz parte de nossas vidas, e o auto luto, que é um processo complexo. O luto é considerado saudável como a aceitação da mudança ocorrida, tanto em relação ao mundo exterior quanto à ausência permanente de um ente querido. Há muitos aspectos a serem considerados, mas em geral, se há um aumento de processos de luto persistentes, bem como de comportamentos obsessivos, é um processo de luto complexo. Os processos defensivos são característicos do luto e tornam-se patológicos à medida que persistem e acabam se tornando parte da vida do enlutado (KOVÁCS, 1992). De acordo com Kubler-Ross (2008) nem todas as pessoas irão vivenciar seu luto de maneira semelhante, na ordem que é apresentada. “Nosso luto é tão individual como nossas vidas” (KUBLER-ROSS, 2008, p.07). Assim, uma mesma pessoa pode ir da fase da negação para a barganha, como da barganha para a raiva e voltar para a anterior. Cada luto é único para os humanos, com suas características e diferenças. No presente trabalho iremos focar no luto perante a situação de possível morte vivenciada por um sujeito, nesse caso Aya, apresentando as fases do luto nessa circunstância. Nesse estudo, portanto, o objetivo é investigar como fenômeno de luto antecipatório ocorre a partir da leitura dos escritos de Aya Kito (2013) e sua luta contra uma doença degenerativa. Nesse caso, o luto antecipatório será utilizado conforme o delineado por Kübler-Ross, pois há o contexto da doença envolvida no fenômeno de enlutamento. MÁQUINA DO TEMPO É notável que estudos acerca do auto luto sejam escassos quando comparados à produção científica existente relacionada a outros quadros de saúde mental (Silva; Nardi, 2010). Assim, pode-se dizer que o tema da morte e as questões relacionadas com o mesmo 24

Anais ainda são considerados como um tabu, um tema interditado que muitas vezes é sentido como fracasso, por profissionais da área da saúde (Costa; Lima, 2005). Como elucidado por Kübler-Ross (2008), o estágio inicial do luto é a negação, na obra 1 litro de lágrimas, ao descobrir a doença, Aya não aceita que terá que perder sua juventude na cama de um hospital fazendo exames e mais exames a fim de descobrir maneiras para retardar sua doença, já que a mesma não tem cura. Em trechos da obra Aya afirma querer uma máquina do tempo para voltar aos tempos em que não estava doente: “Quero construir uma máquina no tempo e voltar ao passado. Se não fosse por essa doença, eu conseguiria me apaixonar e não depender de ninguém para viver.“ (KITO, 2013, p. 39). A ideia de voltar no tempo para Aya está atrelada ao pensamento de não estar mais doente. A negação de Aya parte do pressuposto de que ela teria que deixar a escola em que estuda para fazer parte de uma escola especial, já que a sua doença avança de maneira acelerada: Faltam 4 dias até o fim das aulas. Parece que por minha causa, todos estão segurando mil garças de papéis. A imagem deles segurando-os com tanto esforço, guardarei no fundo dos meus olhos para que eu nunca esqueça, mesmo estando separados. Mas eu queria que dissessem: Aya, não vá. (KITO, 2013, p. 50). Além da ocorrência de que mudar para uma escola especial para pessoas com doenças degenerativas era como um atestado de invalidade para Aya, o fato de seus colegas de classe estarem mais preocupados com as provas finais, ocasionava a sensação de rejeição e desdenho, acarretando na intensificação desse processo de negação. LÁGRIMAS DE REVOLTA Nas fases do luto, a revolta é compreendida como o momento em que os sujeitos despontam da introspecção intensa da negação e, finalmente, começam a externalizar um sentimento, que será denominado de revolta. (BRANDÃO, 2021). Durante esse processo de revolta, Aya sempre pergunta para si mesma o motivo de estar doente: “Por que essa doença me escolheu? Destino é algo que não se pode colocar em palavras.” (KITO, 2013, p. 46). Essa ideia de negação dada pela personagem é também atrelada ao destino, como se ela fosse fadada a sofrer com tal doença por ela ser hereditária. 25

Anais No estágio da revolta, há também a procura de culpados e questionamentos, tal como: Por que eu? Com o intuito de aliviar o imenso sofrimento. Além disso, lembranças das abstenções e planos não realizados podem se refletir em um comportamento hostil. “Agora penso que você foi muito mimada pelas pessoas! Finalmente percebi. Você dependeu demais das pessoas! Por isso, a Youko e a Yoshiko acabaram se cansando! Percebi tarde demais” (KITO, 2013, p. 103). Aya começa a martirizar-se sobre ações que poderiam ter sido tomadas para um outro rumo da história, gerando grande angústia. “Mamãe, dentro do meu coração: existe você, que sempre acreditou em mim. A partir de agora conto com você. Desculpa por causar tanta preocupação.” (KITO, 2013, p. 121). A mesma dar início a uma série de pensamentos de que sua existência, enquanto pessoa doente atrapalha a vida das pessoas. Eu gosto do som das bolas ecoando no ginásio, da sala quieta depois da aula, da paisagem que se vê da janela, do piso de madeira do corredor, das conversas em frente à sala de aula, gosto de tudo. Talvez eu só esteja incomodando, talvez eu não esteja ajudando ninguém, mesmo assim, eu quero ficar aqui. Afinal, aqui é o lugar onde estou. (KITO, 2013, p. 101). Por conta do estágio da revolta, usualmente ocorre uma circunstância mental um pouco descolado da realidade e, dependendo da personalidade, a pessoa pode parecer incontrolável, com atitudes de autodepreciação. No caso de Aya, o sentido de incômoda era a matriz dessa autodepreciação. LÁGRIMAS E DEUS Como mencionado aqui, a barganha é um dos estágios do luto e a mesma é compreendida como os pensamentos de que as coisas podem voltar a ser como antes prevalecem e a pessoa tenta negociar consigo mesma ou com os outros para que isso aconteça (BRANDÃO, 2021). Por ser o último estágio do luto, trata-se de uma tentativa de adiar os temores diante da situação. Assim, os indivíduos buscam firmar acordos com figuras que, segundo suas crenças, teriam poder de intervenção sobre a situação. Geralmente, esses acordos e promessas são direcionados a uma entidade divina. Na obra da Kito (2013), Aya tem conversas usuais com os kamis, que são compreendidos como os “seres divinos responsáveis por manter o equilíbrio entre o homem e a natureza gerando uma harmonia entre os dois” (RIBEIRO, 2018). Em um desses dialagos Aya pergunta por qual motivo sua existência ainda persiste: 26

Anais Por qual motivo eu estou vivendo? Aonde devo ir? Apesar de não conseguir respostas, se escrevo, meus sentimentos melhoram. Estou à procura de muitas mãos, mas não consigo alcançá-las, não consigo percebe-las, apenas sigo em direção à escuridão, apenas ouço minha voz que grita sem esperanças. (KITO, 2013, p. 79). A barganha é a última etapa do luto, nesse estágio o enlutado ainda tem expectativas, trazendo para a situação de Aya, uma garota doente, a perspectiva de um diagnóstico de melhora ou até mesmo cura ainda era esperado pela mesma. UM LITRO DE LÁGRIMAS Após todas as etapas de negação, revolta e barganha, temos a aceitação. Comumente é compreendida como o último estágio do luto convencional. Nessa última fase do luto, é quando a pessoa percebe que não vai mais conseguir voltar no tempo e ter de novo aquilo que perdeu por perto, contudo que vai tocar sua vida. Em um litro de lágrimas (2013), esse processo de aceitação por parte de Aya da sua condição de saúde, acontece no momento em que ela notícia para os colegas de classe sua mudança de escola. “Para que hoje eu possa falar desse assunto com um sorriso no rosto, foi preciso de no mínimo um litro de lágrimas” (KITO, 2013, p. 131). É normal que mesmo após a aceitação venham lembranças, alguma tristeza momentânea e saudosismo, mas nada que paralise a pessoa. “A realidade é muito cruel, muito rígida. Não posso nem ao menos sonhar. Se imaginar o futuro, ainda outras lágrimas escorrem.” (KITO, 2013, p. 128). Aqui, é quando Aya aceita sua doença de uma vez por todas e vive com isso, entretanto como um ferimento, que antes era aberto, contudo que cicatrizou, não doendo mais involuntariamente como antes, só que a sua marca está ali. “Eu realmente não quero dizer coisas como 'eu quero voltar como as coisas eram antes.' Eu reconheço como estou agora, e continuarei a viver.” (KITO, 2013, p. 113). Pensar no futuro é a analogia para a ferida, que aqui é vista como a consequência da doença. A ocorrência de se permanecer viva é algo que fortalece Aya, “O fato de eu estar viva é uma coisa tão encantadora e maravilhosa que me faz querer viver mais e mais.“ (KITO, 2013, p. 134). Como dito anteriormente, no estágio da aceitação o sujeito tem a noção de que não será capaz de voltar no tempo. “Não consigo mais voltar ao passado. Nem meu coração, 27

Anais nem meu corpo.” (KITO, 2013, p. 143). Aya entende que não pode fazer nada, apenas olhar para o futuro com a esperança de dias melhores. PARA UM LUGAR SEM LÁGRIMAS Como elucidado aqui, Kubler (2008) destacou um estágio suplementar que não há no luto normal, a esperança. Esse estágio não consiste especificamente na esperança pela cura de um câncer, doença auto-imune ou degenerativa como no caso de Aya, mas sim na esperança de partir desse plano material da melhor forma possível. “O que tem de mais em cair? Você pode se levantar de novo. Quando você cai, aproveite ao máximo a chance de olhar para cima e ver o céu. Você o verá se espalhando infinitamente acima de você e sorrindo para baixo. Sorria, você está vivo!\" (KITO, 2013, p. 142). A esperança de Aya a essa altura da vida não era regida pela expectativa de uma possível cura e sim pela apreciação de pequenas coisas da vida. “Quando você acha que as coisas são difíceis, essa é a hora que você está amadurecendo como pessoa. Se você superar a escuridão, um novo dia maravilhoso virá.” (KITO, 2013, p. 159). A esperança de Aya sustentava-se nos elementos da natureza, como o céu e as flores “Se eu fosse uma flor, minha vida seria um botão. Esse começo de juventude quero guardar sem arrependimentos.” (KITO, 2013, p. 121). E também em alguns sentimentos como o de amadurecimento. PARA ALÉM DAS LÁGRIMAS O fenômeno do auto luto e sua estrutura habitam na significação sobre a doença degenerativa de Aya, que se abrolha de várias maneiras e de convênio com seu jeito de sentir e vivenciar esta forma de luto, e também da maneira em como suportar a compreensão de se ser um sujeito para a morte. Estes distintos sentidos se situam perante o quanto o indivíduo têm no mundo as possibilidades de ser algo. O auto luto propõe assentimento da finitude, autorizando uma ressignificação de anseios e impressões relativas à morte. A prática de estudar o auto luto desvendou a problemática enfrentada pelos seres humanos de assimilar a morte enquanto procuram respostas para a mesma. Foi realizável constar comportamentos diversos defronte da morte, atrelados a história de vida relatada por Aya, tal como a configuração de albergar e preparar o processo de morte. Compreende- se que há variantes modos de enfrentamento do luto, que combóiam desde a negação, 28

Anais revolta, barganha, aceitação e por fim a esperança no caso de pacientes com doenças incuráveis. O auto luto é um tempo vultoso, pois aparelha o paciente desvincular os elos que ele tem em sua vida e permitir uma melhor compreensão da ideia de deixar o plano material. É um compromisso que o sujeito deve assumir para aprender a conviver com a realidade da morte. A análise das categorias permite afirmar que o sujeito no mundo é um indivíduo único, repleto de possibilidades subjetivas e formas concretas de perceber, viver e vivenciar a realidade. A partir da ideia de estar morrendo, nascem às palavras de Aya que uma das formas que a mesma enxerga de encarar a morte. A existência é sinalizada por possibilidades existenciais. O homem é um indivíduo de probabilidades alcançadas durante a existência. Após receber o diagnóstico, Aya surgiu com significados distintos baseados em seu tempo e modo de existência. Diante da finitude da experiência e da possibilidade de morte, Aya exibe comportamentos distintos em sua experiência de auto luto. Com isso em mente, considera-se importante o aprofundamento de pesquisas relacionadas a essa temática envolvendo aqueles que passam por uma doença incurável e tem que elaborar o auto luto da própria morte. REFERÊNCIAS BORTOLAZZO, M. A aventura da escrita. A produção do diário como instrumento didático pedagógico ou de como as crianças escrevem e tecem considerações sobre o ato de escrever. 2010. 64 f. Trabalho de conclusão de curso (licenciatura - Pedagogia) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências de Rio Claro, 2010. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/118365. Acesso em: 25 mai. 2022 BRANDÃO, R. Os estágios do luto, conheça as 5 fases e como superá-las. In: Os estágios do luto, conheça as 5 fases e como superá-las. Brasil: Zenklub, 2021. Disponível em: https://zenklub.com.br/blog/saude-bem-estar/fases-de-luto/. Acesso em: 25 mai. 2022. Costa, J., & Lima, R. (2005). Luto da equipe: revelações dos profissionais de enfermagem sobre o cuidado à criança/adolescente no processo de morte e morrer. Revista Latino- Americana de Enfermagem, 13(2), 151-157. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-11692005000200004. Acesso em: 25 mai. 2022. FLACH, K. et al . O luto antecipatório na unidade de terapia intensiva pediátrica: relato de experiência. Rev. SBPH, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 83-100, jun. 2012 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516- 08582012000100006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 25 mai. 2022. Fonseca, P. Luto Antecipatório: as experiências pessoais, familiares e sociais diante de uma morte anunciada. São Paulo: Polo Books. 2012. 29

Anais KITO, A. 1 Litro de Lágrimas: Diário da Aya. Tradução: Karen Hayashida. São Paulo: NewPOP, 2013. KOVÁCS, J. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992. KUBLER-ROSS, E. Sobre a Morte e o Morrer. São Paulo: Martins Fontes, 2008. PINHEIRO, H. Efeito da facilitação neuromuscular proprioceptiva no equilíbrio de indivíduo com degeneração espinocerebelar recessiva. Fisioterapia Brasil, Brasil, v. 13, ed. 2, p. 144- 148, 2012. DOI https://doi.org/10.33233/fb.v13i2.528. Disponível em: https://portalatlanticaeditora.com.br/index.php/fisioterapiabrasil/article/view/528. Acesso em: 25 mai. 2022. Rando, A. Loss and anticipatory grief. Massachusetts: Lexigton Books. 1986. RIBEIRO, Lohana. Filosofia de vida que prega a relação harmoniosa entre o homem e a natureza. In: XINTOÍSMO. Brasil: Educa mais Brasil, 2018. Disponível em: https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/religiao/xintoismo. Acesso em: 25 maio 2022. Silva, O., & Nardi, E. Luto pela morte de um filho: utilização de um protocolo de terapia cognitivo-comportamental. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 2010. 113-116. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-81082010000300008. Acesso: 25 mai. 2022. 30

O FLÂNEUR, O MITO E O OUTRO MUNDO POSSÍVEL, EM DESEJO DE KIANDA, DE PEPETELA Adriano Guedes CARNEIRO (UFF)1 RESUMO Esta comunicação tem como objetivo analisar O desejo de kianda (1996), do escritor angolano Pepetela, sob a perspectiva de que o mesmo discute a construção do mito como forma de recuperar os rumos da revolução/independência angolana. A kianda é o espírito das águas da mitologia kaluanda e que habita a antiga Lagoa, e hoje Largo do Kinaxixi, bem na região central de Luanda. De Lagoa, passou a Largo e cortaram a mafumeira, a sua árvore sagrada. No romance, observamos esta força intemporal buscando recuperar seu território, como força da natureza em face da cultura humana. Kianda precisa colocar abaixo os prédios para recuperar seu lugar. As disputas políticas e a retomada da guerra civil, entre o MPLA – Movimento pela Libertação de Angola e a UNITA – União Nacional pela Independência Total de Angola – não importam, perante a força do espírito ancestral de kianda. A personagem Carminda incorpora a transformação política do MPLA que, de movimento socialista passou em 1992 para a defesa da economia de mercado, após o naufrágio da União Soviética. E seu marido, João Evangelista é uma espécie de flanêur tecnológico que, mesmo no auge da sua observação, não consegue perceber o que está acontecendo à sua volta. Aguarda, como todos, calmamente a queda inevitável de seu prédio, como metáfora do fim do mundo em que todos aguardam pacientemente nas suas rotinas, enquanto o mundo é destruído. Para tanto se 1Doutorando em Literatura Comparada e bolsista CAPES. Desenvolve a pesquisa com o título provisório de: “Pepetela e o passado sobrevivente. E se o flanêur pudesse ser um cágado?” E-mail: [email protected] 31

Anais utiliza do pensamento de Aby Warburg, Walter Benjamin, George Didi-Huberman, Maria Thereza Abelha Alves, entre outros. Palavras-chave: kianda; flanêur; sobrevivência; resistência; passado colonial. ABSTRACT This communication aims to analyze The desire of kianda (1996), by the angolan writer Pepetela, from the perspective that he discusses the construction of the myth as a way of recovering the paths of the Angolan revolution/independence. Kianda is the spirit of the waters of Kaluanda mythology and who inhabits the ancient Lagoa, and today Largo do Kinaxixi, right in the central region of Luanda. From Lagoa, he passed to Largo and they cut down the mafumeira, his sacred tree. In the novel, we observe this timeless force seeking to recover its territory, as a force of nature in the face of human culture. Kianda needs to tear down the buildings to regain her place. Political disputes and the resumption of civil war between the MPLA – Movement for the Liberation of Angola and UNITA – National Union for the Total Independence of Angola – do not matter, given the strength of the ancestral spirit of kianda. The character Carminda embodies the political transformation of the MPLA, which changed from a socialist movement in 1992 to the defense of the market economy, after the sinking of the Soviet Union. And her husband, Joao Evangelista, is a kind of technological flaneur who, even at the height of his observation, cannot perceive what is happening around him. He calmly awaits, like everyone else, the inevitable collapse of his building, as a metaphor for the end of the world in which everyone waits patiently in their routines, while the world is destroyed. For that, it uses the thought of Aby Warburg, Walter Benjamin, George Didi-Huberman, Maria Thereza Abelha Alves, among others. KEYWORDS: kianda; flanêur; surviving; resistence; colonial past. Primeiro eu quero agradecer aos organizadores do Iº Colóquio Internacional de Teoria e Crítica Literária e do Iº Colóquio Nacional de Literatura, Memória e Subjetividades: Deslocamentos e Identidades e também aos organizadores deste Simpósio nº 1 sobre “História e Literatura Africana em Língua Portuguesa Oficial”, através da Profª Drª Vanessa Neves Riambau Pinheiro (UFPB) e a Profª Drª Waleska Rodrigues de Matos Oliveira Martins (UFRB) por terem aceito o resumo desta comunicação. Agradeço também à monitora Olivânia Rocha e aos colegas com quem tenho a oportunidade de dividir esse espaço. O objetivo desta comunicação é analisar o romance O desejo de kianda (1996), do escritor angolano Pepetela, sob a perspectiva de que este livro discute a construção do mito como forma de recuperar os rumos da revolução/independência angolana, principalmente a abertura de mercado de 1992 e o fim do socialismo. Pepetela é o grande nome da literatura angolana, forjado na luta pela independência e na formação do novo país africano. É um contador de estórias, uma espécie de griot moderno, na acepção mais elevada que este termo possa receber, pois foram eles – os griots 32

Anais -, nas sociedades bantu, na maioria ágrafas, “os responsáveis por registrar e recontar, quando necessário, informações valiosas e historicamente relevantes com precisão” (FOURSHEY et al, 2019, p. 79). Entre uma gama de atividades e competências dentro do grupo comunal, eles ofereciam coesão, senso de pertencimento e explicação sobre as questões fundamentais que os envolviam, mantendo vivas as chamas da tradição. Tal como, guardadas as devidas proporções, faz Pepetela em sua escrita, que tem o compromisso permanente com o processo de construção de Angola. Perambulando entre o factum e o fictum, o vencedor do Prêmio Camões de 1997 é o autor de uma obra vasta e diversificada. Alguns dos seus principais textos versam sobre acontecimentos relevantes para a história angolana, inspirados em fatos e eventos que o próprio escritor testemunhou, ou poderia ter testemunhado, como por exemplo, em Mayombe (1979), onde guerrilheiros, na região de Cabinda, debatem as dificuldades da luta e do futuro país a ser construído, ou em Geração da utopia, em que também se discute o processo de independência, mas cobrindo um tempo histórico maior (1961-1992), desde a CEI – Casa dos Estudantes do Império até o desencantamento com os rumos da libertação nacional2. Nestes livros, suas memórias pessoais transformam-se em ficção, pois eles acompanham o trajeto de vida de Pepetela. O escritor foi para Lisboa com o fim de estudar Letras, mas abandonou o curso e ingressou no MPLA – Movimento Popular para Libertação de Angola; graduou-se em Sociologia, na Argélia e participou da guerra de independência. Após o 11 de novembro de 1975, fez parte do governo até 1982, tendo sido vice-ministro da Educação3, por sete anos. Passou, então, a lecionar na Universidade Agostinho Neto e dedicou-se à carreira literária. Foi presidente e um dos fundadores da União dos Escritores 2 Geração da utopia centraliza seu enredo em um grupo de angolanos que se conhecem em Lisboa, em razão, principalmente, da Casa de Estudantes do Império. Esta que de fato teve um papel muito importante no processo de construção da independência de Angola. Essa “geração da utopia”, da qual Pepetela também fará parte, é aquela que tomará parte ativa na luta pela libertação, mas também é aquela que se desencantará com os rumos da independência e a impossibilidade de realização dos ideais utópicos. Interessante é o significado do termo “utopia”, oriundo do livro de Thomas Morus, A utopia, como algo que está sempre à frente; algo que buscamos. Se o alcançarmos, deixa de ser utopia e só é utopia porque nunca o alcançamos e está sempre à nossa frente. 3 De 1976 até 1982. 33

Anais Angolanos. E em 2002 recebeu o Prêmio Nacional de Cultura e Artes, pelo conjunto da obra, em Angola4. Em O desejo de kianda, não há a definição do que é a kianda. Sabemos que ela é o espírito das águas da mitologia kaluanda e que habita a antiga Lagoa, e hoje Largo do Kinaxixi, bem na região central de Luanda. De Lagoa, passou a Largo e, do momento em que ocorre a narrativa, faz trinta anos atrás, por volta de 1966, cortaram a mafumeira, a sua árvore sagrada. No livro no máximo são dadas algumas pistas e até uma conceituação negativa, quando está presente a forte crítica à colonização, porque kianda não é uma sereia: – Pode ser Kianda a cantar, Kianda se manifesta de muitas maneiras – disse ele para Cassandra. – Umas vezes são fitas de cores por cima das águas, pode ser um bando de patos a voar de maneira especial, um assobio de vento, porque não um cântico? – Tenho visto uns desenhos de Kianda. Metade mulher, metade peixe. – Não – disse mais velho Kalumbo com súbita irritação. – Isso é coisa dos brancos, a sereia deles. Kianda não é metade mulher metade peixe, nunca ninguém lhe viu assim. Os colonos nos tiraram a alma, alterando tudo, até a nossa maneira de pensar Kianda. O resultado está aí nesse País virado de pernas para o ar5 (PEPETELA, 1995, p. 57). Foi a colonização que destruiu o país. Ela retirou a alma da nação, alterou tudo e virou o país de pernas para o ar. Aliás, usando outro elemento da cultura bantu: o cágado. Se ele está de pernas para o ar é que o mundo saiu da sua ordem, virou de pernas para o ar. Maria Thereza Abelha Alves, em “O desejo de kianda: crônica e fabulação”, chama a atenção para o fato de que somente a criança, Cassandra, e o mais velho, Kalumbo6, dão-se 4 Recentemente, em 24/11/2020, em sessão da Academia Angolana de Letras, quando Pepetela foi o moderador para a realização de uma conferência, ministrada por Filipe Zau, reitor da Universidade Independente de Angola, sobre a adoção das línguas africanas no ensino em Angola, o currículo do autor de Mayombe foi apresentado pelo sociólogo Paulo de Carvalho. E, de todos os prêmios recebidos pelo autor, foram citados apenas dois: o Camões de 1997 e o Nacional de 2002. Sem dúvidas, os mais importantes. 5 País virado de pernas para o ar pode remeter ao cágado virado de pernas para o ar como símbolo de que a ordem natural da coisa está ferida, conforme A gloriosa família – o tempo dos flamengos. “Subvertia a ordem do mundo, punha o cágado de patas para o ar? Como um cágado de patas para o ar ficou o meu dono, quando o major o chamou, uma semana depois, para lhe comunicar uma decisão que tinha tomado, com a anuência de Hans Molt” (PEPETELA, 1997, p. 172). 6 Ver o texto de Maria Thereza Abelha Alves: “O desejo de kianda: crônica e fabulação”, presente em Portanto...Pepetela (2009), p. 179 e seguintes. 34

Anais conta do que realmente está acontecendo com os prédios que estão caindo, ao longo do livro. Kianda quer retomar a velha Lagoa, onde havia uma mafumeira e que agora é o Largo do Kinaxixi: Ali perto devia ser o sítio onde há trinta e tais anos derrubaram a mafumeira de Kianda, quando construíram a praça. Toda aquela zona fora uma lagoa e havia uma mafumeira7 que foi cortada e chorou sangue pelo cepo durante uma semana. Ouviu a estória um dia, ali mesmo numa esplanada do Kinaxixi, quando se sentou com o maior respeito à mesa onde se encontravam dois escritores, Luandino Vieira e Arnaldo Santos, grandes sabedores das coisas de Luanda8 (PEPETELA, 1995, p. 26). Na sana de recuperar a antiga lagoa que agora é o Largo do Kinaxixi9, Kianda porá abaixo todos os prédios construídos ao redor. As pessoas, os seus móveis e todas as quinquilharias que possuem não desabam, mas flutuam até o chão. Tudo isso acontece, em Luanda, em meio ao ligeiro processo de paz e à retomada, em 1992, da guerra civil, entre o MPLA – Movimento Popular pela Libertação de Angola e a UNITA- União Nacional para a Independência Total de Angola. A Guerra de Independência em Angola que começou em 1961 com a invasão da cadeia de São Paulo por integrantes da UPA – União dos povos de Angola para libertar presos políticos e se estendeu até 1974, quando a Revolução dos Cravos em Portugal fez cessar o conflito armado. Em 11 de novembro de 1975, em Luanda, foi proclamada a Independência por Agostinho Neto, líder do MPLA. O MPLA tinha um matiz socialista e recebia apoio de Moscou e dos países do leste europeu. A independência foi contestada por outros grupos como a UNITA e a FNLA – Frente Nacional para a Libertação de Angola e o país mergulhou em guerra civil até 2002, quando houve assassinato do líder da UNITA, Jonas Savimbi, pondo fim ao conflito. 7 A mafumeira, sumaúma ou samaúma (Ceiba pentandra) é uma planta tropical da ordem malvales e da família malvaceae (antiga bombacaceae). 8 Linda essa passagem em que são convocados os dois escritores angolanos como detentores do conhecimento e guardadores de memória. Fortalece a noção de que os escritores cumprem um papel social como os antigos griots, como guardadores das antigas estórias. 9 Lagoa do Kinaxixi que ainda presenciamos em A gloriosa família – o tempo dos flamengos. 35

Anais No romance, acompanhamos a trajetória das personagens Carmina Cara de Cu, ou simplesmente CCC10 e seu marido João Evangelista. Ela é uma militante e quadro ativo da direção do MPLA que cresceu muito na burocracia interna do partido e nestes tempos de abertura econômica, após um período de pequena depressão pessoal, está se transformando numa grande empresária com o negócio de importações. Após o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, Angola em 1992 resolve deixar de lado a economia socialista e entrar na economia de mercado. Do dia para a noite o MPLA deixa de ser socialista e passa a apoiar o neoliberalismo, sem se apear do poder. Na obra de Pepetela, em muitos sentidos, CCC antecipa outra personagem famosa de Pepetela, o Vladimiro Caposso de Os predadores (2005), já que fará uso de sua posição política para auferir vantagens econômicas e financeiras particulares claras. João Evangelista, ao contrário, é o maior exemplo da passividade. Seu emprego de fachada foi arranjado pela esposa. Passa o dia fazendo a guerra de mentira em jogos de computador. Sua vida é contemplativa. Contempla as ações de Carmina, ainda que por vezes seja instado a manifestar opinião sobre algum assunto. Mas em geral apenas observa. Inclusive observa os prédios a cair11e as pessoas que vão ficando desalojadas: João Evangelista resolveu interromper o jogo e ir deitar uma olhadela na praça, embora o espetáculo já não fosse novo. De facto, era o mesmo de sempre, com as pessoas a procurarem as suas coisas no entulho acabado de se formar. O largo do Kinaxixi estava agora rodeado de escombros, excepto no lado direito de quem desce, onde ficava o mercado (PEPETELA, 1995, p. 54). João Evangelista é uma espécie de flâneur, um observador, um sonhador. Sua índole de flânerie vai ainda mais longe, pois antecipa um novo tipo de flâneur – o indivíduo que passará horas ao computador, no celular (telemóvel) em redes sociais, por exemplo, acompanhando a vida alheia, contemplando as fotos, as mensagens, os memes e outras coisas presentes no ambiente virtual. Poderíamos dizer que é o flâneur tecnológico. Walter Benjamin, em Passagens, sugere a comparação entre a rapidez da modernidade, da multidão, com a vagarosidade, a lentidão e a solidão necessárias ao flâneur. 10 Pepetela brinca com um certo gosto por siglas com o uso de CCC. 11 Será que os prédios caem como metáfora da abertura democrática, como desabitação e fim do sonho da revolução angolana? 36

Anais Tanto que o pensador berlinense aponta a linha de produção, auge do capitalismo industrial, reivindicada pelo taylorismo (Criado pelo engenheiro norte-americano – e muito estudado ainda em Administração de Empresas – Frederick Taylor, o chamado taylorismo é o sistema em que se procura obter o máximo de produção gastando o mínimo tempo e esforço. Está normalmente associado ao fordismo, relativo a John Ford, o criador da marca de automóveis. Representa o auge do capitalismo industrial que transformará o operário – retirando-lhe ainda mais sua humanidade – em uma máquina, como tão bem retratado no filme “Tempos modernos” (1936) de Charles Chaplin) como a grande inimiga da flânerie. Para Benjamin o flâneur desafia as vertentes do capitalismo, entre elas a pulsão pelo consumismo, pela aquisição de bens, traduzida na ideia de que o tempo deve ser dotado de utilidade e portante estimado em capital, como produção, como que a dizer: “Produza, produza, produza!” grita o capataz olhando para o seu relógio12, enquanto o proletário labuta até o próximo sinal da fábrica. Pois “time is money” diz o jargão atualíssimo. O flâneur, por lado diametralmente oposto, na inutilidade da sua observação13, da sua atividade contemplativa permanente, desafia a modernidade. Imóvel na sua condição queloniana, não liga ao tempo, permanece apenas apreciando, olhando, assistindo, sem produzir necessariamente utilidade (pelo menos segundo a ótica capitalista). Ainda que o flâneur sinta-se atraído pelas luzes das galerias, das vitrinas, das passagens. Em O desejo de kianda, Pepetela parece também nos dizer que existem forças maiores do que a da conjuntura política, da organização social, por exemplo. São forças ancestrais, muito antigas e que não devem ser desafiadas. São forças anteriores ao homem. É a desmistificação do mito, dando-lhe uma localização histórica. A kianda é a representação de uma Angola anterior à colonização. Pepetela também nos diz que não será somente o elemento português que definirá os angolanos como angolanos, mas que seriam angolanos com ou sem a chegada portuguesa (ou qualquer outro nome). Os portugueses são apenas mais um elemento e não o fundamental. Pepetela manifesta assim uma tentativa de ruptura, 12 A concepção de controlar o tempo como ideia de poder aparece XV, das Teses sobre o conceito de história (1940) de Walter Benjamin: “Ainda na Revolução de Julho ocorreu um incidente em que essa consciência se fez valer. Chegando o anoitecer do primeiro dia de luta, ocorreu que em vários pontos de Paris, ao mesmo tempo e sem prévio acerto, dispararam-se tiros contra os relógios das torres” (BENJAMIN, 2016, p. 250). 13 Evidentemente, sob a ótica capitalista, toda a observação e agir do flâneur é inútil, pois não produz mercadoria, não produz riqueza. É tempo perdido. 37

Anais e de independência cultural, em face a uma cultura, digamos, lusófona. Ou, pelo menos, procura se posicionar neste espaço lusófono em uma posição de menor submissão. Os países colonizados do sul estão eternamente condenados a reproduzirem para o mundo a sua condição subalterna ad infinitum? É possível ainda pensar junto com George Didi-Huberman e Aby Warburg na ideia de Nachleben que, embora construída num contexto histórico preciso: o do Renascimento do quatrocento europeu. No entanto, associando-a à ideia de sobrevivência podemos analogicamente aplicar à ideia de kianda, como sendo uma ideia que sobreviveu ao colonialismo português. Diz Didi-Huberman: Hoje tornamos a nos debruçar sobre essa ideia porque ela nos parece trazer uma lição teórica apropriada para “refundar”, por assim dizer, alguns grandes pressupostos de nosso saber sobre as imagens em geral. (…) O valor geral da Nachleben resulta de uma leitura e, portanto, de uma interpretação de Warburg: recruta apenas a responsabilidade de nossa própria construção (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 59). Aby Warburg desenvolveu a ideia da Nachleben, através do Atlas de Mnemosyne, em que, tomando por base a arte pictórica, os afrescos e pinturas renascentistas, e nas obras de autoria de Botticelli, Ghirlandaio e Francesco del Cossa e também nas de autoria de Poliziano e Pico della Mirandolla14. Nesse Atlas há o recolhimento de imagens que sugerem, permitem a conclusão de uma preservação, de uma sobrevivência de imagens de um tempo anterior. Esse tempo é denominado como o tempo antigo e essas imagens sobreviventes são entendidas como fantasmas, como oriundas do tempo dos fantasmas, por Warburg. Será que, a partir da delineação do projeto de Warburg, é possível tecermos um mesmo raciocínio para tentarmos explicar a sobrevivência de elementos da cultura angolana, pois ainda que não estejamos trabalhando com algum tipo de arte pictórica, a literatura produz imagens em nossa consciência a partir do texto lido, como cenas, objetos, ideias e ainda outras coisas. Podemos imagina que a kianda é uma espécie de nachleben? A destruição empreendida pela kianda no Largo do Kinaxixi parece nos alertar para dois outros motivos: a necessidade de consertar os erros, pois é preciso desfazer para 14 Botticelli, Ghirlandaio e Francesco del Cossa foram pintores. Ao passo que Poliziano e Picco della Mirandola foram respectivamente draumaturgo e filósofo renascentistas. Referimos esses autores como aqueles que tiveram textos ou obras publicadas por Warburg durante a sua vida. 38

Anais refazer, para consertar todos os problemas e a outra questão é: por que as personagens continuam com suas vidas normalmente enquanto o seu mundo em redor está sendo destruído? Preocupação ambiental do autor, já que em nossa vida real também parecemos assistir impávidos à destruição do nosso mundo? REFERÊNCIAS: ALVES, Maria Thereza Abelha. “O desejo de kianda: crônica e fabulação”. In CHAVES, Rita. MACEDO, Tânia. Portanto…Pepetela. São Paulo, Ateliê Editorial, 2009. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução por Sérgio Paulo Rouanet. Revisão técnica por Márcio Seligmann-Silva. Obras Escolhidas. Volume I. 8ª edição. 3ª reimpressão. São Paulo, Editora Brasiliense, 2016. BENJAMIN, Walter. Passagens. Organização por Willi Bolle. Tradução por Irene Baron, Cleonice Paes Barreto Mourão e Patrícia de Freitas Camargo. 1ª reimpressão. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2019. DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente. História da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução por Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto Editora, 2013. FOURSHEY, Catherine C. GONZALES, Rhonda M. SAIDI, Christine. África Bantu: de 3500 a.C. até o presente. Tradução por Beatriz Silveira Castro Filgueiras. Petrópolis: Editora Vozes, 2019. PEPETELA. Geração da utopia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992. __________. O desejo de kianda. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1996. __________. Predadores. Rio de Janeiro, Língua Geral, 2007. WARBURG, Aby. A presença do antigo: escritos inéditos. Volume 1. Tradução por Cássio Fernandes. 39

LITERATURAS AFRICANAS PÓS-COLONIAIS: TENSÕES ENTRE AS VISÕES DE MUNDO DO COLONIZADOR E DO COLONIZADO NAS ESTÉTICAS DE LUANDINO VIEIRA, GERMANO ALMEIDA E MIA COUTO Samira Pinto ALMEIDA (IFRO)1 RESUMO A palavra “pós-colonial”, pensada em seu sentido mais imediato, pode dar a falsa impressão que o conceito dela decorrente trata de uma tendência crítica nascida em um período marcado pelo fim do colonialismo e que instaura uma nova ordem. Entretanto, conforme Susana Pimenta e Orquídea Ribeiro (2010), a pós-colonialidade não surge necessariamente com a independência política das nações africanas, tampouco se manifesta da mesma forma nos diferentes países desse continente. Uma vez que não existe um único modelo de sujeito e de discurso pós-colonial, é preciso considerar as especificidades (geográficas, históricas, culturais, econômicas e sociais) a partir das quais os enunciadores se apoiam para proferir discursos de afirmação identitária. Tais especificidades, gestadas nas tensões próprias a cada 1 Doutora em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela UFMG. E-mail: [email protected] 40

Anais comunidade, podem ser observadas como pano de fundo das distintas realidades ficcionais construídas por Luandino Vieira, Germano Almeida e Mia Couto. Posto isso, o presente trabalho tem por objetivo refletir sobre narrativas (“A fronteira de asfalto”, “O dragão do Atlântico” e “A viagem da cozinheira lagrimosa”) escritas pelos autores citados, considerando a diferença na representação das figuras do colonizador e do colonizado. Rompendo com os estereótipos criados e reproduzidos sobre a África pelos europeus, as obras selecionadas para objeto de estudo revelam o desejo de livrar as culturas e as identidades africanas das imagens, discursos e interpretações colonialistas por meio da construção de um olhar crítico sobre a realidade local que denuncia as mazelas produzida pela longa dominação do branco colonizador. Palavras-chave: Luandino Vieira, Germano Almeida, Mia Couto, Literaturas Africanas em Língua Portuguesa, Literaturas Pós-Coloniais. ABSTRACT The word “post-colonial”, thought in its most immediate sense, can give the false impression that the resulting concept deals with a critical tendency born in a period marked by the end of colonialism and that establishes a new order. However, according to Susana Pimenta and Orquídea Ribeiro (2010), post-coloniality does not necessarily arise with the political independence of African nations, nor does it manifest itself in the same way in the different countries of that continent. Since there is no single model of post-colonial subject and discourse, it is necessary to consider the specificities (geographic, historical, cultural, economic and social) from which enunciators rely to convey discourses of identity affirmation. Such specificities, gestated in the specific tensions specific of each community, can be observed as a background to the different fictional realities constructed by Luandino Vieira, Germano Almeida and Mia Couto. Having said that, the present work aims to reflect on narratives (‘A fronteira de asfalto’, ‘O dragão do Atlântico’ and ‘A viagem da cozinheira lagrimosa’) written by the aforementioned authors, considering the difference in the representation of the colonizer and of the colonized. Breaking with the stereotypes created and reproduced about Africa by Europeans, the works selected as object-matter of this study reveal the desire to free African cultures and identities of colonialist images, discourses and interpretations through the construction of a critical look at the local reality which denounces the ills produced by the longstanding domination of the white colonizer. KEYWORDS: Luandino Vieira, Germano Almeida, Mia Couto, African Literatures in Portuguese Language, Post-Colonial Literatures. A palavra “pós-colonial”, pensada em seu sentido mais imediato, pode dar a falsa impressão que o conceito dela decorrente trata de uma tendência crítica nascida em um período marcado pelo fim do colonialismo e que instaura uma nova ordem. Entretanto, como bem observam Susana Pimenta e Orquídea Ribeiro (2013), a pós-colonialidade não surge necessariamente com a independência política das nações africanas, tampouco se manifesta da mesma forma nos diferentes países desse continente. Os efeitos do colonialismo, diga-se de passagem, estão presentes ainda nos dias de hoje, posto que os antigos colonizadores 41

Anais apenas mudaram as táticas e as formas de dominação: saímos (nós, países da periferia do capitalismo) de uma estrutura de controle da metrópole em relação à colônia para, posteriormente, sermos atingidos por uma relação de tutela e intervenção dos países de 1º mundo sobre os de 3º mundo e chegamos, atualmente, na política de dependência do sul- global perante o norte-global. Por isso, a possível ideia de ruptura com os processos colonizadores possibilitada pela junção linguística “pós-colonial” não se sustenta. O termo “pós” deve ser compreendido, portanto, no sentido de tentativa de ultrapassar, por meio da desmontagem dos discursos do colonizador, as epistemologias universalizantes de origem europeia que resultaram em imagens negativas do continente africano, desconstrução que visa recuperar a história e as identidades das culturas africanas silenciadas, mistificadas e inferiorizadas pelo colonialismo. Para se contrapor ao colonialismo, por sua vez, é necessário reconhecer a brutalidade desse sistema que, juntamente com o capitalismo e o imperialismo, sustentou o projeto da modernidade e viabilizou a ordem econômica atual engendrada pelo racismo, pela subjugação dos sujeitos não-brancos. O conceito de pós-colonial está intimamente relacionado aos movimentos de resistência pela independência ocorridos em África nas décadas de 1950, 1960 e 1970 e pode ser compreendido, segundo Luciana Ballestrin (2017), em três grandes fases. A primeira delas, o pós-colonialismo anticolonial, englobaria a produção dispersa do Pan-Africanismo e de intelectuais militantes ligados ao marxismo revolucionário, a exemplo de Amílcar Cabral, Aimé Césaire e Frantz Fanon. A segunda fase, denominada pós-colonialismo canônico, seria marcada pelo estudo de Edward Said que deu origem à obra “Orientalismo”. Tal tendência - que dialoga com os estudos pós-estruturalistas, com o desconstrutivismo, com a teoria crítica e com os estudos literários - investiga os efeitos da colonialidade, tendo por foco a desconstrução do olhar da Europa sobre a África. Entre os seus principais representantes, além de Said, estão Stuart Hall, Homi Bhabha e Gayatri Spivack. Por fim, a terceira fase consistiria na perspectiva decolonial, na qual se observa a radicalização da crítica à modernidade com o retorno à práxis revolucionária, sobretudo, por meio da relação estabelecida entre o grupo de estudos subalternos (desenvolvido ao longo da década de 1970 no sul asiático) e grupos latino-americanos reunidos em torno da temática “Modernidade/Colonialidade”. Diante desse breve quadro histórico é possível perceber que não existe um único modelo de sujeito e de discurso pós-colonial (PIMENTA; RIBEIRO, 2013). E isso implica dizer 42

Anais que é preciso considerar as especificidades (geográficas, históricas, culturais, econômicas e sociais) a partir das quais os enunciadores se apoiam para proferir discursos de afirmação identitária. A validade dessa premissa pode ser verificada quando analisamos, de forma comparada, as estéticas de Luandino Vieira, Germano Almeida e Mia Couto. A maior parte da produção de Luandino Vieira foi gestada antes da independência de Angola em relação à metrópole portuguesa (1975), por isso, a literatura do autor já trazia em seu âmago a força da resistência ao colonialismo. Além disso, o escritor atuou de forma ativa nos movimentos de libertação do país, pagando com a própria liberdade pelo seu engajamento político – ao todo, Luandino permaneceu preso por onze anos acusado de associar-se ao MPLA. Esse aspecto combativo pode ser verificado no conto “A fronteira de asfalto”, publicado na obra A cidade e a infância (2007), no qual o escritor aborda de forma crítica a segregação entre negros e brancos, refletida inclusive no espaço da cidade. Na narrativa em questão, Ricardo, um menino negro, e Marina, uma menina branca, começam a ter problemas para manter uma relação de amizade iniciada na infância. A família da jovem (e a sociedade como um todo, encarnada pela instituição escolar citada rapidamente no conto) não vê com bons olhos a presença de Ricardo no mesmo local e se inserindo (ainda que de forma periférica) no círculo social destinado ao colonizador. Convém acentuar que a narrativa deixa evidente tal separação na materialidade do espaço: Marina vive em uma casa confortável cercada por ruas asfaltadas, enquanto Ricardo habita uma pequena taipa rodeada por estradas de terra. É possível transitar pelos diferentes lugares (por isso, o autor fala em fronteira e não em barreira), mas não há mobilidade sem riscos. De fato, o desfecho do conto enfatiza a tensão vivida constantemente pelo colonizado, bem como a impossibilidade de sua integração em uma sociedade estruturada em torno do privilégio branco e da exclusão do elemento negro: Ricardo morre ao bater com a cabeça no meio fio na tentativa de fugir da repressão policial. O clima de tensão e de marginalização da população negra presente no conto de Vieira diz muito sobre a forma violenta como se deu o processo de independência em Angola. O país conseguiu a sonhada autonomia a duras penas, inicialmente pela organização da luta armada, depois pelas mãos do MPLA, movimento que se firmou como força política no país entre 1965 e 1970. Não bastasse todas as dificuldades inerentes à guerra contra o julgo colonizador, os movimentos pró-independência apresentavam-se fraturados pelos desacordos ideológicos: o MPLA (o maior deles) era marxista-leninista; o FNLA era anticomunista; e a UNITA estabeleceu laços de colaboração com a África do Sul, onde 43

Anais vigorava o apartheid. Conforme Zoraide Silva (2016, p. 173-174), houve inclusive momentos em que a elite branca local se organizou com o objetivo de implantar no país uma “solução ‘à rodesiana’”, que nada mais era que uma cópia do regime segregacionista instaurado na Rodésia do Sul. De acordo com a pesquisadora, vencer o colonizador em um momento marcado pela divisão do mundo não foi suficiente: “a guerra civil sobreviveu à própria Guerra Fria. Seus desdobramentos, infelizmente, continuam a afetar a Angola dos dias de hoje” (SILVA, 2016, p. 179). Germano Almeida, por sua vez, parece abordar a tensão entre colonizador e colonizado, buscando reforçar certa necessidade de defesa da identidade nacional caboverdiana. A crônica “O dragão do Atlântico”, publicada em Estórias Contadas (1998), é um exemplo dessa postura, uma vez que o texto ironiza uma suposta tentativa de aculturação por uma nova nação, a chinesa, em um momento em que Cabo Verde, independente, buscava se inserir dentro da nova ordem mundial. Em determinado trecho, lemos: ...as nossas casas foram sobressaltadas por uma rouca e sedutora voz que diretamente dos estúdios da Rádio Nacional nos comunicava a ruidosa novidade de que o nosso pacato arquipélago estava em breve destinado a ser o “Hong Kong de África”. Assim surpreendidos por tão afrontosa ameaça, a nossa imaginação entrou em imediato pânico coletivo. Por que Hong Kong se já somos Cabo Verde? perguntávamos. (ALMEIDA, 1998, p. 28) Na citação fica evidente a certeza de uma identidade nacional com contornos bem estabelecidos. É importante assinalar que Cabo Verde, diferentemente de outras nações africanas marcadas por disputas internas entre grupos étnicos, não teve grandes dificuldades em alcançar certa coesão identitária no pós-independência, uma vez que a mestiçagem entre brancos e negros ocorreu em larga escala durante a colonização e viabilizou a ascensão social da população mestiça (MARTINS, 2009, p. 47). Diante de um passado recente regido pelo colonizador europeu, o narrador da crônica se recusa a aceitar a possibilidade de uma nova tentativa de dominação nos planos econômico, político e cultural. Rejeitando a figura do dragão chinês, o cronista apresenta a tartaruga como símbolo da cabo-verdianidade: ...nenhum outro animal é melhor para nos caracterizar do que a tartaruga. [...] carrega com ela não apenas a paciência dos séculos como a sua própria esperança. [...] Com esforço e trabalho pode ser que cheguemos a uma identificação tão completa e perfeita que quando se encontrar escrito 44

Anais “deixemos viver as tartarugas” se comece a ler “deixemos viver os cabo- verdianos”. (ALMEIDA, 1998, p. 30) A comparação, um tanto irônica, entre o povo de Cabo Verde e a tartaruga é de uma preciosidade literária irretocável. O animal, típico da região, já foi parte da alimentação local, aspecto que incorporaria o nativismo, a peculiaridade espacial, à identidade nacional. Além disso, a imagem de longevidade e de esperança da tartaruga, construída no texto, consegue representar a perseverança da luta pela independência, ao mesmo tempo em que critica a lentidão desse processo. Vale lembrar que Cabo Verde não alcançou sua autonomia por meio da luta armada, mas com base na negociação diplomática com o governo português – pacifismo que casa muito bem com a figura da tartaruga. Assim sendo, a ficcionalização do slogan estatal “deixemos viver os cabo-verdianos” é significativo diante dos fatos históricos, pois ao invés de propor uma atitude reativa e violenta de autoafirmação, busca antes a compreensão alheia (do colonizador) por meio de um pedido, uma súplica. Em Mia Couto, quando se trata de delinear a identidade nacional moçambicana, há momentos em que se percebe certa tentativa de conciliação entre o colonizador e o colonizado, mas sem o apagamento das violências perpetradas pelo branco europeu. É o que acontece no texto “A viagem da cozinheira lagrimosa”, presente em Contos do nascer da terra (2014). Os dois protagonistas da narrativa são sujeitos incompletos. De um lado, temos o sargento colonial Antunes Correia e Correia que perdeu parte do corpo ao pisar em uma mina terrestre; de outro, a cozinheira Felizminha, empregada do sargento, que se queixa de não ser “alguém”, vendo-se, portanto, como inferior, em falta. Apesar de se sentir insignificante, Felizminha possui um grande dote: seu tempero inconfundível, obtido por meio de suas lágrimas derramadas propositalmente nas panelas para dar um delicado sabor aos pratos. Assim, como sugere o próprio nome da personagem, a felicidade do patrão é ter para si uma serviçal capaz de alimentá-lo com a melhor comida, produzida graças às tristezas de outros tempos vividos por essa mulher negra. Não obstante as diferenças raciais, sociais e econômicas, a relação das personagens é afetuosa. Felizminha cuidou do sargento, com todo o desvelo, quando este sofreu o acidente que o mutilou; Antunes, por sua vez, se mostra preocupado com a condição da cozinheira. Não é preciso outros ingredientes para que essas duas metades de gente se tornem um só ser, um casal. Em certo momento, a empregada oferece a solução para a solidão do patrão, a saber: arranjar uma mulher para dar sentido à vida. E ele, embora afirmasse que não se dava 45

Anais bem com as pretas, descobre-se apaixonado pela gorda cozinheira proveniente do litoral, onde a maresia faz farfalhar as folhas dos coqueirais. Na sequência dos acontecimentos, Antunes convida Felizminha para viajar, sem avisar-lhe o destino. A empregada aceita, ainda que temorosa da ideia de habitar uma terra de branco. O desfecho do conto é de uma beleza tão singela quanto o tempero atribuído à personagem: Saíram de casa e Felizminha cabisbaixou-se ante o olhar da vizinhança. Então o sargento, perante o olhar público, deu-lhe a mão. Nem se entrecabiam bem de tão gordinhas, os dedos escondendo-se como sapinhos envergonhados. _Vamos – disse ele. Ela olhou os céus, receosa por, daí a um pouco, subir em avião celestial, atravessar mundos e oceanos. Entrou na velha carrinha, mas para o seu espanto Correia não tomou a direção do aeroporto. Seguiu por vielas, curvas e areias. Depois, parou num beco e perguntou: Para que lado fica essa terra dos coqueiros? (COUTO, 2014, p. 22) No conto, não é o negro que precisa se encaixar na realidade e nos modelos do branco europeu, mas este que busca fazer do território africano o seu lar, adaptando-se, em prol do coletivo. Juntos os dois encenam a metáfora do povo moçambicano. Na literatura de Couto, toda ela produzida no pós-colonialismo, há a defesa de um pensamento mestiço (PIMENTA; RIBEIRO, 2010). Portanto, a refundação de Moçambique, enquanto nação independente, não implica no retorno mítico a uma África primitiva destituída do elemento branco e sem o conflito identitário. Não por acaso esse modo de estruturação da sociedade aparece na ficção do escritor. Segundo Marçal Paredes (2014), a instauração de um partido único (a Frelimo) no período da primeira república foi decisiva para a construção de uma identidade nacional menos fragmentada, haja vista a diversidade de comunidades tribais existentes em Moçambique. Devido aos conflitos étnico-raciais, a identidade moçambicana não se apoiou em um retorno às origens, às identidades tribais, mas numa recusa tanto destas últimas, quanto do legado do colonizador. Nesse sentido, restava apenas olhar para o futuro e tentar traçar uma identidade nova, focalizando o vir a ser do país (PAREDES, 2014, p. 146). No conto de Mia Couto, a viagem de núpcias empreendida pelo sargento e pela cozinheira condiz com essa tentativa de unificar as classes e construir um novo espaço social. Por muito tempo, a historiografia da África foi pensada por um prisma europeizante, de base iluminista, que condenou os países desse continente a uma história periférica, um apêndice, em relação àquela maior, tida por universal. Nesse contexto, os valores do velho mundo europeu (tais como a hierarquização social em classes e o uso da escrita para 46


Like this book? You can publish your book online for free in a few minutes!
Create your own flipbook