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EIXO 4 - Seguridade Social: Assistência Social, Saúde e Previdência

Published by Editora Lestu Publishing Company, 2021-01-22 14:30:02

Description: Seguridade Social: Assistência Social, Saúde e Previdência

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ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI No ECA, em seu artigo 4º afirma que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade a efetivação dos direitos...” colocando nitidamente a responsabilidade do Estado no desenvolvimento das crianças e adolescentes. O programa em análise, por sua vez desresponsabiliza o Estado, e põe nas famílias a responsabilidade. Essa situação, se dá, pelo fato de justificarem a criação do Programa Criança Feliz, alegando que uma criança estimulada em sua primeira fase da vida tem maiores chances de escolaridade e, por conseguinte, profissões melhores, findando por ajudar a família a superar a situação de pobreza. Mais uma vez, segundo o Conselho Federal de Serviço Social (2017), “é imputada às famílias pobres a ignorância e a falta de cuidado dos filhos, mesmo que o Estado não lhes assegure condições para isso!” (p.02). Comprova-se, então, a busca de transferências de funções estatais de responsabilidade com o social para setores da própria sociedade, principalmente objetivando desresponsabilizar o Estado perante o desenvolvimento de políticas de cariz público. O Estado, então, vai se constituindo como fiel depositário de interesses privados em detrimento dos coletivos, em que a cultura do favor, clientelismo e patrimonialismo alicerçam a via de acesso aos direitos sociais no Brasil. (Arcoverde, Alcantara e Bezerra, 2019, p.190). Ressalta-se, em suma, que em todos os fatos supracitados, há uma desconsideração quanto à determinação constitucional de a assistência social, juntamente com a saúde e a previdência social, ser uma política de seguridade social. Havendo uma nítida desconstrução da Política Pública de Assistência Social. CONSIDERAÇÕES FINAIS Falar do Programa Criança Feliz, é abordar a sua temática e problematizá-la. Afinal, além daquelas que foram supracitadas, muitas são as questões que devem ser levadas em consideração, no que diz respeito ao âmbito das políticas públicas de direito, mais especificamente a assistência social. Quanto ao Programa Criança Feliz e as políticas públicas, Sposati nos afirma que o PCF: Parece desconhecer o Sistema de Garantias de Direitos e se apresenta como um programa periférico, gerando expectativas de direitos sem segurança 1605

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI jurídica e metodológica para afiançá-los. Seu conteúdo traz enunciados de política pública sem explicitar os procedimentos concretos de seu desenvolvimento, principalmente num pretenso diálogo intersetorial com as demais políticas públicas. (2017, p. 533). É nítido que o estudo em questão se colocou de forma contra ao desenvolvimento desse programa, assim como os Conselhos de Serviço Social do país. O que deve ser colocado de forma clara, é que não há oposição aos direitos das crianças e das famílias. Mas sim, busca-se que tais direitos sejam defendidos através de legislações construídas ao longo de vários anos de luta. O que se observa é que o Programa Criança Feliz: parece realizar um salto histórico às avessas, ou para o passado, pois retorna à noção de políticas públicas sociais assentadas na lógica jurídica que evoca a autoridade disciplinar do governo, afirmando relações sociais cuja base material se apoia em relações hierárquicas [...] esse modus vivendi no Brasil de antanho, pré-CF/88, não é mais aceitável. É preciso afiançar a promoção de direitos do cidadão independente de sua situação econômica. (SPOSATI, 2017, p. 536). Essa seletividade do PCF, se choca com o princípio da universalidade do SUAS e da política de assistência social, pois não considera o princípio da igualdade de direitos ao acesso, sem qualquer tipo de discriminação e com a totalidade de abrangência para toda a população em todas as cidades brasileiras. A posição contraria assumida, advém da não concordância com esse governo ilegítimo vigente, que busca se desviar de suas responsabilidades. E para isso, é necessário que se busque o conhecimento necessário para resistir e lutar contra àquilo que venha a ferir os direitos conquistados. O Serviço Social, é uma classe trabalhadora unida aos movimentos sociais e populares que almejam uma mesma direção quanto ao projeto político societário. Por esse motivo, deixamos claro que: Queremos um país com crianças felizes, onde suas condições de vida lhe propiciem a sua felicidade e a de sua família. Não queremos crianças felizes apenas por um momento passageiro, de duração do tempo do visitador, enquanto sua família sucumbe à pobreza, à fome, à violência estrutural, ao desemprego, aos salários baixos ou ao não salário, ao não acesso aos serviços de saúde e de educação infantil. (CFESS, 2017, p.02). Partindo daí, vamos além, afinal, defenderemos que a classe trabalhadora não se submeta a um controle do Estado cada vez maior. E principalmente, que a população, 1606

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI sendo homens ou mulheres, reconheçam-se enquanto protagonistas históricos e tragam o trabalho como raiz da emancipação humana. REFERÊNCIAS ARCOVERDE, Ana Cristina Brito; ALCANTARA, Elisa Celina de; BEZERRA, Josinete de Carvalho. A responsabilização da família na cena contemporânea: particularizando o programa criança feliz. particularizando o Programa Criança Feliz. 2019. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/45221/309 51. Acesso em: 16 jun. 2020. AKERMAN, Deborah; ALCANTARA, Elisa Celina de; BEZERRA, Josinete de Carvalho. Infeliz Programa: criança feliz é aquela que vive em famílias com proteção social.2018. Disponível em: https://static.fecam.net.br/uploads/1521/arquivos/1580620_apresentacao_revisada_ _CBP___Primeira_Infancia_no_SUAS_1.pdf. Acesso em: 16 jun. 2020. BRASIL. Decreto nº 8.869, de 5 de outubro de 2016. Institui o Programa Criança Feliz. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2016/decreto/D8869.htm>. Acesso em: 30 de abril de 2018. _______. Lei nº8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 30 de abril de 2018. _______. Lei nº13.257, de 8 de março de 2016. Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, a Lei no11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei no 12.662, de 5 de junho de 2012. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Lei/L13257.htm>. Acesso em: 30 de abril de 2018. _______. Resolução CNAS nº19, de 24 de novembro de 2016. Institui o Programa Primeira Infância no Sistema Único de Assistência Social - SUAS, nos termos do §1º do art. 24 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Diário Oficial da república Federativa do Brasil, Brasília, DF, 29 de novembro de 2016. CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (Brasil). CFESS. Nota Pública. Por que dizer não ao programa criança feliz. 2017. Disponível em: <http://www.cfess.org.br/arquivos/2017-NotaPublicaCFESS- NaoAoProgramaCriancaFeliz.pdf>. Acesso em: 16 de junho 2020. 1607

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI _______. Nota Pública. Primeiro-damismo, voluntariado e a felicidade da burguesia brasileira! 2016. Disponível em: <http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/1301>. Acesso em: 15 jun. 2020. CONSELHO REGIONAL DE ASSISTENCIA SOCIAL (Belo Horizonte). Diga não ao programa criança feliz.2017 Disponível em: <http://www.cress- mg.org.br/Upload/Pics/e6/e64f2cdf-4935-4b29-82df-286f6255880e.pdf>. Acesso em: 16 de junho de 2020. SPOSATI, Aldaíza. Transitoriedade da felicidade da criança brasileira. Serviço Social & Sociedade, [s.l.], n. 130, p.526-546, dez. 2017. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.122. 1608

EIXO TEMÁTICO 4 | SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA A CONTRARREFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL: um debate necessário na atualidade THE BRAZILIAN SOCIAL SECURITY COUNTER-REFORM: a necessary debate for the present days Priscila Semzezem1 Ester Taube Toretta2 Débora Ruviaro3 RESUMO O atual contexto econômico e político intensifica um conjunto de reformas que atingem a Seguridade Social brasileira, significando um processo de contrarreforma, o qual tende à capitalização mercantil e não à universalização dos direitos. É importante destacar que ao mesmo passo, ocorre uma nova conformação do trabalho somado a elevados índices de desemprego e informalidade, colocando em xeque a sobrevivência dos/as trabalhadores/as brasileiros/as. Este trabalho, construído a partir de uma pesquisa bibliográfica qualitativa, tem como objetivo apresentar um panorama da contrarreforma da Previdência Social brasileira na atualidade, consolidada na Emenda Constitucional nº 103/2019. Palavras-Chaves: Seguridade Social; Previdência Social; Contrarreforma ABSTRACT The current economic and political context intensifies a set of reforms that affect Brazilian Social Security, meaning a process of counter- reform, which tends to market capitalization and not to the universalization of rights. It is important to highlight that, at the same time, there is a new conformation of work added to high levels of unemployment and informality, putting at risk the survival of Brazilian workers. This work, built from a qualitative bibliographic research, 1 Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina, professora do colegiado de Serviço Social Universidade Estadual do Paraná. E-mail: [email protected]. 2 Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]. 3 Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]. 1609

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI aims to present an overview of the counter-reform of nowadays’ Brazilian Social Security, consolidated in Constitutional Amendment nº. 103/2019. Keywords: Social Security; Social Security; Counter-reformation. INTRODUÇÃO O atual contexto brasileiro intensifica a precarização das condições de vida dos/das trabalhadores/as, considerando o desmantelamento do sistema de Seguridade Social indicado principalmente com a atual contrarreforma da Previdência Social, além de outras em curso. Para Silva (2018, p. 132), localiza-se no curso da história das políticas sociais brasileiras um contexto de reformas e contrarreformas, sendo compreendidas “[...] por reformas ampliadoras de direitos e por contrarreformas — restritivas de direitos”. O termo reforma também é utilizado na perspectiva administrativo-financeira para denominar alterações nas políticas públicas que viabilizem os ajustes fiscais implementados no setor econômico. A reforma se apresenta sempre como uma proposta elementar e necessária à eficácia e eficiência do Estado, por vezes segmentada do amplo debate da Seguridade Social. Ao mesmo tempo em que se dissimulam os reais interesses em questão, também se persuade a classe trabalhadora a comparecer enquanto solidária neste processo. O movimento histórico da Previdência Social brasileira revela um modelo de proteção social frágil e limitado a que foram sujeitados os/as trabalhadores/as. Este movimento, por sua vez, está posto em um permanente terreno conflituoso de interesses, em decorrência do antagonismo de classes. Neste sentido, tratar desse objeto sob a sociabilidade capitalista requer a compreensão de que as relações sociais são determinadas por essa, e ainda, conforme descreve Marx (2017, p. 80) “[...] se trata de pessoas na medida em que elas constituem a personificação de categorias econômicas, portadoras de determinadas relações e interesses de classes”. Este artigo objetiva apresentar um panorama da contrarreforma da Previdência Social brasileira na atualidade, consolidada na Emenda Constitucional nº 103/2019. Trata-se do resultado de uma pesquisa bibliográfica de natureza qualitativa. Espera-se 1610

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI que este estudo contribua na tarefa histórica de desvelamento das determinações e impactos que envolvem a contrarreforma da Previdência Social brasileira. 2 A ORIGEM DA SEGURIDADE SOCIAL NO BRASIL Em se tratando do contexto mundial, a origem da Seguridade Social esteve determinada em uma conjuntura econômica, política e social marcada pelo capitalismo monopolista, bem como pelo acirramento da questão social4. Conforme Netto e Braz (2012), ao longo do século XIX na Europa, o antagonismo social confrontava o protagonismo da burguesia conservadora com o proletariado revolucionário. A origem deste antagonismo se apresentava na condição de exploração da classe trabalhadora, marcada pela pobreza e precarização do trabalho. A luta dos/as trabalhadores/as foi fundamental e repercutiu nos direitos sociais, no papel do Estado e na implantação de sistemas de Seguridade Social em diferentes países, sendo o modelo previdenciário aquele de maior relevância na proteção social vinculada ao trabalho. Cabe ressaltar que, dentre as funções assumidas pelo Estado no capitalismo monopolista, aparece o controle e preservação da força de trabalho, bem como a manutenção da reprodução do capital. [...] o Estado - como instância da política econômica do monopólio - é obrigado não só assegurar continuamente a reprodução e a manutenção da força de trabalho, ocupada e excedente, mas é compelido (e o faz mediante os sistemas de previdência e segurança social) a regular a sua pertinência a níveis determinados de consumo e a sua disponibilidade para ocupação sazonal, bem como a instrumentalizar mecanismos gerais que garantam a sua mobilização e alocação em função das necessidades e projetos do monopólio (NETTO, 2009, p. 27). Dentre os modelos de seguridade mais conhecidos estão o de Bismarck, na Alemanha (1883), o de Beveridge na Inglaterra (1942), e o Social Security Act nos Estados Unidos da América (1935), sendo que os dois primeiros nortearam as concepções originárias de Seguridade Social no mundo todo. De formas distintas na concepção e na cobertura, cumpriam a função de ofertar a proteção social aos trabalhadores, 4 Por questão social, compreende-se o conjunto de expressões provenientes da desigualdade social historicamente produzida no modo de produção capitalista. Essas expressões - fome, miséria, pobreza, desemprego, indigência, etc. - tornam-se questão social no momento em que os/as trabalhadores/as se organizam enquanto classe social e exigem seus direitos, a serem viabilizados através de políticas sociais por meio do Estado (SANTOS, 2012). 1611

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI principalmente na impossibilidade do trabalho em detrimento da velhice, doenças ou acidentes. A maior parte dos países que implantaram esses sistemas contou com a expansão do emprego e com uma sociedade de base salarial, constituindo desta forma seu lastro de financiamento (BEHRING; BOSCHETTI, 2008). A relevância destes modelos ultrapassa o significado da proteção ao trabalho em plena expansão da sociedade capitalista, demarcando a luta de classes, a regulação social do Estado, e a conquista de direitos sociais. Contudo, conforme apontam Mota e Tavares (2016, p. 236): [...] essa intervenção social do Estado, via Estado social, ainda que amparada na luta dos trabalhadores e nos direitos por eles conquistados, deve ser compreendida em circunstâncias históricas muito precisas, nas quais incluem as necessidades da reprodução do capital dos 30 anos gloriosos, resultado, entre outros, do pacto fordista/keynesiano, caracterizado pela produção e consumo de massa, ganhos salariais, crédito ao consumidor e benefícios sociais públicos ao trabalhador e sua família. A proteção social e os direitos, antes inexistentes para a classe trabalhadora, tornam-se pauta da agenda pública, sem alterar-se, no entanto, a condição estrutural da sociedade de classes. A partir disso, cada Estado nação apresenta sua própria regulação no reconhecimento destes direitos, estabelecendo seus modelos de Seguridade Social, visto que são construções históricas, políticas e sociais. No Brasil, a instituição de um sistema de seguridade na forma de uma proteção regulada pelo Estado ocorreu posteriormente aos demais países europeus, apresentando características tanto do sistema Bismarck quanto do sistema Beveridge, apresentando- se, portanto, como um modelo híbrido, segundo Behring e Boschetti (2008). Mota (2008) realiza uma análise da legislação previdenciária brasileira, bem como do movimento de constituição da Seguridade Social, o qual iniciou em 1923 com a criação das Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAP), sendo unificadas no ano de 1933 aos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAP). Em 1966, esses institutos foram organizados pelo Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), ainda não abarcando, entretanto, a integralidade da classe trabalhadora brasileira, apresentando-se de forma fragmentada e limitada na proteção, e obtendo a manutenção orçamentária a partir da contribuição dos/as próprios/as trabalhadores/as. Enquanto pano de fundo deste processo, salienta-se que de 1930 a 1960 o país alterou sua base econômico-social de rural para urbano industrial. Conforme Santos 1612

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI (2012), constituiu-se uma força de trabalho industrial assalariada, porém a industrialização e a modernização mantiveram intocados os elementos oligárquicos, autárquicos e senhoriais da burguesia brasileira. Em outras palavras, esses elementos políticos, culturais e econômicos continuaram a influenciar sobre a organização do Estado e o reconhecimento dos direitos da classe trabalhadora. Para a autora, o objetivo da política era incorporar o proletariado à sociedade e formar a identidade desta nova classe trabalhadora urbano industrial. Nesta perspectiva, a transição dos institutos de categorias profissionais para um modelo unificado e gerido pelo Estado era parte de um processo de desenvolvimento do capitalismo industrial. Então, a partir da década de 1970, mesmo durante o período da ditadura militar, houve uma ampliação do número de categorias de trabalhadores/as assegurados/as pelo regime de Previdência Social. Neste processo de unificação, já estava presente o debate da crise administrativa e política dos institutos, os quais atribuíam a critérios políticos e não técnicos os problemas de funcionamento, bem como a razão da crise financeira da Previdência Social (MOTA, 2008). Conforme a autora, apesar de haver ampliação dos benefícios e também de categorias profissionais asseguradas, ainda assim a proteção social brasileira demonstrava insuficiências no atendimento às demandas da classe trabalhadora. Como consequência do modelo econômico e social no período, houve a intensificação das expressões da questão social, representadas num quadro de agravamento da precarização das condições de trabalho, da pobreza, da naturalização do mercado de trabalho informal e desqualificado, na elevação do nível de concentração de renda; avultando-se com isso as desigualdades sociais (SANTOS, 2012). Contudo, as políticas de Previdência Social permaneceram com caráter indenizatório, constituídas por benefícios de condicionalidades restritivas, e vinculadas à contribuição baseada no contrato formal de trabalho. Para Boschetti (2009), como não houve a instituição de uma “sociedade salarial” no Brasil - o que significaria a generalização de empregos formais assalariados - parte da população economicamente ativa nunca teve acesso aos direitos alicerçados no trabalho. Portanto, a organização de um modelo até então construído, alicerçado na perspectiva do trabalho formal, em um país com um grande contingente de trabalhadores informais, significa a não cobertura da proteção social. 1613

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Destaca-se que a partir da metade década de 1980, com a abertura democrática, vivenciou-se um contexto adverso no qual a sociedade brasileira vivenciava limites no crescimento econômico, deflagração da dívida externa, e iniciava a organização social por meio da ação sindical e partidária. Como parte deste movimento, a década de 1980 foi palco de crise da Previdência Social, o que levou a sistematização de diversos projetos sobre esta política (MOTA, 2008). Na esteira desse processo, as expressões da questão social se traduziram em capital político da classe trabalhadora, que aglutinou-se sob movimentos sociais, participando do projeto da Constituição Federal em 1988. Nesta, organizou-se um novo sistema de proteção social para a classe trabalhadora, reconhecendo a Previdência Social como parte integrante da Seguridade Social brasileira. No entanto, a partir do contexto neoliberal evidencia-se um processo de contrarreforma da Previdência Social o que requer situá-la em uma conjuntura política, econômica e social, vivenciada no país a partir da década de 1990. Esta por sua vez, de acordo com Netto (1996), se configura em um momento de transformações societárias, afetando diretamente a forma de viver em sociedade. A política neoliberal preconizou a minimização do Estado para o social. O autor salienta ainda que, “As corporações transnacionais, o grande capital, implementam a erosão das regulações estatais visando claramente à liquidação de direitos sociais” (NETTO, 1996, p. 100). Desta forma, destaca-se que as conquistas não foram e nem são permanentes, pois a contradição em relação aos interesses econômicos e políticos, se revelam e se reconfiguram a cada contexto. Conforme Iasi (2019), prevalecia no imaginário político do período a compreensão de que seria possível uma “democratização da política”, acreditando que a força política dos trabalhadores seria a base para, gradualmente, alterar a ordem econômica. O autor percebe que houve, contudo, uma relativização dos aspectos perversos da ordem econômica capitalista, expressos na concentração de renda e nas desigualdades sociais, minimizando-se seu aspecto insuperável. Isso significa que as conquistas de direitos da Constituição Federal de 1988 apresentam limites na dinâmica da sociedade capitalista, não sendo suficientes para superar a condição de exploração da classe trabalhadora. Reiterando essa ideia, ressaltam Mota e Tavares (2019, p. 237) “a luta de classes se constitui em uma prática 1614

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI que - a despeito de ganhos civilizatórios - não rompe com a reprodução das relações sociais sob o capitalismo.” Diante disso, considerando as propostas de alteração da legislação e a conseguinte regressão de direitos voltados à proteção social da classe trabalhadora, faz- se necessário refletir sobre a contrarreforma da Previdência Social no atual contexto, para compreendermos em que medida as propostas colocam em xeque a sobrevivência de trabalhadores/as brasileiro/as. 3 A CONTRARREFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL NO BRASIL: Aspectos da atualidade Para o sistema capitalista, a Previdência Social é compreendida como uma importante estratégia de reprodução da força de trabalho e de socialização dos custos do trabalho, além de tornar-se um produto de viabilidade mercantil e financeira. Por outro lado, num dado momento histórico, mesmo que diante da necessidade de apaziguamento da população em virtude das lutas e movimentos de reivindicações sociais e sindicais, o Estado instituiu um avanço no sistema de proteção social com a Seguridade Social (CARTAXO, 2016). A relevância do alcance obtido pela Previdência Social na lógica da Seguridade Social, de acordo com Mota (2008), está baseada na fonte de custeio, na organização administrativa, e na participação dos/as usuários/as. Nesta monta, é possível compreender que a contrarreforma da previdência implantada após a Constituição de 1988 almeja afetar o núcleo duro da Seguridade Social. Para além do modelo de proteção social, o que está em questão é a efetivação de um projeto societário que objetiva a expansão dos lucros, impondo a subalternização e a exploração da classe trabalhadora. A contrarreforma é instrumento para o pleno desenvolvimento deste projeto, promovendo a derrocada das garantias sociais no âmbito das políticas públicas. A Previdência Social é uma das mais atingidas porque torna-se um negócio para o capital financeiro, o qual busca ampliar o sistema de previdência privada, ao passo em que se apodera do fundo público. Ao analisar particularmente as políticas sociais, Boschetti (2009) e Salvador (2012) reconhecem uma contrarreforma do Estado em curso, a qual é compreendida numa perspectiva de adaptação da realidade brasileira à lógica do capitalismo mundial. 1615

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI A depender do estágio de desenvolvimento das forças produtivas, do grau de socialização da política e das formas históricas no confronto entre classes, o contexto brasileiro assume características particulares. Silva (2018, p.133), aponta que “o movimento de contrarreforma da Previdência Social”, o qual vem se desenvolvendo no Brasil nos últimos vinte anos, conforma-se a partir de “um pano de fundo estrutural” caracterizado principalmente pelo comando do capital financeiro e pelo crescimento da dívida pública. O Estado é pressionado a destinar os recursos do fundo público para pagamento da dívida pública, favorecendo assim o capital financeiro, em detrimento do financiamento de políticas afirmadoras de direitos sociais. O neoliberalismo privilegia o avanço do mercado, promovendo a privatização de serviços públicos - como no caso da previdência, que passa a ser implementada em fundos privados sob o comando de instituições financeiras do grande capital. Neste sentido, para Boschetti (2009), a contrarreforma suprime e altera direitos sociais por meio de mudanças constitucionais, promovendo verdadeira destruição do conjunto de políticas que compõe a Seguridade Social brasileira, utilizando-se do discurso da modernização e da inviabilidade de financiamento/gestão por parte do Estado. São discursos elaborados, com intuito de apresentar as reformas como a única saída para a superação da crise econômica, ao ponto de converter a própria classe trabalhadora como defensora dessas reformas e reprodutora desses discursos. Estudos de Salvador (2012) sobre o orçamento da Seguridade Social, constatam que o tão propalado déficit da Previdência Social é falacioso, pois na realidade o governo esconde o superávit ao apresentar dados parciais que não retratam o vulto da arrecadação na totalidade do orçamento. Portanto, por trás dessas manobras contábeis, percebe-se o interesse privado na previdência complementar, o uso do fundo público e o destino de recursos para a dívida pública externa. Logo, o capital ganha de todos os lados: seja pela alta capacidade rentista do fundo público, pela dívida pública e seus títulos, pela venda dos serviços privados ou pelo endividamento de pessoas jurídicas e físicas. Perante a sua avidez, é simplista e ingênuo acreditar que as reformas da previdência almejam apenas ajustes. Neste campo de disputa, entre distintos interesses atravessados pelo Estado, emergem propostas de reformas que aniquilam a Seguridade Social de maneira 1616

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI parcelada, começando pela desvinculação de receitas, o congelamento dos investimentos públicos, passando pela flexibilização das regulamentações trabalhistas, até a Previdência Social. Estas ditas reformas, que na verdade tratam-se de contrarreformas, movimentam as estruturas e passam a estabelecer padrões reduzidos nas coberturas de proteção social. No que tange à Previdência Social, alterações significativas contemplaram a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 06/2019, a qual foi aprovada em outubro do mesmo ano, gerando a Emenda Constitucional (EC) nº 103/2019. Esta emenda é marca concreta da reconfiguração dos direitos e do processo em curso da capitalização da previdência social brasileira, visando a obtenção de lucros em detrimento da proteção social. Em síntese, entre as diversas alterações da EC 103/2019, destacam-se o tempo de contribuição para aposentadoria, bem como o cálculo do benefício cujo o valor será de 51% da média dos salários de contribuição, acrescido de 1% por cada ano de contribuição (BRASIL, 2019). Esta alteração indica que o trabalhador precisará contribuir ininterruptamente desde os 16 até os 65 anos de idade, trabalhando, portanto, 49 anos. Torna-se um agravante a condição do/a trabalhador/a informal, que não assegura o recolhimento da previdência. No caso de falecimento de cônjuge vinculado à previdência, o valor percebido passou a ser de 50% do valor total do benefício, tendo um adicional de 10% para cada dependente do casal. As pensões não serão mais vinculadas ao salário mínimo, mas num valor a ser definido por lei. Além disso, o valor extra pago por conta do número de dependentes não será agregado à pensão no momento em que dependentes completarem 18 anos. Também não será possível acumular esse benefício com outra aposentadoria ou pensão (BRASIL, 2019). Essas alterações têm rebatimento na condição de vida da classe trabalhadora. Se pela exaustão e precarização, muitos já visualizavam os benefícios previdenciários como algo inalcançável, com as novas regras torna-se ainda mais difícil o acesso. A mulher trabalhadora é exemplo disso, já que além da dupla jornada de trabalho e dos baixos rendimentos, estenderá em anos a possibilidade de alcance ao benefício. A parcela de mais baixa renda da classe trabalhadora é quem está vivenciando expressivamente a seletividade de acesso imposta por mais essa contrarreforma. 1617

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Outra análise acerca do impacto da reforma considera o tempo médio de vida da população brasileira, que hoje é de 76,3 anos. Entretanto, se considerarmos a diferença dessa média por região - por exemplo, no Norte é de 71,4 e no Sul é de 79,7 (IBGE, 2020) -, provavelmente uma parcela da população brasileira não irá usufruir do direito. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), ainda retratam o número de 38,3 milhões de trabalhadores/as informais no Brasil, o que representa 40,7% do mercado de trabalho neste país; sendo que no último ano 745 mil pessoas ingressaram nesta estatística. Quanto ao desemprego, 12,2 milhões de trabalhadores/as encontram-se nesta condição (IBGE, 2020). Tem ocorrido um crescimento exponencial do desemprego, a intensificação da terceirização, e a flexibilização das relações de trabalho como práticas da realidade brasileira. O processo histórico da formação da força de trabalho ainda denuncia a desigualdade de classe social, raça/etnia, gênero e com alto contingente informal. O contexto recessivo do trabalho formal e as novas conformações incidem em reflexões acerca da proteção social. A contrarreforma da Previdência Social impacta diretamente nos direitos de proteção ao trabalho, deslocando a centralidade para a assistencialização, com o objetivo de reduzir os custos da força de trabalho. Desta forma: “[...] a questão da proteção social migra para a compra de seguros privados ou para a proteção mínima” (MOTA; TAVARES, 2016, p. 247). Assim, no aprofundamento a partir da precarização das condições de vida da classe trabalhadora, o capital retroalimenta a condição de exploração desta classe. Sendo assim, o conjunto de contrarreformas implantadas no Brasil na atualidade, como também a Emenda Constitucional nº 95/2016 que congelou o valor dos investimentos públicos por vinte anos, a reforma trabalhista e a reforma da previdência - revelam um projeto societário levado a cabo pelo capital no contexto de acirramento de políticas neoliberais, reconfigurando a proteção social e a própria capacidade de sobrevivência dos/as trabalhadores/as. Entretanto, compreendemos que assegurar a prevalência da Seguridade Social, e em específico a Previdência Social no atual contexto, representa a garantia de um nível de civilidade aos trabalhadores/as brasileiro/as, porém, não significa a ruptura com o modelo de exploração presente nesta sociedade. 1618

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI CONCLUSÃO Os modelos de Seguridade Social oscilam a depender do movimento do capital, de seu interesse e configuração da força de trabalho, em distintos períodos bem como dos enfrentamentos políticos da classe trabalhadora, o que requer estudos e análises aprofundados e contínuos. No caso brasileiro, observa-se que em nenhum momento da história a totalidade da classe trabalhadora foi objeto de atenção à proteção ampliada em comparação a modelos de Seguridade Social de outros países. Ao longo de sua trajetória, a Previdência Social brasileira foi alterada e atacada sob sua funcionalidade incorporada à seguridade mantendo sua forma organizativa e política sem absorver parte do trabalho, invisível, irreconhecido. Na atualidade, com as inflexões do capital por meio da lógica neoliberal, a Previdência Social se torna uma mercadoria rentável. Portanto, a contrarreforma é parte de um projeto em curso para a garantia de reprodução do capital em detrimento da sobrevivência de trabalhadores/as. Entendemos que a Seguridade Social, bem como a política de Previdência Social não são capazes de mudar uma realidade pautada na exploração. Entretanto, neste momento histórico, representam a luta por um nível de civilidade nas condições de vida de trabalhadores e trabalhadoras brasileiros/as. REFERÊNCIAS BEHRING, Elaine R. BOSCHETTI, Ivanete. Política Social: fundamentos e história. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2008. BOSCHETTI, Ivanete. Seguridade social no Brasil: conquistas e limites à sua efetivação. In: Serviço Social: Direitos Sociais e Competências profissionais. Brasília: CFESS/ABEPSS, 2009. BRASIL. Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. Altera o sistema de previdência social e estabelece regras de transição e disposições transitórias. Brasília, Presidência da República: 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc103.htm. Acesso em: 04 jun. 2020. CARTAXO, Ana Maria Baima. A Seguridade Social em Tempos de Crise do Capital: As Contrarreformas Previdenciárias e o Serviço Social. Boletim Eletrônico. Conselho Regional de Serviço Social 12ª Região, 45. ed. Florianópolis: out. 2016. Disponível em: 1619

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI http://cress-sc.org.br/wp-content/uploads/2016/10/Boletim-45-Seguridade-Social- em-Tempos-de-Crise-do-Capital.pdf. Acesso em: 28 mai. 2020. IASI, Mauro Luis. Cinco teses sobre a formação social brasileira (notas de estudo guiadas pelo pessimismo da razão e uma conclusão animada pelo otimismo da prática). Serv. Soc. Soc. [online]. 2019, n.136, pp.417-438. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNAD Contínua: Taxa de desocupação [...]. Agência IBGE Notícias, Brasília, 30 abr. 2020. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de- noticias/releases/27534-pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-12-2-e-taxa-de- subutilizacao-e-de-24-4-no-trimestre-encerrado-em-marco-de-2020. Acesso 13 mai. 2020. MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital; tradução Rubens Erdele. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2017. MOTA, Ana Elizabete. Cultura da Crise e Seguridade Social: Um estudo sobre as tendências da previdência e da assistência social brasileira nos anos 89 e 90. São Paulo: Cortez, 2008. MOTA; Ana Elizabete. TAVARES Maria Augusta. Trabalho e expropriações contemporâneas. In: MOTA; Ana Elizabete. AMARAL, Angela. (Orgs.) Cenários, Contradições e Pelejas do Serviço Social Brasileiro. São Paulo: Cortez, 2016. NETTO, José Paulo. Transformações societárias e Serviço Social: Notas para uma análise prospectiva da profissão no Brasil. Serv. Soc. Soc. São Paulo, n.50, p. 83-134, abr. 1996. NETTO, José Paulo. Capitalismo Monopolista e Serviço Social. 7 ed. São Paulo: Cortez, 2009. NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia Política: Uma introdução Crítica. São Paulo: Cortez, 2012. SALVADOR. Evilásio. Fundo Público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez, 2012. SANTOS, Josiane Soares. “Questão Social”: particularidades no Brasil. São Paulo: Cortez, 2012. SILVA, Maria Lucia Lopes da. Contrarreforma da Previdência Social sob o comando do capital financeiro. Serv. Soc. Soc. São Paulo, n. 131, p. 130-154, jan./abr. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/sssoc/n131/0101-6628-sssoc-131-0130.pdf. Acesso em: 02 jun. 2020. 1620

EIXO TEMÁTICO 4 | SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: Estratégia para manutenção de lucros THE REFORM OF BRAZILIAN SOCIAL SECURITY: Strategy to maintain profits Ester Taube Toretta1 Priscila Semzezem 2 RESUMO As proposições de estudos sobre a Reforma da Previdência Social brasileira se constituem em um campo de alta complexidade social, econômica, política e teórica. Destaca-se que impacta diretamente os trabalhadores e trabalhadoras em sua sobrevivência. Além disso, requer análises, pois deve-se situá-la no campo das relações sociais capitalistas. É preciso destacar que todo aparato ideológico formata uma ideia de “necessidade” em virtude da crise fiscal brasileira e de que a saída se ancora como alternativa na reforma, não considerando os determinantes estruturais do processo. Neste sentido, este estudo bibliográfico de natureza qualitativa, objetiva discutir a reforma da previdência social brasileira, considerando-a como estratégia de manutenção das taxas de lucros capitalista. Palavras-Chaves: Capitalismo, Trabalho, Reforma da Previdência Social ABSTRACT The proposals for studies on the Brazilian Social Security Reform constitute a field of high social, economic, political and theoretical complexity. It is noteworthy that it directly impacts workers on their survival. In addition, it requires a analysis, as it must be situated in the field of capitalist social relations. It should be noted that every ideological apparatus shapes an idea of “necessity” due to the Brazilian fiscal crisis and that the way out is anchored as an alternative in the reform, without considering the structural determinants of the process. In this sense, this qualitative bibliographic study aims to 1 Assistente Social. Doutoranda do Programa de Pós- Graduação em Serviço Social Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected] 2 Assistente Social. Doutoranda do Programa de Pós- Graduação em Serviço Social Universidade Federal de Santa Catarina E-mail: [email protected]. 1621

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI discuss the reform of Brazilian social security, considering it as a strategy for maintaining capitalist profit rates. Keywords: Capitalism, Labor, Social Security Reform INTRODUÇÃO Este estudo, a partir de uma pesquisa bibliográfica de natureza qualitativa, tem por objetivo discutir a reforma da previdência social brasileira, considerando-a como estratégia de manutenção das taxas de lucros capitalista. Esse estudo é incipiente, não se esgota nesse trabalho, portanto, consideramos reflexões preliminares em torno de um objeto de alta complexidade. A importância dessa temática está centrada nos impactos sociais que decorrem da reforma da previdência social, visto que atingem diretamente a classe trabalhadora seja na proteção social, na condição de trabalho, bem como na sua forma de sobrevivência. E, ainda é preciso considerar o “discurso ideológico” que a permeia, afirmando que a saída da crise econômica está ancorada na execução do conjunto de reformas, incluindo a da previdência social. Atualmente, torna-se fundamental considerar o processo de desconfiguração de direitos relacionados ao trabalho, como resposta a uma crise mundial do capital e que, como consequência, “empurra” para o rebaixamento do valor da força de trabalho. Consideramos que não se trata de uma especificidade do contexto brasileiro, ou uma ação de um governo específico, mas um fenômeno global. Bulard (2020, p. 1) afirma “Independentemente da coloração partidária, sucessivos governos pelo mundo encadeiam reformas da previdência” Portanto, nos desafia a compreensão de elementos presentes nas relações sociais concretas capitalistas que envolvem esse movimento. 2 ELEMENTOS PARA COMPREENSÃO DA REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA Partimos do pressuposto que a Reforma da Previdência Social está entre as estratégias do capital financeiro e tem entre a sua funcionalidade o barateamento do valor da força de trabalho para manutenção da taxa de lucros, através de processos que 1622

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI desconfiguram direitos historicamente conquistados, ora suprimindo, e/ou, mercadorizando-os, explicam Lara e Maranhão (p. 57, 2019): [...]Com o intuito de criar uma economia mundializada baseada na intensificação dos regimes de extração de mais-valia e de barateamento da força de trabalho, o capital financeiro mundializado tem desenvolvido e comandado mecanismos de desvalorização dos salários com intuito de atingir superlucros. Na atualidade, as relações de trabalho são reconfiguradas e adequadas à reestruturação produtiva, acentuando a flexibilização e sua precarização, transforma a dinâmica da vida social e se desdobram na degradação da vida humana, pois conforme afirma Lara (2011, p. 80), “[..]Há um conjunto de inseguranças nas relações de trabalho que provocam mal-estar físico e mental à classe trabalhadora”. Nessa monta a reforma da previdência social brasileira é parte da precarização que desestabiliza a perspectiva de vida nos limites mínimos executados pelo Estado, já exíguos do capitalismo. Mota e Tavares (2017) destacam que o pacote de estratégias para manutenção da taxa de acumulação capitalista ocorre por meio de ações para desvalorização da força de trabalho com: 1) a violação do valor do trabalho socialmente necessário, através da redução dos salários/remuneração do trabalhador, restringindo sua reprodução e a da sua família aos mínimos de sobrevivência, portanto abaixo dos “padrões normais” socialmente vigentes em cada sociedade (materiais, culturais e morais), porém mantendo a sua dependência do mercado para consumir seus meios de sobrevivência; 2) a redução da qualidade do tempo real de vida do trabalhador pelo desgaste psicofísico do trabalho e pela privatização dos serviços públicos; 3) o sitiamento de qualquer projeto de vida do trabalhador e sua família (ético, político, pessoal, social), empobrecendo suas objetivações e ideários, dados a centralidade da luta pela sobrevivência, a insegurança, as incertezas e os riscos do trabalho. (MOTA e TAVARES, 2017, p. 242). Atualmente, a recomposição do processo de acumulação do capital vem sendo determinada pela criação de novos nichos de acumulação, entre eles “[...] 1) capitalização de setores ainda pouco explorados pelo mercado capitalista, em geral públicos e estatais – saúde, educação, previdência, saneamento etc., a cargo do Estado, transformando-os em mercadorias” (MOTA; TAVARES, 2016, p. 230). Considerando-se a “capitalização de setores ainda pouco explorados pelo mercado capitalista”, compreende-se que a Reforma da Previdência Social brasileira é uma agenda econômica, pública e política que já vem se configurando desde a entrada da política 1623

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI neoliberal no país. É preciso considerar conforme explicam Lara e Maranhão (2019) as articulações macroeconômicas que se inserem nesse cenário: [...] Por meio de uma hegemonia político-econômica da oligarquia financeira, o capital tem criado nas últimas décadas, mecanismos artificiais para gerar crises financeiras controladas e forçar a transferência de fundos públicos ou domésticos para as mãos das empresas transnacionais. A cada nova crise financeira, o receituário neoliberal do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial é empreendido pelos Estados nacionais com mais energia, liberalizando a economia dos países , reforçando a dependência financeira através da dívida interna e externa (com a ajuda de juros extorsivos), limitando os investimentos governamentais no serviço público, privatizando os bens, os serviços e os fundos públicos, desenvolvendo novas formas de investimentos externos diretos e concentrando nas mãos das transnacionais uma grande quantidade de capital que antes era de domínio coletivo. (LARA; MARANHÃO ,2019, p. 56). Nesse sentido, a chamada crise fiscal, utilizada como justificativa ideológica para os processos de contrarreforma não é uma característica nacional, ela se torna um apelo utilizado pelo capital mundial cujo objetivo é o de aumentar as taxas de acumulação e para isso vários argumentos são utilizados, tais como: baixo crescimento econômico, desemprego, queda de arrecadação e desequilíbrio nas contas públicas (Lourenço, Lacaz e Goulart, 2017). Sobre a Reforma da Previdência Social brasileira, em novembro de 2017, o Banco Mundial, a pedido, do governo em vigência, realizou estudos e que resultou na publicação do documento intitulado “Um ajuste justo: Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, o argumento é centrado na necessidade de colocar as contas fiscais do Brasil de volta em uma trajetória sustentável, pois “[...] o gasto tornou-se cada vez mais engessado pela rigidez constitucional em categorias como folha de pagamento e previdência social, deixando quase nenhum espaço para despesas discricionárias e de investimento” (BANCO MUNDIAL, 2017, p. 1). No entanto, sob outra perspectiva Gentil (2019) afirma, que a condição fiscal em jogo, o nó fiscal em que passa no contexto brasileiro, possui como justificativa “os juros” que beneficiam fundos especulativos, bancos, corporações não financeiras e pessoas com elevado nível de renda: [...] Nessa rubrica, o país gastou, em média, 6% do PIB ao ano entre 2016 e 2018, o que equivale a aproximadamente R$ 400 bilhões/ano, montante mais de duas vezes superior ao alegado déficit da Previdência, que, nos cálculos questionáveis do governo, teria chegado a R$ 195 bilhões em 2018. (GENTIL, 2019, p. 01). 1624

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Desta forma, cabe ressaltar que essa lógica compreende as estratégias neoliberais e tem o processo orientado pelo Banco Mundial, que possui um direcionamento político de suas ações voltado para a defesa do projeto capitalista de sociedade, confirmando a tese de ser um processo político e ideológico e “[...] limita o papel do Estado na área social, criando as condições e a estrutura necessárias para que o capital explore financeiramente as políticas sociais, em especial a da PS” .(LOURENÇO, LACAZ e GOULART, 2017, p. 479). É preciso reafirmar o fundamento que embasa de forma concreta a Reforma da Previdência Social, e, está relacionado ao interesse de mercado e acumulação do capital: [...] a mercantilização dos sistemas públicos de proteção social, é útil e indispensável à acumulação capitalista, seja na dinamização do mercado interno, seja na legitimidade social ou na administração dos conflitos sociais decorrentes do desemprego e da precarização do trabalho. Em alguma medida, cumpre o papel de equilibrar a relação produção/consumo de modo rentável. (MOTA e TAVARES, 2017, p. 233). Além disso, as autoras também explicam que o Estado tem um papel importante de legitimação desse processo, pois, cria e legaliza o aparato jurídico das formas de exploração do trabalho, assegurando condições favoráveis à acumulação: [...] a principal mediação da precarização do trabalho e dos trabalhadores tem origem na atuação do Estado, seja por meio da legislação trabalhista, dos sistemas de proteção social ao trabalhador (saúde e previdência social), seja da incorporação de diferentes estatutos jurídicos do trabalho ou da sua inexistência, no conjunto de experiências e regras socialmente aceitas (MOTA e TAVARES, 2017, p. 234). As autoras também destacam que o processo de privatização dos serviços, resulta na redução do salário nominal do trabalhador, ou seja, quando se privatizam e/ou reduzem políticas, benefícios e direitos repercutem diretamente da sobrevivência dos trabalhadores/trabalhadoras (MOTA; TAVARES, 2017). Lourenço, Lacaz e Goulart (2017), explicam que esse processo tem vários desdobramentos e propiciam vários desafios à classe trabalhadora, pois são criadas estratégias ideológicas aos trabalhadores que acabam formatando o pensamento para aceitar as contrarreformas, entre elas, nesse contexto, a da previdência social. Há uma inserção de fatores materiais, sociais e políticos levando-os a acreditar que a melhor forma é a oferta dos serviços sociais pela via do mercado, para isso, realizam diversas 1625

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI ações de precarização, ao ponto de que a dependência significa risco, insegurança e medo. Assim, os trabalhadores divididos arcam em conjunto com as empresas onde trabalham: planos de saúde, convênios médicos, escolas particulares, previdência privada. Diante disso, compreender as “falácias” que envolvem esse discurso é de extrema urgência e necessidade, inclusive para orientar as pautas de lutas coletivas. 3 A REFORMA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL: O MITO DAS MUDANÇAS QUE “SALVAM” A ECONOMIA Este estudo considera que a Reforma da Previdência Social não é um fato ou ação isolada no contexto brasileiro, como já expresso, trata-se de uma estratégia do capital mundial para manutenção de suas taxas de lucro. Tanto os países da América Latina como Brasil e Chile, como também da Europa, cujo exemplo é a França, vêm sofrendo duros ataques em relação aos direitos trabalhistas e previdenciários. No entanto, o Brasil, por conta de sua constituição histórica, econômica, política, social, dando ênfase às lutas de classe, reserva especificidades nesse processo. A última proposta de Reforma da Previdência Social no Brasil (2019) é assegurada com estratégias ideológicas que formatam o pensamento para acreditar ser a alternativa viável e segura. No entanto, é preciso destacar os “danos” que esta interpretação vem acarretando à vida dos trabalhadores e trabalhadoras. Segundo Fagnani (2019) a forma de gerar a economia está sendo direcionada aos trabalhadores e trabalhadoras para garantir e assegurar o desenvolvimento capitalista: O governo estima que a “reforma” geraria economia de R$ 1,165 trilhão em dez anos. Seu caráter injusto também se reflete no fato de que, desse montante, R$ 715 bilhões serão “economizados” por cortes nos direitos dos trabalhadores rurais e urbanos inscritos no RGPS; e outros R$ 182 bilhões, por cortes no BPC e no abono salarial. Portanto, 75,6% da suposta economia decorre da subtração de direitos dos beneficiários desses programas sociais. (FAGNANI, 2019, p. 01). Para os organismos multilateriais o discurso impetrado é de que a Reforma da Previdência Social irá propiciar o crescimento econômico, a justificativa, conforme apontam Lourenço, Lacaz e Goulart (2017, p. 481): “[...] está calcada no mito do seu déficit”. 1626

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Torna-se importante considerar de que não há como realizar análises centradas somente no contexto nacional, é necessário compreender outros determinantes de ordem estrutural para desvelar este “fenômeno”. Conforme explicam Mota e Tavares (2017, p. 246): Entre as principais tendências do capitalismo contemporâneo, destacamos a supercapitalização da esfera dos serviços, mediada pelo capital financeiro (fundos de pensão como previdência complementar, seguros de saúde como saúde suplementar, financiamento bancário aos alunos universitários, somente para citar três casos), e a dependência crescente do trabalhador em relação ao mercado. Além disso, o trabalhador, explicam as autoras, passa a ser o único e responsável pela sua reprodução, e as necessidades essenciais da vida passam a ser mercadorias. O acesso ou não, irá depender da venda de sua força de trabalho, portanto, assegura um nicho de mercado altamente lucrativo, pois, os serviços devem ser adquiridos por trabalhadores e trabalhadoras “[...] mediante a compra com parte de seus pífios salários” (Mota e Tavares, 2017, p. 246). Em relação à situação dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras é necessário considerar, conforme dados apresentados por Fagnani (2019) a configuração e composição do mercado de trabalho: [...] Cerca de 50 milhões de trabalhadores adultos que compõem a população em idade ativa (PIA) não trabalham. Mais de 105 milhões de brasileiros fazem parte da população economicamente ativa (PEA). Entretanto, quase 13 milhões estão desempregados; outros 92 milhões estão ocupados, mas cerca de 35 milhões trabalham sem carteira ou têm algum vínculo precário. Portanto, aproximadamente 100 milhões de trabalhadores, que já não contribuem para a previdência, terão dificuldades para cumprir as novas regras e não contarão com essa proteção na velhice – quadro que tende a se agravar com o avanço da reforma trabalhista. (FAGNANI, 2019, p. 01). Além disso, a outra questão sobre o “déficit” vem sendo utilizado por 28 anos como justificativa para reformas, conforme estudos realizados por Salvador (2017): O governo federal inclui no OSS tanto na Lei Orçamentária Anual (LOA), como nos resultados divulgados pela STN, todas as despesas previdenciárias tanto do RGPS, como as do Regime Próprio de Previdência (RPP) do setor público, além de despesas com benefícios dos servidores públicos federais e os gastos com saúde dos militares. Esses gastos (acertadamente) não são considerados nos resultados apurados pela Anfip. A instituição também inclui no montante das receitas os valores desviados pela DRU, o que resultaria em um OSS superavitário bem diferente das contas oficiais. Assim, o chamado OSS, na contabilidade oficial, está inflado por despesas que deveriam ser do orçamento fiscal e está subestimado nas receitas, pois não considera os 1627

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI valores desviados pela DRU e pelas renúncias tributárias. (SALVADOR, 2017, p. 432). Entre as propostas da Reforma da Previdência Social se fundamenta na relação da mercadorização dos direitos, a mudança prevista, prevê o regime capitalização, também para as modalidades de trabalho regidas sob a nova reforma trabalhista, a exemplo da carteira verde amarela. A “reforma” determina a criação de “sistema obrigatório de capitalização individual” para o RPPS (União, estados e municípios) e para o RGPS, onde se pretende criar a “carteira verde-amarela”, portadora de escassos direitos trabalhistas. O jovem que começa a trabalhar poderá “optar” pela carteira e aderir ao regime de capitalização. Um ponto obscuro é o aceno para a possibilidade da criação de um “fundo solidário”, organizado e financiado para a “garantia de piso básico, não inferior ao salário-mínimo para benefícios”. Portanto, o próprio governo antevê que nem sequer o piso básico será garantido e não esclarece quem vai financiar o tal fundo. (FAGNANI,2019, p. 01). Segundo Lara e Maranhão (2019, p.56 e 57) os direitos sociais, entre eles, a previdência social, transformados em mercadorias ingressam no processo de valorização e destacam:” [...] as privatizações, as contrarreformas nas políticas sociais, são fenômenos de um mesmo processo socioeconômico que demonstra a crise generalizada e duradoura da produção e reprodução social capitalista”. Para Salvador (2017, p. 443), não há sustentação para a reforma da Previdência Social, torna-se necessário “[...] a devida devolução dos recursos que são desviados anualmente do OSS para o pagamento de juros da dívida pública e para o socorro ao capital”. Também corrobora afirmando Fagnani (2019, p. 01) há várias vias alternativas para não quebrar o Brasil e explica entre as alternativas: [...] a necessidade de rever as isenções fiscais, pelas quais o governo federal todo ano deixa de arrecadar cerca de 20% de suas receitas: em 2017, o montante de isenções totalizou R$ 406 bilhões (mais de quatro anos de “economia”). Também é necessário combater a sonegação de impostos, estimada em cerca de R$ 500 bilhões anuais (mais de cinco anos de “economia”). Em conjunto, esses recursos (isenções fiscais e sonegação) totalizam aproximadamente 12,8% do PIB, montante superior ao dispêndio da seguridade social (11,3% do PIB) que a “nova previdência” planeja destruir. Este estudo considera que na atualidade os processos estão em um campo contraditório, várias ações apresentam-se em defesa dos trabalhadores, travestidas na luta pelos direitos, mas, na essência não fazem mais do que a reprodução ampliada do capital e Fávaro (2017, p. 34), chama a atenção em “[...]Uma tendência dos discursos e 1628

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI ações atuais é combater os efeitos da sociabilidade do capital, como desigualdade social, a miséria, a violência, mas sem apreender as suas causas”. Neste sentido, o atual contexto nos tensiona, o fato é que, na relação do capital, “[...] os métodos de produção da mais-valia são, simultaneamente, métodos da acumulação, e toda expansão da acumulação torna-se, reciprocamente, meios de desenvolver aqueles métodos”, resultando no fato de que “[...] a situação do trabalhador, qualquer que seja seu pagamento, alto ou baixo, tem de piorar”. (MARX, 2017, p. 720-721). Este momento, aponta para o aprofundamento da radicalidade, ou seja, superação desta forma de sociabilidade. Mas para isso, requer, inclusive conhecer e aprofundar os fundamentos que envolvem as relações sociais determinadas historicamente e que tem como desdobramentos a exploração e precarização do trabalho como também da vida humana. CONSIDERAÇÕES FINAIS No atual contexto de crise do capital, para a sua recuperação, estratégias são implantadas para manutenção da taxa de lucro que atingem as condições de trabalho e de vida de trabalhadores e trabalhadoras. Ressalta Lara (2011, p. 79), “[...] Poucos esforços foram feitos no sentido de minimizar as condições de sofrimento no trabalho; em contrapartida, muito se pensou no avanço da produtividade do capital”. A Previdência Social brasileira vem sendo alvo de ataques desde a década de 1990. A crise do capital, bem como através da inserção das políticas neoliberais, promove um processo de desmonte e “contrarreformas”, pautado em um discurso ideológico de déficit e recuperação da economia. O estudo demonstra que a reforma da previdência social é integrante do projeto capitalista mundial, em resposta a sua crise. E compreendemos que enfrentar apenas o fenômeno localizado em sua aparência, não se apresenta de forma suficiente, é necessário compreender as bases estruturais e direcioná-las aos processos de lutas. Neste sentido, a realização de denúncias em relação a esse processo é importante, pois possivelmente poderá subsidiar estratégias. Entre as denúncias é de que nesta sociabilidade a busca pelo “lucro” se sobressai à reprodução da vida humana. 1629

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI E, portanto, é preciso a compreensão tanto dos trabalhadores, que “a luta pela garantia ao direito previdenciário” é um processo para garantia da vida humana nos limites desta sociabilidade, entretanto, não alteram a relação capital versus trabalho, não elimina o processo de exploração, estruturante do modo de produção capitalista. O atual contexto nos impõe que as lutas não podem ser restritas em defesa das “políticas sociais”, contraditoriamente, elas cumprem um papel importante para manter a força de trabalho como também garantir a reprodução do capital. É necessário reafirmar que o horizonte é a superação de toda e qualquer forma de exploração, portanto, desta sociabilidade. REFERÊNCIAS BULARD, Martine. Fragmentar o coletivo. Le Monde Diplomatique Brasil. Edição 150. 07 de janeiro de 2020. Disponível: https://diplomatique.org.br/fragmentar-o-coletivo/. Acesso em: 12 Fev. 2020. FAGNANI, Eduardo. O propósito velado da “reforma” da Previdência. Le Monde Diplomatique Brasil. Edição 141. 02 de abril de 2019. Disponível: https://diplomatique.org.br/o-proposito-velado-da-reforma-da-previdencia/. Acesso em 12 Fev. 2020. FAVARO, Neide de Almeida Lança Galvão. Pedagogia histórico-crítica e sua estratégia política: fundamentos e limites. Maceió: Coletivos Veredas, 2017. GENTIL, Denise Lobato. A falácia dos argumentos em defesa da reforma. Le Monde Diplomatique Brasil. Edição 141. 02 de abril de 2019. Disponível: https://diplomatique.org.br/a-falacia-dos-argumentos-em-defesa-da-reforma/. Acesso em 12 Fev. 2020. LARA, Ricardo. Saúde do trabalhador: considerações a partir da crítica da economia política. R. Katál., Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 78-85, jan./jun. 2011. __________. MARANHÃO, Cézar. Fundamentos do trabalho, “questão social” e Serviço Social. In: SOUZA, Edvânia Â. de Souza. SILVA, Maria Liduína de Oliveira e (orgs). Trabalho, questão social e serviço social: a autofagia do capital. São Paulo: Cortez, 2019. P. 37-60. LOURENÇO, Edvânia Ângela de Souza. LACAZ, Francisco Antonio de Castro; GOULART, Patrícia Martins. Crise do capital e o desmonte da Previdência Social no Brasil. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 130, p. 467-486, set./dez. 2017. Disponível: http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n130/0101-6628-sssoc-130-0467.pdf. Acesso em 12 Fev. 2010. 1630

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI MOTA, Ana Elizabete. TAVARES, Maria Augusta. Trabalho e expropriações contemporâneas. In: MOTA, Ana Elizabete. AMARAL, Angela (org.). Cenários, contradições e pelejas do serviço social brasileiro. São Paulo: Cortez Editora, 2016, p. 229-254. SALVADOR, Evilásio da Silva. O desmonte do financiamento da seguridade social em contexto de ajuste fiscal. Serviço Social e Sociedade, São Paulo, n. 130, p. 426-446, set./dez. 2017. Disponível: http://www.scielo.br/pdf/sssoc/n130/0101-6628-sssoc- 130-0426.pdf. Acesso em 12 Fev. 2020. 1631

EIXO TEMÁTICO 4 | SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA GESTÃO PÚBLICA NO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: análise de município de pequeno porte PUBLIC MANAGEMENT IN THE SINGLE SYSTEM OF SOCIAL ASSISTANCE: analysis of a small-sized city Paula Raquel da Silva Jales1 RESUMO Tema recorrente nas discussões sobre a forma de organização e/ou atuação do Estado, a gestão pública ganha evidência com o processo de redemocratização do Brasil e abertura para a participação cidadã em 1988, bem como no discurso neoliberal, que, ao anunciar a crise do Estado-nação, propõe a sua “reforma”. O presente trabalho objetiva, portanto, refletir sobre a experiência de gestão pública no Sistema Único de Assistência Social, a partir de pesquisa de campo realizada em município de pequeno porte I, no estado do Ceará. Observação direta, reuniões, grupos focais e entrevistas foram técnicas utilizadas para a coleta dos dados. A pesquisa evidenciou o compromisso da gestão com a implementação do referido sistema de acordo com as diretrizes nacionais, na perspectiva da garantia de direitos sociais, bem como as dificuldades de materialização de uma gestão participativa, especialmente em relação ao Conselho Municipal de Assistência Social. Palavras-Chaves: Gestão pública. Assistência social. SUAS. ABSTRACT A recurrent theme in the discussions on the form of organization and/or performance of the State, the public management gains evidence with the process of redemocratization in Brazil and opening to citizen participation in 1988, as well as in the neoliberal discourse, which, when announcing the crisis of the nation-state, proposes its “reform”. The present work, therefore, aims to reflect about the 1 Doutoranda em Políticas Públicas, Universidade Federal do Piauí (UFPI). Mestra em Políticas Públicas e Sociedade, Universidade Estadual do Ceará (UECE). Graduação em Serviço Social, UECE. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Trabalho realizado com apoio da CAPES, Brasil. Código de Financiamento 001. E-mail: [email protected] 1632

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI experience of public management in the Single System of Social Assistance, based on field research carried out in a city of small size I, in the state of Ceará. Direct observation, meetings, focus groups and interviews were techniques used for data collection. The research evidenced the management's commitment to the implementation of the referred system in accordance with national guidelines, from the perspective of guaranteeing social rights, as well as the difficulties of materializing a participatory management, especially in relation to the Municipal Council of Social Assistance. Keywords: Public management. Social assistance. SSSA INTRODUÇÃO A gestão pública tem sido tema recorrente nas discussões sobre a forma de organização e/ou atuação do Estado. No Brasil, a sanção da Constituição Federal de 1988 inaugura novos parâmetros para uma gestão que garante a participação da população na construção das políticas públicas e uma transparência no uso dos recursos públicos pelos gestores, através da publicização das despesas governamentais. Ao mesmo tempo, o ingresso do neoliberalismo como regulamentação política e social no país em 1990 provoca uma mudança no direcionamento do Estado e, consequentemente, nos fundamentos da gestão pública, que passam a se espelhar na gestão empresarial, por esta ser considerada mais eficiente, eficaz, efetiva e flexível. Nesse contexto, a participação ganha novo sentido, “[...] que se orienta por uma idéia [sic] de política de ‘troca’ entre governantes e governados: quanto mais interações cooperativas existirem, melhor para o sucesso eleitoral e a legitimação dos governantes e melhor para os grupos envolvidos [...]” (NOGUEIRA, 2005, p. 142). É no embate e interpenetração dessas duas principais concepções diferentes de gestão pública (gestão participativa e gestão gerencial) que se encontra o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), aprovado na IV Conferência Nacional de Assistência Social, realizada no ano de 2003 em Brasília, regulamentado pelos documentos da Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004) e pela Norma Operacional Básica do SUAS (NOB/SUAS, 2005) e legalizado pela Lei nº 12.435, de 6 de julho de 2011. Apesar de propor uma gestão da política pública de assistência social com primazia estatal, descentralizada e participativa, com o intuito de afiançar direitos socioassistenciais àqueles que precisam ter suas necessidades básicas atendidas, as parcerias com as entidades sociais para a execução de serviços e a apresentação de dados quantitativos 1633

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI junto a entes federados para garantir financiamento têm contribuído para uma ação instrumental na gestão e despolitização da participação da sociedade. Nesse sentido, o objetivo geral deste trabalho foi refletir sobre a experiência de gestão pública no SUAS em um município de pequeno porte I localizado no estado do Ceará. Especificamente, buscou-se identificar as principais características da gestão participativa e gerencial; apresentar as principais diretrizes nacionais para a gestão do sistema supramencionado; e, finalmente, discutir aspectos da gestão pública municipal do SUAS. Ressalta-se que o município escolhido integrou a pesquisa regional “Avaliando a implementação do Sistema Único de Assistência Social na região Norte e Nordeste: significado do SUAS para o enfrentamento à pobreza nas regiões mais pobres do Brasil”, sob a coordenação geral da professora doutora Maria Ozanira da Silva e Silva e a coordenação do estado do Ceará da professora doutora Alba Maria Pinho de Carvalho; e a pesquisa nacional intitulada “Estudo avaliativo da implementação do Sistema Único de Assistência Social no Brasil”, coordenada pela professora doutora Raquel Raichelis Degenszajn. Ambas as pesquisas foram apoiadas e financiadas por agências de fomento nacionais e estaduais. Em termos metodológicos, utilizaram-se estudos bibliográfico, documental e de campo. O lócus do trabalho de campo está situado a noroeste do Ceará. Por ter, segundo estimativas do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE), para o ano de 2017, uma população de 10.784 habitantes, é classificado como município de pequeno porte I. A Secretaria do Trabalho e Assistência Social (SETAS) e o Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) foram os equipamentos pesquisados nos dias 6 e 7 de abril de 2016, no período da manhã e da tarde. A observação direta, reuniões, grupos focais e entrevistas compuseram as técnicas, já os roteiros de entrevistas, diário de campo, Declaração de Concordância e Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) compuseram os instrumentos. As reuniões foram feitas com a equipe técnica do CRAS e o Secretário; as entrevistas, com o Secretário e a Assessora Técnica da gestão; e os grupos focais, com os usuários, os conselheiros e os trabalhadores do SUAS. A coleta dos dados foi concretizada por duas pesquisadoras2, que, a partir da perspectiva 1634

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI histórico-dialética, analisaram as informações e elaboraram um relatório, principal subsídio para a construção desta reflexão.2 O artigo foi estruturado em cinco partes, sendo a primeira esta Introdução, que apresenta o tema, o objeto, os objetivos e a metodologia da pesquisa; a segunda, com uma caracterização sintética das principais modalidades de gestão em conflito na realidade brasileira; a terceira, com aspectos relevantes sobre a gestão do SUAS a nível nacional e os direcionamentos para a gestão local; a quarta, com o relato e análise da experiência vivenciada pelo município em relação à gestão pública da política de assistência social; e, por último, as conclusões primordiais da pesquisa. 2 REDEMOCRATIZAÇÃO E GESTÃO PÚBLICA DE POLÍTICAS SOCIAIS NO BRASIL O processo de luta pela redemocratização da sociedade brasileira nas décadas de 1970 e 1980 foi um marco para repensar as relações entre Estado e sociedade civil (NOGUEIRA, 2005). Apesar de o pacto entre classes sociais e suas frações para a sanção da Constituição Federal de 1988 não romper com o autoritarismo social presente nas relações sociais do país e outras particularidades de sua cultura política, ergue-se uma democracia liberal aberta à participação cidadã. Utiliza-se o termo “aberta”, e não “permeável”, pois a criação de espaços públicos para a participação da população, embora seja uma possibilidade, não torna automaticamente os sujeitos politizados. É nesse contexto de abertura democrática que governantes vinculados ao Partido dos Trabalhadores (PT) implementam experiências como o Orçamento Participativo e autores progressistas indicam parâmetros para a construção de uma nova modalidade de gestão, qual seja, a participativa. Isso quer dizer que a gestão participativa não é um conjunto de regras ou procedimentos a serem executados. Por sua complexidade e por envolver aspectos ético-políticos, Nogueira (2005, p. 236-237) afirma que ela: [...] qualifica-se pela capacidade de compreender os processos sociais de modo crítico e abrangente, pensando a crise e a mudança acelerada. Em decorrência, debruça-se sobre as organizações não como algo dado, mas como um vir-a-ser dialético, dinâmico, contraditório e imune a imposições administrativas, vindas ‘de cima’. Uma gestão desse tipo opera além do 2 A outra pesquisadora autorizou a utilização do relatório para a construção desta análise. 1635

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI formal e do burocrático e compromete-se abertamente com o aprofundamento da participação e da composição dialógica, bases vivas de uma nova e mais avançada estrutura de autoridade. [...] A gestão democrática dispõe-se a dirigir, a coordenar e a impulsionar a formação ampliada de decisões, problematizando a improvisação e o decisionismo. Os resultados efetivos a que almeja não se limitam, portanto, ao administrativo, mas buscam a transformação e a dinamização das organizações como um todo. Ela é essencialmente dialógica, comunicativa. Assimila as organizações como espaços éticos e políticos que interagem de modo ativo com a vida, são povoados por pessoas, desejos e interesses que precisam ser recompostos e que não podem ser simplesmente ‘gerenciados’. Destarte, o autor apresenta algumas ênfases e inovações da gestão participativa, das quais se sobressaem: nova articulação entre governantes e governados, em que os primeiros envolvem os segundos nos assuntos governamentais e mantêm constantes e contínuos os processos de negociação; criação de formas inovadoras de controle dos governos por cidadãos ativos, sujeitos políticos que interferem, direcionam e submetem a gestão aos interesses coletivos; atuação descentralizada e em parceria com organizações governamentais e não governamentais, com primazia estatal; ação técnico-política que visa ao bem-estar e à emancipação dos cidadãos, para além dos aspectos formais e burocráticos da gestão; mudança na cultura organizacional e na qualificação dos recursos humanos; modernização administrativa que combine flexibilidade, eficiência e agilidade de forma democrática; planejamento dinâmico, estratégico e participativo que instaure novas modalidades de tomada de decisões e gerenciamento público; e acúmulo de conhecimento científico com protagonismo ético- político por parte de gestores e profissionais (NOGUEIRA, 2005). No entanto, a materialização de uma gestão com essas características, numa sociedade capitalista fundada em relações sociais de produção desiguais, torna-se um grande desafio, por expressar as lutas e contradições de classe na disputa política que constitui o Estado. A manipulação e instrumentalização dos espaços públicos por aqueles que naturalizam e legitimam a dominação constituem apenas um dos obstáculos à gestão participativa (NOGUEIRA, 2005) e sua proposta contra-hegemônica. Por esse ângulo, a gestão gerencial, engendrada na “Reforma do Estado” implementada pelo governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), é a que mais se alinha aos princípios de dominação burgueses, como se verá a seguir. Na análise de Nogueira (2005), a “Reforma” era justificada pela crise fiscal, pelo formato de intervenção estatal e pela prevalência da organização burocrática. A 1636

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI proposta era diminuir as despesas e estruturas do Estado, tornando-o mais ágil e flexível, a fim de possibilitar a efetivação da democracia e da participação. Nesse sentido, segundo o autor, a flexibilização das normas, estruturas e procedimentos, a concessão de maior autonomia aos órgãos públicos, a descentralização dos controles gerenciais, a redução do tamanho do Estado e a construção de ambientes competitivos, céleres e responsáveis perante os cidadãos-consumidores foram viabilizados através de políticas de privatização, terceirização e parceria público-privada. A democracia, a participação e a cidadania ficaram restritas a aspectos formais, no sentido de eleger representantes políticos, de homologar/legitimar as decisões governamentais nos espaços públicos e de integrar uma comunidade política e usufruir de direitos abstratos, respectivamente. A descentralização transmutou-se em repasse de responsabilidades para os estados e municípios. E a sociedade civil virou sinônimo de terceiro setor, organizações não governamentais, organização da sociedade civil de interesse público, dentre outros termos que despolitizavam a sua atuação como contestadora e fiscalizadora do Estado, para ser parceira na execução de serviços, especialmente, os sociais (DAGNINO, 2004). “Os principais resultados do reformismo vitorioso nos anos 90 foram, portanto, a desvalorização do Estado aos olhos do cidadão e a desorganização de seu aparato técnico e administrativo” (NOGUEIRA, 2005, p. 44). A percepção das políticas sociais como ônus intensificou a mercantilização da saúde, da educação e da previdência social, ao mesmo tempo que o Estado selecionava e focalizava a proteção social nas camadas mais pauperizadas da população. No caso da política de assistência social, os principais impactos foram: sobreposição de programas, desprofissionalização, incentivo à solidariedade e prevalência do princípio da subsidiariedade estatal para a oferta de serviços públicos. Essa conjuntura foi inflexionada quando Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), eleito presidente do Brasil em 2002, criou o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) em 2004, possibilitando que militantes do Movimento de Assistência Social, que se constituiu imbricado ao PT e ao Estado (GUTIERRES, 2015), assumissem cargos de poder de decisão no referido Ministério. Isso possibilitou a organização hierarquizada da política de assistência social no país e impulso federal para a garantia de direitos socioassistenciais e participação cidadã, tendo como horizonte uma gestão participativa. 1637

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 3 SUAS: princípios e diretrizes A assistência social torna-se política pública de seguridade social por meio da Constituição Federal de 1988, que lhe assegura orçamento, descentralização político- administrativa e participação da população. Entre o reconhecimento legal e a estruturação das prerrogativas constitucionais são mais cinco anos de luta até a aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) e 16 para a elaboração de um documento de política e de norma operacional com as contribuições dos diferentes sujeitos, grupos e instituições envolvidos na defesa da assistência social como direito, a saber, a PNAS (2004) e a NOB/SUAS (2005). Isso só revela o quanto essa política foi secundarizada e/ou lançada no mar das trocas de favores, das vantagens eleitorais e da solidariedade social pelos governos brasileiros. Sua racionalização ocorre através da pressão de integrantes do Movimento de Assistência Social no PT e no Estado para assumir cargos no Poder Executivo Federal (GUTIERRES, 2015), com capacidade de concretizar uma proposta republicana de assistência social. Além da Secretaria Nacional de Assistência Social, muitas militantes se engajaram nos conselhos nacional, estaduais, do Distrito Federal e municipais de assistência social, que eram obrigatórios para o funcionamento da política e repasses financeiros aos entes federados. Como também nas administrações locais, como gestoras, assessoras técnicas e consultoras, quando eram convidadas; e trabalhadoras de nível superior e médio, quando faziam concursos ou seleções3. Apesar de todas as contradições e lutas de classe que perpassam por esse momento, foi criado o SUAS com comando único para hierarquização, descentralização e garantia da participação popular na política pública em questão4. Seus objetivos visam, de acordo com a NOB/SUAS (BRASIL, 2013), alicerçar uma gestão compartilhada, o cofinanciamento e a cooperação técnica entre os entes federados; determinar as responsabilidades destes; designar os quatro níveis de gestão, quais sejam, União, estados, Distrito Federal e municípios; reconhecer as diversidades da população brasileira e as desigualdades regionais; garantir a oferta e a integração 3 As palavras no feminino são usadas para dar ênfase à participação das mulheres nesse processo, embora tenham homens no Movimento. 4 Destaca-se o papel de todas e todos que participaram da IV Conferência Nacional de Assistência Social para a concepção e aprovação do SUAS, especialmente profissionais, intelectuais e entidades. 1638

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI entre serviços, programas, projetos e benefícios; assegurar a vigilância socioassistencial e os direitos sociais; articular a rede pública e privada vinculada ao SUAS; e efetivar a gestão do trabalho e a educação permanente de seus trabalhadores. Para tanto, apoia- se nos princípios da universalidade, gratuidade, integralidade, intersetorialidade e equidade, a fim de afiançar as seguranças de acolhida, de renda, de vivência familiar, comunitária e social, de desenvolvimento de autonomia e de apoio e auxílio (BRASIL, 2013). Ressaltam-se também entre suas diretrizes a primazia da responsabilidade do Estado, a descentralização político-administrativa com comando único das ações nas esferas governamentais, a partilha do financiamento, a matricialidade sociofamiliar, a territorialização, a relação democrática entre Estado e sociedade civil, o controle social e a participação popular (BRASIL, 2013).5 O SUAS é estruturado em dois níveis de proteção, a proteção social básica, centrada no atendimento de situações de vulnerabilidade social e prevenção dos riscos sociais, e a proteção social especial de média e de alta complexidade destinada a situações de violações de direitos que ocasionam a fragilização e/ou o rompimento dos vínculos familiares, comunitários e sociais (BRASIL, 2004). O CRAS é porta de entrada do sistema, referência na proteção social básica, e o Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS) e o Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), os principais equipamentos da proteção social especial de média complexidade (BRASIL, 2004). Além destes, destacam-se na proteção social especial de alta complexidade as Unidades de Acolhimento Institucional, as Casas Lares, as Repúblicas, as Casas de Passagem e os Albergues (BRASIL, 2004). No que tange às responsabilidades dos municípios, após adesão ao seu nível de gestão, evidenciam-se: constituir e ter em pleno funcionamento o conselho, o fundo e o plano de assistência social; custear e fazer o pagamento dos benefícios eventuais; cofinanciar o aprimoramento da gestão; prestar serviços socioassistenciais e organizar a sua oferta de forma territorializada; gerir o Cadastro Único, o Programa Bolsa Família (PBF) e o Benefício de Prestação Continuada (BPC); aperfeiçoar equipamentos e serviços; gerenciar a rede socioassistencial; cadastrar as entidades e organizações de 3 As palavras no feminino são usadas para dar ênfase à participação das mulheres nesse processo, embora tenham homens no Movimento. 4 Destaca-se o papel de todas e todos que participaram da IV Conferência Nacional de Assistência Social para a concepção e aprovação do SUAS, especialmente profissionais, intelectuais e entidades. 1639

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI assistência social; municipalizar os serviços de proteção social básica; participar de cooperações governamentais para a implantação de serviços de referência regional; responsabilizar-se por ações socioassistenciais em caráter de emergência; normatizar e regular a política municipal de assistência social; monitorar e avaliar a política; garantir o comando único no SUAS; registrar informações no Censo SUAS; implantar a Vigilância Socioassistencial; manter a infraestrutura para o conselho e realizar, junto com este, as conferências municipais; estimular a participação da sociedade nas instâncias de controle social e nos espaços coletivos de construção e avaliação da política; instituir a gestão do trabalho; assegurar educação permanente para todos os atores que integram o SUAS (gestores, trabalhadores, conselheiros, usuários e entidades), dentre outras (BRASIL, 2013). O SUAS chegou praticamente a todos os municípios brasileiros5 com um direcionamento federal para a garantia de direitos e gestão participativa. Dependia, no entanto, dos governos locais para ser executado, uma vez que a maior parte do seu público desconhecia as novas diretrizes da assistência social, espaço histórico de ações assistencialistas, geridas por primeiras-damas, com fins eleitorais e de manutenção da dominação. 6 4 GESTÃO DO SUAS EM MUNICÍPIO DE PEQUENO PORTE A gestão da política de assistência social e de trabalho no município pesquisado está sob a responsabilidade da SETAS, criada pela Lei Municipal nº 161/2002. Já o CRAS, principal e único equipamento público do SUAS, ficava em sede própria construída com recursos municipais e, posteriormente, cofinanciada pelo MDS, hoje Ministério da Cidadania, e pela Secretaria estadual nessa área. Os usuários identificavam a Secretaria como “CRAS de cima” e o equipamento como “CRAS de baixo”, o que revelou a apropriação da terminologia da porta de entrada do sistema. Na Secretaria funcionavam a administração das políticas públicas supramencionadas, feita pelo Secretário, único ordenador de despesas; a gestão do Cadastro Único e PBF, realizada por cadastradores e digitadores; o Conselho Municipal 5 Pelo Censo SUAS 2017, dos 5.571 munícipios brasileiros, 5.511 possuem órgão gestor na área da assistência social. 1640

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI de Assistência Social (CMAS), o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) e o Conselho Municipal do Idoso, assessorados pela Técnica de gestão; o serviço de encaminhamento de situações de média e alta complexidade, feito por assistente social; e o serviço de alistamento militar e de retirada de documentos de identificação. O CRAS ofertava um grupo do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), um grupo de idosos, um grupo de gestantes, um grupo de serviço para crianças entre 0 e 3 anos – projeto da primeira-dama do estado do Ceará –, o projeto “Pintando o Sete” para crianças entre 3 e 10 anos, o projeto “Nosso Time” para adolescentes entre 15 e 17 anos e o coral infantil para crianças entre 6 e 12 anos. A equipe técnica era formada pelos seguintes profissionais de nível superior: psicóloga, assistente social, educadora física e terapeuta ocupacional. Entre os de nível médio, havia dez orientadores sociais, um orientador musical, três facilitadores esportivos, um auxiliar administrativo, uma auxiliar de serviços gerais, um supervisor de segurança alimentar, uma recepcionista e um motorista. Essa infraestrutura, organização, recursos humanos e ofertas de serviços realizados principalmente pelo CRAS foram um dos pontos mais ressaltados no grupo focal dos conselheiros e técnicos. Alguns participantes relataram mudanças significativas na forma de execução e financiamento da política de assistência social no município, comparando-as com as ações residuais de caráter imediato e assistencialista que existiam anteriormente, como mostram as falas a seguir: [...] Eu acho que mudou muito a Política de Assistência Social. Antigamente, ela só pagava para nascer e para morrer. [...] antes a Assistência vivia de pires na mão, mendigando mesmo às prefeituras; eram fazendo as coisas com recursos próprios, o que dava mesmo, e agora não só, é programa de todo jeito, profissionais como educador físico, fonoaudióloga e outros; todas as faixas etárias têm atendimento [...]. Agora a crise do país atrapalha devido aos atrasos de repasses para os municípios. No nosso município, graças a Deus, temos gestores muito comprometidos que não deixam de pagar em dia os funcionários. Sabemos que em outros municípios os programas têm sido difíceis, os salários estão em atraso. Aqui ninguém foi demitido. Isso não quer dizer que não precise de mudanças, sempre deve haver mudanças, pois nunca estamos satisfeitos. (TRABALHADOR DO SUAS). Pronto, a gente pode até ver também não só no âmbito nacional, mas também nos municípios, [...] e ver que a Política de Assistência Social está verdadeiramente acontecendo, não somente como acontecia antes, como uma forma de assistencialismo, mas de uma forma de garantir com que as pessoas que se enquadram, outras pessoas que não se enquadram também, 1641

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI que não têm o conhecimento, que acha que [...] a pessoa quer se inserir dentro do contexto sem fazer parte; acha que tudo que vem é, é para todos, e não é, no âmbito geral, e não é. É feita uma Política de Assistência verdadeiramente para aquelas pessoas que, inserindo elas, as pessoas que são marginalizadas e que acabam ficando de fora daquele contexto nacional daquilo que é de direito. (CONSELHEIRO). O cofinanciamento público, o comprometimento dos gestores e a garantia de direitos para aqueles que necessitam de proteção social foram evidenciados como aspectos inovadores da política de assistência social no município. O primeiro mostra a importância do orçamento e do repasse automático e regular fundo a fundo para a materialização de serviços, programas e projetos socioassistenciais e a contratação de recursos humanos. Antes da estruturação do SUAS, o orçamento nacional da assistência social era reduzido e incerto, prevalecendo o modelo de financiamento convenial e por ementas parlamentares, que retornaram após o impeachment da presidente Dilma Vana Rousseff (2011-2016) e regressão dos direitos sociais e trabalhistas. O orçamento e relatório de gestão são apresentados anualmente pelo Secretário para a aprovação do CMAS. A prestação de contas junto à comunidade é feita pela Prefeita através da rádio local, com informações sobre quanto a prefeitura gastou e em quê. Não há uma prestação de contas junto aos usuários. Apesar disso, os Técnicos salientaram em suas falas o apoio e o prestígio profissional de que o Secretário e a equipe de trabalhadores do SUAS gozavam junto à Prefeita, quem afirmou, em entrevista disponível na internet, que a assistência social era a “menina dos seus olhos”. Já o jovem Secretário se tornou gestor a partir do desenvolvimento de ações e atividades na referida política como representante da sociedade civil. O ex-prefeito, reconhecendo o trabalho desenvolvido, convidou-o para assumir a SETAS. O aporte teórico possibilitado por sua formação em Serviço Social, faltava apenas a monografia para a conclusão do curso, foi destacado como importante para assumir a gestão pública. Abaixo o relato do Secretário: Eu aprendi na marra, eu gosto de participar das coisas, eu fazia muito trabalho até voluntário para a prefeitura; com a implementação do Fome Zero, eu fui representante da sociedade civil, foi a Igreja que me indicou. A prefeitura não mandou ninguém, eu carreguei nas costas, depois recebi uma bolsa a nível Federal para implementar o comitê do Fome Zero. Era um menino de 17 a 18 anos [...] eu já conhecia o professor M. [ex-prefeito] e tinha 21 anos quando ele me colocou para coordenar a assistência social. Fiz o curso [Serviço Social] em 2007, foi quando apareceu a oportunidade para fazer o curso. Sempre gostei dessa área social. 1642

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI O Secretário mostrou bastante conhecimento dos documentos legais nacionais, estaduais e municipais da política de assistência social, com destaque para os que tratavam do orçamento público, e compromisso com a efetivação do SUAS, a partir de suas prerrogativas, na perspectiva dos direitos sociais. Nesse sentido, o conhecimento científico, as questões legais e a defesa política dos direitos sociais direcionam a gestão pública no município estudado. No entanto, identificou-se que os usuários não reconhecem a política de assistência social na sua perspectiva formal, como uma totalidade, uma política pública, expressando a sua compreensão mediante dimensões imediatas materializadas em ações e nos serviços aos quais têm acesso. Já os profissionais a percebem pelo que conseguem executar, vendo a política concretizada na implementação do SUAS como direito. Apesar do apoio da Prefeita e do Secretário, ainda existem limites institucionais e estruturais no município, quais sejam: aquisição da sede própria da Secretaria em prédio adequado para funcionamento; constituição da rede socioassistencial; sobrecarga da SETAS com oferta de serviços de identificação do cidadão; aquisição de CRAS Volante para atendimento da população rural; transporte para passeios; e retorno dos monitoramentos e avaliações feitos pelo Estado. Em relação aos trabalhadores do SUAS, observou-se elevado grau de satisfação, tanto pela liberdade de proposição nos processos de trabalho como pelos salários, que são os maiores da região. A equipe está formada há cerca de dez anos, o que facilita a continuidade dos serviços prestados e os vínculos estabelecidos nas relações de trabalho e com os usuários. Além de diligentes e motivados, os profissionais demonstraram esforços para realizar um trabalho qualificado. Nenhum membro da equipe é concursado, apesar de haver uma expectativa da gestão e dos trabalhadores em relação ao concurso. O contentamento com o emprego dificulta o reconhecimento da precarização das relações de trabalho a que estão submetidos, qual seja: todos os técnicos, os orientadores e os facilitadores são contratados, não tendo acesso a direitos trabalhistas. O outro maior desafio da gestão é a participação e o controle social, pois, apesar da existência e funcionamento do CMAS, os conselheiros têm relativo conhecimento sobre seu papel, pouco conhecimento sobre o conselho e dificuldades no exercício do 1643

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI controle social. Segundo a Técnica da gestão, os representantes da sociedade civil são mais assíduos nas reuniões do que os governamentais, além disso, reconheceu sua dificuldade em assessorar os três conselhos de direitos. Nas palavras do Secretário: [...] como gestores e trabalhadores do SUAS, faz-se necessário incentivar mais a participação popular, é um desafio o aumento dessa participação [...] é preciso que a população se organize e reclame seus direitos, pois estamos ofertando serviços, mas não temos ainda como avaliar se é isso que a população quer [...] muitas vezes, eles podem estar gostando, mas não compreendem a essência do serviço [...] para eles, está tudo bom porque está acontecendo coisas que nunca aconteceram; mas questiono se aquele serviço está mesmo fazendo alguma diferença na vida das famílias [...] não há um empoderamento político da população em tá cobrando, reivindicando, exigindo qualidade, que o serviço não é um favor, mas um direito. O poder de deliberação do conselho, segundo a Assessora Técnica da gestão, é “[...] ainda muito tímido; eles estão começando a perguntar agora [...] não é uma participação ativa”. Um Conselheiro da sociedade civil disse que, quando a linguagem é muito técnica, eles solicitam a sua “tradução”, ou seja, o uso de termos compreensíveis para todos. Isso mostra entraves para que os sujeitos possam se expressar e tomar decisões com base em informações e conhecimentos sólidos da política. CONCLUSÃO A criação do CMAS, a primazia da responsabilidade estatal para a oferta dos serviços socioassistenciais, a ação técnico-política para a garantia do acesso e autonomia dos usuários, a modernização administrativa no sentido de dar respostas céleres às demandas dos sujeitos, o planejamento e diálogo constante com a equipe de trabalho e a utilização de conhecimento científico e legal para a garantia de direitos são algumas características que indicam a estruturação de uma gestão participativa no município pesquisado. Em contraposição, o não planejamento, avaliação e prestação de contas da política pública com usuários, ou seja, o seu não envolvimento nos processos da administração pública, apontam a permanência de uma gestão gerencial. A construção de sujeitos políticos e de uma consciência a respeito da participação social foi o maior entrave colocado à gestão participativa. Entende-se que isso é um processo e deve ser 1644

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI fortalecido junto à população para que os conselhos e as conferências não se tornem espaços instrumentais de homologação das decisões da gestão. REFERÊNCIAS BRASIL. Censo SUAS 2017. Resultados Nacionais, Secretarias Municipais de Assistência Social. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social, 2018. BRASIL. Constituição de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 5 out. 1988. BRASIL. Lei nº 12.435, de 6 de julho de 2011. Altera a Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, que dispõe sobre a organização da Assistência Social. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 7 jul. 2011. BRASIL. Norma Operacional Básica – NOB/SUAS. Brasília, DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2005. BRASIL. Resolução nº 33, de 12 de dezembro de 2012. Aprova a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social - NOB/SUAS. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 3 jan. 2013. BRASIL. Resolução nº 145, de 15 de outubro de 2004. Aprova a Política Nacional de Assistência Social. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 26 out. 2004. DAGNINO, Evelina. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência perversa. Revista Política & Sociedade, Florianópolis, n. 5, p. 139-164, 2004. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/1983/1732. Acesso em: 23 set. 2019. GUTIERRES, Kellen Alves. Projetos políticos, trajetórias e estratégias: a política de assistência social entre o partido e o Estado. 2015. 253 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015. IPECE – Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará – IPECE. Perfil municipal 2017. Fortaleza: IPECE, 2018. NOGUEIRA, Marco Aurélio. Um Estado para a sociedade civil: temas éticos e políticos da gestão democrática. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2005. 1645

EIXO TEMÁTICO 4 | SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA ENVELHECIMENTO E O SERVIÇO DA PROTEÇÃO SOCIAL BÁSICA NO DOMICÍLIO PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIAS E IDOSAS Luanne Maria da Costa Martins1 RESUMO A longevidade é uma conquista recente na história brasileira. Tal fato care-ce cada vez mais de estudos aprofundados acerca do fenômeno do envelhe-cimento e das necessidades das pessoas idosas. Este artigo visa discutir os determinantes do processo do envelhecer, tais como os fatores biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, culturais, entre outros que fundamentará as análises do Serviço no Domicílio para Pessoas Com Deficiências e Ido-sas, da política de assistência social, problematizando o papel da família e sua centralidade nos serviços da proteção social e o papel da mulher frente aos cuidados. Trata-se de uma pesquisa teórica, de base bibliográfica e do-cumental. Conclui-se que o serviço não parte de uma perspectiva de enve- lhecimento plural e diversificado o que dificulta abordar as especificidades dos seus usuários e ainda tem forte conotação familista. Palavras-Chaves: Envelhecimento. Política de assistência Social. Serviços Socioassistenciais. ABSTRACT Longevity is a recent achievement in Brazilian history. This fact is increa-singly lacking in-depth studies on the phenomenon of aging and the needs of the elderly. This article aims to discuss the determinants of the aging process, such as biological, psychological, social, economic, cultural fac-tors, among others that will base the analyzes of the Home Service for Peo-ple with Disabilities and the Elderly, of the social assistance policy, pro-blematizing the the role of the family and its centrality in social protection services and the role of women in relation to care. It is a theoretical rese-arch, based on bibliography and documents. It is concluded that the service does not start from a 1 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica- PIBIC. E-mail: [email protected] 1646

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI perspective of plural and diversified aging, which ma-kes it difficult to address the specificities of its users and still has a strong familial connotation. Keywords: Aging. Social assistance policy. Social assistance services. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como finalidade retratar parte dos resultados de uma pesquisa em de-senvolvimento sobre “envelhecimento e serviços socioassistenciais”. Aqui apresenta-se resultados da pesquisa bibliográfica e documental. Destaca-se que a perspectiva de análise é baseada no método histórico dialético. Com base na fundamentação teórica adotada busca-se discutir sobre a temática do envelhecimento, como um processo biológico, mas também social, cultural e psicológico, o que já nos remete a um processo bastante heterogêneo entre os diferentes grupos de indiví-duos. Considerando o acelerado processo de mudança demográfica, em que cresce vertigino-samente a população de pessoas idosas e suas necessidades sociais, assim, ampliam-se os interesses acadêmicos e de pesquisa pelo fenômeno do envelhecimento em diferentes áreas científicas, dentre elas a do Serviço Social, que a partir da teoria crítica de origem marxista, busca romper como o modelo biomédico positivista e desconstruir as homogeneidades e as individualizações com que o fenômeno é tratado, assim como os mitos, preconceitos e discriminações. A partir dessa fundamentação teórica busca-se analisar o serviço em domicílio da po-lítica de assistência social brasileira, especialmente da proteção social básica, e sua adequação na compreensão das especificidades do público de pessoas idosas a que se destina e as múltiplas vulnerabilidades sociais que enfrentam, bem como a perspectiva do trato da família na proteção social e sua capacidade se superar o familismo. 2 ENVELHECIMENTO: um processo universal e heterogêneo O envelhecer é fenômeno na qual todo e qualquer ser humano pode vivenciar, se não morrer antes. Uma das definições do envelhecimento mais usual na política pública é o da OMS: 1647

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Um processo que pode ser compreendido como sequencial, individual, acumulati-vo, irreversível, universal, não patológico, deterioração de um organismo maduro, próprio a todos os membros de uma espécie, de maneira que o tempo o torne me-nos capaz de fazer frente ao estresse do meio ambiente e, portanto, aumente sua possibilidade de morte (ORGANIZACIÓN PANAMERICANA DE LA SALUD, 2003, p.30). Ao analisar o envelhecimento, como processo que se inicia antes da idade cronológica determinada socialmente, e a velhice, como etapa da vida em que culminam ou tem o ápice desse processo, envolve múltiplos determinantes, tais como: biológicos, psicoló-gicos e sociais e culturais que interagem entre si. Não obstante, em muitos estudos a defini-ção do envelhecimento ainda se limita a apenas determinantes biológicos e cronológicos, baseada a partir do número de anos contados desde o nascimento e das mudanças orgânicas no corpo. Todavia, é importante destacar que a cronologia não é determinante no modo de envelhecer, é apenas um marco socialmente criado. O envelhecimento é um processo mais complexo e não deve ser aprendido de maneira limitada. A interpretação da predominância da perspectiva biológica do envelhecimen-to, ligada ao declínio, e mudanças orgânicas, fisiológicas e externas do corpo humano (perda de peso, diminuição do olfato e paladar, rugas e etc.) geralmente se associa a cronológica e geram visões homogeneizantes, universalizantes do processo como se todos envelhecem da mesma forma. Entretanto, muitas perspectivas que visam superar essas universalizações ca-em no outro extremo, na individualização. Mas, em outra perspectiva teórica, se considera que as condições de vida e de trabalho das pessoas, que pode apressar, antecipar ou retardar, conter seus efeitos entre outros, agindo sobre os determinantes biológicos e psicológicos. Assim, inclusive os mitos, os estigmas e discriminações sobre a velhice não atingem todos os idosos, mas especialmente, aos idosos da classe trabalhadora, os mais pobres dentre eles. Contra essas visões universalizantes e homogeneizantes, destacam Felipe e Sousa (2014, p.26) A partir de uma determinação legal, ou seja, 60 anos, o status da velhice é imposto ao indivíduo e seu papel na sociedade também é determinado. A classe social ao qual pertencem, gênero, religião, o ambiente em que viveram e outros determinan-tes, não são compreendidos em uma perspectiva do curso de vida desses sujeitos, eles simplesmente são constituídos como um grupo homogêneo. 1648

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI A gerontologia, ciência que estuda o processo do envelhecimento humano, é um campo perpassado por lutas de hegemonia. Nesse campo ainda predominam visões positivistas (funcio-nalistas e sistêmicas) que mascaram a complexidade, dinamicidade e as codeterminações entre os fatores desse processo. O efeito dessa hegemonia são criação de visões universali-zante do fenômeno ou do seu oposto, individualizantes e singularizantes. Embora o modo de envelhecer detenha perspectivas homogeneizantes surtido pelas vivências comuns de vida e trabalho, também se diferem entre sujeitos que têm outra forma de existência. Assim, apresenta particularidades, pois os indivíduos envelhecem e vivenciam a velhice de múltiplas formas, em que são marcadas por características intrínsecas de cada sujeito (sua genética e história pessoal), o seu pertencimento de classe social, de aspectos socioculturais como gênero, raça/etnia, geração, além das questões de vivência na cidade e no campo. Ou seja, “de modo geral, é absolutamente diferente envelhecer no campo ou na cidade; numa família rica ou numa pobre; ser homem ou ser mulher; ter tido um emprego e se aposentar ou ter vivido apenas em atividades do lar informais e viver de forma dependente” (MINAYO, 2006, p.148). Beauvoir (1990), sublinha que “tanto ao longo da história como hoje em dia, a luta de classes determina a maneira pelo qual o homem é surpreendido pela velhice […] são duas categorias de velhos (uma extremamente vasta e outra reduzida a uma pequena minoria) que há a oposição entre explorados e exploradores cria” (p.17). Ademais, “para muitos indivíduos e cada vez mais, a experiência de longevidade é também a experiência da conti-nuidade da vida em condições paupérrimas, sem a garantia de acesso às conquistas expressas nas condições civilizatórias, bem como o aparato legal em vigor” (PAIVA, 2017, p.102). Nessa sequência, com os fundamentos supracitados pode-se afirmar que o envelhecimento é um processo complexo, universal, heterogêneo, sendo assim, é indispensável desmascarar as homogeneidades que o cerca, e as individualizações, assim se considera traços comuns, tanto da carga biológica, como as geradas por condições comuns de vida e trabalho. Mas, será que os serviços da assistência social dirigidos às pessoas idosas de setores populares em situação de vulnerabilidade social partem de referencias que consideram essa heterogeneidade em bases coletivas? Oferecem suporte às famílias ou reforçam suas respon-sabilidades? 1649

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 3 POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E SERVIÇOS SOCIOASSISTENCIAIS VOLTA-DOS PARA A PESSOA IDOSA É notório que a expectativa de vida cresce vertiginosamente e os índices demográfi-cos aponta o Brasil, um dos países que vem sendo atingido pelo envelhecimento populacio-nal. Assim, a velhice que durante muito tempo era considerada um problema privado, na qual a família era responsável, vem sendo tomada como questão pública, de política pública, especialmente, “diante de condições socioeconômicas desfavoráveis e desproteções que acompanharam a trajetória de vida dos velhos trabalhadores e repercutem na condição da velhice” (BERNARDO, 2017, p.45) que clamavam por atenção pública, como direito das pessoas idosas. Apesar dessas iniciativas, pontuais e isoladas, é somente com a Constituição Federal de 1988, que o processo de formação do sistema de proteção social brasileiro progride na condição de direitos sociais. Não obstante, a datar de 1990, uma onda neoliberal se desenvolve com reformas em conformidade com a lógica do capital de acumulação flexível que tem limitado os avanços na atenção pública. Apesar desse cenário, em 2003 é aprovado o Estatuto do Idoso, a carta de direitos do segmento. Entre as políticas sociais que materializam esses direitos, destacamos a assis- tência social, uma política focalizada nos que dela necessitam, complementar às políticas de seguridade social universalizantes. Três marcos históricos foram fundamentais para o dese-nho desta política: a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2003) o Sistema Único de Assistência Social (SUAS/2005) que tem colocado a Assistência Social no campo da proteção social brasileira, como política pública, dever do Estado e direito dos cidadãos em situação de vulnerabilidade social. Um dos avanços da política foi a organização dos dois tipos de proteção ofertada: a básica e a especial, sendo esta última, desmembrada em média e alta complexidade, com medidas protetivas cabíveis em cada situação. Os serviços de cada tipo de proteção social foram definidos e unificados nacionalmente em 2009, dentre eles, destacaremos o serviço em domicílio para pessoas com deficiências e idosas. Conforme o Caderno Orientações Técnicas do Serviço de Proteção Social Bá-sica no Domicílio para Pessoas com Deficiência e Idosas (2017, p. 20), a proteção social bá- sica tem por finalidade “a prevenção de situações de riso, por meio do desenvolvimento 1650

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI de potencialidades e aquisições e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários”. Já a proteção social especial, “trata-se da proteção direcionada para indivíduos e grupos excluí-dos, o que não implica necessariamente na ausência de renda, apesar de que a pobreza pode agravar a gerar condições de exclusão social […]” (PAIVA, 2013, p.99). A PSE alta comple-xidade, oferece os serviços de acolhimento permanente ou provisoriamente, quando os vín-culos familiares estão rompidos ou fragilizados. Na proteção social básica, os serviços prestados são: Serviço de Proteção e Atendimento Integral da Família (PAIF); Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vín- culos (SCFV) e o Serviço de Proteção Social Básica no Domicílio para Pessoa com Defici- ência e idosas. Na proteção de média complexidade tem-se o Serviço de Atenção Especial para Família e Indivíduos (PAEFI); Serviço de Especial para Pessoas Com Deficiência, Ido-sas e suas Famílias e o Serviço Especializado em Abordagem social. E por fim os serviços da proteção especial de alta complexidade, que são os Serviço de Acolhimento Institucional e o Serviço de Acolhimento em República. 3.1 SERVIÇO DE PROTEÇÃO SOCIAL BÁSICA NO DOMICÍLIO PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E IDOSAS Esse serviço foi contemplado na Tipificação Nacional dos Serviços Socioas- sistenciais, aprovado por meio da Resolução n ° 109, de 11 de novembro de 2009, a partir da revisão conceitual e das discussões ocorridas na Câmara Técnica da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), “que promoveu um longo e intenso debate sobre algumas experiências mu-nicipais relacionadas à execução do Serviço de Habilitação e Reabilitação na comunidade das pessoas com deficiência, nominado na PNAS (2004) e, até então, cofinanciado pelo piso básico de transição, previsto na NOB /SUAS 2005” (BRASIL, 2009, p.57). Assim, definiu-se nome do serviço, objetivos, usuários, formas de acesso, dentre outros sistematizados no quadro a seguir: 1651

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI NOME DO Serviço de Proteção Social Básica no Domicílio para Pessoas Com Deficiência e Idosas SERVIÇO DESCRIÇÃO O serviço tem por finalidade a prevenção de agravos que possam provocar o rompimento de vínculos familiares e sociais dos usuários. Visa à garantia de direitos, o USUÁRIOS desenvolvimento de mecanismos para a inclusão social, a equiparação de oportunidades OBJETIVOS e a participação e o desenvolvimento da autonomia das pessoas com deficiência e pessoas idosas, a partir de suas necessidades e potencialidades individuais e sociais, FORMAS DE prevenindo situações de risco, a exclusão e o isolamento. O serviço deve contribuir com ACESSO a promoção do acesso de pessoas com deficiência e pessoas idosas aos serviços de UNIDADE convivência e fortalecimento de vínculos e a toda a rede socioassistencial, aos outros serviços de outras políticas públicas, entre elas educação, trabalho, saúde, transporte especial e programas de desenvolvimento de acessibili-dade, serviços setoriais e de defesa de direitos e programas especializados de habilitação e reabilitação. Desen-volve ações extensivas aos familiares, de apoio, informação, orientação e encaminhamento, com foco na qualida-de de vida, exercício da cidadania e inclusão na vida social, sempre ressaltando o caráter preventivo do serviço. - Pessoas com deficiência e/ou pessoas idosas que vivenciam situação de vulnerabilidade sócia pela fragilização e pela fragilização de vínculos familiares e sociais e/ou pela ausência de acesso a possibilidades de inserção, habilitação social e comunitária. - Prevenir agravos que possam desencadear rompimento de vínculos familiares e sociais; - Prevenir confinamento de idosos e/ou PCD´s, identificar situações de dependência. - Colaborar com redes inclusivas no território - Prevenir o abrigamento institucional com vistas a promover a sua inclusão social. - Sensibilizar os grupos comunitários sobre direitos e necessidades de inclusão de pessoas com deficiência e pessoas idosas buscando a desconstrução de mitos e preconceitos; - Desenvolver estratégias para estimular e potencializar recursos das PCD´s, e pessoas idosas, de suas famílias e comunidade no processo de habilitação, reabilitação e inclusão social; - Oferecer as possibilidades de desenvolvimento de habilidades e potencialidades, a defesa de direitos e o estímulo a participação cidadã; - Incluir usuários e familiares no sistema de proteção social e serviços públicos, conforme necessidades, inclusive pela indicação de acesso a benefícios e programas de transferência de renda; - Contribuir para resgatar e preservar a integridade e a melhoria de qualidade de vida dos usuários; - Contribuir para a construção de contextos inclusivo - Encaminhamentos realizados pelos CRAS ou pela equipe técnica de referência da Proteção Social Básica do município ou DF. - Domicílio do usuário. ABRANGÊNCIA - Municipal. - Serviços socioassistenciais de proteção social básica e especial; ARTICULAÇÃO - Serviços públicos de saúde, cultura, esporte, meio ambiente, trabalho, habitação e outros, conforme EM REDE necessida-de; - Conselhos de políticas públicas e de defesa de direitos de segmentos específicos; - Instituições de ensino e pesquisa; - Organizações e serviços especializados de saúde, habilitação e reabilitação; - Programas de educação especial; - Centros e grupos de convivência. Fonte: elaborada pela autora com base em BRASIL (2009) 1652

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI O serviço possui as seguintes caraterísticas: Caráter preventivo; Proteção social proa-tiva, que é o fato de ir ao encontro das pessoas no domicílio; Proteção como processo indis-sociável do cuidado; Valorização do ambiente do domicílio como espaço de acesso a direitos socioassistenciais; acesso a ações e serviços públicos e a Complementação ao Serviço de Proteção e Atendimento Integral a Família (PAIF), compatíveis com a perspectiva de garan-tir direitos. Outrossim, conforme as Orientações Técnicas da Proteção Social Básica no Domicílio para Pessoas Com Deficiência e Idosas (2017), as etapas metodológicas do serviço são organizadas em três eixos inter-relacionados. [...] apontam intervenções, com base no domicílio, no território e em rede […] os eixos apontam as diretrizes ou linhas de ação do Serviço a partir do olhar sobre as dinâmicas: do território, do contexto familiar e da rede de proteção. [...] Embora cada eixo aponte um conjunto de possibilidades de ações ou estratégias, esses eixos e ações estão inter-relacionados e, no seu conjunto, convergem para o alcance das aquisições previstas na Tipificação em relação os usuários (BRASIL, 2017, p.86 grifos nossos). Dessa forma, o primeiro eixo se refere à Proteção e Cuidado Social no Domicílio, que tem o fito de contribuir para o desenvolvimento de vínculos protetivos, o autocuidado, a autonomia e participação dos usuários. As atividades do Serviço no ambiente domiciliar pressupõem um espaço mais tranquilo e confortável para o usuário e seus familiares que apresentam dificuldades de locomoção ou estão vivenciando singularidades que as impedem ou dificultam o acesso à rede, favorecendo o apoio e a orientação quanto aos seus direitos e planejamentos da rotina da vida diária, e suporte temporário enquanto superam as situações de risco e vulnerabilidade (BRASIL, 2017, p.86). O trabalho em domicílio para família que têm pessoas idosas que necessitam de cuidados de longo prazo, tem sido uma tendência que se difunde, especialmente na União Europeia, como estratégia de manter os/as idosos/as em suas famílias e evitar a institucionalização. Neste serviço específico visa dar apoio, orientações sobre direitos e planejamento da rotina, geralmente dos cuidados familiares. Não se constituem em cuidados materiais, como a saúde pode oferecer, mas significa outro tipo de atenção importante para reduzir as dificuldades nesse cuidado. O segundo eixo consiste no Território Protetivo: Olhares e Aproximações sobre o Território, importante para compreender os territórios em que se encontram os usuários (idosos e deficientes). 1653

ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI A dinâmica do território traduz processos desiguais, diversos e heterogêneos dentro de um mesmo município ou região. Tudo isso repercute e interfere no trabalho social com as pessoas idosas e as pessoas com deficiência, pois o reconhecimento e a valorização das identidades e dos direitos territoriais e as diversas formas de organização da população contribuem, em muito, na definição e na organização das estratégias de trabalho das equipes. A aproximação com cada território pode requerer, em alguma medida, caminhos gerais, mas também caminhos metodológicos singulares (BRASIL, 2017, p.99). Isso significa conhecer o território, suas redes, pois, os apoios que remetem para outros âmbitos da cidade podem significar custos, tempo gasto na busca de serviços que os cuidadores nem sempre podem disponibilizar. O terceiro e último tópico é o Trabalho em Rede: Olhar Multisetorial, que “pressupõem diálogo constante do Serviço com os demais no interior do SUAS e com os órgãos e serviços de outras políticas públicas no território” (BRASIL, 2017, p.104). Como destaca o documento normativo “esse diálogo pode ser mais fluido e orientado pela pactuação de fluxos, pois eles provocam um movimento constante de informações, ideias e energias” (p.104). Desse modo permite o acesso mais facilitado dos usuários com os demais serviços. A atuação em redes é uma nova tendência na política social que tem significado não apenas envolver diferentes políticas e serviços públicos, mas diferentes atores e instituições públicas e privadas, incluindo os informais como comunidade, família, vizinhança. Todavia, esses fluxos ainda são limitados o que deixa o serviço ao sabor da informalidade e personificação das relações interpessoais dos profissionais e atuações isoladas, ainda que com objetivos comuns. A fundamentação do serviço é bastante contraditória, com tendência do modelo biomédico, individualizantes e subjetivista, que não ultrapassa a singularidade do modo de aparecer do fenômeno. As determinações sociais são abordadas apenas por causa da cronologia estabelecida socialmente. [...] pensar o envelhecimento remete a considerá-lo um direito personalíssimo, ou seja, intransferível, pertencente ao indivíduo na sua singularidade e também como um processo natural, próprio das transformações biológicas, no dia a dia do próprio organismo, relacionadas aos ciclos de vida [...] (BRASIL, 2017, p.32). Com base nas análises documentais, percebe-se que a concepção de 1654


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