EIXO TEMÁTICO 4 | SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: perfil socioeconômico dos usuários do Centro Pop da região central de São Luís/MA POPULATION IN STREET SITUATION: socioeconomic profile of users of the Pop Center in the central region of São Luís / MA Marcia Fabiane dos Santos Nascimento1 Maria do Socorro Sousa de Araújo2 RESUMO No presente texto, analisamos o fenômeno da população em situação de rua como expressão da questão social, nos marcos das sociedades capitalistas. Enfatizamos que no Brasil, a ausência de dados oficiais sobre esse segmento, configura-se como uma lacuna que inviabiliza a quantificação exata dessas pessoas, o (re)conhecimento das suas demandas e a implementações de políticas públicas efetivas. Apresentamos resultados de uma pesquisa de campo que configura o perfil da população em situação de rua atendida pelo Centro Pop da região Central de São Luís/MA, realizada através de revisão bibliográfica e análise documental. Foram coletados dados da ficha cadastral de 549 usuários, correspondendo a 100% dos atendimentos realizados nos anos 2018 e 2019. Os dados demonstram que essa parcela da população em situação de rua é constituída, majoritariamente por homens, em idade produtiva, aptos para o trabalho, com baixa escolaridade, de raça/etnia negra, heterossexuais, oriundos, em sua maioria, de São Luís. Palavras-chaves: População em situação de rua. Perfil socioeconômico. Centro Pop / São Luís/MA. ABSTRACT In the present text, we analyze the phenomenon of the homeless population as an expression of the social issue, within the framework 1Assistente Social formada pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected] 2 Assistente Social. Doutora e Mestre em Políticas Públicas. Professora lotada no Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), com exercício no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e no Curso de Graduação em Serviço Social/UFMA. E-mail: [email protected] 1855
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI of capitalist societies. We emphasize that in Brazil, the absence of official data on this segment is configured as a gap that prevents the exact quantification of these people, the (re) knowledge of their demands and the implementation of effective public policies. We present results of a field research that configures the profile of the homeless population served by the Pop Center in the Central region of São Luís / MA, carried out through bibliographic review and documentary analysis. Data were collected from the registration form of 549 users, corresponding to 100% of the consultations carried out in the years 2018 and 2019. The data show that this portion of the homeless population is made mainly of men, in working age, able to work, with low education, of black race / ethnicity, heterosexuals, mostly coming from São Luís. Keywords: Homeless population. Socioeconomic profile. Pop Center / São Luís / MA INTRODUÇÃO Expressão da questão social, o fenômeno população em situação de rua é amplo, complexo e antigo. No entanto, é a formação contínua de uma superpopulação relativa nos marcos da produção capitalista que melhor explica a existência de pessoas em situação de rua na contemporaneidade. Assim, ao não ser absorvida pela produção capitalista, essa população é invalidada e subjugada, pessoal e socialmente. No Brasil, um dos maiores desafios para o planejamento e implementação de políticas públicas para a população em situação de rua, é o fato de que o país não conta com dados oficiais atualizados sobre esse segmento populacional desde os anos 2007/2008, período que corresponde à realização da única Pesquisa Nacional até hoje realizada. Pesquisa essa, que em alguns aspectos pode ser, inclusive, questionada, pois, conforme Sousa (2012), a quantidade de indivíduos em situação de rua no país pode ser bem maior do que a divulgada, posto que é difícil quantificar/caracterizar não domiciliados em sua totalidade, por pelo menos duas razões. A primeira é a ausência de endereços fixos, o que faz com que haja deslocamentos constantes, sempre que necessário, por parte dessa população. E a segunda é a existência de uma grande mobilidade socioespacial por parte dessas pessoas, o que acarreta em oscilações na quantidade dessa população a depender da época do ano. Ainda sobre a Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, importa mencionar que ela foi realizada apenas em municípios de grande porte (com mais de 300 mil habitantes) e em capitais; isto é, áreas que mais concentram essa população. 1856
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Assim, de acordo com Sousa (2012), ao considerar somente essas regiões, excluíram-se indivíduos que pernoitam em locais isolados das cidades, assim como pessoas das cidades com menos de 300 mil habitantes. Desta forma, considerar esse “conjunto poderia representar uma diferença significativa nas estatísticas nacionais sobre essa população” (SOUSA, 2012, p. 61). Diante do exposto e mediante a necessidade de informações atuais acerca da população de rua, o Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Ciamp-Rua), solicitou a inclusão dessa população no censo de 2020 ao IBGE. E visando atender à indicação do Ciamp-Rua, o IBGE, realizou um pré-teste no município do Rio de Janeiro, mas, ao final, apontou inúmeras dificuldades para inclusão desse segmento populacional no próximo Censo. (NATALINO, 2016) Diante disso, torna-se fundamental a realização de pesquisas que visem quantificar a população em situação de rua nos municípios das mais diferentes regiões do país, bem como, traçar o perfil socioeconômico desse segmento, visando planejamento adequado e implementação de políticas públicas voltadas a essa população. No presente artigo, apresentamos dados relativos ao perfil socioeconômico da população em situação de rua atendida pelo Centro Pop/Centro em São Luís3. Tais dados integram uma pesquisa mais ampla, que foi realizada com o objetivo geral de analisar a Proteção Social desenvolvida pela Política de Assistência Social a esse segmento populacional, adotando como referência empírica de análise o Centro POP/Centro em São Luís/MA, no que diz respeito à sua configuração, serviços prestados e perfil do público atendido; e, cujos dados originaram uma monografia de conclusão do curso de graduação em Serviço Social na Universidade Federal do Maranhão. No que diz respeito aos procedimentos metodológicos, particularmente, no tocante a identificação do perfil socioeconômico da população em situação de rua, realizamos revisão bibliográfica e análise documental, através da coleta de dados 3 Trata-se de um equipamento público voltado exclusivamente para o atendimento e acompanhamento das pessoas em situação de rua. Previsto no decreto n. 7.053/2009 e na Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro-POP), configura-se em uma unidade de referência da Proteção Social Especial de Média Complexidade, de natureza pública e estatal, no âmbito do Sistema Único de Assistência Social. 1857
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI provenientes das fichas de cadastro geral da população em situação de rua catalogada como usuária do Centro Pop/Centro em São Luís/MA, a partir do seu primeiro acesso na instituição, nos anos de 2017 e 2018. Em São Luís existem dois Centro Pops. Contudo, a definição do Centro Pop do Centro como referência empírica de análise, deu-se em virtude de que essa referida Unidade de Referência é responsável pelo maior número de atendimentos às pessoas em situação de rua em São Luís, principalmente por estar localizado no centro da cidade, onde há maior concentração dessa população. No referido período, foram realizados 549 atendimentos, tendo-se assim essa quantidade de fichas preenchidas pela equipe técnica de nível Superior – Assistentes Sociais e Psicólogos. Assim, realizamos a coleta dos dados de 100% do quantitativo aqui apontado. Convêm destacar duas grandes dificuldades encontradas na realização desse levantamento. A primeira diz respeito à questão da pouca produção bibliográfica e de dados relacionados à população em situação de rua em São Luís, o que demonstra que esse segmento ainda continua invisibilizado no referido município. E a segunda, diz respeito ao fato de que a fichas de cadastro geral, utilizada para obtenção dos dados, consideradas instrumentais primordiais no atendimento à população em situação de rua – usuária do Centro POP/Centro em São Luís/Ma, não haviam sido preenchidas adequadamente pelos profissionais da equipe técnica do Centro Pop Centro, visto que, muitos campos foram desconsiderados, ou sejam, não continham informações, tais como orientação sexual, etnia, local de origem, atividade, entre outros. Esse fato impossibilitou a quantificação exata de muitos desses dados. O presente texto não apresenta todos os dados coletados, em razão dos limites impostos a um artigo dessa natureza. Por essa razão, apresentamos somente informações relativas à faixa etária, nível de escolaridade, sexo, orientação sexual, etnia/raça, local de origem e existência de deficiência física. objetivo deste artigo é apresentar parte dos resultados de uma pesquisa em andamento sobre “Envelhecimento e proteção social da assistência social: análise dos serviços socioassistenciais para as pessoas idosas”. Trata-se, ainda da pesquisa bibliográfica que posteriormente se somará a documental e a de campo. 1858
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 2 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA: perfil socioeconômico dos usuários do Centro Pop – São Luís/MA De início, apontamos a composição dos (as) usuários (as) do Centro Pop Centro por faixa etária, cujo dados revelam que, o maior grupo equivale a 37% da amostra, isto é, 198 usuários possuem entre 31 a 40 anos de idade; 28%, ou seja, 151 pessoas, possuem entre 21 a 30 anos; 25% possuem de 41 a 50 anos, correspondendo a 136 usuários. Os menores quantitativos equivalem a 8%, equivalentes a pessoas com idade entre 51 a 60 anos e 2% (13), constituído por usuários com idades entre 61 a 70 anos. Registramos que 10 das 549 fichas não continham essa informação. No que se refere à faixa etária dos usuários do Centro Pop Centro, percebemos que ela segue a tendência da Pesquisa Nacional (2008), que identificou que a população adulta em situação de rua, encontra-se nas faixas etárias entre 25 e 44 anos, correspondendo a 53%. Se somarmos os maiores percentuais do gráfico 2, 37% (198), 28% (151) e 25% (136) teremos um total de 90% de pessoas em idade apta para o trabalho, num total de 485 usuários, com exceções4. Todavia, a inserção das pessoas em situação de rua no mundo do trabalho torna- se ainda mais difícil em relação aos demais, em razão da ausência de documento de identificação, residência fixa e/ou carta de referência. Situação agravada pela ausência de escolaridade, profissionalização ou especialização, requisitos exigidos pelos mercados urbanos industriais. Sobre isso, Santos (2009 apud HONÓRIO, 2016) observa que é possível que antes mesmo da situação de rua, os vínculos empregatícios estabelecidos no âmbito do trabalho já se encontrem fragilizados, sobretudo por esse segmento pertencer às esferas mais pobres da sociedade, em que é comum a baixa escolaridade e qualificação profissional. Assim, com base em Silva (2009), é possível afirmar que os usuários, em idade produtiva, estão de fato à margem do mundo do trabalho, compondo, assim, a superpopulação/exército industrial de reserva relativa nos marcos da sociedade capitalista. 4 As exceções são pessoas que possuem a idade para o trabalho, mas não têm condições físicas para desenvolver uma atividade laboral. 1859
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Nesse sentido, cabe evidenciar que os dados da pesquisa apontam que 61% (324) dessas pessoas não concluíram o ensino básico; 15% (82) não completaram o ensino médio; e, que 15% (79) concluíram o ensino médio. Com os menores percentuais, tem- se: 6% (30) para pessoas que não foram alfabetizados e 3% (17) incluídos na categoria “outros”, compreendida por Semianalfabeto (1), com Ensino Médio Completo (2), Ensino Superior Completo (5), Ensino Superior Incompleto (8), Ensino Técnico (1). Registramos que das fichas analisadas, 17 não continham essa informação. Dessa forma, depreendemos que grande parte dos usuários é alfabetizada (lê e escreve), todavia, não saiu do nível básico de ensino. Para Escorel (2000) a explicação para isso pode estar na interferência direta do trabalho precoce sobre o processo educacional, sendo o abandono escolar um dos resultados dessa interferência. Espínola (2010), à luz de Brandão (1983), observa que esse fenômeno ocorre, principalmente, com indivíduos de nível socioeconômico mais baixo. Isso porque esses são obrigados a trabalhar para garantir seu sustento ou o sustento da família, não conseguindo conciliar trabalho e estudo, o que leva, na maioria das vezes, ao abandono da escola. Para Hasenbalg e Silva (2003), o tempo de permanência na escola é um elemento significativo no processo de reprodução da desigualdade. Pois, para esses autores, quanto mais anos de estudo acumulados o indivíduo tiver, melhor pode ser sua posição no mercado, ao passo que, quanto mais cedo a escola for abandonada, menores serão as chances daquele na disputa pelas posições e recursos distribuídos pela sociedade. Dessa forma, inferimos que a inserção precoce no mundo do trabalho pode ser uma das causas do abandono da escola por parte dos usuários do Centro Pop Centro, o que ajuda a explicar o baixo nível escolar daqueles, e, consequentemente, sua concentração no mercado informal de trabalho. Escorel (2000) observa, no entanto, que a baixa escolaridade não é importante entre a população em situação de rua, que mesmo em um contexto precário, considera o simples saber ler com facilidade mais que uma qualificação, “o estatuto de um verdadeiro talento” (ESCOREL, 2000, p. 193). Em relação ao percentual de homens e mulheres atendidos pelo Centro Pop Centro, os dados demonstram que o público masculino é equivalente a 85%, constituindo mais da metade do público atendido pela Unidade, ou seja, de 549 1860
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI usuários, 465 são homens, enquanto 15% são do sexo feminino, isto é, tem-se um total de apenas 82 mulheres. Tais dados também seguem a tendência da Pesquisa Nacional, que informa a predominância de 82% do sexo masculino. Para Silva (2009) isso ocorre por pelo menos duas razões. A primeira relaciona a taxa de desemprego estrutural à taxa de desemprego dos homens e a segunda diz respeito a fatores culturais. A respeito dessa primeira razão, a referida autora observa que, a história e cultura brasileira, têm o homem como responsável pelo sustento da casa, definindo-o como chefe de família. Tal fato parece não ter mudado significativamente nos dias atuais, pois, “da mesma forma, aos jovens do sexo masculino, a partir dos 18 anos, é atribuída a tarefa de autossustento” (SILVA, 2009, p. 148), sendo que, o cenário de desemprego impede a concretização dessa tarefa. Assim, pressionadas por essa responsabilidade, essas pessoas adotam diversas estratégias para serem inseridas no mercado de trabalho, não logrando êxito na maioria das vezes. Com isso, “mudam de cidade ou mesmo saem de casa em decorrência das pressões que recebem, diante da impossibilidade de cumprir as tarefas que lhes são atribuídas” (SILVA, 2009, p. 148), o que pode explicar, em alguns casos, a vivência da situação de rua. À respeito da segunda razão, Silva (2009) comenta que às mulheres, por sua vez, destinava-se o âmbito doméstico, privado, no qual tinham o papel de gerar e cuidar da casa e dos filhos, o que acarretou em formas de trabalho desiguais e opressão sexual, por exemplo, reproduzidos também na situação de rua. Para Tiene (2004), esse lugar comum designado socialmente à mulher, parece se repetir de igual modo na rua, que é um espaço público. Essa autora observa que nas ruas, as mulheres reproduzem o machismo, adotam o padrão dos homens nas bebedeiras e uso de drogas. No entanto, em troca da proteção submetem-se sexualmente a esses e sofrem por isso, uma vez que a violência sexual impinge marcas profundas no físico e psicológico dessas mulheres. Diante disso, depreendemos que o papel histórico e cultural designado às mulheres, aliado ao medo da violência sexual, muitas vezes as impede de optar pelas ruas como estratégia de sobrevivência. Em relação à orientação sexual dos usuários do Centro Pop Centro, a pesquisa revelou a seguinte situação: 94% são heterossexuais, o que corresponde a 288 usuários, 1861
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI enquanto 3% são bissexuais (10); mesmo percentual daqueles que se declaram homoafetivos (9). Das 549 fichas analisadas, 242 não tinham essa informação. Desta forma, salientamos que a quantidade de usuários LGBT do Centro Pop Centro pode ser maior5. De acordo com Campos e Moretti-Pires (2018) as fobias de gênero6, guiadas pela heteronormatividade7, são as principais razões de conflitos familiares que precedem a ida de pessoas LGBT para as ruas. Assim, segundo Garcia (2013), não é incomum pessoas serem expulsas ou saírem de casa por apresentarem orientação sexual distinta da heterossexual. Nesse contexto, a comparação entre a população LGBT domiciliada e a não domiciliada permite a constatação de uma dupla rejeição dessa segunda, sobretudo pela situação que vivencia, apesar da violência contra essa minoria ser justificada pelo mesmo discurso (CAMPOS; MORETTI-PIRES, 2018). Campos e Moretti-Pires (2018), nessa linha de considerações, observam ainda que comparadas à população de rua heterossexual, a LGBT é a mais suscetível à violência física e sexual, ao uso de substâncias psicoativas, à discriminação, ao maior número de parceiros sexuais e à realização de atividades sexuais em troca de alimento, droga, abrigo e/ou dinheiro. No que se refere à etnia/raça, a pesquisa revela que 57% (283) dos usuários se identificam como pardos; 25% (124) como negros e 15% (73) como brancos, sendo que apenas 3% (13) se declararam indígenas. Com isso, tem-se um quantitativo substancial de negros (pardos e pretos), que soma um total de 82%. Das 549 fichas analisadas, 56 não tinham essa informação. De igual modo, a Pesquisa Nacional identifica a majoritariedade dos negros na composição da população em situação de rua, com um total de 67% (pardos e pretos). Observando ainda composição populacional do Maranhão, constatamos que 76,2% é 5 A existência dessa grande quantidade de fichas que não dispunham dessa informação, pode indicar uma espécie de resistência de alguns profissionais, responsáveis pelo atendimento e preenchimento da ficha de cadastro geral, em buscar essa informação, o que impede o real quantitativo das pessoas em situação de rua que assim se autoidentificam. Essa realidade pode evidenciar, assim, a discriminação mascarada sofrida por esse segmento durante o atendimento na Unidade. 6 De acordo com Coelho (2017), a fobia de gênero advém do discurso político-religioso da “Ideologia de gênero” que cria obstáculos aos direitos sexuais e reprodutivos das chamadas minorias, constituída tanto por mulheres quanto por pessoas LGBT. 7 Termo utilizado para descrever situações de discriminação/marginalização/perseguição contra orientações sexuais que não a heterossexual. 1862
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI constituída de autodeclarados pretos ou pardos, sendo, portanto, a terceira maior população de negros do Brasil, ficando atrás somente do Pará (76,8%) e da Bahia (76,3%) (SILVA; GOES, 2013). Segundo Nogueira (2017) a raça é uma variável central presente na reprodução das desigualdades sociais, acima de tudo quando se considera o racismo como prática social ideológica ligada aos brancos, que têm seus privilégios mantidos em detrimento da negação de direitos aos negros. Nesse sentido, Madeira e Gomes (2018) sublinham que a população negra do país, desde a escravidão, “tem sido subjugada, violentada e criminalizada [...] para saciar os interesses sociais e econômicos das classes ricas” (p.464). Observam ainda que as relações étnico-raciais foram historicamente silenciadas no Brasil por uma falsa harmonia legitimada pelo processo de miscigenação e da democracia racial. E, a ideia da democracia racial esconde a verdadeira realidade ao afirmar que os negros usufruíram de oportunidades e foram integrados à cultura e comunidade brasileira, o que contribui para a legitimação da estrutura de desigualdade, discriminação e opressões raciais percebidas no cotidiano. Nesse contexto, Diferentemente do que se possa pensar, o Brasil, mesmo caracterizado como país pluriétnico, não conseguiu evitar a permanência de grandes disparidades sociais na renda, em inserção qualificada no mercado de trabalho, educação, expectativa de vida e outros indicadores revelados por agências de reconhecimento, como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), entre outras (ANDREWS 2016 apud MADEIRA; GOMES, 2018). O retrato das desigualdades sociais e raciais brasileiras pode ser acompanhado pelos indicadores educacionais, econômicos, sociais e políticos. No que se refere à educação, por exemplo, o Ipea (2017, p. 02) apresenta, a partir da taxa de analfabetismo, um contraste racial considerável. De acordo com esse instituto, “em 2015, entre as mulheres com quinze anos ou mais de idade brancas, somente 4,9% eram analfabetas; no caso das negras, este número era o dobro, 10,2%. Entre os homens, a distância é semelhante”. Em relação ao tempo de estudo, o contraste entre cor/raça também pode ser notado, como demonstram os seguintes dados: 1863
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Entre 1995 e 2015, duplica-se a população adulta branca com doze anos ou mais de estudo, de 12,5% para 25,9%. No mesmo período, a população negra com doze anos ou mais de estudo passa de inacreditáveis 3,3% para 12%, um aumento de quase quatro vezes, mas que não esconde que a população negra chega somente agora ao patamar de vinte anos atrás da população branca. (IPEA, 2017, p. 2). Segundo Madeira e Gomes (2018), por motivos coloniais, a população negra ainda tem encontrado dificuldades de seu ampliar seu nível de escolaridade, “e, quando assim o faz, não tem se traduzido em melhor qualificação no mercado de trabalho” (MADEIRA; GOMES, 2018, p. 472). Nesse sentido, comungamos com Madeira e Campos (2018), as quais consideram ser as vulnerabilidades vivenciadas pelos negros produtos da história criminosa da escravidão, em que “a educação é um dos mais poderosos determinantes de desigualdades e hierarquia social” (ANDREWS, 2015 apud MADEIRA; CAMPOS, 2018, p. 10). No que se refere ao local de origem dos usuários do Centro Pop Centro, os dados mostram que 47% (231) dos usuários da Unidade são provenientes da região metropolitana de São Luís8, enquanto 27% (136) dos usuários são provenientes do interior do estado e 25% (125) são oriundos de outros estados, sendo apenas 1% (4) natural do exterior. Das 549 fichas analisadas, 53 não tinham essa informação. Dessa forma, é possível afirmar que a maior parte dos usuários do Serviço Especializado da Unidade Centro é oriunda do mesmo local em que se encontra, ou mesmo de locais próximos, não sendo, portanto, pessoas advindas do processo de migração campo-cidade majoritariamente, como acontecia de maneira bem clara há alguns anos. Silva (2009), comenta que “no que se refere à origem das pessoas em situação de rua, é cada vez menor o número de pessoas provenientes de outros estados e também da área rural” (p. 152), o que significa que a população em situação de rua contemporânea é fruto dos problemas urbanos ocasionados pelo capitalismo, como o aprofundamento do desemprego, das desigualdades sociais e da pobreza. 8 De acordo com o site do Fórum Nacional de Entidades Metropolitanas, a região metropolitana de São Luís compreende 13 municípios, quais sejam: Alcântara, Bacabeira, Icatu, Paço do Lumiar, Raposa, Rosário, Santa Rita, São José de Ribamar, São Luís, Axixá, Cachoeira Grande, Morros e Presidente Juscelino. http://fnembrasil.org/regiao- metropolitana-da-grande-sao-luis-ma/ 1864
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI No que diz respeito a existência de usuários que possuam algum tipo de deficiência, os dados indicam que 80% (309) não possui nenhum tipo de deficiência, tendo-se, portanto, 20% (76) com algum tipo de deficiência. Das 549 fichas consultadas, 164 não continham essa informação. Consoante Sassaki (2003) são pessoas com deficiência aquelas com significativas diferenças, quais sejam: físicas, sensoriais ou intelectuais. Essas diferenças podem ser congênitas ou adquiridas, de caráter permanente, e que provocam dificuldades ou incapacidades em sua relação com o meio físico e social. Segundo o IBGE (2010), em censo realizado para caracterizar a população com deficiência de acordo com a tipologia (física/motora, visual, auditiva, intelectual), identificou-se que 24% da população brasileira possuía pelo menos uma das deficiências elencadas. Paiva e Bendassoli (2017) asseveram que esse número pode aumentar, haja vista que na velhice muitos problemas de saúde causam deficiência, “de modo que na faixa populacional acima de 67 anos a incidência das deficiências aumenta” (PAIVA; BENDASSOLLI, 2017, p. 425). Ao referirem-se ao assunto, Satow e Heloani (2003) observam que, no país, o número de pessoas com deficiências adquiridas é cada vez maior, o que pode ser explicado em parte pela grande incidência de acidentes no trabalho, no trânsito, pela falta de infraestrutura de saúde e de prevenção em saúde, e ainda pelo aumento da violência. CONCLUSÃO Pesquisas como essa são fundamentais para configuração dessa população, uma vez que essa é constituída, por um grupo populacional heterogêneo, composta por indivíduos que possuem em comum a pobreza extrema, vínculos familiares fragilizados ou rompidos; que não possuem moradia convencional regular, bem como, emprego formal. Trata-se de pessoas e de grupos, que vivem da/na rua, “habitando” vias públicas, casarões abandonados, praças e sobrados, e/ou fazendo uso ocasional de abrigo público para pernoitar, os quais necessitam ser (re)conhecidos socialmente e um dos primeiros passos para esse reconhecimento é justamente o conhecimento de quantas são essas pessoas, quem são, qual a idade delas, nível de escolaridade, sexo, orientação sexual, etnia/raça, locais de origem e se possuem algum tipo de deficiência. 1865
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI A pesquisa demonstrou que a população usuária do Centro Pop do centro da cidade de São Luís é constituída predominantemente por homens, em idade produtiva, que na sua maioria, está à margem do mercado formal de trabalho, tendo essa situação aguçada pelo fato de que a grande maioria possui baixa escolaridade. São pessoas que se declaram heterossexuais em sua maioria, sendo necessário destacar que na ficha cadastral, o campo sobre a orientação sexual não foi preenchido em muitas fichas cadastrais, caracterizando uma incompletude que indica que pode haver um número muito maior de pessoas homoafetivas, bissexuais. No que diz respeito as configurações de raça/etnia, os dados demonstram a existência de quantitativo substancial de negros (pardos e pretos), que, juntos, somam um total de 82%. Em sua maioria, são pessoas oriundos da cidade de São Luís, da região metropolitana, ou de municípios próximos, configurando-se como expressão dos problemas urbanos ocasionados pelo capitalismo, como o aprofundamento do desemprego estrutural, das desigualdades sociais e da pobreza. Tais dados, que permitem uma caracterização preliminar dessa parcela da população de rua existente em São Luís (MA), podem contribuir com outros levantamentos que venham a ser realizados em âmbito local, estadual ou nacional e devem subsidiar ações voltadas para esses homens e mulheres, considerando as suas particularidades. REFERÊNCIAS CAMPOS, D. A. de; MORETTI-PIRES, R. O. Trajetórias sociais de gays e lésbicas moradores de rua de Florianópolis (SC) em 2016. In Estudos Feministas. Santa Catarina, v. 26, n. 2, p. 1-16, 2018. COELHO, F. M. F. “Menino já nasce menino, menina já nasce menina”: Fobia religiosa de gênero e suas implicações no debate sobre o Plano Nacional de Educação Brasileiro no período de 2012-2014. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2017. ESCOREL, Sarah. Vivendo de teimosos: Moradores de rua da cidade do Rio de Janeiro. In: BURSZTYN, Marcel (org.). No meio da Rua: Nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. p. 139 – 171. ESPÍNOLA, F. A. L. Fatores determinantes da evasão escolar no ensino médio. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Letras) – Guarabira, Universidade Estadual da Paraíba, 2010. 1866
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI GARCIA, Roberto Vieira. Diversidade sexual, situação de rua, vivências nômades e contextos de vulnerabilidade ao HIV/AIDS. In Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, v. 21, n. 3, p.1005-1019, 2013. HASENBALG, Carlos. SILVA, Nelson Valle. (org). Origens e Destinos: desigualdades sociais ao longo da vida. Rio de Janeiro: Toobooks, 2003. HONORIO, L. R. O. Fatores que contribuem para a reincidência da população em situação de rua: estudo de caso no centro de referência especializado para população em situação de rua (Centro Pop) no município de Araranguá/SC. Trabalho de Conclusão de Curso (Pós Graduação em Educação, Direitos Humanos: escola, vivência e defesa de direitos) – Araranguá, Universidade do Sul de Santa Catarina, 2016. IBGE. Censo demográfico. Rio de Janeiro, IBGE, 2010. IPEA. Retrato das desigualdades de gênero e raça – 1995 a 2015. Brasília, DF: IPEA, p. 1-5, 2017. Disponível em: http://ipea.gov.br/portal/imagens/stories/PDFs/170306- retrato-das-desigualdades-degenero-raca.pdf. Acesso em: 20 jan. 2020. MADEIRA, Z.; GOMES, D. D. O. Persistentes desigualdades raciais e resistências negras no Brasil contemporâneo. In Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 133, p. 463-479, set./dez. 2018. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.154. Acesso em: 17 set. 2019. NATALINO, M. A. C. Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA, 2016. NOGUEIRA, Fábio. Governo Temer como restauração colonialista. In Le Monde Diplomatique Brasil, Rio de Janeiro, ano 10, ed. 114, p. 4-5, jan. 2017. PAIVA, J. C. M.; BENDASSOLI, P. F. Políticas sociais de inclusão social para pessoas com deficiência. In Psicologia em Revista. Belo Horizonte, v. 23, n.1, p. 418-429, 2017. SASSAKI, R. K. Como chamar as pessoas que têm deficiência. São Paulo: RNR, 2003. SATOW, S.; HELOANI, J. R. Algumas considerações sobre os portadores de deficiência. In Educação online, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, p. 1-11, 2003. SILVA, T. D.; GOES, F. L. Igualdade racial no Brasil: reflexões no Ano Internacional dos Afrodescendentes. Brasília: Instituto de Pesquisa Aplicada – IPEA, 2013. SILVA, M. L. L. Trabalho e população em situação de rua no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009. SOUSA, A. G. L. “Eu sou de rua, mas também sou gente”: intersubjetividade e construção de identidades dos indivíduos em situação de rua de João Pessoa-PB. Tese (Doutorado em Sociologia) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012. Disponível em: 1867
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/11303. Acesso em: 24 mar. 2019. TIENE, Izalene. Mulher Moradora na Rua: entre vivências e políticas sociais. Campinas: Alínea, 2004. 1868
EIXO TEMÁTICO 4 | SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA AS EMENDAS INDIVIDUAIS AO ORÇAMENTO: A liberação de recursos no contexto da reforma da previdência INDIVIDUAL AMENDMENTS TO THE BUDGET: The resources release in the pension reform contexto Sirlândia Schappo1 1 RESUMO O trabalho problematiza a conexão entre a liberação de recursos para as emendas individuais ao orçamento em 2019 e o processo de votação da reforma da previdência. A partir dos dados apresentados no site Siga Brasil observa-se a liberação de recursos para as emendas individuais dos deputados federais ao orçamento entre os meses de janeiro e agosto de 2019. Destaca-se o aumento dos valores no mês de julho de 2019, quando se inicia o processo de votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 06/2019 relativa à reforma da previdência na Câmara dos Deputados. Em um cenário político marcado por dissensos, destaca-se que a liberação de recursos para as emendas individuais ao orçamento ganha relevância como um mecanismo fundamental para o executivo buscar apoio no congresso e possibilitar a aprovação da proposta. Palavras-chaves: Emendas; Orçamento; Reforma da previdência; Executivo e Legislativo. ABSTRACT This work problematizes the connection between the release of resources for individual amendments to the budget in 2019 year´s and the voting process of pension reform. From the data presented on Siga Brasil website, it is possible to observe the resources release for individual amendments of federal congressist to the budget between the months of January and August 2019. Highlight to the increase in values in July 2019, when was iniciated the voting process of Proposed about Constitution Amendment 06/2019 regarding the pension reform in the House of Representatives. In a political scenario marked 1 Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Doutora em Sociologia. E-mail [email protected] 1869
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI by divergences, it is highlighted that the release of resources for individual amendments to the budget it is relevant as a fundamental mechanism for the executive to request support at the Congress and enable the proposal to be approved. Keywords Amendments. Pension Reform. Budget. Executive and Legislative INTRODUÇÃO As emendas individuais apresentadas ao Orçamento Geral da União, denominado de Lei Orçamentária Anual (LOA) – enviada pelo Executivo ao Congresso anualmente, podem constituir um elemento de peso no processo de alocação de votos e nas relações políticas entre executivo e legislativo, especialmente em votações polêmicas, com maior possibilidade de dissenso e/ou de opinião pública contrária. As emendas individuais ao orçamento constituem instrumentos que os parlamentares se utilizam para alocar recursos públicos, especialmente para as regiões onde obtiveram votos, possibilitando a efetivação de promessas ou compromissos políticos junto aos estados e municípios e também às instituições. Tais práticas contribuem para perpetuar o personalismo e a intermediação entre interesses públicos e privados, onde o “político” apresenta-se como o benfeitor ou protetor e o atendimento às necessidades da população apresentam-se como “ajudas” e não como direito de cidadania. Por outro lado, elas podem representar uma espécie de barganha política que o executivo detém nos processos de votação, com destaque na Câmara dos Deputados, pois o poder de liberação das emendas fica a cargo do executivo22sendo que este se utiliza delas para a construção de coalizões, angariando apoio nas votações. De fato, a decisão presidencial representa um primeiro crivo que as emendas atravessam antes de serem executadas, uma vez que cabe ao presidente editar os atos de limitação de empenho e movimentação financeira. Após essa etapa, no entanto, os ministérios responsáveis pelas dotações devem autorizar o empenho, podendo fazer uso dessa prerrogativa para eleger as 2 “Até 2013, o Executivo tinha completa discricionariedade ao executar a parcela do orçamento atingida por emendas. Naquele ano, no entanto, foi aprovada a Lei de Diretrizes Orçamentária 2014, a qual exigiu que as emendas individuais fossem executadas até o limite mínimo de 1,2% da Receita Corrente Líquida realizada no exercício anterior. Esta norma, portanto, disciplinou a lei orçamentária executada em 2014. Mais tarde, essa mudança foi positivada na Constituição Federal pela EC nº 86/2015. Assim, uma parcela das emendas individuais tem execução obrigatória atualmente.” (BAIÃO; COUTO; JUCÁ, 2018, p. 52). 1870
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI prioridades do órgão segundo interesses partidários. Dessa forma, partidos poderiam se valer dos ministérios por eles controlados para alavancar a execução de suas emendas (BAIÃO; COUTO; JUCÁ, 2018, p. 54) Os autores destacam a importância da decisão presidencial na execução das emendas, mas ressaltam também a influência dos ministros, o cargo ocupado pelo deputado e a situação de adimplência dos municípios nesse processo. Este envolve diversas áreas temáticas e diferentes ministérios: infraestrutura; saúde; integração nacional e meio ambiente; educação, cultura, ciência e tecnologia e esporte; planejamento e desenvolvimento urbano; agricultura e desenvolvimento agrário; trabalho, previdência, assistência social, entre outras.3.3. As emendas ao orçamento podem ser individuais, de bancada, de comissão e da relatoria. O teto equivale a 1,2% da receita corrente líquida, sendo que metade deve ser destinado à saúde. As emendas individuais são de autoria de senadores ou de deputados, sendo que neste texto são evidenciados os recursos liberados em 2019 referentes às emendas individuais apresentadas apenas pelos deputados federais. Este recorte se faz necessário, pois o processo de votação da reforma da previdência ainda (em setembro de 2019) aguarda votação na instância do Senado, sendo que a votação já ocorreu na Câmara dos Deputados nos meses de julho e início do mês de agosto do corrente ano e é nesta que a presente análise se centra, problematizando a liberação de recursos para emendas parlamentares como um recurso institucional utilizado pelo executivo para a construção de coalizões, especialmente em votações polêmicas, que apresentam dissensos ou que possam divergir da opinião pública. 2 A REFORMA DA PREVIDÊNCIA: divergências em torno de uma proposta A proposta de reforma da previdência apresentada pelo governo de Jair Bolsonaro foi votada em primeiro turno no plenário da Câmara dos Deputados no dia 3 Na apresentação da emenda consta o órgão orçamentário que receberá a dotação, geralmente um ministério ou uma secretaria com responsabilidade de executar suas dotações e transferências a outras esferas de governo. O ministro responsável pelo órgão orçamentário indicado na emenda deverá empenhar a despesa para que o repasse financeiro seja realizado no governo municipal. Na análise dos referidos autores, ao computarem o total proposto por cada partido, percebem uma aparente tendência de privilegiar ministérios que sejam controlados pela própria sigla. Ou seja, os partidos concentram emendas nos ministérios controlados pelo próprio partido. O grau de execução de emendas também é maior quando ministro e parlamentar são copartidários, sugerindo que talvez ministros utilizem suas prerrogativas para beneficiar a execução de emendas de seus colegas de partido. Além destas questões, o cargo ocupado pelo deputado e a situação de adimplência dos municípios são fatores relevantes para compreender por que algumas emendas têm sua execução privilegiada. (BAIÃO; COUTO; JUCÁ, 2018) 1871
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 10 de julho de 2019, obtendo 379 votos a favor e 131 contrários. A conclusão do segundo turno da votação na Câmara dos Deputados ocorreu em 7 agosto de 2019, nesta ocasião 370 deputados votaram a favor e 124 contra4.4A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 06/2019 congrega uma série de pontos polêmicos, especialmente por algumas mudanças radicais, decompondo questões centrais da seguridade social e direitos conquistados. A opinião pública também se divide quanto ao apoio ou não da referida reforma, contribuindo para os dissensos em torno da questão. Nesse contexto, parte-se do pressuposto de que a liberação de recursos para as emendas individuais ao orçamento ganha relevância como um mecanismo fundamental para que o executivo buscar apoio no congresso e possibilitar a aprovação da proposta. Os anos posteriores ao Impedimento em 2016 da Presidente Dilma Rousseff são marcados pelo avanço das ideias liberais e conservadoras que culminaram na eleição de Jair Bolsonaro em 2018. Este assume em 2019, associando extrema direita com liberalismo econômico. As proposições liberais abrangem diferentes áreas, cortes de gastos públicos, direitos e políticas, assim como uma ampla privatização, sendo a reforma da previdência uma das principais prioridades deste governo e uma das mais radicais já propostas desde a instituição do conceito de seguridade social na Constituição Federal de 19885.5. No caso da previdência, reformas foram empreendidas em todos os governos desde a Constituição, mas a proposta feita pelo governo Jair Bolsonaro é a mais ampla, visto que altera radical e profundamente o que foi construído desde a década de 1930. É também a mais injusta com os brasileiros e a que mais aumenta riscos aos grupos mais vulneráveis de mulheres e idosos. (LOBATO; COSTA; RIZZOTTO, 2019, p. 6) A Proposta de Emenda à Constituição nº 6, de 2019 de reforma da previdência social, propõe mudanças radicais sob a alegação de que somente com a realização destas seria possível a previdência para as futuras gerações. Entre as principais mudanças estão a ampliação do tempo de contribuição e de idade, a redução do valor de pensões, a restrição à aposentadoria rural, entre outras. Alterações estas que 4 Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/resultadoVotacao. Acesso em 27 de setembro de 2019. 5 A Constituição Federal de 1988 instituiu no seu Artigo 194 o conceito de seguridade social que compreende um “conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. A Constituição de 1988 apresenta todo um título da ordem social que tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça social. 1872
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI afetariam diretamente as condições de vida da população, especialmente os mais pobres e dos trabalhadores sujeitos à informalidade. Diversos são os questionamentos e críticas em relação à referida reforma da previdência. Com base nas análises do grupo de estudos “Futuros da proteção Social”, coordenado pela professora Sonia Fleury, do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Lobato; Costa e Rizzotto (2019, p. 6-7) destacam alguns aspectos que precisam ser amplamente discutidos e compreendidos: A ausência de debate da reforma com a sociedade - as centrais sindicais não foram incorporadas ao processo de elaboração da proposta, algo inédito em todos os governos desde a redemocratização; O argumento da sustentabilidade. Questionamentos apontam para a ausência de déficit se consideradas as premissas constitucionais do orçamento da seguridade social, a retirada de recursos da previdência pela Desvinculação de Recursos da União (DRU) e a ampla sonegação e isenção de impostos e contribuições concedidas às empresas. O governo apresentou um impacto líquido de cerca de R$ 1 trilhão em receitas com a reforma, mas não apresentou a base de cálculo que gerou esse valor, o que suscita desconfiança sobre o ganho real para as contas públicas. Não há também nenhuma garantia de que a receita obtida com a reforma seja aplicada em benefício da população, em investimentos em saúde, educação, segurança e infraestrutura, como alega a exposição de motivos da proposta. Com o teto de gastos aprovado no governo Temer os limites para as despesas já estão dados; ao contrário do que afirmam seus defensores, a reforma não acaba com os privilégios e gera equidade; A reforma é mais radical e perversa com os trabalhadores do setor privado, trabalhadores rurais, mulheres e pobres; A irregularidade e a informalidade do trabalho vão restringir a aposentadoria por contribuição dos urbanos; A mudança para o regime de capitalização altera a estrutura do regime previdenciário atual, entre outras questões. (LOBATO; COSTA; RIZZOTTO, 2019, p. 6-7) As várias razões apresentadas para a discussão compreendem resistências e oposições por parte da sociedade à reforma da previdência. Esta apresenta pontos polêmicos frente às incertezas e inquietações com o agravamento das condições de vida e dificuldades de garantias de benefícios para a população. Compreende-se que as análises contrárias à reforma expressam a política como conflituosa (e contraditória), permitindo a formação de contra poderes em busca da ampliação da cidadania. 1873
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI (PEREIRA, 2009, p. 91), neste sentido, as opiniões contrárias à reforma da previdência apontam para a valorização do social, do sistema de seguridade social em contraposição à lógica do mercado e de um sistema de capitalização privado. Wanderley, Sant`Ana e Martinelli (2019, p. 207) destacam que o tema da Previdência Social, encontra-se em debate e disputa na sociedade, a partir de diferentes projetos políticos: De um lado, o atual governo que justifica o Projeto da Reforma da Previdência Social, sob o argumento de sua sustentabilidade e equilíbrio fiscal, com promessas de um crescimento vigoroso baseado nas expectativas dos mercados. De outro lado, segmentos da sociedade civil questionam a anacrônica Reforma, alertando que um direito social fundamental do brasileiro está em perigo e representa um grande retrocesso face a um conjunto de direitos constante na Constituição de 1988. Apesar de ter crescido o apoio popular à reforma da previdência durante o primeiro semestre do ano de 2019, após uma campanha midiática por parte do governo, a população ainda se encontra dividida entre os que apoiam e os que são contrários à reforma. A Pesquisa Datafolha (2019) apresenta um crescimento de abril a julho do índice de brasileiros adultos que apoiam a reforma da previdência, no período, o índice foi de 41% para 47%. A taxa de brasileiros adultos que rejeitam à reforma recuou de 51% para 44%. Observam-se índices mais altos de favoráveis à reforma da previdência entre os homens (57%), entre os mais ricos (69%), entre os empresários (73%) e entre os que aprovam o governo de Jair Bolsonaro (PSL) (75%). Já as taxas mais altas de contrários à reforma são observadas entre as mulheres (50%), entre os moradores da região Nordeste (55%) e entre os que reprovam o governo de Jair Bolsonaro (71%). (DATAFOLHA, 2019). Os dados expressam um país dividido em termos de opiniões relativas à reforma da previdência, fato este que não significa que os que apoiam a reforma tenham clareza sobre os possíveis impactos dela nas condições de vida da população. A partir de uma perspectiva gramsciana, poderíamos afirmar que parcela significativa da população pensa de acordo com uma concepção de mundo que reproduz valores e interesses da classe dominante, mesmo que alheios aos próprios interesses da classe trabalhadora. Nesse sentido, o Estado tem um papel fundamental na construção da hegemonia, no estabelecimento de consensos, adequando a civilização e a moralidade das massas 1874
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI populares às necessidades do desenvolvimento do aparelho econômico de produção. (GRAMSCI, 1968). Em relação à opinião pública sobre a reforma da previdência, cabe destacar ainda a consulta pública no Senado Federal66relativa à Proposta de Emenda à Constituição n. 6 de 2019 (que modifica o sistema de previdência social, estabelece regras de transição e disposições transitórias, e dá outras providências) apresenta 4.663 votos que não apoiam a referida proposição e 2.289 votos favoráveis, em 30 de setembro de 2019. Nestes termos, compreende-se na análise do processo da reforma da previdência a relação de duas esferas no sentido gramsciano: a Sociedade Política: instituições políticas, a organização administrativa, jurídica e militar do aparelho governamental, segurança e ordem e a Sociedade civil - esfera do consenso e também do conflito. Na medida em que o consenso não se encontra estabelecido, sugere-se que o governo se utiliza do aparato político propriamente dito e das prerrogativas de que dispõe, neste caso, da liberação de emendas para buscar apoio entre os parlamentares, temática esta discutida na próxima seção deste trabalho. 3 A LIBERAÇÃO DE RECURSOS PARA EMENDAS NO CONTEXTO DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA Esta seção analisa a execução de emendas individuais ao orçamento como um mecanismo fundamental que o executivo utiliza-se para buscar apoio político no congresso, especialmente em votações polêmicas que apresentem maior dissenso na sociedade. As emendas podem representar uma moeda de troca no processo de negociação do executivo no congresso. Por um lado, os parlamentares almejam a liberação de recursos para suas bases eleitorais e por outro o executivo espera que os parlamentares votem a favor das proposições de interesse do governo em troca da referida liberação. Destaca-se como se configurou a efetivação de recursos para as emendas individuais ao orçamento no período compreendido entre janeiro a agosto de 2019, destacando-se um aumento significativo destes recursos no mês de julho, quando se inicia o processo de votação da reforma da previdência na Câmara dos Deputados. 6 Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=137999. Acesso em: 30 de setembro de 2019. 1875
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Pereira e Muller (2002, 2004) evidenciam que o governo utiliza a execução de emendas como instrumento de controle dos membros de sua coalizão nas votações no Congresso. Nesse sentido, o presidente recompensa parlamentares que votam a favor dos projetos de interesse do governo, autorizando a execução de suas emendas individuais. Algumas análises divergem desses argumentos, como as de Limongi e Figueiredo (2005, p.740). Para estes, “as emendas são executadas sem que os votos esperados sejam dados, e votos são dados sem que a contrapartida – ou seja, a liberação de recursos – ocorra.” Para os autores há casos, inclusive, em que, dada a rotatividade dos membros do Legislativo, a troca de votos pela execução de emendas sequer seria possível, pois vários deputados votam a favor dos interesses do Executivo sem participarem do processo7.7 Vasselai e Mignozzetti (2014) desenvolvem uma análise avaliando a possível defasagem temporal entre a execução de emendas individuais ao orçamento e as votações em plenário. Os autores afirmam que não haveria razões empíricas suficientes, para afirmar, como de costume, que as emendas dos parlamentares ao orçamento seriam uma verdadeira moeda de troca na obtenção de apoio parlamentar nas relações entre executivo e legislativo, exigindo-se cautela em conclusões definitivas neste sentido. Cabe ressaltar que os diversos estudos apontam controvérsias em relação à possibilidade das emendas individuais serem ou não um elemento de troca nas relações entre executivo e legislativo, exigindo-se novos estudos e um aprimoramento das discussões. A discussão proposta neste trabalho busca argumentar que as emendas exercem um papel importante nestas trocas entre legislativo e executivo, especialmente em votações polêmicas ou que apresentam maiores conflitos de interesses entre os membros da Câmara e entre a população, ou seja, em temas que apresentam maior dissenso entre os parlamentares ou que possam representar interesses contrários à 7 Observa-se que a analise de Limongi e Figueiredo (2005, p.740) relativa a rotatividade na Câmara condiz com o contexto atual de votação da reforma da previdência, onde devido a forte renovação do congresso, muitos dos deputados favoráveis à reforma não tinham participado do processo orçamentário. Nas eleições de 2018, dos 513 deputados que tomaram posse em 2019, 251 foram reeleitos, uma taxa de 48,9%, pequena se comparada com eleições anteriores – Nas cinco eleições ocorridas entre 1998 e 2014 a taxa de reeleitos variou entre 54% e 58%. (FOLHA DE S. PAULO, 2018). 1876
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI opinião pública. Este seria o caso da votação da reforma da previdência em andamento, que divide opiniões, sendo que parcela significativa da população é contrária à reforma, como já destacado na seção anterior deste trabalho. Neste contexto de votação da reforma da previdência, observa-se uma grande liberação de recursos para as emendas dos deputados federais, fato que nos remete a discussão se seria mera coincidência ou se representariam um instrumento importante utilizado pelo executivo para ter sua proposta aprovada. Caberiam estudos mais aprimorados neste sentido, no entanto, apresentaremos a seguir algumas evidências que nos instigam a reflexão sobre o tema. A análise cronológica da liberação de emendas individuais ao orçamento sugere ser esta um mecanismo que o executivo se utilizou para buscar apoio político no congresso no contexto da reforma da previdência. Os dados apresentados no gráfico 1 demonstram como se configurou a efetivação de recursos para as emendas individuais ao orçamento no período compreendido entre janeiro a agosto de 2019, destacando-se um aumento significativo destes recursos no mês de julho, quando se inicia o processo de votação da reforma da previdência na Câmara dos Deputados. Gráfico 1 Liberação de recursos para emendas individuais ao orçamento dos deputados federais entre janeiro e agosto de 2019. 2 1,5 1 Empenhado Despesa executada 0,5 Pago 0 TOTAL TOTAL TOTAL TOTAL TOTAL TOTAL TOTAL TOTAL JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO -0,5 Fonte: SIGA Brasil, 19/09/2019. Elaboração própria. 1877
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Observa-se que entre janeiro e junho de 2019 os valores empenhados com emendas individuais dos deputados federais somam R$ 1.409.490.692 (Um bilhão, quatrocentos e nove milhões, quatrocentos e noventa mil e seiscentos e noventa e dois), enquanto apenas no mês de julho foram empenhados R$ 1.671.061.667 (Um bilhão, seiscentos e setenta e um milhões, sessenta e um mil e seiscentos e sessenta e sete) nas respectivas emendas. Em relação aos valores executados com as emendas dos deputados federais, estes foram de R$ 7.272.118 (sete milhões, duzentos e setenta e dois mil e cento e dezoito) entre janeiro e junho de 2019, enquanto no mês de julho somaram R$ 1.177.342.482 (um bilhão, cento e setenta e sete milhões, trezentos e quarenta e dois mil e quatrocentos e oitenta e dois). Em relação aos valores pagos também se observa uma concentração deles no mês de julho, sendo que de janeiro a junho de 2019 estes somaram R$ 1.109.576.616 (Um bilhão, cento e nove milhões, quinhentos e setenta e seis mil e seiscentos e dezesseis), enquanto apenas no mês de julho alcançaram R$ 1.431.551.234 (Um bilhão, quatrocentos e trinta e um milhões, quinhentos e cinquenta e um mil e duzentos e trinta e quatro). Os dados demonstram uma concentração de recursos empenhados, executados e pagos para emendas individuais dos deputados federais no mês de julho de 2019, quando se inicia a votação da reforma da previdência na Câmara dos Deputados. Estes dados sugerem a utilização das emendas parlamentares como instrumento de transação política, em busca de votos a favor da reforma da previdência. Cabe destacar que é o governo quem controla o fluxo de liberação dos recursos. A partir desta prerrogativa Jair Bolsonaro havia liberado apenas uma pequena parcela dos recursos previstos até junho de 2019. A baixa execução dos repasses entre janeiro e junho e os altos valores liberados em julho indicam assim que a liberação de recursos para as emendas individuais ao orçamento ganha relevância como um mecanismo fundamental para o executivo buscar apoio no congresso e possibilitar a aprovação da proposta de reforma da previdência. 4 CONCLUSÃO Pode-se aferir uma conexão entre o período de maior liberação de recursos para as emendas individuais ao orçamento em 2019 e o processo de votação da reforma da previdência. Estes dados sinalizam que as emendas individuais ao orçamento são um 1878
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI mecanismo que o executivo se utiliza para buscar apoio político no congresso, especialmente em votações polêmicas. O atual contexto político brasileiro tem apresentado diversos retrocessos no âmbito dos direitos sociais e dos investimentos em políticas públicas. A implantação da reforma da previdência em 2019 tem possibilitado a efetivação dos interesses da extrema direita, alinhada ao liberalismo econômico. Diversas são as análises, contraposições e opiniões divergentes desse posicionamento, alertando para a possibilidade de agravamento das condições de vida e das dificuldades de garantias de benefícios para a população. Constitui-se assim, um debate marcado por disputas na sociedade, a partir de diferentes projetos políticos, por um lado os que defendem a reforma da previdência sob o argumento de sua sustentabilidade e equilíbrio fiscal, em especial o próprio governo e de outro, argumentos contrários que questionam a reforma. O cenário político apresenta-se conflituoso e marcado por dissensos em torno de uma das reformas mais radicais desde a instituição do conceito de seguridade social na Constituição Federal de 1988, configurando a votação da reforma da previdência como polêmica. A partir da observação deste contexto, aponta-se o argumento de que o governo se utiliza do controle do fluxo de liberação dos recursos para as emendas individuais como uma estratégia política para barganhar votos a favor da proposta do governo. Cabe destacar que apesar dos fortes indícios de que essa troca de interesses entre o executivo e os deputados federais tenha ocorrido no contexto da reforma da previdência, novos estudos seriam necessários para aprimorar o argumento, especialmente sobre o fluxo de liberação de emendas em outras votações polêmicas e conflituosas, analisando-se como o governo se utiliza do mecanismo de liberação desses recursos na tentativa de conseguir aprovação de suas propostas. Por fim, a temática nos remete a uma reflexão sobre a utilização das emendas individuais enquanto um mecanismo que reproduz as relações clientelistas, com trocas de favores entre executivo e legislativo, assim como entre políticos e eleitores. Busca-se justificar a utilização das emendas pela necessidade da “governabilidade” no congresso, devido à falta de base parlamentar por parte dos executivos eleitos. Nesse processo os governos utilizam o mecanismo da “troca de favores” como forma de conseguir maioria para aprovar suas proposições. 1879
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI No entanto, compreende-se que este mecanismo não condiz com relações políticas que respeitem os princípios democráticos e republicanos presentes no artigo 37 da Constituição Federal de 1988, em especial aqueles que prezam pela moralidade e impessoalidade na administração pública. A construção de uma organização política que se pauta pelo interesse comum, pela soberania popular, e não da soberania dos que governam exige romper com a continuidade de aspectos da formação sócio-histórica brasileira, como o personalismo e a lógica do favor revitalizados nas relações público- privadas e na forma de se fazer política no país. REFERÊNCIAS BAIAO, Alexandre Lima; COUTO, Cláudio Gonçalves; JUCA, Ivan Chaves. A execução das emendas orçamentárias individuais: papel de ministros, cargos de liderança e normas fiscais. Rev. Bras. Ciênc. Polít. Brasília, n.25, p.47-86, 2018. DATAFOLHA. Cresce apoio à Reforma da Previdência. Opinião Pública. Disponível em: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2019/07/1988219-cresce-apoio-a- reforma-da-previdencia.shtml. Acesso em 27 de setembro de 2019. BRASIL. Câmara dos Deputados. Resultados das Votações e Lista de Presença. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/plenario/resultadoVotacao. Acesso: 27 de setembro de 2019. FOLHA DE S. PAULO. Com reeleição abaixo de 50%, Câmara terá renovação recorde. 09 de outubro de 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/com-reeleicao-abaixo-de-50- camara-tera-renovacao-recorde.shtml. Acesso em: 27 de setembro de 2019. GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Tradução de Luiz Mário Gazzaneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. LIMONGI, Fernando; FIGUEIREDO, Argelina. Processo Orçamentário e Comportamento Legislativo: Emendas Individuais, Apoio ao Executivo e Programas de Governo. DADOS. Rio de Janeiro, v. 48, n.4, p. 737-776, 2005. LOBATO, Lenaura de Vasconcelos Costa; COSTA, Ana Maria; RIZZOTTO, Maria Lucia Frizon. Reforma da previdência: o golpe fatal na seguridade social brasileira. Saúde Debate. Rio de Janeiro, v. 43, n. 120, p. 5-14, Jan-Mar, 2019. PEREIRA, Potyara A. Discussões conceituais sobre política social como política pública e direito de cidadania. In: BOSCHETTI, Ivanete et al. (Orgs.) Política social no capitalismo: tendências contemporâneas. São Paulo: Cortez, 2008. p. 87-108. 1880
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI PEREIRA, Carlos. MUELLER, Bernardo. Comportamento estratégico em presidencialismo de coalizão: as relações entre Executivo e Legislativo na elaboração do Orçamento Brasileiro. DADOS. Rio de Janeiro, vol. 45, n. 2, p. 265-301, 2002. PEREIRA, Carlos. MUELLER, Bernardo. THE COST OF GOVERNING Strategic Behavior of the President and Legislators in Brazil’s Budgetary Process. Comparative Political Studies, v. 37, n.7, p.781-815, 2004. SIGA BRASIL. Painel Execução de Emendas Impositivas. Disponível em: http://www9.senado.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?document=senado%2Fsigabrasi lpainelcidadao.qvw&host=QVS%40www9&anonymous=true&Sheet=SH14. Acesso em: 19 de setembro de 2019. VASSELAI, Fabricio; MIGNOZZETTI, Umberto G. O efeito das emendas ao orçamento no comportamento parlamentar e a dimensão temporal: velhas teses, novos testes. Dados. Rio de Janeiro, v. 57, n. 3, p. 817-853, 2014. WANDERLEY, Mariangela Belfiore; SANT`ANA, Raquel Santos; MARTINELLI, Maria Lúcia. Os desafios do atual contexto: um diálogo a partir da seguridade. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 135, p. 207-212, mai-ago. 2019. 1881
EIXO TEMÁTICO 4 | SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA O PROGRAMA CRIANÇA FELIZ E A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL THE HAPPY CHILD PROGRAM AND SOCIAL ASSISTANCE POLICY Adjair de Oliveira e Silva Júnior1 Márcia da Silva Pereira Castro2 Samara Maria Genesio3 RESUMO O Programa Criança Feliz foi criado em 2016 como uma inovação pelo Governo Federal. Prevê uma articulação com as políticas de assistência social, saúde, educação, cultura, direitos humanos, direitos das crianças e dos adolescentes, entre outras. Programas como esse são recorrentes no cenário político e nas Agendas governamentais brasileiras. Nosso objetivo é refletir sobre o citado Programa a partir de sua aprovação e de seu desenho, já que ele propõe a utilização do Sistema Único de Assistência Social para sua execução e, isso, se coloca como um complicador dada a escassez de recursos destinados à política de assistência social. Para realização do proposto recorremos à pesquisa bibliográfica sobre políticas públicas e a política de assistência social, bem como à pesquisa documental dos Decretos e demais aparatos normativos que regulamentam a implementação do citado programa. Palavras-chaves: Programa Criança Feliz; Política de Assistência Social; Agenda. ABSTRACT The Happy Child Program was created in 2016 as an innovation by the Federal Government. It provides for an articulation with the policies of 1 Discente do curso de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e Bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq. E-mail: [email protected] 2 Professora do curso de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: [email protected] 3 Discente do curso de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e voluntária da pesquisa: O Programa Criança Feliz: agenda, formulação e implementação em tempos de “crise”. E-mail: [email protected] 1882
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI social assistance, health, education, culture, human rights, rights of children and adolescents, among others. Programs like this are recurrent on the political scene and on Brazilian government agendas. Our objective is to reflect on the mentioned Program from its approval and its design, since it proposes the use of the Unified Social Assistance System for its execution and, this, poses itself as a complicator given the scarcity of resources destined to the policy social assistance. To carry out the proposal, we used bibliographic research on public policies and social assistance policy, as well as documentary research on Decrees and other normative devices that regulate the implementation of the aforementioned program. Keywords Happy Child Program; Social Assistance Policy; Schedule. INTRODUÇÃO O Programa Criança Feliz é uma iniciativa do Governo Federal criado em 2016 com intuito ao desenvolvimento e o cuidado na primeira infância. A proposta do programa é que ele funcione a partir da articulação entre as políticas de assistência social, saúde, educação, cultura, direitos humanos, direitos das crianças e dos adolescentes, entre outras. Programas como esse são recorrentes no cenário político e nas Agendas governamentais brasileiras. Por não apresentar as despesas operacionais administrativas e complementares (automóveis, motorista, despesas de escritório etc.) e propôs a utilização da estrutura do Sistema Único de Assistência Social que, por sua vez, já não vinha atendendo plenamente suas demandas devido ao exíguo orçamento. Diante esse dado, era previsível o comprometimento da exequibilidade tanto da política de assistência social, quanto do Programa Criança Feliz. De posse dessas premissas, nosso propósito é refletir sobre o Programa Criança Feliz a partir de sua aprovação e de seu desenho. Para tanto, recorremos à pesquisa bibliográfica sobre políticas públicas e a política de assistência social, bem como à pesquisa documental dos Decretos e demais aparatos normativos que regulamentam a implementação do citado programa. No primeiro momento recorremos a refletir sobre a emersão do Programa Criança Feliz na Agenda governamental. Assim, recorremos a revisão de algumas referências sobre políticas públicas e, particularmente, sobre Agenda. Em seguida, realizamos algumas conjecturas sobre a relação do programa supracitado com a política 1883
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI de assistência social enfatizando alguns pontos complicadores, bem como destacando as intenções que perpassam a proposta de articulação entre ambos. 2 O PROGRAMA CRIANÇA FELIZ: INOVAÇÃO NA AGENDA ESTATAL? O Programa Criança Feliz é uma iniciativa do Governo Federal, implementado no período da gestão do Presidente Michel Temer (2016-2018). Ele foi instituído pelo Decreto Nº 8.869, de 5 de outubro de 2016, pouco tempo depois de sua posse. Em 2018, o programa passa por algumas alterações por meio do Decreto Nº 9.579, de 22 de novembro de 2018. O Criança Feliz tem como intuito o desenvolvimento e o cuidado na primeira infância, como apontam os artigos 97 e 98: Art. 97. Considera-se primeira infância, para os fins do disposto neste Título, o período que abrange os primeiros seis anos completos ou os setenta e dois meses de vida da criança. Art. 98. O Programa Criança Feliz atenderá gestantes, crianças de até seis anos e suas famílias, e priorizará: I - gestantes, crianças de até três anos e suas famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família, instituído pela Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004; II - crianças de até seis anos e suas famílias beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada, instituído pela Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993; e III - crianças de até seis anos afastadas do convívio familiar em razão da aplicação de medida de proteção prevista no art. 101, caput, incisos VII e VIII, da Lei nº 8.069, de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, e suas famílias. (BRASIL, 2018) A proposta do programa é que ele funcione a partir da articulação entre as políticas de assistência social, saúde, educação, cultura, direitos humanos, direitos das crianças e dos adolescentes, entre outras. É um discurso recorrente em outras propostas de programas sociais presentes ao longo das décadas, durante os diferentes governos de diversificadas posturas político-partidárias e que, atualmente, está presente na Agenda governamental. Assim, como em outros contextos do cenário brasileiro, a implementação do Programa Criança Feliz atende muito mais a demandas político-governamentais, do que as necessidades advindas de seu público-alvo. Essa premissa encontra respaldo na história das Agendas governamentais brasileiras, principalmente, nas três últimas décadas, que tem como principais inspiradores os órgãos multilaterais como Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. 1884
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Ao se buscar no referencial de políticas públicas como as Agendas emergem, é perceptível como a correlação de interesses se faz presente na definição de demandas que requerem uma resposta que deveria ser estatal (SOUZA, 2013; MELO, 1998). Compreendendo que as Agendas podem ser sistêmicas4 4(conjuntural), institucionais55 (mais susceptíveis de serem alteradas), ou ainda, governamentais66, a participação dos diferentes grupos (político-partidários, movimentos sociais etc.) na definição de prioridades se dá de forma desigual. Contudo, o que gostaríamos de ressaltar é que “a agenda de reformas na América Latina seria processada num desequilíbrio entre políticas econômicas definidas e políticas sociais oscilantes” (SOUZA, 2013, p. 97) e, isso, repercute na forma como o desenho do Programa Criança Feliz foi idealizado dado o contexto de “crise” do novo milênio. Essa particularidade reforça a percepção de que as políticas sociais no Brasil, inclusive após a Constituição de 1988, possui Agendas com características análogas. Segundo Melo (1991), a “construção histórica da agenda das políticas de bem-estar social no Brasil” se remonta à década de 1930, mas independente dos diferentes posicionamentos político-ideológicos dos governantes durante esse período, as Agendas não viabilizaram mudanças significativas no que diz respeito ao social, nem mesmo durante o período do chamado populismo radical (1960-1964). É salutar destacar que o efervescente contexto político do final dos anos 1970 impulsionou demandas à Agenda governamental e que terminaram por se constituir, na década seguinte, em Agenda estatal77. O ocaso da Ditadura Militar e o processo de democratização incitaram a emersão do debate acerca questão social (legislação trabalhista, principalmente) na Agenda de reformas do Estado. Com a chegada da Nova República (1985) é que as políticas sociais passam por uma reestruturação mais concreta, particularmente, a saúde, previdência social e assistência social. 4 Segundo Cobb e Elder (1971), assim como Kingdon (1995), a Agenda sistêmica é mais geral e se situa fora do governo (SOUZA, 2013). 5 Segundo Cobb e Elder (1971), a Agenda institucional estaria vinculada aos problemas que dependeriam funcionalmente do consenso ou da competência da autoridade pública (SOUZA, 2013). 6 Segundo Kingdon (1995), a Agenda governamental (ou formal) seria a lista de assuntos que preocupariam o governo e receberiam grande atenção dos funcionários públicos. Na visão liberal do autor, essa Agenda poderia se sobrepor a Agenda sistêmica, pois, “o Estado, com sua autonomia, poderia, inclusive, criar sua própria agenda” (SOUZA, 2013, p. 84). 7 Denominaremos como Agenda estatal aquela que agrega ao aparato do Estado, demandas sociais que se impuseram à Agenda governamental, mas que viabilizaram a reestruturação organizacional e financeira de órgãos do Estado. Portanto, ela tem um caráter mais consolidado e permanente do que a Agenda governamental de caráter mais provisório. 1885
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Após a aprovação da Constituição Federal em 1988 (CF88), as políticas de saúde, previdência social e assistência social, alçaram status nunca adquirido, quanto a adoção do conceito de seguridade social, englobando as áreas de saúde, da previdência e da assistência. Além dessa inovação, há que se realçar a redefinição de alguns princípios, pelos quais foram estabelecidas novas regras relativas a fontes de custeio, organização administrativa, mecanismos de participação dos usuários no sistema e melhoria/universalização dos benefícios e serviços (MOTA, 1995, p. 142). Todavia, o que se viu na sequência é que devido a Agenda “sobrecarregada”, o governo “optou pelas ações emergenciais e assistenciais e os setores progressistas perderiam terreno na agenda governamental” (SOUZA, 2013, p. 93). Como consequência, houve uma “diversidade de interesses que repercutiu em uma legislação ambígua e controversa, devido à carência de prioridade na sistematização textual das três áreas da seguridade social” (CASTRO, 2009, p. 66). No que diz respeito à política de assistência social, a sua regulamentação só ocorreu em 7 de dezembro de 1993, após um longo processo de tramitação permeado por projetos de leis substitutivos e de um veto presidencial em setembro de 1990. A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei Nº 8.742, expressava um discurso com possibilidades de superação de uma prática conservadora, assistencialista e filantrópica. No entanto, a Agenda governamental optou por ações emergenciais e focalizadas que deram ampla prioridade ao Comunidade Solidária em uma afronta explícita à consolidação da política de assistência social. O Programa Comunidade Solidária (PCS) foi criado em 1995 após a extinção da Legião Brasileira de Assistência (LBA)88 como resultante de um longo processo de questionamentos quanto à sua efetividade (CASTRO, 2009). Segundo Peres (2005, p. 113) o PCS tinha o objetivo de articular a sociedade brasileira que, segundo a análise de Ruth Cardoso (primeira-dama e presidente do programa), essa sociedade estava preparada para participar das definições das políticas sociais, o que se configurava como uma análise fragmentada. 8 A LBA foi criada em 1942, ainda no Governo de Getúlio Vargas trazendo para as ações assistenciais, a figura da primeira-dama como principal figura pública de reforço às práticas assistencialistas, filantrópicas e caritativas do Estado. 1886
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI O programa não se definia enquanto governamental; mas atuava como intermediação entre Estado e Sociedade civil, olvidava com a LOAS e trazia novas articulações entre as esferas do governo e sociedade civil através de Organizações Não- Governamentais (ONGs), com programas focalizados para o enfrentamento da pobreza (PERES, 2005). Convém ressaltar que a implementação desses programas se coadunava com a Agenda das agências internacionais multilaterais (Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento). Ao incorporar o discurso da crise fiscal que já assolava outros continentes nesse período (anos 1990), a Agenda governamental brasileira procurou “instituir a boa governança e o primado da pobreza absoluta sobre a desigualdade no debate público” (SOUZA, 2013, p. 98). Dessa forma, o que se tem ao invés do fortalecimento da política de assistência social, é um retrocesso histórico, onde “o primeiro-damismo ressurge revestido sob outra roupagem, quando o Programa Comunidade Solidária fica sob a presidência da primeira-dama do Estado brasileiro. É um fato que torna clara a falta de assimilação dos direitos sociais por parte dos órgãos governamentais” (CASTRO, 2009, p. 63). O citado programa ficou vigente até 2003 quando começou a ser desativado gradativamente e, na sequência, o governo instituiu o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) como novo ordenamento político-institucional da Política Nacional de Assistência Social (PNAS)9.9.O SUAS incorporava a possibilidade de uma política de assistência social que atenderia as demandas das expressões da questão social que até então se mostrava bastante restrita. Todavia, o ínfimo orçamento da política de assistência social resultou na “refilantropização da assistência social isentando o Estado de seus deveres constitucionais, ou seja, negando a legitimidade dos direitos sociais”, pauta essa que tinha ganhado legitimidade com a aprovação da CF88. Ao longo de 13 anos (2003-2016) a política de assistência social expandiu sua área de abrangência, incrementou seu arranjo institucional, “ampliou” seus recursos, porém não se desvencilhou totalmente de suas características conservadoras, tradicionais, filantrópicas e assistencialista. Dentre os percalços à sua implementação se tem a ausência de uma formação ampla dos recursos humanos, que reforçava a permanência de práticas clientelistas onde a troca de favores políticos se tornou uma 9 A PNAS foi aprovada em 2003, após 10 anos da aprovação da LOAS. 1887
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI constante, bem como uma acanhada ampliação dos recursos que não acompanhou o incremento estrutural proposto. Em uma mudança brusca da chefia do Executivo Nacional, em 2016, emerge no cenário político brasileiro, uma nova Agenda governamental que se contrapôs ao espraiamento das concessões realizada pelo governo anterior, no que diz respeito às políticas sociais. De fato, o viés adotado pelos governos de 2003 a 2016, nunca romperam com a Agenda das agências internacionais multilaterais, mas também não se coadunaram totalmente com as forças políticas tradicionais do país e com os detentores do grande capital. Devido a isso, o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff em agosto de 2016, rompe subitamente com o tímido Estado social brasileiro. Com a ascensão do governo Michel Temer, a lógica neoliberal ganhou ainda mais força, sob o programa de governo denominado, “Uma Ponte para o Futuro”. Se descortinava aí, uma Agenda governamental totalmente subserviente ao capital externo, com mudanças austeras no cenário sociopolítico e econômico, bem como a intensificação de estratégias políticas de combate à pobreza extrema. Uma das principais medidas que explicitou a prevalência para as chamadas políticas econômicas foi a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição nº 95 em 15 de dezembro de 2016, a chamada PEC do Teto dos Gastos Públicos, na qual estabelece um limite de “gastos” das principais políticas sociais por 20 anos, no caso, as políticas de seguridade social e Educação. Emerge aí na Agenda governamental o reforço do discurso da crise fiscal já presente em anos pretéritos, mas que ganha um novo reforço a partir de 2016. É perceptível que desde a década de 1990, quando o sistema neoliberal ganhou mais força na América Latina, especialmente no Brasil, os governos começaram abrir a economia para o capital privado e isso, consequentemente, refletiu nas políticas públicas. As chamadas políticas sociais liberais (SALAMA; VALIER, 1997), já vinham sendo propostas por instituições internacionais a serem implantadas nos países da América Latina, desde o fim da década de 1980, num contexto de reestruturação das funções do Estado. A citada PEC influencia diretamente a restrição do orçamento da política de assistência social e, por conseguinte, sua exequibilidade. Por sequência, recai na implementação do Programa Criança Feliz, já que o governo, mesmo aprovando o Programa, não apresentou as despesas operacionais administrativas e complementares 1888
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI (automóveis, motorista, despesas de escritório etc.). O que se propôs foi a utilização da estrutura do SUAS, que já não vinha atendendo plenamente suas demandas devido ao exíguo orçamento; dessa forma, era previsível o comprometimento da exequibilidade tanto da política de assistência social, quanto do Programa Criança Feliz. É perceptível que programas como o Criança Feliz, é recorrente no cenário político e nas Agendas governamentais como grandes inovações; entretanto, o êxito quase sempre é repentino e provisório, além de serem extremamente focalizados. E um dos principais condicionantes dessas características é a escassez de recursos a que lhes são destinados, principalmente, por não ter garantido um orçamento. 3 O PROGRAMA CRIANÇA FELIZ E SUA RELAÇÃO COM A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Como vimos, o Programa Criança Feliz10 é de caráter intersetorial a partir da articulação de ações das políticas de Assistência Social, Saúde, Educação, Cultura, Direitos Humanos e Direitos das Crianças e dos Adolescentes, entre outras. Se coloca de forma descentralizada e integrada, já que, de acordo com seu artigo 7º, se dará “por meio da conjugação de esforços entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, observada a intersetorialidade, as especificidades das políticas públicas setoriais, a participação da sociedade civil e o controle social”. Ao público em geral, é uma proposta que se apresenta como inovadora no campo da política social, no entanto, um possível êxito requereria bem mais do que intenções normativas. Um primeiro ponto que destacamos quanto a essas intenções, diz respeito aos objetivos para seu público-alvo: I - promover o desenvolvimento humano a partir do apoio e do acompanhamento do desenvolvimento infantil integral na primeira infância; II - apoiar a gestante e a família na preparação para o nascimento e nos cuidados perinatais; III - colaborar no exercício da parentalidade, de modo a fortalecer os vínculos e o papel das famílias para o desempenho da função de cuidado, proteção e educação de crianças na faixa etária de até seis anos de idade; IV - mediar o acesso da gestante, das crianças na primeira infância e das suas famílias a políticas e serviços públicos de que necessitem; e 10 Convém ressaltar que o Programa Criança Feliz está em consonância com o Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016) aprovado durante a gestão de Dilma Rousseff. O Marco traz as diretrizes para a formulação e a implementação de políticas públicas para a primeira infância em atenção à especificidade e à relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e no desenvolvimento do ser humano. 1889
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI V - integrar, ampliar e fortalecer ações de políticas públicas destinadas às gestantes, às crianças na primeira infância e às suas famílias. (BRASIL, 2018). Percebe-se que os objetivos são serviços que já são ofertados ou deveriam ser por outras políticas sociais. No caso, a própria política de assistência social agrega algumas dessas finalidades com os serviços de caráter socioassistencial; assim como a política de saúde que também adita alguns desses objetivos. Contudo, essas políticas, muitas vezes, deixam de ofertar esses serviços devido à falta de recursos, sob a alegação do próprio Estado que, ancorados no discurso da “crise”, cortam investimentos para a saúde, assistência social, educação, entre outras políticas que, recorrentemente, são as mais afetadas e, com isso, vão sendo, cada vez mais, sucateadas. Com o processo de descentralização das políticas sociais desde a aprovação da CF88, o repasse desses recursos é realizado via Fundo entre os entes federados. Para Silveira (2017, p. 488), “[...] a dificuldade na execução de recursos repassados pelo Fundo Nacional de Assistência Social aos municípios [...]” é que “[...] a ausência de padrões relativos aos custos dos serviços”, são pontos que facilitam a agenda de contrarreforma neoliberal do governo; e, é nesse contexto que o Programa Criança Feliz ganha projeção, já que os repasses não seguem os mesmos trâmites da política de assistência social. Em uma tentativa de minimizar a política de assistência social na Agenda estatal, o governo publica, em fevereiro de 2017, uma cartilha de orientações intitulada “A participação do SUAS no Programa Criança Feliz”. O próprio título do documento mostra a discrepância sobre a atuação do SUAS, como se o programa fosse algo descolado da política de assistência social, como especifica no texto: “A política de Assistência Social é uma das políticas que integra o Programa Criança Feliz” (BRASIL, 2017, p. 8). Essa é mais uma forma de colocar a política de assistência social na berlinda, até porque após 32 anos de ter alçado o status de política pela CF88, muitas vezes, ela não é vista como tal. Fato esse que a deixa mais vulnerável aos ataques de governos neoliberais, pois “o SUAS representa um projeto de implantação de uma rede de proteção estatal, continuada, que contraria a programática neoliberal.” (SILVEIRA, 2017, p. 495). De acordo com a cartilha supra citada, a premissa é que o Criança Feliz possa aprimorar os serviços já existentes que são direcionados às gestantes, crianças da 1890
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI primeira infância e suas famílias (BRASIL, 2017). Isso explicita mais um dos aspectos de fragmentação da política de assistência social, já que o Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), serviço da proteção social básica do SUAS, engloba toda a família, com um detalhe: seu conceito de família é mais amplo, tal como está presente na PNAS de que vai para além de laços sanguíneos, mas engloba também laços afetivos e de solidariedade. (BRASIL, 2012). Outro ponto que merece maior atenção é a contratação do que se denomina de visitadores sociais para atuar de forma direta com a população usuária. O que tem ocorrido é a contratação provisória desses visitadores por meio de processos seletivos com oferta de salário precário em contraposição a realização de contratos de trabalho permanentes propostos pela PNAS. Ora, quando a política de assistência social é posta como o principal suporte para a execução do programa, cria-se um verdadeiro conflito de identidade no âmbito dos municípios que, além de disputarem os parcos recursos que o programa disponibiliza, ainda tem que lidar com a contenda de escolhas, desprestigiando os serviços socioassistenciais e, igualmente, o trabalho de profissionais habilitados para cargos específicos. O próprio PAIF deixa claro que a equipe disposta ao trabalho social com famílias deve ser feito com saberes específicos (BRASIL, 2012), enquanto no Criança Feliz, os visitadores são profissionais de nível médio e superior, mas sem deixar claro que tipo de especialização se requer para esses últimos (BRASIL, 2017). Diante o exposto, é perceptível como a criação do Criança Feliz é mais uma estratégia governamental que também foi assumida pelo atual governo de Jair Bolsonaro e tenta invisibilizar a política estatal de assistência social que vem passando por um sucateamento ascendente. É um programa pontual, focalizado, típico de governos alinhados aos discursos neoliberais de combate à pobreza extrema devido as consignações realizadas em prol dos organismos internacionais (SALAMA; VALIER, 1997) que para garantir a continuidade de cessões financeiras internacionais, legitimam a redução de recursos destinados as políticas sociais públicas. Ademais, a centralidade na focalização dos serviços e ações rompe de forma contundente com o caráter universalizante da assistência social garantido constitucionalmente. De forma prática, os usuários sofrem pela minimização e 1891
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI sucateamento dos serviços socioassistenciais, tanto pela retração dos serviços da política de assistência social, quanto pela desconsideração da importância de profissionais efetivos. Isso porque se abre espaço para a sobreposição dos serviços e ações socioassistenciais e para a disputa no mercado de trabalho por uma espécie de trabalho precarizado, sem garantias trabalhistas e que precede uma alta rotatividade dado o caráter temporário dos contratos. 4 CONCLUSÃO Como já abordamos, desde o final dos anos 1970, no Brasil os governos tinham como centralidade Agendas de reformas que, mesmo atentos aos movimentos sociais em ebulição, fossem favoráveis ao mercado. Essa correlação entre mercado e expressões da questão social repercutiram na Agenda governamental (Agenda sistêmica) que, por sua vez, impulsionou algumas demandas que se colocaram como necessárias à Agenda estatal na década seguinte. “De qualquer forma, diríamos, a questão da democracia e a questão social tiveram importância na década de 80” (SOUZA, 2013, p. 92). Ao longo dessas quatro décadas, o que se identifica nas Agendas governamentais é a recorrência de programas assistenciais de caráter focalizado, caritativo, desresponsabilizando o Estado para o cumprimento de suas finalidades no âmbito social, priorizando as questões referentes à política econômica. Se por um breve momento, o país pôde usufruir de pequenas amostras do que se denomina um Estado Social, a contraposição a essa perspectiva veio através da radicalização político- ideológica. A resposta mais explícita dessa reação político-ideológica de caráter conservador para as políticas sociais veio através da chamada PEC do Teto dos Gastos Públicos, que estabeleceu um limite de “gastos” para as políticas de seguridade social e Educação. E isso foi se concretizando através de Medidas Provisórias e outros dispositivos que se justificaram através do “contingenciamento” dos recursos para universidades, de cortes na educação básica, saúde e assistência social, da suspensão e/ou redução de programas de educação, do veto à realização de concursos públicos, dentre outros. 1892
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Na área da assistência social, como já apontamos, emerge programas que “disputam” espaço com a PNAS. São programas de caráter focalizado, assistencialista e com um agravante peculiar: o retorno do primeiro-damismo à cena política nacional. Essa característica oscila de forma recorrente nos programas de governo obstaculizando as políticas estatais que agregam de forma mais realista as demandas advindas da sociedade e foram garantidas na CF88. Nesse interim, o Programa Criança Feliz, assim como o Programa Comunidade Solidária, de 1995, expressam características como primeiro-damismo, filantropia e assistencialismo. A inovação que foi possível identificar entre os programas supracitados é que o Programa Criança Feliz mantém inter-relação com a política de assistência social, mesmo descaracterizando-a. É explícito o desmonte das políticas sociais e aqui ressaltamos a assistência social como exemplo desse retrocesso. Segundo propagandeado pelo governo “o Programa Criança Feliz fortalece a trajetória brasileira de enfrentamento da pobreza com redução de vulnerabilidades e desigualdades e potencializa a integração do acesso à renda com inclusão em serviços e programas”. (BRASIL, 2017, p. 6). Ora, se a política estatal de assistência social durante mais de três décadas após sua regulamentação não foi capaz de atingir um êxito pleno, como um programa de governo pode alcançar tal feito? Como se trata de um programa ainda em implementação, é prudente que se tenha alguns resultados concretos para julgar o mérito. Muito embora, os resultados dispostos nos primeiros relatórios pelo site do Ministério da Cidadania não sejam exitosos. Pelo exposto, mas também por outros elementos da conjuntura atual, como o desemprego e a terceirização, são aspectos contribuem para o desmonte das políticas públicas, mas também a assistência social. É visível a falta de profissionais efetivos para que os serviços socioassistenciais tenham continuidade e possa, de fato, contribuir para o desenvolvimento humano e social das pessoas que os buscam. Contudo, a omissão dos gestores em de fato minimizar a política de assistência social, leva um número significativo de profissionais desempregados a se submeterem ao trabalho temporário, precarizado e, quiçá, terceirizado para realização de atendimentos também precarizados desprovidos da infra-estrutura preconizada pela PNAS/SUAS. 1893
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI REFERÊNCIAS BRASIL. A participação do SUAS no Programa Criança Feliz. Brasília, fev. 2017. Disponível em: https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/SUAS_ no_CriancaFeliz.pdf Acesso em: 30.ago.2019. BRASIL. Decreto n. 9.579, de 22 de novembro de 2018. Consolida atos normativos editados pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre a temática do lactente, da criança e do adolescente e do aprendiz, e sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente e os programas federais da criança e do adolescente, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Decreto/D9579.htm Acesso em: 30.ago.2019. BRASIL. Decreto n. 8.869, de 5 de outubro de 2016. Institui o Programa Criança Feliz. Brasília, DF: Presidência da República, 2016. Disponível em: http://www.mds.gov.br/cnas/legislacao/decretos/arquivos/decreto-8-869-05-10- 2016.pdf Acesso em: 5. jun. 2020. BRASIL. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília, DF: Senado Federal, 2016. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/norma/540698/publicacao/15655553 . Acesso em: 5 de jun. 2020. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Orientações Técnicas sobre o PAIF. Brasília, 2012. Disponível em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Orienta coes_PIF_2.pdf Acesso em: 10 de jun. 2020. CASTRO, Márcia da Silva Pereira. Implementação da política de assistência social em Mossoró/RN: uma avaliação a partir dos Centros de Referência da Assistência Social. Dissertação. Natal, RN, 2009, 168f. (Mestrado em Ciências Sociais). Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2009. COBB, W. Roger; ELDER, V. Charles. The politics of agenda building: an alternative perspective for modern democratic theory. Journal of Politics, v. 33, 1971. KINGDON, John W. Agendas, alternatives, and public policies. 2. ed. Michigan: Addison-Wesley Educacional Publishers, 1995. MELO, Marcus André B. C. de. As sete vidas da agenda pública brasileira. In: RICO, Elizabeth Melo (Org.). Avaliação de políticas sociais: uma questão em debate. São Paulo: Cortez: Instituto de Estudos Especiais, 1998. MELO, Marcus André B. C. de. Interesses, atores e a construção histórica da agenda social do Estado no Brasil (1930/90). Ciências Sociais Hoje, São Paulo, 1991. 1894
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI MOTA, Ana Elizabete. Cultura da crise e Seguridade Social: um estudo sobre as tendências da previdência e da assistência nos anos 80 e 90. São Paulo: Cortez, 1995. PERES, Thais Helena de Alcântara. Comunidade Solidária: A proposta de um outro modelo para as políticas sociais. Civitas, Porto Alegre, v. 5, n. 1, jan.-jun. 2005, p. 109- 126. SALAMA, Pierre; VALIER, Jacques. Pobrezas e desigualdade no terceiro mundo. (trad. Catherine M. Matieu). São Paulo: Nobel, 1997. SILVEIRA, Jucimeri Isolda. Assistência social em risco: conservadorismo e luta social por direitos. Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 130, p. 487-506, set./dez. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.120 SOUZA, L. M. DE. A agenda e as agendas no Brasil. Revista Cronos, v. 7, n. 1, 9 jan. 2013. 1895
EIXO TEMÁTICO 4 | SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA A (RE)CONSTRUÇÃO DA REDE DE ATENDIMENTO INTERSETORIAL: traçando estratégias para um atendimento integral no CRAS Cidade Nova. THE (RE)CONSTRUCTION OF THE INTERSECTORIAL SERVICE NETWORK: outlining strategies for a comprehensive service at CRAS Cidade Nova. Amanda Santos Oliveira Porto1 Bruna Layanne Sousa Carvalho2 Denise Maria Leal3 RESUMO O presente artigo tem como objetivo discutir a intersetorialidade no contexto da proteção social básica, utilizando como lócus a realidade do CRAS Cidade Nova, em Timon- MA. A metodologia adotada foi revisão de literatura, que serviu de suporte para a análise da dinâmica de intervenção. Dessa forma, foi possível concluir que a intersetorialidade faz parte da natureza da política de assistência social. Portanto, a (re)construção de uma rede de atendimento intersetorial evidencia um compromisso em garantir atendimento integral, pensando o ser social como ser holístico. Esse processo, marcado por desafios e correlações de força, tem se mostrado como um caminho possível, para uma intervenção mais efetiva junto ao público do SUAS. Palavras-chaves: Intersetorialidade. Assistência Social. Centro de Referência de Assistência Social. ABSTRACT This article aims to discuss intersectorality in the context of basic social protection, using the reality of CRAS Cidade Nova in Timon-MA as the locus. The methodology adopted was a literature review, which served 1 Psicóloga da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social de Timon - MA e Secretaria de Saúde de Timon - MA. Especialista em Saúde Mental- Centro Universitário Uninovafapi. E-mail: [email protected] 2 Assistente Social da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social de Timon - MA e da Secretaria Municipal de Assistência Social de Colinas - MA. Especialista em Gestão Pública Municipal pela Universidade Federal do Maranhão e em Educação Especial e Inclusiva-Universidade Estadual do Maranhão. E-mail: [email protected] 3Assistente Social da Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência Social e Políticas Integradas, Teresina - PI e da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social de Timon- MA. Mestra em Políticas Públicas, pela Universidade Federal do Piauí. E-mail: [email protected]. 1896
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI as support for the analysis of the intervention dynamics. Thus, it was possible to conclude that intersectorality is part of the nature of the social assistance policy. Therefore, the (re) construction of an intersectoral service network shows a commitment to guarantee comprehensive care, thinking of the social being as a holistic being. This process, marked by challenges and correlations of strength, has shown itself as a possible path, for a more effective intervention with the SUAS public. Keywords: Intersectoriality. Social assistance. Reference Center for Social Assistance. INTRODUÇÃO A intersetorialidade faz parte da natureza da política de assistência social, que para intervir na perspectiva da garantia da proteção social, diante de uma realidade social intensamente marcada pelo agravamento das expressões da questão social, precisa atuar de forma integrada as inúmeras políticas setoriais. Tal processo, entretanto, não é automático, exigindo o aprimoramento de estratégias intersetoriais. O objetivo desse artigo é discutir a intersetorialidade na dinâmica da proteção social básica, utilizando como lócus a realidade do CRAS Cidade Nova, em Timon - MA. Para tanto, foi utilizada revisão de literatura para subsidiar a análise da dinâmica que permeia a (re)construção da rede de atendimento intersetorial em Timon - MA, que teve início a partir da proteção social básica, no território do CRAS Cidade Nova. Para essa análise a discussão aqui empreendida se debruçou sobre a intersetorialidade, problematizada na primeira seção, ancorada essencialmente nas discussões de Junqueira, Inosoja e Komatsu (1997), no entendimento da mesma como prática de gestão de articulação de saberes, vontade e poder. A análise da intersetorialidade na política de assistência social, apontou a relevância e os desafios postos nessa relação, tendo como suporte a análise de Sposati (2004). As ponderações de Teixeira (2002) serviram de base para abordar a intersetorialidade na proteção social básica em Timon, através de uma análise da realidade social que serviu de solo para os movimentos de (re)construção de uma rede atendimento intersetorial. Esse processo, marcado por desafios e correlações de força, tem se mostrado como um caminho possível, para uma intervenção mais efetiva junto ao público do SUAS. 1897
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 2 PENSANDO A INTERSETORIALIDADE O termo intersetorialidade se efetiva ou se desenvolve entre dois ou mais setores; que compreende mais de um ramo, domínio, subdivisão ou seção. Nesse sentido, a intersetorialidade das ações passa a ser uma dimensão valorizada à medida que se observa a necessidade de compreender a importância da não fragmentação do atendimento diante de cada política, além de articular saberes e experiências para resolução de problemas complexos. Segundo Bidarra (2009), optar pela intersetorialidade é preferível porque investe numa lógica para a gestão que considera o cidadão e por isso busca superar a fragmentação das políticas sociais; investe no aprendizado sobre como lidar com as tensões produzidas, quando se tem diferentes setores e atores, com diferentes concepções de mundo, tendo que negociar uma resposta partilhada para os problemas que lhe são comuns. O fortalecimento desta possibilita a articulação de diferentes setores, com escopo de resolutividade das ações para melhor atender ao usuário otimizando assim os serviços ofertados. Assim, dentre as constatações pleiteadas pelos autores acerca da intersetorialidade, tem-se o seguinte conceito: Intersetorialidade é aqui entendida como a articulação de saberes e experiências no planejamento, realização e avaliação de ações, com o objetivo de alcançar resultados integrados em situações complexas, visando um efeito sinérgico no desenvolvimento social. Visa promover um impacto positivo nas condições de vida da população, num movimento de reversão da exclusão social. (JUNQUEIRA; INOSOJA; KOMATSU, 1997, p. 24) No entanto, é necessário compreender que não ocorrerão resultados positivos apenas pela ligação de diferentes setores diante de uma situação problema ou com uma delegação de responsabilidade de um setor para o outro. Deve haver o compartilhamento de conhecimentos e de experiências, mas, principalmente, um comprometimento, pois uma rede não pode ser puramente formal. Dessa forma: [. . ] As práticas intersetoriais, por se pautarem em articulações entre sujeitos e setores sociais diversos e, portanto, de saberes, poderes e vontades diversas se apresentam como uma nova forma de trabalhar e de construir 1898
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI políticas públicas. Estas políticas devem possibilitar o enfrentamento de problemas e devem produzir efeitos mais significativos para as pessoas. (MACHADO, 2008, p. 1). Logo a construção da intersetorialidade se desenvolve através de espaços acessíveis, que possibilitem um resultado não necessariamente imediatista, mas que possa adicionar na descoberta da possibilidade de resolução e ação. Entender a intersetorialidade como estratégia democratizada, de vários saberes e poderes, é relevante para a construção de uma resposta a uma determinada situação. Para Junqueira (1997) a construção da intersetorialidade se dá a partir da articulação de vários setores e envolve distintos atores sociais, tais como: governo, sociedade civil organizada, movimentos sociais, universidades, autoridades locais, setor econômico e mídia, tendo como preceito a reunião de vários saberes e possiblidades de atuação, no sentido de viabilizar um olhar mais amplo sobre a complexidade do objeto, a fim de possibilitar a análise demandas, no âmbito de um dado território e contexto. Assim, a intersetorialidade permite considerar o cidadão na sua totalidade, nas suas necessidades individuais e coletivas, demonstrando que ações resolutivas requerem um olhar holístico, num contexto que incite e promova mecanismos de envolvimento da sociedade. 3 A INTERSETORIALIDADE NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL A política de assistência social é recente no Brasil, marcada por um processo histórico que envolve um misto de conservadorismo com um viés marcado pela reconfiguração de sua prática em busca de efetivar-se a cidadania e o direito social. Sposati (2004) considera a assistência social como política pública que deve ofertar a provisão de necessidades fora do mercado, financiadas pelo orçamento público, através de uma rede de proteção social básica e especial, que rompe com a noção dos cidadãos como massa abstrata e se direciona para um conceito do real que trabalha a partir de potencialidades, talentos, desejos, capacidades de cada um e dos grupos social. Logo na sua regulamentação, através da Lei Orgânica de Assistência Social, a assistência social figura como uma política que deve realizar-se de forma integrada às políticas setoriais, visando ao enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimos 1899
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI sociais, ao provimento de condições para atender contingências sociais e à universalização dos direitos sociais (BRASIL, 1993). Tal perspectiva aponta para uma articulação necessária para efetivar o impacto de ações socioassistenciais e de serviços públicos de qualidade às famílias, ou seja, efetuar o processo de intersetorialidade como prática de gestão. A intersetorialidade adota esse conceito em relação à comunidade, destacando a base territorial como um dos significativos espaços para a articulação intersetorial de necessidades e de conhecimentos que residem dois campos: A intersetorialidade no conhecimento da realidade que supões a produção de informação que fortalece as evidências sobre os determinantes e condicionantes intersetoriais na produção de necessidades sociais. Aqui com a participação de técnicos gestores e de representantes dos territórios é possível enxergar o que gera demandas ou as principais circunstâncias que geram vulnerabilidade ou risco social para o conjunto das políticas sociais responderem com efetividade. A intersetorialidade na ação que supõe a criação de articulação intersetorial para potenciar ações e resultados como, por exemplo, na criação de uma rede local que busque aperfeiçoar fluxos e processos de trabalho para um alcance maior da população, uma melhoria no fluxo comunicacional e de reconhecimento compartilhado das expressões da questão social que gera uma resposta melhor e integral as demandas comunitárias (SPOSATI, 2004, p.52). A complexidade da realidade social exige um conjunto de ações organizadas e planejadas dentro da realidade profissional, institucional e comunitária, assim como a articulação com outros serviços, com as parcerias ou trabalho em rede para realização de um melhor trabalho e de construção de novos saberes, como estratégias de enfrentamento de expressões da questão social de maneira integral. A PNAS, aprovada em 2004, reforçou o conceito de intersetorialidade ao apontar que os serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica deverão se articular com as demais políticas públicas locais, de forma a garantir a sustentabilidade das ações desenvolvidas e o protagonismo das famílias e indivíduos atendidos, de forma a superar as condições de vulnerabilidade e a prevenir as situações que indicam risco potencial. Deverão, ainda, se articular aos serviços de proteção especial, garantindo a efetivação dos encaminhamentos necessários (BRASIL, 2005). O SUAS, com a diretriz da descentralização da gestão, cria uma maior aproximação com os territórios ou comunidades, ofertando aos trabalhadores e gestores uma oportunidade de olhar, 1900
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI trabalhar e gerir com maior proximidade as especificidades de seus municípios e seus territórios. A operacionalização da Assistência Social com base na descentralização e no território, aliada a intersetorialidade das políticas públicas é estratégia em meio às relações sociais heterogêneas para que se possa alcançar as famílias de maneira mais eficaz e, conforme aborda Giaqueto (2010), operacionalizar a política em rede é um dos caminhos para superar a fragmentação em sua prática que vai além da esfera operacional, ampliando-se a esfera de decisão política. Maciel (2015) problematiza esse processo, ao afirmar que ao mesmo tempo em que no processo de implementação do SUAS a intersetorialidade traz ganhos a população, para a logísticas das ações, estruturação de novas práticas, conceitos e linguagem, abrem-se novos problemas e desafios à superação da fragmentação e à articulação das políticas públicas e a consolidação de uma nova cultura de política para a qual se faz necessário um processo contínuo de capacitação dos diferentes atores. A intersetorialidade propõe superar a fragmentação das ações, de práticas clientelistas, assistencialistas que permeiam a história da política de Assistência Social, e que infelizmente ainda coexiste com as práticas colaborativas e democráticas. Traçar estratégias intersetoriais é um caminho viável para execução de políticas públicas mais transparentes, visando superar ranços históricos que ainda se fazem presentes e que desvirtuam o significado da assistência social. As políticas setoriais, conforme Nascimento (2010), apresentam dificuldades para implementar estratégias intersetoriais, por conta da própria cultura e outras questões que vão incidir sobre a execução das políticas, já que pode defrontar interesses e mecanismos “políticos” para a sua existência e importância. Tal processo evidencia o impacto das correlações de força na execução de políticas públicas. Nessa perspectiva, a política de assistência social não deve ser vista apenas como ação automática e engessada. Pereira (2004) assinala que a distribuição de apoios e auxílios compensatórios não é seu papel, missão ou premissa fundamental e se distanciar de um eixo capilarizador poderá inviabilizar sua proposta intersetorial e interdisciplinar. A autora destaca ainda que a assistência social é uma unidade de 1901
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI processos diversos, porém interligados com escolhas e decisões coletivas entre Estado e sociedade nas suas relações de antagonismo e reciprocidade. Além do que é Preciso superar o ideário da política de medida residual, isolada, isto é, paliativa, desvinculada das demais políticas sociais e econômicas, ideário resultante do neoliberalismo que prega a não primazia do Estado na condução das políticas públicas, mas sim que as necessidades sociais não passam de preferencias individuais, que podem ser mais bem atendidas pelo mercado (PEREIRA, 2004, p. 56). É preciso efetivar a intersetorialidade e lidar com a correlação de forças impostas pelas práticas conservadoras e que entrelaçam a política de assistência social e a lançam num rol de política pública de terceiros ou política da desassistência. Dessa forma a implementação de ações inclusivas socialmente deve romper com amarras assistencialistas, frente à realidade precária e desprovida de serviços públicos essenciais. A intersetorialidade na via prática é a porta de entrada e também saída resolutiva para gerar integração entre a prestação de serviços públicos ofertados pelo Estado. A intersetorialidade aqui analisada é a que Sposati (2006) destaca como pacto de uma ação coletiva, integrada para um objetivo e que: Causa mudanças na cultura da gestão e na cultura dos agentes institucionais, a ideia do pacto de gestão vai além da solução de problemas ou do aumento da capacidade de resolução. Produz uma nova inteligência institucional, um novo domínio da realidade e traz o debate da inovação, superando o modelo de resposta única e pronta. Com isto permite a porosidade democrática no modelo de gestão que possibilita enfrentar novos problemas, criar novas linguagens e novas respostas. (SPOSATI, 2006, p.140) A intersetorialidade na política de Assistência Social junto às outras políticas setoriais é um desafio que deve ser enfrentado, reconfigurado e que necessita para se efetivar de comprometimento, capacitação, profissionalismo, financiamento e planejamento, pois apresenta possibilidades no tocante a articulação com diferentes atores, influenciando respostas que o Estado deve ofertar, através da discussão de estratégias de trabalho, apreendendo o que cada política pública e a comunidade podem colaborar, construindo uma vontade deliberativa e política local, com trabalho em rede, para que se possam executar estratégias e respostas às demandas das famílias. 1902
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 4 A INTERSETORIALIDADE NA PROTEÇÃO SOCIAL BASICA EM TIMON: traçando estratégias para um atendimento integral no CRAS Cidade Nova. A realidade social, intensamente marcada pelas contradições do sistema capitalista, apresenta nuances cada vez mais complexas, forjadas sob uma ótica neoliberal, que reduz as possibilidades concretas de intervenção nas inúmeras expressões da realidade social. As demandas sociais, fruto desse contexto, exigem a (re)construção contínua de estratégias de intervenção, que reflitam a complexidade subjacente, mas que também estejam embasadas em ações planejadas. A complexidade das demandas vivenciadas pelas famílias acompanhadas no CRAS Cidade Nova exige constantes encaminhamentos a serviços e políticas setoriais. O acompanhamento familiar, no âmbito do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família- PAIF constitui um processo complexo que extrapola a demanda imediata, indo buscar, junto com a família, desvelar a realidade social subjacente e as possibilidades de superação das expressões vivenciadas. A intersetorialidade está entre os princípios organizativos do SUAS, que defende a “integração e articulação da rede socioassistencial com as demais políticas e órgãos setoriais” (BRASIL, 2012). Como “porta de entrada” das demandas no Sistema Único de Assistência Social, os CRAS necessitam constantemente realizar essa interlocução com outras políticas e serviços, visando o atendimento das famílias de forma integral. Pensar a perspectiva da intersetorialidade na realidade do território do CRAS Cidade Nova abriu a possibilidade de direcionar o processo na perspectiva de construção de uma rede de atendimento intersetorial, haja vista a necessidade de formalizar ações que já eram realizadas cotidianamente, pela própria dinâmica dos serviços, mas que necessitavam ampliar os espaços de diálogo e integração. [...] as redes têm sido vistas como a solução adequada para administrar políticas e projetos onde os recursos são escassos, os problemas são complexos, existem múltiplos atores envolvidos, interagem agentes públicos e privados, centrais e locais, há uma crescente demanda por benefícios e por participação cidadã (TEIXEIRA, 2002, p.1). Nessa perspectiva, a construção de uma rede territorializada, permite articular uma demanda crescente pela política de assistência social, visando uma perspectiva de 1903
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI atendimento integral às famílias. A própria perspectiva da territorialização dos serviços no âmbito do SUAS deixa latente a necessidade de interligação entre os diversos serviços dispostos. “[...] as ações públicas da área da Assistência Social devem ser planejadas territorialmente, tendo em vista a superação da fragmentação, o alcance da universalidade de cobertura, a possibilidade de planejar e monitorar a rede de serviços, realizar a vigilância social das exclusões e de estigmatizações presentes nos territórios [...] (COUTO; YAZBEK; RAICHELIS, 2014, p. 73) A territorialização constitui um ponto essencial para pensar a intervenção dentro da política de assistência social. O território pensado, além de sua dimensão geográfica, mas pela perspectiva dinâmica das relações ali constituídas, conforme afirma Sposati (2006, p. 138): A intersetorialidade se aplica muito bem aos territórios vulneráveis. [...] o território não e só a geografia do córrego, do beira-rio, ou do morro que desliza. Mais do que isso é a topografia geradas pelas ações do Estado, do mercado, da sociedade. Topografia de relações culturais sociais, econômicas e políticas, de ocupação de lugares, de distribuição de serviços, de acessos, de viabilidade de viver o cotidiano face ao modo de inserção de cada um no processo produtivo. Na conjuntura do CRAS Cidade Nova, a perspectiva inicial apontava uma articulação a nível do território de abrangência. Entretanto, a própria dinâmica da articulação em construção foi exigindo o ingresso dos demais CRAS de Timon, como uma necessidade sentida pelas instituições que passaram a compor a rede de atendimento. O debate acerca do diálogo intersetorial demonstrou os desafios vivenciados pelas diversas políticas na consecução de sua atuação. Serviços que dividiam o mesmo público evidenciaram a necessidade de diálogo, visando encontrar caminhos para garantir a integralidade do atendimento. A criação e manutenção da estrutura de redes impõe desafios administrativos fundamentais, vinculados aos processos de negociação e geração de consensos, estabelecimento de regras de atuação, distribuição de recursos e interação, construção de mecanismos e processos coletivos de decisão, estabelecimento de prioridades e acompanhamento (TEIXEIRA, 2002, p. 2) No processo de (re)construção da rede de atendimento intersetorial de Timon foram intensos os desafios enfrentados, em face de um cotidiano institucional 1904
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