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ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI ANAIS DO III SINESPP 2020 Simpósio Internacional sobre Estado, Sociedade e Políticas Públicas/: Teresina-PI: EDUFPI/LESTU, 2020) Editoração: Lestu Publishing Company Disponível versão digital: http://www.sinespp.ufpi.br/ 1556
ANAIS III SINESPP 2020 [DATA] SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA EIXO TEMÁTICO 4 1557
EIXO TEMÁTICO 4 | SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA POLÍTICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL E AS CRIANÇAS COM MICROCEFALIA DO MUNICÍPIO DE TERESINA NA REALIDADE PANDÊMICA DA COVID-19 Jovina Moreira Sérvulo Rodrigues 1 Edna Maria Goulart Joazeiro 2 RESUMO Aborda-se a proteção social à infância no município de Teresina, situando determinados serviços da rede de políticas de saúde e de assistência social e suas ações destinadas às crianças vulneráveis, ressaltando especialmente as crianças com microcefalia, fenômeno histórico cujos agravos à saúde repercutem na necessidade de construção de sociabilidades específicas para o alcance de qualidade de vida desse público. No entanto, a atenção dessas políticas encontra-se em fase de ressignificação de suas atividades, visto que o acompanhamento dessa rede de referência vem buscando meios de adaptar suas ações às medidas de isolamento social de enfrentamento à COVID-19. As adequações da proteção e do cuidado visam a resguardar as crianças de outra forma de isolamento, referente à descontinuidade dos serviços. Pois, apesar da conjuntura tensionada pela gravidade da crise sanitária instalada em decorrência do coronavírus, a agenda política das três esferas de governo destina-se, prioritariamente, à solução do problema. Palavras-Chave: Saúde. Assistência Social. Microcefalia. ABSTRACT It addresses the social protection of children in the city of Teresina, placing certain services in the network of health and social assistance policies and their actions aimed at vulnerable children, highlighting especially children with microcephaly, a historical phenomenon whose health repercussions reflect the need of building specific sociability to reach the quality of life of 1Assistente social especialista em saúde pública pela Universidade de Ribeirão Preto, mestra e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Teresina-PI/Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Professora Adjunta, docente e pesquisadora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí, UFPI. Pós-doutorado em Serviço Social pela PUC-SP. Doutora e mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP. E-mail: [email protected]. 1558
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI this public. However, the attention of these policies is in a phase of reframing its activities, since the monitoring of this reference network has been looking for ways to adapt its actions to the measures of social isolation to confront COVID-19. The adequacy of protection and care aims to protect children from another form of isolation regarding the discontinuity of services. For, despite the situation strained by the seriousness of the installed health crisis resulting from the coronavirus, the political agenda of the three spheres of government is primarily aimed at solving the problem. Keywords: Cheers. Social Assistance. Microcephaly. INTRODUÇÃO A situação de riscos e inseguranças gerada pela pandemia do coronavírus, na qual se encontra imersa grande parte da sociedade mundial, em especial, as populações dos países pobres, que subsistem às mais profundas expressões de desigualdade, remete ao que Cobo (2012) chamou de “futuro incerto”, e que se coaduna às incertezas referentes aos acontecimentos inesperados no cotidiano dos sujeitos, principalmente no que se refere ao processo de adoecimento, incapacitação para o trabalho, entre outros aspectos capazes de promover grandes e eventuais mudanças na vida das pessoas. A proteção às famílias, sobretudo às crianças, representa um dos objetivos das políticas públicas de proteção social inscritas na Constituição de 1988, como resultado dos movimentos reivindicatórios pró-direitos de cidadania para crianças, cujo conteúdo versa que sejam assegurados, com “absoluta prioridade”, os direitos desse segmento sob a responsabilidade da família, da sociedade e do Estado (RIZINNI; PILOTTI, 2011). Nesse sentido, busca-se refletir sobre a responsabilidade do Estado de proteger crianças cujo futuro é incerto, tanto pelas condições de desigualdade em que se encontram inseridas quanto pelas condições de risco de limitações no processo de desenvolvimento que as sequelas da microcefalia poderão acarretar. Em 2015, o Brasil atravessou situação de risco e incerteza, sem dúvida em menor intensidade e risco em relação à pandemia da COVID-19, mas de relevante nível de gravidade, quando expressivo número de bebês nascidos com microcefalia colocou em foco a polêmica possibilidade da existência de uma relação entre o número de crianças acometidas pelo problema neurológico e a infecção causada pelo vírus Zica. Naquela circunstância, a adoção de medidas emergenciais iniciou-se pelas medidas de compreensão da problemática instalada, seguidas da decretação de Emergência em 1559
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) e Internacional (ESPII), renovada a cada necessidade de providências, sobretudo, de continuidade das pesquisas cuja comprovação de causalidade existente entre a infecção pelo vírus Zika, a microcefalia e a Síndrome de Guillain-Barré, colocaram o Brasil no cenário da literatura nacional e internacional reconhecido pelo estabelecimento da citada associação e suas implicações à saúde da população (IPEA, 2018). Neste sentido, o Brasil e, de forma mais singular, os estados e os municípios mais pobres da nação, cite-se o Piauí e, em particular, o município de Teresina, atualmente encontram-se no dilema de uma dupla incerteza, sendo que uma delas trata dos problemas referentes à crise sanitária orquestrada pela pandemia da COVID-19 e a outra se refere ao novo desenho de atenção às crianças com microcefalia, oriunda do vírus Zika, e suas respectivas famílias, pelas ações e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), de modo a protegê-las dos riscos de contaminação. A descontinuidade das ações de alta complexidade, na área de reabilitação, ofertadas pelo SUS, através do Centro Integrado de Reabilitação (CEIR), refere-se à necessidade de obediência ao Decreto Estadual nº 19.013, de 7 de junho de 2020, que versa sobre as medidas de manutenção de distanciamento por meio do isolamento social, que suspende as ações e serviços de saúde, incluindo as atividades de Alta e Média complexidades do SUS, referentes à reabilitação multidisciplinar. Encontram-se, também, na mesma medida de descontinuidade, os serviços da proteção social especial do Sistema Único da Assistência Social (SUAS), em Teresina, que para além dos efeitos da globalização via medidas neoliberais de redução da ação do estado por meio da redução do financiamento das políticas públicas, enfrenta-se a globalização da pandemia da COVID-19, cujas atenções de todas as esferas de gestão estão voltadas para a tomada de medidas destinadas a evitar, ou pelo menos minimizar, a iminente tragédia anunciada com a entrada do coronavírus no país. A presente análise trata do estudo de um recorte do objeto de pesquisa de doutorado, em andamento, que se destina a pesquisar a proteção social à infância em Teresina na perspectiva da política de transferência de renda e, em especial, das capilaridades do Programa Bolsa Família. O estudo em questão envolve, especificamente, os processos de articulação intersetorial constitutivos das ações da rede de Proteção Social 1560
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Especial do SUAS e do serviço de Reabilitação Física da Alta complexidade SUS do município de Teresina, direcionadas a atenção às crianças com microcefalia. Assim sendo, o texto está dividido em três seções. A primeira trata do debate acerca dos entraves em torno da atenção necessária às crianças com microcefalia num contexto de recrudescimento dessas dificuldades, haja vista a emergência da COVID-19. A segunda promove uma breve retomada da trajetória da microcefalia em Teresina e apresenta o perfil das famílias das crianças acometidas por esse fenômeno. E, por fim, nas considerações finais, discute-se sobre a importância da adoção de medidas que se configurem nas respostas necessárias e seguras, sem perder de vista a noção dos direitos de cidadania. 2 AS AÇÕES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO SOCIAL E A MICROCEFALIA NO CONTEXTO DA EMERGÊNCIA DA COVID-19 De acordo com Di Giovanni (1998) a proteção social se constitui numa estratégia histórica que, tradicionalmente, integrou as sociedades humanas sob alguma forma de solidariedade social e que, com o passar do tempo, foi se desenvolvendo, aprimorando-se, especializando-se e percorrendo os mais diferentes grupos e espaços societários, das formas mais simples, como a proteção social desenvolvida pela família, às mais complexas, como as formas institucionalizadas dos sistemas capitalistas europeus. Com base numa perspectiva residual e focalizada na pobreza, Cobo (2012) menciona que o sistema de proteção social consiste num conjunto de ações destinadas a promover a melhoria das condições de vida dos cidadãos pobres e vulneráveis em situações de riscos e incertezas tais quais o desemprego, as doenças, a deficiência, a velhice, entre outros agravos. Ressalta-se, no entanto, que para os abrangentes sistemas europeus a proteção social se destina a proteger todos os cidadãos nas mais adversas situações de ameaça e infortúnio que possa acometê-los em todos os seus ciclos e padrões de vida, segurança e desenvolvimento. Apesar da redemocratização, que resultou na Constituição Federal de 1988 e suas garantias sociais, não se conseguiu construir um sistema de Bem-Estar Social com padrão societário baseado nos direitos de cidadania. E com o advento do neoliberalismo no Brasil, constituiu-se um sistema de proteção social baseado na descentralização, privatização e focalização dos programas sociais orientado pelos Organismos internacionais como o Banco 1561
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (SILVA; YASBEK; DI GIOVANNI, 2004). Considerando-se que as políticas públicas representam as respostas do Estado às demandas apresentadas pela população através de serviços, programas e projetos destinados a segmentos específicos geridos por redes de políticas articuladas e consideradas as estratégias mais eficientes na atenção aos cidadãos vulneráveis, o atendimento às crianças com microcefalia passou a ser realizado pelo viés da articulação entre as políticas de seguridade social, sobretudo as políticas de saúde e de assistência social, seguindo a configuração estabelecida pelos Ministérios da Saúde e o então Ministério do Desenvolvimento Social, vide Portaria Interministerial nº 405, de 15 de março de 2016. No cenário da microcefalia, a política da assistência social foi chamada para atuação de forma articulada junto à saúde pela sua importante atribuição como política pública afiançadora de direitos. Daí a justificativa da sua centralidade na construção da intersetorialidade nas ações internas e externas a essa política. Neste sentido, o SUAS permanece à frente dessa importante e desafiadora prerrogativa de assegurar os direitos apresentados pelas demandas conjunturais dos territórios e, de forma agora mais intensa, ante à condição da essencialidade da assistência social, face a um novo, mais amplo e agressivo contexto pandêmico, o da COVID-19, pelo número elevado de pessoas e suas repercussões e agravos. Com efeito, os serviços da rede de atenção à microcefalia em Teresina, constituídos pelas ações das políticas de saúde e de assistência social, respectivamente, pelos serviços do SUS e do SUAS, materializados pela Associação REABILITAR; os ambulatórios de consultas especializadas de saúde; o Centro Dia para Crianças com Microcefalia e os CRAS e CREAS, entre outras unidades, vêm promovendo alterações no seu modus operandi com vistas a ofertar ações baseadas na segurança necessária para o respectivo público. Dessa forma, as unidades do SUAS vêm realizando suas ações referentes às terapias motoras e de estimulação cognitiva, além do acompanhamento social, por meio de trabalho remoto, cujas orientações são realizadas via ferramentas tecnológicas, tendo em vista a necessidade de obediência às medidas sanitárias de distanciamento e isolamento social instituídas por decretos estaduais e municipais de proteção às famílias e à população em geral contra a pandemia da COVID-19. 1562
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI COVID-19 é o nome da doença identificada, respectivamente, pelo tipo de vírus e o ano em que se iniciou a epidemia. O surto da COVID-19, que circula em quase todos os países do mundo, teve início na cidade de Wuhan, na China, em 31 de dezembro de 2019, e chegou ao Brasil em 26 de fevereiro de 2020, na cidade de São Paulo, através de dois brasileiros oriundos do exterior (CRODA; GARCIA, 2020). Importa destacar que essa pandemia se instalou num país permeado por várias formas de desigualdade social, na qual o Estado do Piauí, e, notadamente, a sua capital, que se encontra em intenso processo de urbanização, fenômeno que impacta diretamente no aumento do número de famílias vulneráveis nas periferias de Teresina e, consequentemente, no aumento da demanda por serviços públicos. Mas de acordo com Lima (2013, p. 144): O aumento da vulnerabilidade social das populações pobres estava associado não apenas às distorções do processo de urbanização e da ineficiência das políticas estatais no equacionamento da questão urbana, mas também ao fraco desempenho da economia do estado, baseada no setor terciário, notadamente no segmento informal. As condições de desigualdade com as quais conviviam as famílias vulneráveis à época da epidemia da microcefalia permanecem as mesmas, nesse contexto da instalação da COVID-19. Pois não houve alterações, no contexto político-econômico, capazes de modificar a situação de pobreza da população, seja por oportunidades propiciadas pelo sistema capitalista, seja pelas ações complementares que deveriam ser implementadas junto às políticas de transferência de renda, na área de trabalho e emprego, destinadas ao empoderamento das famílias e à superação da pobreza (SILVA; LIMA, 2014). Na emergência da epidemia de microcefalia no Brasil, muito se discutiu sobre a degradação das condições ambientais e de moradia dos espaços urbanos da maioria das cidades brasileiras, que representam uma das maiores ameaças e riscos de agravos para as condições de vida das famílias, uma vez que o quadro sanitário de uma região e a coexistência ou não do vírus Zika está relacionada à existência de saneamento, limpeza pública, coleta de lixo e fornecimento de água adequados (COSTA, 2016). Com base na pesquisa “A Pobreza Urbana e suas Multifaces”, Lima (2004, p. 8) menciona que, na ausência de locais para morar, os pobres “[...] instalam-se nos mais diferentes lugares, geralmente em condições inadequadas e de risco [...]”. Realidade que também reflete em grande preocupação, pois essas moradias, ao mesmo tempo em que 1563
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI favorecem os criadouros do Aedes aegypti, desfavorecem as ações protetivas contra a COVID-19, devido às aglomerações constituídas. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA (2018), para além da situação de vulnerabilidade, as repercussões mais cruéis, advindas daquele fenômeno, vêm sendo enfrentadas pelas mulheres que, em sua maioria, são muito jovens; de baixa escolaridade; sem emprego e sem nenhuma fonte de renda, e são, constantemente, abandonadas por seus maridos ou companheiros, quando da descoberta da deficiência do filho. Destarte, a atual realidade pandêmica vem se revelando numa dupla situação de risco e incerteza para os segmentos vulneráveis, sobretudo, para essas mulheres. Pois além da necessidade de adequação às novas sociabilidades decorrentes da condição de dependência dos filhos acometidos pela microcefalia, há o fator referente ao isolamento social, cuja necessidade é imprescindível, mas que, todavia, representa risco de perda dos avanços que o processo de reabilitação tende a promover às crianças acometidas pela microcefalia. Portanto, tal necessidade se justifica na possibilidade de desenvolvimento e/ou minimização das limitações apresentadas. Por isso, essas ações, que Merhy; Feuerwerker (2016) chamam de tecnologia do trabalho vivo, são imprescindíveis para esse público. 3 CRIANÇAS ATINGIDAS PELA MICROCEFALIA: o perfil das famílias e as ações do município de Teresina Conceituada como uma anomalia neurológica que impede o desenvolvimento do cérebro, de modo que a criança com microcefalia poderá apresentar medidas do perímetro cefálico inferiores às medidas consideradas padrão para a idade e sexo, a microcefalia “pode ser associada a malformações estruturais do cérebro ou ser secundária a causas diversas” (BRASIL, 2015, p. 13). Apesar da existência de bebês que, mesmo tendo apresentado medidas cranianas abaixo da média padronizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), podem ter desenvolvimento cognitivo normal, sobretudo, se a microcefalia for de origem genética, dados do Ministério da Saúde comprovam que cerca de 90% dos casos de microcefalia apresentam expressivo déficit neuropsicomotor, além do comprometimento das funções sensitivas, tais como a audição e a visão. Nesse sentido, as crianças com microcefalia podem 1564
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI apresentar paralisias, crises convulsivas, retardo mental em diversos níveis, entre outros aspectos característicos dessa anomalia (BRASIL, 2015). Em 2015, período referente ao início da epidemia do vírus Zika em Teresina, o município, em observância ao “Protocolo de Atenção à Saúde e Resposta à Ocorrência de Microcefalia Relacionada à Infecção pelo Vírus Zika”, emitido pelo Ministério da Saúde, implementou as medidas necessárias ao estabelecimento de ações nas áreas da saúde e da assistência social, através da Fundação Municipal de Saúde (FMS) e da Secretaria Municipal de Cidadania, Assistência Social e Políticas Integradas (SEMCASPI), a fim de desenvolver ações integradas de atenção às crianças e suas famílias, além de promover a abertura de canais de diálogo e de cooperação, via comitês institucionais, com os Governos Estadual e Federal, para o alcance das respostas necessárias diante da complexidade da situação. Na área da saúde, o Plano de Enfrentamento à Microcefalia, implantado em dezembro de 2015, forneceu as principais diretrizes para as ações, seguidas das orientações da Instrução Operacional Conjunta (IOP) nº 1 MS-MDS, de 25 de fevereiro de 2016, por meio da adoção das medidas referentes à avaliação diagnóstica via investigação dos casos suspeitos; do acompanhamento das gestantes com infecção pelo vírus Zika, pela atenção básica; da realização de exames de imagem nas crianças que apresentaram o problema e as ações de combate ao mosquito Aedes aegypti, vetor do vírus Zika, Dengue e Chikungunya. Implementou-se também a Estratégia de Ação Rápida para o Fortalecimento da Atenção à Saúde e da Proteção Social de Crianças com Microcefalia, destinada a esclarecer, a curto prazo, o diagnóstico dos casos suspeitos, otimizando o uso da capacidade instalada dos serviços e a continuidade da atenção à saúde de todas as crianças com diagnóstico confirmado ou excluído para microcefalia, cujo fluxo para o atendimento dessa demanda foi definido pela Portaria Interministerial nº 405, de 15 de março de 2016. Desta forma, todas as crianças com suspeita de microcefalia passaram a ser encaminhadas para o Centro de Referência em Microcefalia, serviço implantado na Maternidade Estadual Dona Evangelina Rosa, para fins de realização de consultas e exames para diagnóstico precoce e encaminhamento das crianças ao serviço de reabilitação do Centro Integrado de Reabilitação (CEIR), para acompanhamento nas áreas de fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição, serviço social e terapia ocupacional, especialmente nos três primeiros anos de vida (RIBEIRO et al., 2017), conforme fluxo construído. 1565
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI No âmbito da assistência social, a Prefeitura de Teresina, em atenção às Instruções Operacionais (IOP) nº 1 e nº 2, emitidas pelo MS-MDS, em 25/02/2016 e 31/03/2016, respectivamente, por meio da SEMCASPI, realizou o mapeamento e identificação das famílias atingidas, e a respectiva inserção desses usuários nos programas sociais do Governo Federal, sobretudo o Cadastro Único e o Programa Bolsa Família (PBF), com vistas a minimizar as dificuldades dessas famílias por meio da segurança de renda advinda do PBF, assim também, na intenção de facilitar o acesso desse público aos espaços de tratamento, entre outras necessidades das crianças, as famílias foram inseridas no programa Passe Livre Municipal, que confere gratuidade nos transportes públicos intermunicipais da capital e, por fim, foram tomadas as providências necessárias junto ao INSS para inserção das crianças no BPC. No tocante à garantia de proteção social especial e cuidados destinados às crianças com microcefalia, o município implantou o Centro Dia de Referência para Crianças com Microcefalia e Deficiências Associadas e suas Famílias “Saber Cuidar”. Essa instituição pública integra a proteção social especial da Política de Assistência Social, cujas ações são ofertadas de acordo com a tipificação nacional dos serviços do SUAS. A unidade foi implantada pela Prefeitura de Teresina, por meio da SEMCASPI, e é gerida por meio de parceria com a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). Atualmente, o Centro Dia “Saber Cuidar”, que oferta de ações de importância singular para os usuários, e suas respectivas famílias, que residem em Teresina e precisam frequentar distintos serviços, durante o dia, apresenta capacidade instalada para atender 70 crianças inscritas, sendo essa quantidade distribuída nos turnos manhã e tarde. E atende aos seguintes critérios: crianças de zero (0) a doze (12) anos, com microcefalia ou deficiências associadas; beneficiárias do BPC; integrantes de famílias inseridas no Cadastro Único; sobretudo aquelas que se encontram em situação de risco ou cujos direito foram violados (SEMCASPI, 2020). Com efeito, novas situações continuaram surgindo, embora em menores índices, se comparado ao período da epidemia, em que foram identificados casos em 25 estados do país, com maior número situado na região Nordeste, no Estado de Pernambuco. O Piauí, na época, registrou 126 casos notificados, e Teresina registrou o maior número de casos 1566
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI confirmados desse estado, conforme relatório da Associação Piauiense de Habilitação, Reabilitação e Readaptação (Associação REABILITAR), de 31 de janeiro de 2018. Atualmente, 70 crianças encontram-se inscritas no Centro Dia de Microcefalia “Saber Cuidar”. Trata-se de crianças nascidas de mães jovens, da faixa etária entre 19 e 28 anos, oriundas de famílias de baixa renda, tendo em vista que 67 dessas crianças são beneficiárias do Benefício de Prestação Continuada (BPC), sendo 2 inseridas, também, no Programa Bolsa Família (PBF); outras duas crianças encontram-se à espera da inserção no BPC, por vias judiciais, e apenas uma delas não depende de recurso oriundo dessa política pública de transferência de renda não contributiva (SEMCASPI, 2020). O BPC consiste num benefício que integra as garantias ofertadas pela segurança de renda da assistência social reconhecida pela CF de 1988 e pela LOAS, cujo recurso é gerido pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), e a inserção dos beneficiários se inicia pelos CRAS. Contudo, o citado benefício havia sido concedido às crianças acometidas pela microcefalia, porém, na modalidade temporária. Pois, conforme o artigo 18 da Lei nº 13.301/2016: Fará jus ao benefício de prestação continuada temporário, a que se refere o art. 20 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, pelo prazo máximo de três anos, na condição de pessoa com deficiência, a criança vítima de microcefalia em decorrência de sequelas neurológicas decorrentes de doenças transmitidas pelo Aedes aegypti. No entanto, a Lei nº 13.985/2020, de 7 de abril de 2020, instituiu a pensão especial de caráter vitalício, destinada a crianças com Síndrome Congênita do Zika Vírus, nascidas entre 2015 a 2019. Dessa forma, essas crianças terão, gradativamente, sua condição de beneficiárias do BPC alterada para a condição de beneficiárias da Pensão Especial Vitalícia, devido ao agravo pela microcefalia decorrente da Síndrome Congênita do Zika Vírus. Importa assinalar que a instituição dessa lei, ora em vigor, sinaliza para o alcance de um direito de cidadania no sentido de possibilitar a essas crianças um amparo definitivo, cuja vitaliciedade da citada lei institui, contrariamente ao caráter temporário propiciado pelo BPC, por meio da Lei nº 13.301/2016. 1567
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI CONSIDERAÇÕES FINAIS O atendimento às demandas das crianças com microcefalia e suas famílias em Teresina vem sendo realizado por meio da rede intersetorial de ações materializadas pelo SUS, SUAS e INSS, respectivamente, pelas políticas de Saúde, Assistência e Previdência Social, conforme previsto na Portaria Interministerial nº 405, de 15 de março de 2016, e Portaria nº 58, do Ministério do Desenvolvimento Social. Contudo, a realidade vivenciada pelo atual panorama da pandemia da COVID-19 vem acarretando mudanças substanciais no atendimento da população, cujos impactos mais profundos têm sido registrados no cotidiano das famílias vulneráveis, notadamente, os segmentos acometidos por alguma vulnerabilidade, como a situação das famílias que têm crianças com microcefalia. De acordo com Cardoso (2020) a realidade pandêmica dos países pobres é permeada pelo aprofundamento das desigualdades, visto que essa população é sempre mais atingida, tanto pelos aspectos econômicos, com relação às perdas de renda e trabalho, como no âmbito da saúde, pelas dificuldades de acesso, assim como pelas condições de moradias precárias que, nesse contexto, dificultam o cumprimento das orientações sanitárias, como o isolamento social. Importa destacar que determinadas situações, que limitam ou impedem o cumprimento das medidas de isolamento social, como no caso dos países desiguais, colocam em destaque a importância dos Determinantes Sociais da Saúde, que envolvem os fatores econômicos e ambientais refletidos nas habitações precárias, favorecendo a aglomeração social, assim como pela insuficiência ou ausência de saneamento e a necessidade de uso de transportes públicos, que se revertem em meios de propagação e ampliação do vetor da doença. A situação exposta permite compreender que as famílias vulneráveis, por enfrentarem maiores fragilidades, deverão contar com os sistemas de proteção social que representam as respostas às mazelas sociais, por meio de ações articuladas a outras políticas públicas. Pois em relação às ações destinadas a crianças com microcefalia, para além do benefício da transferência de renda, garantido pelo BPC e PBF, outras ações devem ser articuladas, a fim de minimizar as dificuldades enfrentadas. Devendo-se considerar, ainda, que esses segmentos já se encontram diante de novas necessidades de adequações. Uma 1568
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI vez que, apesar das adaptações, constitutivas do processo de cuidado com essas crianças, será necessária a inserção de novas sociabilidades e orientações sanitárias de proteção contra a COVID-19. Por fim, ressalta-se a importância de se repensar e se construir uma linha de cuidado e desenvolvimento específicos, alinhados às adequações de crescimento dessas crianças e ao acompanhamento sanitário preventivo contra os agravos da COVID-19, uma vez que a microcefalia, nessa circunstância, consiste num fenômeno decorrente de fatores epidemiológicos, que face aos agravos que o nível de comprometimento possa acarretar, as crianças necessitam de atenção e proteção de forma prioritária, a fim de garantir um padrão de desenvolvimento compatível com cada particularidade, que proporcione uma melhor qualidade de vida. REFERÊNCIAS BRASIL. Presidência da República. Lei Orgânica da Assistência Social, nº 8742, de 7 de dezembro de 1993, Brasília: Senado Federal, 1993. ______. Presidência da República. Decreto nº 10.316, de 7 de abril de 2020. Regulamenta a Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Brasília, 2020. Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.316-de-7-de-abril-de-2020-251562799. Regulamenta a Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020. Brasília, 2020. Acesso em: 15 maio 2020. ______. Presidência da República. Lei nº 13.985, de 7 de abril de 2020. Disponível em: http://www.normaslegais.com.br/legislacao/lei-13985-2020.htm. Acesso em: 25 maio 2020. ______. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Serviço de Proteção Social Especial para. Pessoas com Deficiência, Idosas e suas Famílias. Centro Dia para Crianças com Deficiência, Microcefalia e suas Famílias. Disponível em: www.mds.gov.br/cnas/pautas-atas-e-apresentacoes/apresentacoes/.../download. Acesso em: 7 mar de 2017 ______. Ministério do Desenvolvimento Social. Assistência Social no atendimento à microcefalia. Disponível em: mds.gov.br/assuntos/assistencia.../assistencia-social-no- atendimento-a-microcefalia. Acesso em: 26 abr. 2018. CENTRO INTEGRADO DE REABILITAÇÃO – CEIR. Relatório de Atendimento às crianças com microcefalia. Teresina-PI, jan. 2018. 1569
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EIXO TEMÁTICO 4 | SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA POBREZA, ASSISTÊNCIA SOCIAL E SEGURANÇA DE RENDA: o auxílio emergencial no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil POVERTY, SOCIAL ASSISTANCE AND INCOME SECURITY: emergency aid in the contexto of the COVID-19 pandemic in Brazil Annova Míriam Ferreira Carneiro1 RESUMO Este artigo apresenta análise sobre a Política de Assistência Social (PAS) com ênfase na segurança de renda prevista na Política Nacional de Assistência Social – PNAS/2004, enquanto uma das garantias de proteção social. Traz dados sobre a pobreza, no Brasil, como forma de subsidiar a reflexão sobre o enfrentamento à situação de vulnerabilidade social, agravada, no país, no contexto da pandemia da COVID-19, mediante a implementação do Auxílio Emergencial instituído pelo Governo Federal. Palavras-Chave: Assistência Social. Pobreza. Segurança de renda. Segurança de Sobrevivência ABSTRACT This article presents an analysis of the Social Assistance Policy with an emphasis on income security provided for in the National Social Assistance Policy - PNAS / 2004, as one of the guarantees of social protection. It brings data on poverty, in Brazil, as a way to subsidize the reflection on facing the situation of aggravated social vulnerability in the country, in the context of the COVID-19 pandemic, through the implementation of Emergency Aid instituted by the Federal Government. Keywords: Social assistance. Poverty. Income security. Survival Safety 1Assistente Social. Pós-doutoranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade Federal do Ceará. Doutora em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Maranhão. Professora Associada na Universidade Federal do Maranhão. Pesquisadora do Grupo de Avaliação e Estudo da Pobreza e de Políticas Direcionadas à Pobreza (GAEPP). E-mail:[email protected] 1572
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI INTRODUÇÃO Os Sistemas de Proteção Social para Giovanni (1998, p. 10), são “as formas [...] que as sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio e as privações”. No Brasil, o Sistema de Seguridade Social é assentado no tripé: Saúde, Assistência Social e Previdência Social, sistema híbrido por conter políticas de caráter contributivo e não contributivo, como as Políticas de Saúde e Assistência Social regulamentadas por leis específicas. Essa não contributividade se reveste de relevância num país marcado historicamente pela pobreza, miséria, desigualdade social e por uma estrutura de mercado de trabalho que exclui, de parcelas significativas de trabalhadores, a possibilidade de inserção protegida no trabalho. E que, por essa razão, constituem-se os principais demandatários das políticas públicas. No Brasil, a existência e a persistência da pobreza refletem diversos problemas existentes no país, tais como: a questão agrária, incremento da informalização do mercado de trabalho, oferta deficitária de serviços públicos, desigualdade social, disparidades regionais, a referência de renda com base em salário-mínimo, dentre outros. Este trabalho apresenta uma análise sobre a Política de Assistência Social, Pobreza, Segurança de Renda e de Sobrevivência, consideradas estas últimas no âmbito da PAS e do seu sistema de gestão, o Sistema Único de Assistência Social – SUAS, enquanto seguranças afiançadas. Aborda preliminarmente o Auxílio Emergencial instituído, no país, no corrente ano, por ocasião da pandemia da COVID-19, a qual impôs às famílias o isolamento social, como forma de inibir a disseminação do vírus e que resultou, consequentemente, em perda salarial de forma intensa. Assim, a medida visa reduzir o impacto, na classe trabalhadora, no que se refere à perda ou redução de renda, dentre outros prejuízos. O presente artigo resulta de revisão bibliográfica sobre as temáticas analisadas e do levantamento de dados e informações relacionadas ao tema central. Constitui síntese de reflexões, estudos e pesquisas desenvolvidos no âmbito do Grupo de Estudos e Avaliação da Pobreza e de Políticas direcionadas â Pobreza (GAEPP) da Universidade Federal do Maranhão. Resulta também dos estudos desenvolvidos no âmbito do pós-doutoramento, que vem sendo realizado junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia, na 1573
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Universidade Federal do Ceará, sob a supervisão da Profa. Dra. Alba Maria Pinho de Carvalho, cuja proposta de pesquisa diz respeito às FORMAS DE RESISTÊNCIA EM TEMPOS DE DESMONTE DA POLÍTICA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL/SUAS2. 2 POBREZA EM TEMPOS DA PANDEMIA DA COVID-19: apontamentos para refletir sobre o seu enfrentamento no Brasil A presente análise parte do entendimento de que o debate sobre a pobreza deve estar circunscrito ao campo dos direitos humanos, extrapolando a noção restrita de carência de renda ou material. Nesta perspectiva, a ampliação da concepção de pobreza - levando-se em consideração suas diferentes manifestações tipológicas - percebida na sua historicidade e multidimensionalidade, pode ensejar a formulação de políticas públicas mais equitativas, voltadas para o exercício da cidadania. Nesta direção, Martins (2002) aponta que: Não se trata apenas de gerir a distribuição de renda, como pensam muitos que se deixaram fascinar pelo economicismo ideológico produzido pela mesma economia iníqua causadora da pobreza que condenamos. Trata-se da distribuição equitativa dos benefícios sociais, culturais e políticos que a sociedade contemporânea tem sido capaz de produzir, mas não tem sido capaz de repartir. A questão é muito mais social que econômica (MARTINS, 2002, p. 10). A concepção de pobreza considerada, neste estudo, é a que a define, enquanto um fenômeno social multidimensional, complexo e estrutural, por resultar das relações fundadas na desigualdade social, estabelecidas pelos homens, no processo histórico de produção social. Dados da Síntese de Indicadores Sociais - SIS (2019) mostram que a pobreza extrema no país aumentou e atingiu 13,5 milhões de pessoas, em 2018, o que faz o país chegar ao maior nível em 7 anos. Neste mesmo ano, os extremamente pobres viviam com uma renda mensal per capita inferior a R$ 145,00, considerando-se o critério adotado pelo Banco Mundial para identificar a condição de extrema pobreza. A SIS (2019) aponta, ainda, que a pobreza atinge sobretudo a população preta ou parda, que representa 72,7% dos pobres, ou seja, 38,1 milhões de pessoas. Aponta que cerca da metade dos brasileiros (47%) situados abaixo da linha de 2 Esta proposta constitui-se num desdobramento de uma pesquisa realizada no contexto do projeto: Avaliando a implementação do Sistema Único de Assistência Social na Região Norte e Nordeste: significado do SUAS para o enfrentamento à pobreza nas regiões mais pobres do Brasil, realizada em cooperação acadêmica entre pesquisadores integrantes dos seguintes programas de pós-graduação: Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Maranhão; Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará, Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará e Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará. 1574
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI pobreza, em 2018, encontravam-se nos estados da região Nordeste e, dentre estes, o Estado do Maranhão destaca-se com maior percentual de pessoas com rendimento abaixo da linha de pobreza, 53,0%. A taxa de desemprego para a população preta e parda atingiu a taxa de 14,1% e de 9,5% entre os brancos, que ganhavam, em média, 73,9% a mais. Os pretos e pardos, também apresentam percentual maior no item informalidade, atingindo 47,3%, ante 34,6% dos brancos que estavam nessa condição. Ainda de acordo com o IBGE, 2,4 milhões de jovens de 15 a 29 anos não estudavam nem trabalhavam, em 2018, o que corresponde a 23% das pessoas nessa faixa etária. As condições de moradia também expressam a pobreza, no Brasil, visto que 56,2% da população abaixo da linha da pobreza, ou seja, 29,5 milhões de pessoas não têm acesso a esgotamento sanitário, 25,8% (13,5 milhões) não são atendidos com abastecimento de água por rede e 21,1% (11,1 milhões) não têm acesso à coleta de lixo. De acordo com o Relatório do PNUD (2019), o Brasil ocupa a sétima posição de país mais desigual do mundo, ficando atrás apenas de países do continente africano. Os dados, baseados no coeficiente Gini, mostram que o Brasil apresentou índice de 53,3, o que representa elevada desigualdade e forte concentração de renda. Todavia, o país apresentou, em 2018, um IDH - Índice de Desenvolvimento Humano considerado alto, 0,761, o que apresenta efeito negativo, quando esse valor tem descontada a desigualdade, visto que a parcela dos 10% mais ricos do Brasil concentra cerca de 42% da renda total do país. Os dados expressam um aprofundamento da pobreza, no país, num contexto marcado por um projeto conservador que vem desestruturando sobretudo conquistas sociais e trabalhistas, com declínio da taxa de crescimento do Produto Interno Bruto – PIB e aumento expressivo do déficit público. Contexto este inaugurado com o golpe de 2016, a partir da aprovação pelo Congresso Nacional do impeachment da presidente Dilma Rousseff, em seu segundo mandato, o que ocasionou a ascensão do Vice-Presidente, Michel Temer, à Presidência da República. Para Silva; Lima (2017) nesse contexto o Estado brasileiro torna-se: conservador e autoritário, profundamente submetido aos interesses do capitalismo financeiro internacional, com verdadeiro desrespeito a princípios democráticos que vinham regendo a sociedade brasileira, cuja consequência de maior destaque é um amplo retrocesso dos direitos sociais e trabalhistas, além de desativação e redução de programas sociais relevantes para a população pobre (SILVA; LIMA, 2017, p. 15). 1575
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Como uma das medidas de ajuste fiscal implementado pelo governo Temer, foi aprovada a Proposta de Emenda à Constituição nº 95 de 2016, denominada de PEC do Teto dos Gastos Públicos, a qual institui o Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, a vigorar por vinte anos. Ademais, foi aprovada pela Câmara de Deputados e sancionada pelo Presidente da República a Lei nº 13.429, de março de 2017 que flexibiliza as relações de trabalho no que diz respeito à terceirização, contratação de trabalho temporário, com efeitos regressivos para a classe trabalhadora e estrutura de mercado de trabalho. E complementando as medidas de retirada de direitos, do Governo Temer, foi aprovada a reforma trabalhista Lei nº 13.467/2017 que mudou as regras relativas à remuneração, plano de carreira e jornada de trabalho, entre outras, sob o argumento de geração de empregos. Passados mais de dois anos essas expectativas ainda não se confirmaram. Além dessas medidas regressivas de direitos, houve a aprovação da reforma da Previdência Social, com a publicação da Emenda Constitucional nº 103 no Diário Oficial da União, no Governo de Jair Messias Bolsonaro, que assumiu a Presidência da República, em 2019. A Nova Previdência entrou em vigor, em 13 de novembro de 2019, e representa para a classe trabalhadora retrocessos em relação aos direitos conquistados. Nessa direção, vivencia-se, no Brasil, durante o Governo Bolsonaro, conforme afirma Carvalho (2019, p. 90) uma intensificação de medidas neoliberais expressas no que denomina de ultraneoliberalismo dependente que consiste no “agravamento da agenda de ajuste do Governo Temer, a efetivar as chamadas políticas de ajuste fiscal e de austeridade, significando, na prática, privatizações, cortes de gastos públicos e contrarreformas”. Em um cenário de avanço da pobreza, com as políticas públicas de corte social combalidas, pelo desfinanciamento e desestruturação dos sistemas públicos, tem início a pandemia da COVID-19, no Brasil, com forte tendência de acirramento do processo de degradação das condições de vida de parcelas significativas da população brasileira. Diante da crise humanitária desencadeada pela pandemia da COVID-19 (Novo Coronavírus), oriunda do vírus SARS-CoV-2, vive-se o agravamento do risco de sobrevivência, no Brasil, impactando de forma mais intensa os mais pobres, os mais vulneráveis tradicionalmente. Trata-se de uma ameaça para toda a humanidade que é vivenciada de maneira diferenciada pelos diversos países atingidos, bem como pelos indivíduos e suas famílias no que diz respeito à capacidade de respostas para atendimento das demandas 1576
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI postas para o seu enfrentamento. Portanto, decisivamente ‘não estamos no mesmo barco’. Essa afirmativa decorre do fato de que as possibilidades de enfrentamento da pandemia dependem do tipo, qualidade e cobertura dos Sistemas de Proteção Social existentes, em cada país, das racionalidades públicas envolvidas nesse processo, do grau de estruturação do mercado de trabalho, do índice de desigualdade, dentre outros aspectos. Como destaca Freire (2020), pesquisadora da UFMG que participou de um estudo sobre impactos da crise econômica provocada pela disseminação do coronavírus: [...] as famílias de classe mais baixa são mais vulneráveis, usam mais transporte público, ônibus lotados, moram em aglomerados, têm uma proporção de idosos mais vulneráveis e assim por diante. Para além do efeito que vai ocorrer em relação ao mercado de trabalho e na estrutura produtiva da economia, tem também o efeito de maior vulnerabilidade. Exatamente pela situação precária que as famílias se encontram. E há também uma tendência maior de adoecimento dessas famílias (FREIRE, 2020, p.3). Isso significa que a pandemia se constitui ameaça maior para os 12 milhões de desempregados, os 40 milhões de autônomos, informais e precarizados e os 42 milhões de pessoas do Cadastro Único (INFORME 3, FNDSUAS, 2020), visto que nem mesmo as principais medidas de prevenção recomendadas, como lavar as mãos, usar álcool em gel e manter o distanciamento social, são acessíveis e possíveis para grande parte da sociedade brasileira. Conforme Boletim Social do Maranhão (2020), há previsão de aprofundamento da pobreza e da extrema pobreza, no período da pandemia, podendo alçar até 50% da população brasileira e 66% do Nordeste. O cenário projetado é regressivo com queda de 0,14% do Produto Interno Bruto - PIB e de 0,1% no nível de emprego. É o que mostra o estudo, cujas conclusões apontam que as famílias com renda entre 0 e 2 salários mínimos podem ter sua renda 20% mais impactada do que a média das famílias brasileiras. Isso significa que a pandemia acirra e põe em evidência um quadro de pobreza e de desigualdade social preexistente, no país, e afeta especialmente a população mais vulnerável, sobretudo as pessoas que se encontram em condições desiguais por questões étnico-racial, gênero, territorial, dentre outras. Situação que demanda a construção de uma agenda pública, para além da transferência de renda, em consonância com as demandas postas pela população, tendo em vista que significativas parcelas de trabalhadores foram atingidas com a redução ou perda de trabalho e renda, em decorrência da necessidade de isolamento social, imposta pela circulação do vírus. 1577
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 3. A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E A SEGURANÇA SOCIAL DE RENDA/SOBREVIVÊNCIA A partir da Constituição Federal de 1988, a Política de Assistência Social é concebida como Política Pública, no Brasil, no âmbito da Seguridade Social, juntamente com as políticas de Previdência Social e Saúde. Regulamentada pela Lei nº 8.742/1993, Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), seguida da instituição da Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004), da Norma Operacional do SUAS de 2005 e 2012 e da Lei nº 12.435/2011. A proteção social de assistência social, ao ter por direção o desenvolvimento humano e social e os direitos de cidadania, tem as seguintes seguranças, a serem garantidas: segurança de acolhida; segurança social de renda; segurança do convívio ou vivência familiar, comunitária e social; segurança do desenvolvimento da autonomia individual, familiar e social e segurança de sobrevivência a riscos circunstanciais (BRASIL, 2004, p. 29). No contexto do enfrentamento da COVID-19, a Política de Assistência Social é requisitada a oferecer respostas para mitigar os efeitos da pandemia, considerando suas particularidades na proteção social, seguranças afiançadas, seu caráter constitucional, posto que ‘deverá ser prestada a quem dela necessitar na condição de direito social’. A esse respeito cabe ressaltar que a implementação da Assistência Social ocorre, principalmente, mediante o desenvolvimento de serviços e benefícios, que adquirem peculiaridades neste contexto. Os serviços socioassistenciais são responsabilidade do Estado e, como tal, “são regidos por normas técnicas, padrões, metodologias e protocolos e controles referenciados pelo SUAS” (MUNIZ ET AL, 2007, p. 40). Nessa direção, destaca-se a Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (Resolução CNAS nº 109, de 11 de novembro de 2009), instituída para organização e padronização dos serviços em todo território, com definição de conteúdos, público-alvo e resultados a serem alcançados para a garantia dos direitos, dentre outros aspectos. Os benefícios socioassistenciais são benefícios cuja efetivação ocorre mediante repasse de bens materiais e/ou transferência de renda direta para indivíduos e famílias em situação de vulnerabilidade social. São, portanto, provisões que integram a proteção social básica, compõem a rede socioassistencial e são divididos em duas modalidades, conforme dispõe a Loas/Suas (2011): Benefício de Prestação Continuada - BPC e Benefícios Eventuais - 1578
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI BE. Acrescem-se a estes, os benefícios vinculados ao Programa Bolsa Família - PBF, por se constituírem também provisões de cunho financeiro. Dentre as respostas vislumbradas diante da pandemia da COVID-19, pela Assistência Social, adquire visibilidade a garantia das seguranças de sobrevivência e de renda sob a alçada dessa Política, tendo em vista contribuir para o suprimento de necessidades básicas das pessoas vulnerabilizadas, mediante a oferta de serviços e benefícios socioassistenciais, no contexto de enfrentamento aos impactos da pandemia da COVID-19, causados pelo novo coronavírus, no âmbito SUAS (INFORME Nº 3 FNDS, p. 1). A segurança social de renda, de competência da Assistência Social, é operada mediante concessão de bolsas-auxílio financeiro sob determinadas condicionalidades, com presença (ou não) de contrato de compromissos e da concessão de benefícios continuados, para cidadãos não incluídos no sistema contributivo de proteção social, que apresentem vulnerabilidades decorrentes do ciclo de vida e/ou incapacidade para a vida independente e para o trabalho. Já a segurança de sobrevivência a riscos circunstanciais (de apoio e auxílio) envolve a oferta de auxílios em bens materiais e em pecúnia em caráter transitório, denominados de benefícios eventuais para as famílias, seus membros e indivíduos (BRASIL, 2005, p. 18). As seguranças elencadas têm contemplado, no âmbito do SUAS, salvaguardadas suas peculiaridades, o atendimento de usuários, através do Programa Bolsa Família - PBF, voltado para famílias pobres e extremamente pobres, Benefício de Prestação Continuada – BPC, cujo público-alvo é constituído por pessoas idosas e pessoas com deficiência e Benefícios Eventuais – BE. A esse respeito o entendimento é o de que todos os benefícios citados se situam no campo dos Programas de Transferência de Renda que, na atualidade, sofrem alterações na sua implementação, em decorrência da pandemia. No que se refere ao PBF, seu valor é alterado para R$ 600,00, ou seja, valor referente ao Auxílio Emergencial, instituído pela Lei nº 13.982/2020, que será apresentado na seção a seguir. Todavia, nos casos em que o valor recebido mensalmente, pela família, for superior ao valor do Auxílio Emergencial, o valor maior será mantido. Ademais, foram adotadas medidas de suspensão temporária de coleta e registro de informações de crianças; e de mulheres que não estejam gestantes, suspensão de efeitos decorrentes de bloqueios, suspensões e cancelamentos dos benefícios. Há proposta de ampliação da cobertura do Programa Bolsa Família, para incluir os informais, desempregados e autônomos que estão 1579
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI recebendo o Auxílio Emergencial e transformar no Programa Renda Brasil, sob o argumento de ampliar o público atendido para metade da população brasileira (BRASIL, 2020). Ou esta medida constitui-se numa forma de o Governo Federal personificar o benefício recebido pelas famílias, posto que o PBF foi criado e implementado por governos petistas, de esquerda? A Lei nº 13.982/2020, altera também as regras de acesso ao BPC, com ampliação do critério de renda para até ½ salário-mínimo (R$ 522,50) durante o período de enfrentamento da pandemia causada pelo COVID-19. Para tanto, o Governo Federal definiu os seguintes fatores: grau de deficiência; dependência de terceiros para o desempenho de atividades básicas da vida diária e circunstâncias pessoais e ambientais, fatores socioeconômicos e familiares que podem reduzir a funcionalidade e a participação social da pessoa com deficiência ou idoso. Os benefícios eventuais merecem especial destaque, nesse contexto, cujas orientações gerais, acerca de sua regulamentação, gestão e oferta estão dispostas na Nota Técnica nº 20/2020, aprovada pela Portaria SNAS nº 58 de 15 de abril de 2020 e pela Portaria MC nº 337/2020, que trata da reconfiguração e organização da prestação da Assistência Social, no âmbito da pandemia. No contexto da pandemia a discussão, na Assistência Social, direciona-se, principalmente para a implementação desses benefícios, devido à sua natureza que envolve situações de calamidade pública e vulnerabilidade temporária e pela necessidade de regulamentação adequada para atendimento das demandas em diferentes territórios. A Lei nº 12.435/2011, Lei do SUAS, que aprimora a LOAS, define os benefícios eventuais: Art. 22 Entendem-se por benefícios eventuais as provisões suplementares e provisórias que integram organicamente as garantias do SUAS e são prestadas aos cidadãos e às famílias, em virtude de nascimento, morte, situações de vulnerabilidade temporária e de calamidade pública. Isso significa que os benefícios eventuais integram as garantias do SUAS, visto estar articulado organicamente a este sistema, que deve ser operacionalizado a partir dos serviços. Todavia, como é destacado no Informe nº 3 da Frente Nacional em Defesa do SUAS, diante das condições de baixa cobertura e aumento elevado da demanda com a pandemia, a articulação entre benefícios e serviços no SUAS terá que ser realizada de forma gradual, 1580
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI contando com investimentos financeiros, com informaçõe sobre a demanda e com maior compreensão dessa concepção por parte de gestoras/es e trabalhadoras/es (INFORME Nº 3 FNDS, p. 6). Os benefícios eventuais são ofertados pelos Municípios brasileiros, mediante leis municipais, em geral com recursos próprios, com ou sem cofinanciamento estadual e do Distrito Federal. Na realidade de pandemia, os sujeitos sociais envolvidos com seu processo de oferta enfrentam diversos desafios a saber: regulamentação a curto prazo dos benefícios. Quando não regulamentados, a norma deve estar de acordo com as normativas do SUAS e prever sua oferta em situações de calamidade pública; superar a cultura clientelista e assistencialista que, historicamente, tem marcado a oferta dos benefícios; articular benefícios aos serviços; garantir prontidão para prover segurança de sobrevivência; atender à demanda que se amplia nesse contexto; ofertar os benefícios em forma de transferência de renda, dentre outros. Além desses desafios, cabe lembrar o recente processo de desfinanciamento da Política de Assistência Social, baseado na ‘lógica’ de “fazer mais com menos”, cujo enfoque gerencial “restringe a agenda SUAS a resultados e busca pela eficácia, em detrimento da consolidação de um Sistema que vinha se estruturando na busca de condições efetivas para contribuir para o enfrentamento à pobreza” (CARNEIRO et al, 2019, p. 8). Convém lembrar que o crédito extraordinário de R$ 2,5 bilhões destinado para provisão do Serviço de Proteção em Situação de Calamidade Pública e de Emergências não substitui a necessidade de repasse regular e sistemático com recomposição do orçamento de forma a garantir o funcionamento da rede socioassistencial, sobretudo nesse contexto de pandemia. Como avalia a Frente Nacional em Defesa do SUAS, referindo-se ao contexto da pandemia “Na realidade do desastre é preciso afirmar e reafirmar a primazia do Estado como garantidor do direito e a participação complementar da sociedade civil” (INFORME Nº 3 FNDS, p.7). Essa preocupação não exclui a importância das doações, das ações de solidariedade num quadro de pandemia, mas enfatiza a responsabilidade pública para o seu enfrentamento, inclusive no campo da Política de Assistência Social. Nesta direção, a própria forma de instituição e implementação do Auxílio Emergencial precisa ser problematizada como forma de inibir uma possível reatualização do assistencialismo e benemerência. 1581
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI 4 O AUXÍLIO EMERGENCIAL NO CONTEXTO DA PANDEMIA DA COVID 19: segurança de renda? Considerando a situação de pobreza, miséria e desemprego agravados com a pandemia da COVID-19, foi instituída a renda emergencial pela Lei nº 13.982, de 2 de abril de 2020, constituindo-se num auxílio com duração de 3 (três) meses, no valor de R$ 600,00, dirigido a famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais – CadÚnico, beneficiários do Bolsa Família em forma de suplementação, autônomos, informais e ainda como parcela de adiantamento de Auxílio Doença ou BPC, cuja concessão se encontre represada há pelo menos 1 (um) ano. Com a ampliação do Auxílio Emergencial pela Lei nº 13.998, de 14 de maio de 2020, mães menores de 18 anos são incluídas como público para recebimento do auxílio. No que diz respeito ao atendimento do Auxílio Emergencial, no país, foram 53.919.640 benefícios aprovados, 53.615.799 pagos, 6.138 devolvidos e 297.703 retidos, conforme dados do Portal da Transparência do mês de junho/2020. Importa destacar que o Auxílio Emergencial resulta de um processo de luta dos trabalhadores, dos movimentos sociais, conselhos, fóruns, colegiados, organizações sociais, dentre outros sujeitos sociais para garantia de uma renda emergencial. Conquista essa que assegurou um valor de benefício de R$ 600,00 para o público elegível contra a proposta de R$ 200,00 do Poder Executivo, ambos insuficientes para garantir o atendimento das necessidades das famílias no contexto da pandemia. Todavia, há que se destacar a importância do benefício para as famílias que perderam ou tiveram sua renda reduzida pela necessidade de isolamento social. De acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2019 (Pnad Contínua/IBGE), os elegíveis ao Auxílio Emergencial somavam cerca de 60 milhões de indivíduos (29.1% da população). A maioria era beneficiário do Programa Bolsa Família (29,7%) ou se encontravam no perfil do Cadastro Único, mesmo não sendo beneficiário programa social (52,4%). O total de pessoas elegíveis sem perfil CadÚnico totalizava 10,9 milhões (5,2% da população e 17,9% dos elegíveis). Chama atenção o não reconhecimento do Auxílio Emergencial, enquanto um benefício eventual, situado no âmbito da PAS como segurança de renda e de sobrevivência, visto que assume características suplementares, sua oferta é temporária, possui caráter emergencial como sua própria denominação aponta. Conforme informe da Frente Nacional em Defesa do SUAS: 1582
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI [...] é preciso dizer explicitamente que a renda emergencial e temporária para atender à situação de calamidade não foi reconhecida como um benefício eventual previsto e já regulado nas provisões do SUAS, embora se enquadre perfeitamente nas definições constantes do art. 22 da LOAS. É importante dizer que a renda emergencial, ainda que criada e operada fora do SUAS, é um benefício eventual, pois assume suas características (INFORME Nº 3 FNDS, p.3). Ademais, o Auxílio Emergencial situa-se no âmbito da Política de Transferência de Renda, consistindo numa transferência de renda focalizada sem condicionalidades. A respeito da Política de Transferência de Renda, Silva (2002) ratifica o entendimento de que, pelo seu caráter, não contributivo essa política é considerada no âmbito da Assistência Social. Nesse sentido, analisando a temática no contexto brasileiro, a define como: uma Política Pública que se situa no contexto do Sistema Brasileiro de Proteção Social, concebida enquanto uma Política de Assistência Social por independer de contribuição prévia, materializando-se mediante programas de transferência monetária a famílias ou a indivíduos. A oferta do Auxílio Emergencial sem referência a uma Política Pública, tende a personificar o benefício na ‘figura’ de quem o concede e não se traduz como direito social para o cidadão. Pode se apresentar como dádiva, benemerência, bondades ou favor reforçando uma cultura assistencialista e clientelista que tem marcado historicamente as políticas sociais, no Brasil, especialmente a Política de Assistência Social. Em síntese, é preciso demarcar o Auxílio, enquanto um direito de cidadania no processo de sua oferta, em atendimento às necessidades básicas de indivíduos e famílias, intensificadas pela situação de emergência e de calamidade pública ocasionada pela COVID-19. Considerando a implementação recente do Auxílio, pode-se identificar alguns aspectos dificultadores referentes ao processo de concessão tais como: a não observância da prontidão de atendimento que a situação requer, mais de 7 milhões de elegíveis para receber a renda básica não têm acesso à internet, risco de contágio por aglomeração nas agências, falta de acesso a celular, dificuldade de inserir dados no aplicativo, instabilidade do sistema, constrangimentos, desinformação, não inclusão das equipes dos 8.370 Centros de Referência de Assistência Social – CRAS, existentes no país, no processo de concessão do Auxílio. O Boletim nº 5 do Centro de Estudos de Metrópole – CEM (USP) (2020), ratifica os limites referentes ao processo de implementação do Auxílio Emergencial e destaca: 1583
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI O governo optou pela implementação tecnológica que apresenta problemas por conta da baixa familiaridade e acesso da população de baixa renda às Tecnologias de Informação e Comunicação (aplicativos, telefones e computadores); 7,4 milhões de elegíveis que precisam acessar essas tecnologias vivem em domicílios que não têm acesso à internet; Ao escolher a opção 100% tecnológica e concentrada basicamente na Caixa Econômica Federal o governo dificultou o acesso à RBE para uma parcela importante da população. Longas filas e aglomerações aumentaram a exposição ao risco de contágio à Covid-19 dessa população; A articulação com governadores e prefeitos por meio de uma estratégia de mobilização da estrutura, serviços e mão-de-obra especializada da rede do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) minimizaria os enormes gargalos da implementação, permitiria agilizar o cadastro e o acesso ao benefício dos mais vulneráveis (BOLETIM CEM Nº 5, 2020). Convém acrescentar a estes desafios que o Auxílio Emergencial por si só não garante a proteção social exigida com a pandemia, visto a necessidade de atendimento das famílias por diferentes políticas públicas que propiciem a sustentação necessária nesse momento. Ademais, há que se considerar que a pobreza, no Brasil, é um fenômeno histórico, estrutural e multidimensional e que, portanto, deve ser enfrentado em várias frentes, considerando a intersetorialidade, tais como: saúde, educação, melhoria das condições de moradia, acesso à informação, alimentação, elevação do nível de estruturação do mercado de trabalho, segurança de renda, dentre outras. CONCLUSÃO A PAS situa-se na luta pelos direitos de cidadania, como política de proteção social articulada a outras políticas públicas, direcionada à garantia de direitos e de condições dignas de vida. Nesse sentido, constitui-se numa política que fortalece o desenvolvimento humano, afastando-se da noção assistencialista, de uma concepção de usuário assistido para afirmá-lo como cidadão. Os aspectos ressaltados neste artigo sobre o atual contexto de crise econômica e política, agravada pela COVID-19, apontam para impactos no processo de implementação da Política de Assistência Social, no país, à proporção que repercutem na ampliação das demandas dos usuários, surgimento de novos demandatários num contexto de desfinanciamento das políticas públicas e de forte pressão por cortes de recursos para a área social. Nesse contexto, marcado pelo avanço do neoliberalismo, com medidas impostas pelo Governo que expressam um cenário de redução de direitos, aumento da pobreza e de subordinação da política social à política fiscal, o SUAS tem suas bases estruturantes 1584
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI comprometidas num momento que exige seu incremento para o atendimento dos usuários da PAS pelas proteções sociais: básica e especial de média e alta complexidade. Convém destacar a desarticulação do Auxílio Emergencial em relação à PAS/SUAS e os desafios a serem enfrentados na perspectiva de atender as famílias para além da transferência de renda. Ou seja, ir além de provisões materiais, oferecer meios para o desenvolvimento ou (re) construção da cidadania e da autonomia, ou seja, de necessidades que vão além da reprodução material da vida. REFERÊNCIAS BRASIL. Síntese de Indicadores Sociais, 2019. _____. Constituição 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2008. ____. Lei orgânica da assistência social, n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993. DOU, Brasília, 8 dez.1993. CARVALHO, Alba Maria Pinho de. DESMONTE DOS DIREITOS DA CLASSE TRABALHADORA: assistentes sociais no combate ao conservadorismo. Conferência de abertura; 40º Encontro de Assistentes Sociais no Maranhão, maio de 2019. DOMINGUES, Edson; FREIRE, Débora; MAGALHÃES, Aline. Efeitos econômicos negativos da crise do Corona Vírus tendem a afetar mais a renda dos mais pobres. Nota técnica NEMEA. UFMG – CEDEPLAR, 2020. GIOVANNI, Geraldo di. Sistemas de proteção social: uma introdução conceitual. In: FOGAÇA, Azuete, et al. Reforma do Estado & Políticas de emprego no Brasil. Campinas: UNICAMP/IE, 1998. MARTINS, José de Souza (org.). A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 2002. PNUD. Relatório do Desenvolvimento Humano 2019. Além do rendimento, além das médias, além do presente: Desigualdades no desenvolvimento humano no século XXI SILVA. Maria Ozanira da Silva. A Política Pública de Renda Mínima no Brasil: perfil e tendências. Texto mimeo. São Luís: 2002. Frente Nacional em Defesa da Assistência Social. Assistência Social no enfrentamento à COVID-19. Informe Nº 3. Maio de 2020. 1585
EIXO TEMÁTICO 4 | SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA (IN) EFICÁCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS ADOTADAS PELO ESTADO FRENTE AO SISTEMA DE GARANTIAS À MATERNIDADE PARA USUÁRIAS DE CRACK (IN) EFFECTIVENESS OF PUBLIC POLICIES ADOPTED BY THE STATE FACING THE MATERNITY GUARANTEE SYSTEM FOR CRACK USERS Kércia Karenina Camarço Batista Rodrigues Leal1 Lúcia Cristina dos Santos Rosa2 RESUMO O presente artigo trata de um assunto recorrente ao longo dos últimos anos, o uso do crack pelas mulheres durante o período gestacional e o papel do Estado no tocante ao desenvolvimento de políticas públicas que resguardem os seus direitos. Ao longo dos tópicos discutidos neste artigo são descritos os procedimentos e métodos adotados pelo Estado no tocante à adoção das políticas públicas que visam minimizar as consequências clínicas geradas pelo uso das drogas, bem como auxiliar as mulheres usuárias de crack no que se refere ao período gestacional. A abordagem de elaboração e construção textual deste trabalho é a do ensaio teórico, baseando-se em estudos recentemente publicados e outros anteriores, mas de relevância acadêmica e caráter atual. Conclui-se que a implementação das políticas públicas voltadas às mulheres usuárias de crack no período gestacional ainda carece de atenção, na medida em que permanece aquém do esperado no cenário social hodierno. Palavras-Chave: Drogas, Gravidez, Políticas Públicas, Maternidade. ABSTRACT This paper deals with a recurring issue over the past few years, the use of crack by women during pregnancy and the role of the State with regard to the development of public policies that protect their rights. Throughout the topics discussed in this article, the procedures and 1 Professora do Curso de Direito de Bacharelado em Direto do Centro Universitário Unifacid e do Icev Instituto de Ensino Superior. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas junto à Universidade Federal do Piauí (UFPI). Mestra em Direito pela Universidade Católica de Brasília. E-mail: [email protected]. 2 Pós Doutora em saúde coletiva pela Unicamp. Professora titular da Universidade Federal do Piauí do Programa de Pós graduação em Políticas Públicas e do curso de Bacharelado em Serviço Social. E-mail: [email protected] 1586
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI methods adopted by the State regarding the adoption of public policies that aim to minimize the clinical consequences generated by the use of drugs are described, as well as assisting women who are crack users with regard to the gestational period. The textual elaboration and construction approach of this work is the theoretical essay, based on recently published studies and previous ones, but of academic relevance and current character. It is concluded that the implementation of public policies aimed at women who use crack during the gestational period still needs attention, as it remains below expectations in today's social scenario. Keywords: Drugs, Pregnancy, Public Policies, Maternity. INTRODUÇÃO O consumo do crack é caracterizado na contemporaneidade como um fenômeno devastador, com grandes consequências não só aos usuários como também às famílias e à sociedade em geral (CAMARGO et al., 2019). “O cenário epidemiológico brasileiro mostra a expansão do consumo de drogas pela população feminina”, especialmente de cocaína consumida na forma de pó ou na forma impura da pasta crack (FONSECA et al., 2017, p. 6). Mulheres grávidas usuárias de crack têm péssimas condições financeiras e estão em situação de vulnerabilidade social, inclusive pela distância com a política de assistência social e direitos humanos. “A família tem um importante papel no cuidado à gestante usuária de crack, pois é no seio familiar que esta mulher vai encontrar o apoio necessário para conseguir enfrentar a problemática do consumo de drogas” (VENTURA et al., 2020, p. 4). O uso de crack tende a ser associado à falta de higiene, falta de proteção sexual, e péssima alimentação, além da falta de acompanhamento médico, o que leva a gestante a expor o nascituro a doenças sexualmente transmissíveis, falta de nutrientes para o desenvolvimento e os danos ao feto pela exposição à droga. O resultado pode ser má formação física e mental da criança que está por nascer, risco de aborto, prematuridade, gestação de risco (VALENTE, 2017). A maternidade de mulheres dependentes de crack passou a ser considerada um problema social, uma vez que as futuras grávidas e puérperas, que usam drogas tendem a ser consideradas “negligentes”, ou seja, podem não apresentar condições de amamentar e/ou alimentar o filho adequadamente, nos cuidados do recém-nascido e se apresentar sem condições para auxiliar ou colaborar no desenvolvimento básico do filho. Também, depois da fase de lactente, podem não abraçar a necessidade de conduzi-lo no desenvolvimento educacional, inclusive pela ausência ou precariedade de 1587
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI suporte social e nas políticas sociais. Há, portanto, uma necessidade latente de intervenção de Órgãos Públicos – para acompanhamento tanto das mulheres usuárias e dos seus filhos – que identificarão a “melhor” forma de cooperar para que ambos tenham a assistência de que precisam (CHAVES et al., 2011). Dessa forma, as políticas de saúde e, sobretudo, os Conselhos Tutelares e todo o Sistema de Garantia de Direitos passam a ter um investimento específico sobre esse público. No entanto, é importante averiguar se as políticas públicas e todo o Sistema de Garantia de Direitos estejam atuantes ou não. Por isso, este artigo tem como objetivo exploratório compreender as ações públicas em torno das mulheres no período gestacional e puerpério e que consomem o crack, sobretudo na área da saúde e no Sistema de Garantia de Direitos, e, principalmente, averiguar se as políticas públicas voltadas a esse seguimento da sociedade estão dando atendendo os objetivos mapeados em seus projetos. A abordagem escolhida para a consecução deste trabalho é a do ensaio teórico, caracterizada por Meneghetti (2011, p. 30) pela “sua força, [que] apesar de não estar atrelada ao rigor metodológico, como acontece na produção científica, está na capacidade reflexiva para compreender a realidade”. Dessa forma, este artigo conta com a reflexão fundamentada “em exposição lógica e reflexiva e em argumentação rigorosa com alto nível de interpretação e julgamento pessoal” (PRODANOV, 2013, p. 163). 2 A COMPLEXIDADE DA PROBLEMÁTICA DO USO DE DROGAS Segundo Queiroz (2008), no Brasil, o crack começou a circular na cidade de São Paulo, na década de 1990. A partir das problemáticas que emergem com o crescente uso e abuso da substância, vários são os desafios ao poder público, à sociedade e às políticas envolvidas na questão das drogas no país, sobretudo: saúde, segurança pública e assistência social. [...] como parte de uma estratégia nacional, foi implementado pelo Governo Federal o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, por meio do Decreto n°. 7.179 de 20 de maio de 2010, alterado pelo decreto 7.637 de 08 de dezembro de 2011, que instituiu o Programa Crack, é possível 1588
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI vencer, apoiado em três eixos estruturantes de cuidado, autoridade e prevenção (BRASIL, 2014, p.11). No Brasil, há diversas iniciativas organizadas pelo Estado no enfrentamento da problemática, tanto no sentido da repressão do tráfico quanto em ações preventivas e de recuperação de pessoas do consumo de drogas. Historicamente, as ações governamentais se pautaram em ações vinculadas à segurança pública e, mais recentemente, houve maior associação da questão à área da saúde pública, ampliando a ênfase nas ações na perspectiva da recuperação, portanto, dimensão curativa. Em 2006, foi instituído o SISNAD – Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, através da Lei nº 11.343/06, que estabelece medidas para a prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes, estabelece normas para a repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e define crimes. A partir dessa lei, há a distinção entre usuário e traficante de drogas, resolvendo a situação anterior de indistinção entre um e outro. Estudiosos indicam que os determinantes para o consumo de drogas estão associados a um tripé, que envolve o indivíduo, a sustância e o seu contexto de vida, figurando uma relação complexa e dialética, com diferentes desenhos. O uso advindo de tais circunstâncias pode acarretar sérios problemas para as pessoas no curto e no longo prazo. Na sociedade atual, a instalação de um padrão de uso dependente é cada vez mais estimulada pela falta de estrutura ou acompanhamento dos cidadãos, no geral, criminalizados e estigmatizados, até como efeito relacionado às políticas repressivas, que mais tem encarcerado que tratado desse seguimento. 2.1 PERFIL DO USUÁRIO/AS DO CRACK NO BRASIL Mulheres, atualmente, também compõem o complexo quadro de usuários dessa droga. Uma pesquisa da Universidade de São Paulo revela que elas ficam mais dependentes e usam drogas com mais frequência dos que os homens, estimando-se a divisão do grupo em 54% de usuárias mulheres contra 46% de usuários homens (UNIFESP, 2015). O uso abusivo de drogas entre as mulheres é influenciado por fatores sociais e culturais, processos e, com isso, é necessário conhecer os fatores que desencadeiam esse uso abusivo (CAMARGO et al., 2019). 1589
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI Acredita-se que se a mulher usuária de crack não receber apoio da família, poderá apresentar dificuldade de cuidar do filho. Em alguns casos a criança é afastada da mãe após o nascimento para ser protegida e cuidada. Essas mulheres podem sentir medo de serem punidas e perderem a guarda dos filhos, perderem o companheiro, sendo que, muitas vezes, este também é usuário. Além disso, têm medo de serem institucionalizadas, sendo esse o motivo pelo qual elas demorem mais tempo para pedir ajuda (VENTURA et al., 2020, p. 4) Conforme Santos (2016, p. 12), a violência é um dos motivos que levam à mulher ao uso de drogas, especialmente o crack, considerando que muitas delas já sofrem agressões por companheiros usuários. Uma pesquisa realizada pela FIOCRUZ (2014) destaca que cerca de 20% da população da Cracolândia são mulheres. No que se refere às gestantes usuárias de crack, estas correspondiam a 10% e relataram que sofreram e sofrem abusos físicos e sexuais. Relatam, ainda, que se torna muito difícil fazer o acompanhamento pré-natal devido a sua situação como usuária de droga. Além disso, tendem a ser estigmatizadas nos serviços de saúde. “O abuso de substâncias durante a gravidez está associado a uma considerável morbidade e mortalidade obstétrica. Sua prevalência é amplamente desconhecida” (FONSECA et al., 2017, p. 2). Em adição outras complicações podem ser listadas: “parto prematuro, anormalidades placentárias, complicações hipertensivas, restrição de crescimento fetal, bebês de baixo peso ao nascer, síndrome de abstinência neonatal, síndrome de morte súbita infantil e efeitos comportamentais em longo prazo têm sido associados ao uso de substâncias pré-natais” (FONSECA et al., 2017, p. 2). Além da questão do consumo de crack por parte das entrevistadas, ficou constatado que 8,17% das mulheres entrevistadas têm HIV e 2,23% tem hepatite C. Doenças relacionadas à utilização de seringas ou contato íntimo com pessoas que tenham a doença, esse fato deixou os pesquisadores impactados, porque algumas das doenças que essas mulheres têm, são tratáveis de forma clínica e com poucos recursos (FIOCRUZ, 2014). Segundo Costa et al. (2015), poucos estudos científicos retratam o seu cotidiano, mas sabe-se que, apesar de estarem em situação de rua, muitas desejam criar seus bebês. Percebem no filho um fator motivacional para seguirem em frente, planejam um futuro com eles, e, por vezes, junto também aos seus companheiros. Enfatiza-se a dificuldade dessas mulheres de tomarem consciência do que desejam, embora nem sempre consigam executar ações para concretizá-los. Para elas, as mudanças 1590
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI necessárias estão bem distantes. Por medo de perderem a guarda, inclusive, algumas se escondem e não realizam o exame pré-natal e, como enfatizado, “os serviços de acolhimento pouco ou nada contribuem para esse processo” (COSTA et al., 2015, p.1098). 3 GESTAÇÃO DE RISCO ATRAVÉS DO USO DE CRACK No campo da saúde pública torna-se importante um olhar mais ampliado do que venha a chamar de fenômeno do crack por gestante por parte das instituições saúde, uma vez que o uso da droga pode acarretar graves complicações tanto para a mãe quanto para o feto. O uso de drogas lícitas e ilícitas durante a gestação sempre foi uma questão de difícil manejo. Apesar de ser assunto pouco abordado pelos governos, trata-se de um problema de saúde pública, uma vez que as repercussões nos desfechos destas gestações acabam sendo extremamente onerosas para a sociedade. Neste cenário uma nova droga vem ganhando espaço entre os usuários de drogas ilícitas. Derivado da cocaína, o crack tem um poder aditivo superior ao da cocaína e o uso dessa substância vem crescendo dramaticamente entre as gestantes. Estima-se que até 10% das mulheres norte-americanas tenham utilizado cocaína ou crack durante a gestação, tendo ocorrido parto prematuro ou descolamento prematuro de placenta na maioria dessas pacientes (MELLO, 2011, p, 12). No campo da saúde pública, é urgente a implementação de ações baseadas na Política Nacional de Humanização para o atendimento a essas mulheres através de uma acolhida mais compreensiva, sem julgamentos e preconceitos, que propicie adesão ao pré-natal e reinvenção da vida. Na década de 1980, o intenso debate sobre os direitos humanos teve como ponto culminante, no Brasil, a elaboração da Constituição de 1988, a qual destacou a saúde como uma das condições essenciais à vida digna, sendo, portanto, um direito humano fundamental. Assim, a política de saúde brasileira foi formulada a fim de viabilizar a garantia normativa máxima do direito à saúde (RONZANI, MOTA, 2015, p, 317). É comum observar que as gestantes usuárias de crack geralmente estão com os vínculos rompidos com suas famílias de origem, e possuem um baixo suporte social devido à discriminação. A maioria delas vive em situação de pobreza, tem baixo nível escolar (FIOCRUZ, 2014), algumas se encontram em situação de rua e há o agravante da falta de preparo dos profissionais de serviços de saúde para acolher esse público. A 1591
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI atenção primaria à saúde é a porta de entrada para do Sistema Único de Saúde, pois este é o lugar onde se inicia a atenção às gestantes usuárias de drogas, com a intenção de alcançar a integralidade de seus cuidados, com os recursos da Política Nacional sobre Drogas. Na associação entre álcool e outras drogas e a política de saúde, Ronzani e Mota (2015, p, 319) destacam que: Embora tradicionalmente o uso de álcool e outras drogas tenha sido alvo de abordagens moralistas e reducionistas, considerando a diversidade de danos relacionados ao uso dessas substâncias, em 2003 foi publicada no Brasil a Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas. Essa política se comprometeu a enfrentar os diferentes problemas associados ao consumo de álcool e outras drogas como uma questão de saúde pública. O uso desta política necessita de condutas articuladas aos diversos serviços; saúde, habitação, assistência social, previdência social. É recomendado um atendimento com escuta humanizada para compreensão das ideias, dos valores e desejos das gestantes usuárias de crack. Ademais, os profissionais de saúde tornam-se essenciais no acolhimento das gestantes usuárias de crack e para a continuidade do acompanhamento como forma de diminuir os riscos de saúde para a mãe e o futuro recém-nascido. Os profissionais da saúde, em especial de Enfermagem, são importantes contatos com as pessoas que apresentam alto risco de saúde em consequência do uso de substâncias psicoativas. Se estes assumem a função de assistência direta a essa população, podem oferecer cuidados efetivos, prevenindo o agravamento dos problemas. Destaca-se que os enfermeiros possuem grande potencial para reconhecer os problemas relacionados ao uso de drogas e desenvolver ações assistenciais, tendo em vista que mantêm contato próximo aos usuários dos serviços de saúde. Além disso, esses profissionais são agentes importantes no processo de transformação social, participando no planejamento e desenvolvimento de programas e projetos de promoção de saúde, prevenção do uso de substâncias psicoativas e reabilitação psicossocial (WRONSKI et al., 2016, p. 18). Nesse contexto, a mulher gestante usuária de crack tem dificuldade de ser acompanhada no pré-natal e muitas não conseguem exercer a maternidade na sua plenitude e não participam de grupos de gestantes, o que aumenta os riscos de intercorrências maternas e fetais. O consumo de cocaína durante a gravidez pode ser responsável pelo baixo peso do recém-nascido, por elevado número de crianças 1592
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI pequenas para a idade gestacional, além de causar aumento no número de partos prematuros (CEMBRANELLI et al., 2012). Logo, é considerada uma gestação de alto risco. Segundo Olivio e Graczyk (2011, p, 04) o uso de substâncias psicoativas, mais especificamente o crack, [...] visualizado a partir de uma concepção restrita de saúde, pode acarretar na interpretação da maternidade em mulheres usuárias de crack também, a partir de uma dualidade da boa mãe ou da anormal. Partindo do pressuposto da existência de um vínculo natural entre mãe e filho desde antes do nascimento, espera-se da mulher o instinto nato da maternagem, ou seja, do cuidado para com o recém-nascido (OLIVIO; GRACZYK, 2011, p, 04). A sociedade espera que todas as gestantes amem seus filhos e cuidem desses, no entanto, este amor e cuidado dependem de condições propícias para se desenvolver, estando associado a estímulos e suportes sociais, produzidos em dado contexto sociocultural. Contudo, com a idealização da mulher mãe, a sociedade e todo imaginário social podem tomar este olhar a partir do bebê, no geral, negligenciando o olhar sobre a mãe e seu contexto de vida. 4 POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO À MATERNIDADE DE MULHERES “USUÁRIAS DE CRACK” Para analisar a efetividade das políticas públicas é importante observar se estas estão sendo implementadas de acordo com a necessidade dos cidadãos, configurado como um ser plural, embora formalmente iguais, perante a lei. Na sociedade capitalista, desigual, a política pública tem denso papel frente às desigualdades sociais. Nos últimos anos, no campo das políticas públicas, nota-se uma crescente articulação no enfrentamento ao uso do álcool, crack e outras drogas. Este enfrentamento quando assumido como uma dimensão de fenômeno social necessita uma construção e atualização que vai para além da abstinência ou para minimizar seu uso, precisa incluir a família no processo de desintoxicação, tratamento e reabilitação dos usuários (VENTURA et al., 2020, p. 9). É através da política pública, com corte social, que o Estado atua para amenizar os conflitos e desigualdades sociais pela redistribuição de bens e serviços. Contudo, são desenhadas a partir do relacionamento e dos interesses existentes entre várias camadas da sociedade em disputa até pelas políticas e fundo público. Nesse processo, os atores políticos possuem importante participação para a priorização e destinação de recursos 1593
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI públicos para determinada política pública. Além disso, é importante salientar que as implementações das políticas públicas nas sociedades capitalistas também estão sujeitas à interferência de cenários macroeconômicos de crise ou estabilidade (MOTA, 2014). Essa pode ser considerada uma das principais atividades políticas realizadas atualmente, sendo em muitos casos realizadas por um determinado grupo com conhecimento tanto da parte política como da parte social, procurando identificar principalmente como os procedimentos realizados podem ser melhorados no contexto social. Atualmente, as políticas públicas são observadas ou apontadas como um instrumento utilizado pelo estado para tratar de assuntos que geram profundos impactos ao desenvolvimento social, com destaque para a questão da desigualdade, acessibilidade e das drogas. Um dos principais passos dentro do contexto das políticas públicas para combater ou conceder assistência a pessoa usuária de drogas ocorre em 1970, quando são criados programas sociais para fornecer tratamento, voltado principalmente às pessoas com um padrão dependente. Ainda na década de 1970, é editada a lei n. º 5.726, de 29 de outubro de 1971, que dispôs de medidas de tratamento, como a internação em estabelecimentos hospitalares e de medidas repressivas ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes. Além disso, esta lei não faz qualquer referência ao tratamento para a população usuária de drogas, exceto daqueles referidos como \"infratores” e “viciados\" (ALVES, 2009). Os projetos sociais voltados para promover assistência às pessoas usuárias de drogas para além da saúde, no Brasil, historicamente estiveram associados a alguns projetos desenvolvidos principalmente por instituições religiosas ou filantrópicas, apontadas como uma das grandes incentivadoras e motivadoras da reabilitação das pessoas usuárias de drogas. Os projetos de cunho médico-assistencial representam 15,38% do total e estão direcionados para o tratamento de dependentes em instituições de saúde pública ou do setor privado conveniado (MORAIS, 2002). Outro foco de atenção desses projetos é a prevenção de doenças (sobretudo, hepatite, sífilis e AIDS) transmitidas pelo uso compartilhado de seringas. A distribuição de seringas esterilizadas tem sido um eficiente meio de controle dessas doenças, pela estratégia da redução de danos, que consiste em ações para minimizar as consequências 1594
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI deletérias do uso, para quem não quer, não pode, ou não consegue deixar de consumir. Por essa via, desenvolveram-se alternativas concretas para minimizar danos e assegurar uma atenção a esse seguimento (GRUP; IGIA, 2000; SKOTT; JEPSEN, 2002), com tendência de diversificação de ações a partir dos anos 2000. As ações governamentais passam a se orientar para as cenas de uso, através da implementação do Consultório de Rua, a partir de 2010, em várias capitais do Brasil, instituídos a partir de edital público do governo federal, que passa a incentivar financeiramente essa iniciativa. Tal serviço passa a dar uma atenção específica às mulheres usuárias de drogas em situação de rua, contando o Piauí com um desses equipamentos situados em Teresina. O Piauí é um dos primeiros estados brasileiros a contar com 6 leitos de atenção psicossocial, na Maternidade Dona Evangelina Rosa, muito utilizado pelas mulheres que consomem crack (SILVA, 2019). Tramita junto à Câmara de Deputados o projeto de lei N.º 7.142, de 2017, que dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências, para instituir o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Gestantes Dependentes Químicas. O objetivo do referido Projeto de lei é “instituir um Centro de atendimento especializado no acolhimento, atenção e recuperação da grávida viciada em drogas, visando assegurar a saúde física e mental da mãe viciada e do filho que irá nascer”. Apesar dos avanços nos investimentos para o desenvolvimento de serviços que atendam às particularidades de determinados segmentos sociais, implementados com base no princípio da equidade, ainda se observam várias lacunas em relação às mulheres gestantes consumidoras de crack, pois, no geral, ainda persistem sem acompanhamento dos serviços de saúde durante o período do pré-natal. Estudos como o de Veloso (2011), que pesquisou a realidade do uso de álcool por adolescentes grávidas mostram que, durante o pré-natal, sequer é perguntado pelos profissionais se as adolescentes consomem drogas durante a gestação, o que é negligenciado em se tratando de gestante, usuária de crack e, assim, mais uma vez, estas ficam desacobertadas de políticas públicas necessárias tanto em relação à gestante como em relação ao nascituro. Também apontam que a maioria que tem um padrão de consumo dependente do álcool manifestou desejo de se tratar, mas sem continuidade nessa atenção. O que tem se observado é que há uma tendência, quando a mãe é usuária de 1595
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI crack, de o conselho tutelar ser acionado e priorizar meramente os direitos de proteção da infância, deixando a mãe sem cuidado e proteção. Para Ventura et al. (2020, p. 10) “as gestantes usuárias de crack socialmente são privadas de seus direitos, têm ausência de oportunidades, vivem em situação de vulnerabilidade, evasão escolar, moram na rua, em situação de pobreza extrema. Muitas vezes, não possuem vínculos familiares”. Discussões sinalizam para a crescente tendência de esses filhos serem postos para adoção, com alguns juízes já padronizando ações nesse sentido, sem assegurar o direito à convivência familiar, como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente. Com a perspectiva de redirecionamento da política sobre drogas, para tendência de direcionamento de retorno à manicomialização, o risco de se ignorar política baseadas na equidade são intensas. CONSIDERAÇÕES FINAIS As mulheres apresentam vulnerabilidades relacionadas às questões de gênero, que as expõem a padrões de sofrimento, adoecimento e morte distintos dos homens. Quando por qualquer motivo mencionado neste artigo, a mulher inicia a vivência no mundo do crack e, posteriormente, vem a engravidar, ela se expõe de forma que sua saúde e a do feto estão preteridos. Percebe-se, ainda, que a assistência é insipiente no Brasil, mesmo considerando as políticas e projetos de lei implantados, com alguns desses projetos de lei não sendo, sequer, votados. Por apresentarem uma maior vulnerabilidade emocional, psicológica e social se observa que ao longo dos anos são muitos os casos de mulheres que utilizam drogas, com destaque para cocaína e crack. Tais drogas são consideradas de grande risco, uma vez que promovem alucinações e podem gerar um grande impacto à saúde psicológica delas. Observando os tópicos apresentados ao longo do trabalho, conclui-se que as drogas continuam sendo um dos principais problemas sociais presente no mundo todo e que tal problema vem ganhando cada vez mais visão por parte dos representantes políticos e sociais. As políticas públicas brasileiras, a partir dos anos de 1990 tenderam a diversificar ações e se orientar pelo princípio da equidade, contemplando as particularidades das mulheres gestantes consumidoras de crack. Contudo, ainda se apresenta baixo diálogo entre as políticas para as mulheres, a política sobre as drogas e 1596
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI a política de saúde/saúde mental. A persistência da fragmentação das políticas e a parca sinergia comprometem os diretos humanos desse segmento. Conclui-se que, apesar de leis, projetos de lei e políticas públicas sociais voltadas ao segmento das mulheres gestantes usuárias do crack, estes ainda são precários e insuficientes e, portanto, nota-se que Estado ainda é omisso e falho no tocante a problemática abordada. Assim, diante do que for abordado, nota-se que mulheres usuárias de crack não recebem um tratamento célere e tão eficaz por parte do Estado que realmente as protejam como cidadãs e, principalmente, no que tange aos direitos assegurados a maternidade. De forma específica, o problema também é enfrentado no atendimento das mulheres em serviços públicos de saúde, que podem não estar devidamente preparados para receberem pacientes em tal situação de vulnerabilidade. REFERÊNCIAS ALVES, V. S. Modelos de atenção à saúde de usuários de álcool e outras drogas: discursos políticos, saberes e práticas. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 25 (11): 2309-2319, novembro, 2009. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde Avaliação do Programa Crack, é Possível Vencer, 2014. Disponível em https://www.cnm.org.br/cms/biblioteca/Avalia%C3%A7%C3%A3o%20do%20Programa %20Crack,%20%C3%A9%20Poss%C3%ADvel%20Vencer_2014.pdf. Acesso em Mar de 2020. CAMARGO, P. O. et al. The Motherhood Experience of Women Crack Users: Experiences Shared Between Children and Mothers/A Experiência da Maternidade em Mulheres Usuárias de Crack: Vivência Entre Mãe e Filho. Revista de Pesquisa: Cuidado é Fundamental Online, v. 11, n. 5, p. 1272-1277, 2019. CEMBRANELLI E.; CAMPOS, L. R. F.; MARCEL, P.; ABREU, P. V. C.; SALOMÃO, P. C.; MONTEIRO, D. L. M. Consequências do uso de cocaína e metanfetamina durante a gravidez. Femina, v. 40, n. 5, 2012. CHAVES, T. V.; SANCHEZ, Z. M.; RIBEIRO, L. A.; NAPPO, S A. Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Revista de Saúde Pública, v. 45, n.6, p.1168-1175, 2011. 1597
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EIXO TEMÁTICO 4 | SEGURIDADE SOCIAL: ASSISTÊNCIA SOCIAL, SAÚDE E PREVIDÊNCIA PROGRAMA CRIANÇA FELIZ E O PERECIMENTO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL HAPPY CHILD PROGRAM AND THE PERISMATION OF SOCIAL ASSISTANCE Akleyanne Kelle Saraiva Pinto1 RESUMO Este artigo que se intitula “Programa Criança Feliz e o Perecimento da Assistência Social” teve como objetivo principal, apresentar fatores contraditórios à política de assistência social envoltos na realização do Programa Criança Feliz, instituído através do decreto nº8869/2016 pelo Governo Federal. O decreto, juntamente com notas públicas de Conselhos Federais e Regionais de Serviço Social, e outros artigos referentes à Assistência Social, foram primordiais para a construção de um debate teórico sobre o retrocesso da política pública de assistência social no Brasil, advindo pelo programa federal em questão. Palavras-Chaves: Programa Criança Feliz. Políticas Públicas. Assistência Social. ABSTRACT This article entitled \"Criança Feliz Program and the perishment of Social Assistance\" had as its main objective, to present contradictory factors to the social assistance policy involved in the realization of the Happy Child Program, instituted through the decree nº8869/2016 by the Federal Government. The decree, together with public notes from Federal and Regional Councils of Social Service, and other articles referring to Social Assistance, were primordial for the construction of a theoretical debate on the retrocession of the public policy of social assistance in Brazil, arising from the federal program in question. Keywords: Criança Feliz Program. Public Policy. Social Assistence. 1 Assistente Social da Prefeitura Municipal de Fortaleza, Especialista em Gestão Pública com ênfase em Gestão por Resultados nas Organizações Públicas e Professora da Anhanguera Fortaleza. E-mail: [email protected] 1600
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI INTRODUÇÃO A partir do apoio e do acompanhamento dos cuidados às crianças, prestados pela família que recebe transferência de renda, o Programa Criança Feliz, designa a promoção e o desenvolvimento humano. A atividade principal a ser desenvolvida, caracteriza-se por visitas domiciliares de forma periódicas, onde visitadores darão orientações quanto aos cuidados e estímulos necessários, para um melhor desenvolvimento da criança. Ao ser apresentado dessa maneira, fica a indagação, quanto ao título apresentado. Afinal, por que o desenvolvimento integral da criança em sua primeira infância, é visto como algo contrário à política de assistência social? E mais do que isso, significa um retrocesso à mesma? E é através dessas, pertinentes indagações, que foi desenvolvido esse estudo, com propriedade teórica, e de natureza qualitativa. Onde desde o início, logo após a apresentação do que se trata esse programa e seus objetivos, traçam-se análises críticas necessárias em torno desde programa em tela. Tendo isto, como objetivo central deste artigo, a apresentação dos fatores característicos, que nos levou a considerar o Programa Criança Feliz como um importante mecanismo de retrocesso e desproteção social. 2 A “FELICIDADE” DA CRIANÇA, E A “TRISTEZA” DA ASSISTÊNCIA SOCIAL A população brasileira, em 5 outubro de 2016, foi surpreendida com a publicação do decreto nº 8.869 que institui o Programa Criança Feliz (PCF). Embora tenha sido alterado pelo decreto nº 9.579 de 22 de novembro de 2011, ainda se caracteriza o programa, logo em seu artigo 1º como “intersetorial, com a finalidade de promover o desenvolvimento integral das crianças na primeira infância, considerando sua família e seu contexto de vida”. Em 24 de novembro de 2016 o Conselho Nacional de Assistência Social aprovou a resoluções CNAS, nº 19 e 20 que institui o Programa Primeira Infância, e aprova os critérios de partilha para o financiamento federal do programa no Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Esta seria a parte que caberia à Assistência Social dentro do programa Criança Feliz, entretanto não se tem conhecimento de que tenha sido instituído também em outras 1601
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI políticas setoriais, deixando para a política de assistência social, dos municípios e estados, a responsabilidade para coordenar e organizar o programa em articulação intersetorial. (AKERMAN, 2018). Antes Coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e agrário (MDSA) e atualmente coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), o Programa Criança Feliz, teve em seu lançamento a apresentação da, então primeira- dama, em 2016, Marcela Temer, como embaixadora Voluntária, advém daí a primeira crítica ao programa em questão. Tendo em vista que esse fato último, foi caracterizado pela lembrança que trazia ao primeiro damismo – prática antirrepublicana no âmbito das gestões de políticas públicas sociais – significando a quebra de um processo de amadurecimento de um sistema de proteção social, público, e acessível a todos os cidadãos brasileiros. Cabe fazer um destaque ao fato de que: No primeiro damismo, mesmo quando a primeira dama não assume o cargo da gestora da assistência social, ela continua representando a área, como “madrinha”, embaixadora ou lugares congêneres, trazendo uma superposição das ofertas de assistência social, na criação de programas paralelos que se chocam com a previsão de comando único da assistência social, a partir da política pública regulamentada no Sistema Único de Assistência Social- SUAS. (AKERMAN, 2018, p.4) Destacando-se como um dos maiores retrocessos do programa, em nota pública o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), argumentou sobre essa temática: De um lado, o apelo para que as primeiras-damas dos estados e municípios imprimam os esforços necessários para a adesão ao programa [...] de outro lado, agregado a esta direção, está o conservadorismo, a filantropia, a pulverização e a residualidade contida no Programa. (CFESS,2017, p.01) Caracteriza-se como um verdadeiro retrocesso na Política de Assistência Social. Os órgãos e setores que fazem a Assistência Social, lutam desde a Constituição de 1988 – que estabeleceu a assistência social como dever do Estado e direito do povo – para desconstruir esse “assistencialismo”, e “primeiro damismo”, tão socialmente fixado em nossa sociedade. O Programa Criança Feliz destina-se a atender prioritariamente gestantes e crianças, de 0 a 3 anos de idade, que fazem parte de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF); bem como, crianças até os 6 anos de idade que sejam beneficiárias 1602
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI do Benefício de Prestação Continuada (BPC). E por fim, com também idade de até 6 anos, crianças afastadas do convívio familiar em razão da aplicação de medida de proteção de acolhimento institucional. O Programa em análise apresenta, tais objetivos: I- Promover o desenvolvimento humano a partir do apoio e do acompanhamento do desenvolvimento infantil integral na primeira infância; II - Apoiar a gestante e a família na preparação para o nascimento e nos cuidados perinatais; III - Colaborar no exercício da parentalidade, fortalecendo os vínculos e o papel das famílias para o desempenho da função de cuidado, proteção e educação de crianças na faixa etária de até seis anos de idade; IV - Mediar o acesso da gestante, das crianças na primeira infância e das suas famílias a políticas e serviços públicos de que necessitem; e V - Integrar, ampliar e fortalecer ações de políticas públicas voltadas para as gestantes, crianças na primeira infância e suas famílias. (Decreto nº8.869/2016). O que deve ser destacado, diante de tais objetivos supracitados é que, conforme citado na Tipificação Nacional dos serviços Socioassistenciais, são demandas já atribuídas ao Serviço de Proteção e Atendimento Integral às Famílias (PAIF). Sendo ainda, o público-alvo do PCF, público prioritário no atendimento PAIF nos Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de todo o território nacional. De acordo com Arcoverde, Alcantara e Bezerra (2019) o Programa Criança Feliz “prioriza o “terceiro setor”, reforçando a responsabilização da sociedade civil pela execução da política”. Tudo isso, eles complementam explicando que, “vai na contramão da LOAS e do SUAS, que priorizam a execução direta dos Estados nos serviços, programas e projetos.” Ou seja, não há registros de uma inovação no Programa Criança Feliz, que possa explicar a sua existência, de forma complementar aos sistemas públicos de atenção social que já operam quanto aos estímulos e aos cuidados familiares das crianças, na gestão governamental. Levando essa realidade em consideração pode-se concordar que a operacionalização do Programa Crianças Feliz: Está sob a coordenação da assistência social nos entes federados, fora do SUAS – desrespeitando a tipificação nacional dos serviços socioassistenciais, o pacto federativo e os critérios de instalação dos serviços, como também a NOB-RH/SUAS e as Resoluções nº17/2011 e nº09/2014, que tratam dos 1603
ANAIS III SINESPP 2020 SIMPÓSIO INTERNACIONAL ESTADO, SOCIEDADE E POLÍTICAS PÚBLICAS | PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS - PPGPP UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ – UFPI recursos humanos nos serviços e definem quem são os/as trabalhadores/as do SUAS. (CFESS,2017, p.01). Quanto aos recursos humanos, preocupa-se com a precarização da gestão e do trabalho na área do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), assim como com a sobrecarga sobre os profissionais de nível superior das equipes de referência dos CRAS. Tendo ciência de que se aloca em cada um deles, em todo o país, a supervisão desse programa. O conselho Federal de Assistência Social em sua nota pública, fala ainda sobre essa situação, alegando que O Programa Criança Feliz, ou como foi batizado no âmbito da política de Assistência Social, Programa Primeira Infância no SUAS: É um programa que, na essência, prioriza o “terceiro setor”, indo na contramão da LOAS e do SUAS, que priorizam a execução direta do Estado nos serviços, programas e projetos. O município terá a contrapartida de R$50,00 por criança/família para o Programa e a fonte do financiamento ainda é controvertida, havendo fortes razões, para acreditar-se que esteja saindo do orçamento da assistência social, em prejuízo aos serviços co- financiados e programas do SUAS. [...] além disso, em termos de unidade orçamentária, este montante não está vinculado ao Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS), mas ao MDSA. (CFESS,2017, p.01-02). A questão que merece ser enfatizada, é a realidade do Programa Primeira Infância no SUAS contar com um recurso financeiro enorme para a sua implantação, enquanto os municípios ainda solicitam ampliação de suas verbas, advindas do governo federal, para afiançar a universalização da proteção socioassistencial. No orçamento federal já possui os recursos para o Programa Criança Feliz garantidos. Caracterizando-se como um notório afronte à proposta de emenda à constituição (PEC) 241, que congela por 20 anos os investimentos em educação, saúde e assistência social, gerando um grande déficit nessas políticas públicas. Entende-se que o Programa Criança Feliz se encontra sob violação aos princípios da eficiência e da economicidade na gestão pública. [...] o agente público tem o dever de atuar com presteza e perfeição em busca de resultados positivos para o serviço público e a comunidade (SPOSATI, 2017, p.532). Destaca-se, por fim, um ponto igualmente crítico em relação a esse programa, em desenvolvimento no Brasil, o fato, do mesmo ir contra princípios defendidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é o mais notório documento referente à defesa das crianças em nosso país. 1604
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